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SOCIEDADE

REVISTA da

de CARDIOLOGIA do
Artigo RIO GRANDE DO SUL
USO DE LEVOSIMENDAN NO TRATAMENTO DA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA DESCOMPENSADA

*Dr. Fábio Michaelski Velho


**Dr. Rodrigo Ribeiro
***Dr. Luis Eduardo Rohde

*Cardiologista e Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Medicina: Cardiologia e Ciências Cardiovasculares da


UFGRS
** Médico Internista. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da UFRGS
*** Cardiologista e Professor Adjunto de Medicina Interna da Faculdade de Medicina da UFGRS. Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Medicina: Cardiologia e Ciências Cardiovasculares da UFRGS

Endereço para correspondência:

Serviço de Cardiologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Faculdade de Medicina da UFRGS. Programa de Pós-
Graduação em Medicina: Cardiologia e Ciências Cardiovasculares da UFRGS

Introdução

Insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome clínica que resulta


da deterioração da função cardíaca, a qual gera uma série de
alterações hemodinâmicas e neuro-humorais, manifestando-se por
dispnéia e fadiga, redução da capacidade funcional, retenção de
líquidos, com conseqüente congestão pulmonar e edema periférico
(1). No Brasil, a IC é uma das principais causas de mortalidade
sendo também responsável por cerca de 300.000 internações
anuais, com crescentes incrementos de custo e letalidade nos
últimos 8 anos (2). Fenômeno semelhante é encontrado nos
Estados Unidos, apesar do melhor entendimento dos mecanismos
fisiopatológicos da doença e dos definidos avanços terapêuticos
recentes, como o uso de resincronizadores e cardiodesfibriladores
implantáveis (3-4).
Durante o curso da doença, em especial nos casos avançados,
ocorrem períodos de descompensação aguda da síndrome,
com risco elevado para complicações, arritmias graves e Figura 1 - Perfis hemodinâmicos dos pacientes que se
morte. Pacientes com IC descompensada podem se apresentar apresentam com insuficiência cardíaca descompen-
clinicamente com quadros hemodinâmicos variáveis, envolvendo sada
sinais de (a) congestão sistêmica (associados a aumento das
pressões de enchimento intracardíacas), (b) perfusão alterada
(associada à redução do débito cardíaco) ou (c) associação destas no débito cardíaco, visando restabelecer a condição estável da
características. O manejo dos pacientes que se apresentam com ICD doença, corrigindo o distúrbio hemodinâmico subjacente. Fármacos
e sinais de baixo débito (redução da pressão de pulso, extremidades que melhoram o desempenho contrátil do coração (inotrópicos
frias, sensório alterado, hipotensão, perda de função renal e positivos) são de maneira freqüente utilizados neste contexto
hiponatremia) é controvertido, não ocorrendo consenso, mesmo clínico, embora diversos especialistas contestem o uso desta
entre especialistas, de qual a melhor estratégia de tratamento (5). A classe farmacológica em IC. A advertência se baseia no fato de
Figura 1 abaixo ilustra esquematicamente diferentes combinações que, pela história, a quase totalidade dos inotrópicos positivos
de perfis hemodinâmicos na IC descompensada. estudados em grandes ensaios clínicos aumentou o risco de morte,
presumivelmente por causas arrítmicas (7-8).
USO DE INOTRÓPICOS NO TRATAMENTO DA IC
DESCOMPENSADA Agentes inotrópicos
Os agentes inotrópicos são drogas utilizadas há vários séculos
Os pacientes que se apresentam no quadrante inferior direito para tratamento de IC, sendo o protótipo desta classe os digitálicos.
(C) perfazem cerca de 28% dos casos, sendo, com freqüência, No contexto da IC descompensada, com sinais de baixo débito,
manejados em Unidades de Terapia Intensiva. Este subgrupo são, de maneira inequívoca, efetivos na melhora de parâmetros
tem pior prognóstico, com mortalidade quase quatro vezes maior hemodinâmicos, embora alguns especialistas temam potencias
quando comparados aos pacientes do grupo A (6). O princípio riscos de sua administração, mesmo por intervalos curto de
terapêutico do tratamento destes pacientes se baseia na redução da infusão. Os agentes inotrópicos utilizados de modo corriqueiro são
pós-carga, com uso de vasodilatadores e conseqüente incremento o agente catecolaminérgico dobutamina, o agente sensibilizador 

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de cálcio levosimendan e os inibidores da fosfodiesterase, como com placebo, como demonstrado de modo recente pelos dados
o milrinone. preliminares do estudo CASINO (14).
Principais estudos comparativos com Placebo. As características
Levosimendan dos estudos que comparam Levosimendan com placebo estão
listados na Tabela 2. Os estudos de maior porte foram os ensaios
O Levosimendan é um medicamento da classe dos
RUSSLAN e REVIVE II. O estudo RUSSLAN (17) randomizou
sensibilizadores de cálcio, disponível comercialmente no Brasil
504 pacientes, em 21 centros da Rússia e Látvia, com infarto
desde 2002. Por meio da ação sensibilizadora da troponina C
agudo do miocárdio nos últimos cinco dias, complicado
ao cálcio, dependente da concentração deste no miocárdio, o
por insuficiência cardíaca esquerda, para tratamento com
Levosimendan poderia melhorar a contratilidade cardíaca na
Levosimendan (6-24 µg/kg em bolus + 0,1-0,4 µg/kg/min) ou
sístole, quando é alta a concentração de cálcio, sem prejudicar
placebo em infusão contínua por 6 horas. O estudo teve como
o relaxamento na diástole, quando diminui a concentração de
desfechos principais hipotensão e isquemia miocárdica. Foi
cálcio. Além disso, teria ação vasodilatadora, o que resultaria em
observada diferença significativa em favor do Levosimendan
melhora do débito cardíaco sem aumentar a demanda miocárdica
apenas na comparação entre os pacientes que receberam
de oxigênio. Um metabólito ativo da droga (OR1896) mantém a
doses mais altas da droga em relação ao placebo. A análise
resposta clínica por 7 a 9 dias após infusão endovenosa contínua
de desfechos secundários mostrou diminuição de mortalidade
por 24 horas (9-10).
geral após 14 dias (11,7 versus 19,6%; OR=0,56; p=0,031)
e, em análise retrospectiva, após 180 dias (22,6 versus 31,4%;
Principais estudos comparativos com Dobutamina. As OR=0,67; p=0,053). O REVIVE II (18) foi um ensaio clínico
características dos estudos incluídos nas comparações de randomizado, paralelo, duplo-cego, que arrolou 600 pacientes
levosimendan versus dobutamina estão listadas na Tabela 1. com insuficiência cardíaca aguda, tratados com Levosimendan
Os estudos de maior porte foram os ensaios LIDO e SURVIVE (n=299) ou placebo (n=301). O desfecho principal (melhora
W. O estudo LIDO (11) foi um ensaio clínico randomizado, clínica cinco dias após randomização) foi mais freqüente no grupo
multicêntrico (26 centros em 11 países europeus) controlado por tratado com Levosimendan. Porém, a mortalidade em 90 dias,
placebo (double-dummy) que comparou infusão de Levosimendan desfecho secundário previamente definido pelos investigadores,
com Dobutamina em 203 pacientes com IC com baixo débito. não foi diferente entre os grupos (15,1% dos pacientes do grupo
O desfecho principal avaliado foi a proporção de pacientes com Levosimendana e 11,6% do grupo Dobutamina).
melhora hemodinâmica em 24 horas, o que foi observado em
28% dos pacientes do grupo Levosimendan e em 15% do grupo
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dobutamina (RR = 1,9; IC 95% 1,1-3,3). O SURVIVE-W (12) foi
o maior estudo realizado até o momento, com objetivo de avaliar
potenciais benefícios clínicos com o uso do Levosimendan. Neste O tratamento de pacientes com IC descompensada e sinais
ensaio clínico randomizado, paralelo, duplo-cego, foram incluídos de baixo débito permanece cenário clínico desafiador para o
1327 pacientes com insuficiência cardíaca aguda tratados cardiologista. O uso de fármacos inotrópicos positivos, embora
com Levosimendan (n = 663) ou Dobutamina (n = 664). O controvertido, ainda é prática corrente. Grande expectativa
desfecho primário avaliado foi mortalidade total em 6 meses. foi gerada com os achados promissores dos estudos iniciais
Surpreendentemente, após este período de acompanhamento, utilizando o fármaco Levosimendan. No entanto, resultados
a mortalidade não foi diferente entre os grupos, ocorrendo em desapontadores dos ensaios clínicos REVIVE II e SURVIVE-W,
26,1% dos pacientes do grupo Levosimendan e em 27,9% do delineados, em parte, para avaliar eficácia sobre desfechos duros,
grupo Dobutamina (p = 0,40). Não ocorreram também diferenças limitam a aplicabilidade clínica desta droga no contexto da IC
significativas em seguimento de curto prazo dos pacientes (5 e 31 descompensada. Considerando todos os estudos em conjunto,
dias). Os pacientes alocados para uso de Levosimendan tiveram, não se identificam evidências científicas inequívocas de que o
com maior freqüência, fibrilação atrial e hipocalemia. Aspecto uso de Levosimendan reduza, de modo substancial, mortalidade
importante a ser considerado é o de que a Dobutamina pode não total, mortalidade cardiovascular, tempo de internação ou
ser a estratégia de comparação mais adequada, uma vez que taxas de readmissões por IC em pacientes internados com
seu uso pode potencialmente causar malefício em comparação quadros de descompensação clínica. Dessa forma, frente ao

Tabela 1. Características metodológicas dos estudos de levosimendan versus dobutamina

Estudo Qualidade Metodológica Grupo Dobutamina Grupo Levosimendan


Cálculo de
Análise por intenção Óbitos/Total de
Alocação sigilosa tamanho de Cegamento Óbitos/Total de pacientes
de tratamento pacientes
amostra
Nieminen, 2000 (13) Não/Não claro Sim Sim Sim 1/20 1/95
LIDO,
Sim Sim Sim Sim 38/100 27/103
2002 (11)
CASINO, 2004 (14) Não/Não claro Não Não Não/Não claro 12/96 6/98
SURVIVE, 2007 (12) Sim Sim Sim Sim 185/663 173/664

Adamopoulos, 2006 (15) Não/Não claro Não Não Não/Não claro 5/23 2/23

Álvarez,
 2006 (16)
Não/Não claro Sim Não Não/Não claro 1/20 1/21

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alto custo do fármaco e a incerteza de benefícios clínicos sobre
desfechos clínicos relevantes, o seu uso em pacientes com IC
descompensada não se justifica como rotina.

Tabela 2. - Características metodológicas dos estudos de Levosimendan versus placebo

Estudo Qualidade Metodológica Grupo Placebo Grupo Levosimendan


Cálculo de tamanho Análise por intenção
Alocação sigilosa Cegamento Óbitos/Total de pacientes Óbitos/Total de pacientes
de amostra de tratamento
Nieminen, 2000 (13) Não/Não claro Sim Sim Sim 0/21 1/95

RUSSLAN, 2002 (17) Não/Não claro Não Sim Sim 32/102 91/402

Kivikko,
2003 (19) Não/Não claro Não Não Sim 3/48 2/98

CASINO, 2004 (14) Não/Não claro Não Não Não/Não claro 8/97 6/98 *
REVIVE II, 2005 (18) Não/Não claro Não Não Não/Não claro 35/301 45/299
Adamopoulos, 2006
Não/Não claro Não Não Não/Não claro 4/23 2/23
(15)
Flevari,
Não/Não claro Não Não Não/Não claro 1/15 3/30
2006 (20)
* desfechos em 1 mês de acompanhamento, dados de 6 meses completos não publicados.

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