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Caprichos da fortuna

A fortuna, peça-chave da obra de Nicolau Maquiavel, é o limite da política. Exterior aos


homens, determina a condição da sua existência no mundo: precária e incerta. Sua
representação feminina, na forma de deusa volúvel e caprichosa, data de uma longa
tradição.

Na Roma antiga, segundo Hanna Pitkin, a imagem da fortuna era associada à


cornucópia – símbolo de abundância –, ao leme de um navio e à roda, metáforas do seu
controle sobre o destino dos homens. Já naquele tempo, a virtù, limitada e respeitosa,
ensaiava resistência aos caprichos da fortuna. Tímida, ela representava o empenho dos
homens em se fazerem senhores de si em meio à presença incontornável da deusa.

No mundo medieval, o cristianismo ressignifica a fortuna numa ordem rigidamente


hierarquizada. Ela deixa de ser objeto de súplica, interpelação e influência por parte
daqueles que são o destino de suas ações. Na representação de Dante Alighieri, afinada
com esse novo retrato, a dama fortuna, “senhora de permutações”, perde seu
protagonismo e figura em posição menor diante do Deus cristão.

No mundo do Renascimento, renasce a fortuna sem as amarras divinas, mas agora em


duelo com os homens, empenhados em definir seus caminhos

No mundo do Renascimento, renasce a fortuna sem as amarras divinas, mas agora em


duelo com os homens, empenhados em definir seus caminhos. Ela não volta na sua
forma antiga, senhora do destino, mas tampouco cede aos homens o governo de suas
vidas. Na virada antropocêntrica, há uma marcada tensão entre a suposição de realidade
dessa força externa e o novo entendimento dos homens a respeito das suas
possibilidades de conhecimento e ação no mundo.

Pico della Mirandola, pensador renascentista contemporâneo de Maquiavel, recusa o


governo da fortuna sobre o homem e descreve-a como “filha da sua alma”, esvaziada de
uma realidade em si. Mas a máxima do filósofo humanista não se estabelece sem
contraste: ela convive com a suposição contrária – a da condição humana como refém
do que não se explica, no máximo, se prevê e previne. Esse embate está nas bases do
tema renascentista por excelência: o problema da autonomia dos homens.
A deusa da Fortuna – Tyche, na mitologia grega – associava-se à fertilidade, à
agricultura e às mulheres. Frequentemente representada segurando uma
cornucópia (vaso em forma de chifre cheio de flores e frutos), simbolizava a
inconstância da sorte. Pintura de Tadeusz Kuntze.

A obra de Maquiavel é expressão síntese dessa tensão. Assim como a fortuna,


Maquiavel oscila: ora a supõe potente e indomável, ora enfraquecida e maleável à virtù,
habilidade do Príncipe viril. Grosso modo, a história transita no eixo fortuna-virtù,
análogo às representações da época sobre feminino e masculino. Na interação entre
esses dois polos, um cresce na medida inversa do outro, isto é, quando podem mais a
fortuna e o feminino, podem menos a virtù e o masculino – e vice-versa. 

Grosso modo, a história transita no eixo fortuna-virtù, análogo às representações da


época sobre feminino e masculino

A especulação do autor sobre o imprevisível e incognoscível inspira trechos de Tercets


on ambition and fortune e O príncipe e também referências pontuais ao longo de toda a
sua obra. Em Tercets, Maquiavel toma a fortuna na sua forma romana clássica, como
“deusa cruel” que age furiosamente, “sem piedade, sem lei ou direito”, privando os
justos e recompensando os injustos. Senhora das rodas, orienta o destino dos homens.
Gloriosa e esplêndida, é também bruxa velha de duas faces, uma feroz e outra suave.
Sua inconstância e ambição fazem nascer nos homens ilusões de onipotência, que,
segundo Maquiavel, são injustificáveis para os fortes.

Em O príncipe, a fortuna, sem prejuízo da sua forma feminina, ganha novas


representações: o mau tempo e o rio. Ambos, em estado de fúria, não podem ser
contidos. Diante deles – como diante da fortuna – resta aos homens atuar com previsão
e preparação, isto é, construir diques em tempos de seca para que as cheias sigam o
curso determinado por suas mãos. O cálculo antecipado, nesse caso, é antídoto contra a
fortuna. Se os homens acreditarem que nada podem diante dela, cultivarão a preguiça e
a inação, os piores males.

Apesar das expressões de otimismo em relação à possibilidade de os homens moldarem


o mundo à sua volta, não há garantias para sua ação. Mesmo um príncipe virtuoso não
está a salvo da condição de permanente impermanência e deve lidar com a ruína como
possibilidade real. Os passos da política são dados num terreno incerto que os homens
buscam pavimentar com a prudência, o cálculo e a técnica, mas sem garantias de
sucesso.

Os passos da política são dados num terreno incerto que os homens buscam pavimentar
com a prudência, o cálculo e a técnica, mas sem garantias de sucesso

Quando a fortuna é rio, eles têm mais chances. Haverá, contudo, tempos de fortuna-
mulher, que exigem ação impetuosa e tornam a prudência imprudente. Para lidar com
eles, os homens jovens e audaciosos terão melhor sorte, pois as mulheres precisam ser
contrariadas e contidas. A considerar a condição cambiante das circunstâncias,
vitoriosos seriam aqueles capazes de metamorfosear-se, isto é, de passar da prudência
ao ímpeto (ou vice-versa), de acordo com a natureza dos tempos e da fortuna. Mas
Maquiavel lamenta: essa não parece ser uma capacidade humana.

Na flutuação da história, ora a fortuna navega os homens, ora é navegada por eles. O
que há de permanente é a busca por autonomia, ora alimentada pela crença nas
potencialidades dos homens, ora assombrada pela fortuna. Na ausência de Deus e das
amarras de sustentação do mundo medieval, a desordem é realidade próxima ou
conflagrada.

Cristina Buarque de Hollanda


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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