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PSIQUIÁTRICAS
ESTEVÃO ALVES VALLE
BÁRBARA BARROSO QUINET
DANIELA MENDES OLIVEIRA
Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
identificar as condições não psiquiátricas que se beneficiam do uso de
antidepressivos;
selecionar antidepressivos adequados para condições não psiquiátricas;
manejar o tratamento com antidepressivos em diversas condições clínicas.
Esquema conceitual
Introdução
A literatura aponta que medicações antidepressivas vêm sendo cada vez mais prescritas
para condições não psiquiátricas, com proporções que variam de 25 a 60% das
indicações.1 Muitas dessas indicações são baseadas mais na opinião dos prescritores do
que propriamente em evidências científicas.2
Este capítulo revê os benefícios e as limitações do emprego de antidepressivos em
quadros dolorosos, condições uroginecológicas, condições gastrintestinais, na
dependência de substâncias e em sintomas inespecíficos.
Antidepressivos
Os antidepressivos são medicamentos altamente consumidos em países industrializados
(Figura 1). Nos Estados Unidos, constituem a terceira classe de medicação mais
prescrita, utilizada por cerca de 13% dos norte-americanos acima de 12 anos.3
FIGURA 1: Consumo de antidepressivos por mil habitantes, em países da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2000 e 2015 (ou no ano
mais próximo). // Fonte: Adaptada de Organisation for Economic Co-operation and
Development (2017).4
A principal indicação dos antidepressivos são, certamente, as condições psiquiátricas,
sobretudo os transtornos depressivos e de ansiedade, mas, ainda assim, há preocupação
com o excesso em sua prescrição.
O Quadro 1 apresenta as condições clínicas para as quais os antidepressivos costumam
ser indicados.
Quadro 1
CONDIÇÕES CLÍNICAS PARA AS QUAIS O USO DE ANTIDEPRESSIVOS É
MAIS COMUMENTE INDICADO
Dor neuropática
Dor relacionada ao diabetes
Dor relacionada ao HIV
Neuralgia do trigêmeo
Dor pós-herpética
Dor do membro fantasma
Quadros dolorosos Fibromialgia
Dor ciática
Cefaleia tensional
Enxaqueca
Lombalgia inespecífica
Dor central
Queimação lingual
Síndrome da dor na bexiga (cistite
intersticial)
Condições uroginecológicas Fogachos
Incontinência urinária
Ejaculação precoce
Síndrome do intestino irritável
Condições gastrintestinais Dispepsia funcional
Cessação do tabagismo
Dependência de substâncias Alcoolismo
Insônia
Prurido
Condições gerais, não específicas Síndrome de fadiga crônica
Fadiga relacionada ao câncer
Emagrecimento
// Fonte: Elaborado pelos autores.
Este capítulo busca apresentar quais antidepressivos têm benefício comprovado e em
quais condições clínicas eles podem ser adequadamente empregados.
Breve histórico
Até a década de 1930, não havia medicações específicas para transtornos mentais.
Kraepelin, por exemplo, recomendava o uso de tintura de ópio para a depressão. As
descobertas de medicações com eficácia na esquizofrenia, no entanto, mudaram essa
realidade.5
Logo após a Segunda Guerra Mundial, farmacologistas sintetizaram substâncias com
propriedades anti-histamínicas e sedativas. A primeira delas foi a clorpromazina, por
meio da adição de um radical de cloro à prometazina.5
Em 1957, durante um encontro da World Psychiatric Association, Roland Kuhn
publicou o primeiro caso de resposta antidepressiva de um anti-histamínico fraco com
propriedades anticolinérgicas leves, cuja estrutura era similar à da clorpromazina.
Tratava-se do primeiro antidepressivo tricíclico descoberto, a imipramina, que
começou a ser utilizada na Suíça alguns anos mais tarde.5
A Figura 2 traça uma linha do tempo com as principais medicações antidepressivas que
foram sendo sucessivamente liberadas no mercado.
FIGURA 2: Linha do tempo da liberação de medicações antidepressivas para uso
clínico. // Fonte: Elaborada pelos autores.
Farmacologia básica
A farmacodinâmica dos antidepressivos é razoavelmente bem conhecida. Entretanto, há
uma evidente lacuna entre o que se sabe das ações farmacológicas desses medicamentos
e a compreensão última de como essas ações resultam em melhora clínica, seja na
depressão, seja em outras condições não psiquiátricas.
Tanto a paroxetina quanto a fluoxetina inibem a CYP2D6 e não devem ser usadas em
associação ao tamoxifeno.12–14
Incontinência urinária
A perda involuntária de urina é uma condição comum, sobretudo nas pessoas idosas, e
causa impacto significativo na qualidade de vida. Os principais tipos de incontinência
urinária são:
de urgência (quando há um desejo intenso de urinar que antecede a perda);
de estresse (quando ocorre durante o esforço, na tosse ou no espirro);
de transbordamento (quando não há percepção da perda, geralmente por
fraqueza do detrusor ou obstrução da bexiga).
Há também tipos mistos de incontinência urinária.
A duloxetina (80mg/dia) foi bem estudada como segunda linha na incontinência de
esforço ou mista na mulher. Ela é capaz de reduzir episódios de perda e melhorar a
qualidade de vida quando comparada com placebo. A medicação age sob o nervo
pudendo e aumenta a contratilidade do esfincter uretral. Há, no entanto, preocupação
quanto à ocorrência de eventos adversos, como boca seca, constipação, agitação e
insônia, o que frequentemente leva à descontinuação do tratamento.11,15
A ejaculação precoce é a disfunção sexual mais frequente no homem. Seu manejo deve
levar em conta se a condição é crônica, situacional ou ocorre em associação a outros
problemas sexuais, como a disfunção erétil.18
O uso de ISRSs, em conjugação com a utilização de anestésicos tópicos e o suporte
psicoterápico, é considerado a primeira linha de tratamento da ejaculação precoce. A
paroxetina (10 a 40mg), o escitalopram (10 a 20mg), o citalopram (20 a 40mg) e a
sertralina (50 a 200mg) são as medicações mais comumente empregadas.18
A dapoxetina (30 a 60mg/dia) é um ISRS de uso exclusivo para essa indicação e pode
ser usado sob demanda, algumas horas antes da relação sexual, mas ainda não é
comercializado no Brasil.18
O emprego de antidepressivos na disfunção erétil deve ser cuidadoso, pois pode trazer
mais incômodo do que benefícios.18
Há grande controvérsia sobre o impacto do uso de antidepressivos na função sexual.
Primeiro, é importante levar em consideração que os transtornos do humor, por si só,
já interferem na libido, na excitação e no orgasmo. Sem tratar esses transtornos
adequadamente, não há bom desempenho sexual.
A frequência de eventos adversos no sexo em quem usa antidepressivos varia conforme
o tipo e a dose do medicamento e até com fatores genéticos do paciente. Os ISRSs são
os mais frequentemente implicados, mas todas as classes podem interferir na função
sexual.
A dose efetiva da bupropiona varia de 150 a 300mg/dia. O tratamento deve durar pelo
menos 12 semanas.24,25
A bupropiona é um fármaco seguro para pacientes com doença pulmonar obstrutiva
crônica (DPOC) e doença cardiovascular estáveis. Os efeitos colaterais comumente
relatados são xerostomia, insônia e cefaleia.26
Por reduzir o limiar convulsivo, a bupropiona é contraindicada para pacientes com
passado de epilepsia.26
Além dos medicamentos supracitados, outro antidepressivo indicado para o tratamento
do tabagismo é a nortriptilina, com eficácia moderada. É uma alternativa para os
pacientes com contraindicação à bupropiona.27
Mesmo com o uso de subdoses, é preciso estar atento aos efeitos adversos dos
antidepressivos tricíclicos, considerando a maior suscetibilidade dos idosos à ação
anticolinérgica dos fármacos.30,31
A trazodona tem efeito hipnótico em doses baixas e é frequentemente utilizada com
essa finalidade devido a seu perfil de segurança. No entanto, um estudo clínico
controlado randomizado que comparou o uso de trazodona (50mg/noite) e placebo não
demonstrou uma eficácia sustentada após a primeira semana.32 Seu benefício parece
estar restrito a situações em que há coexistência entre distúrbio do sono e doença de
Alzheimer.30,31
Estudos com o uso da paroxetina (50mg/noite) em pacientes insones com mais de
55 anos evidenciaram uma melhora subjetiva da qualidade do sono. Suspeita-se que seu
efeito ansiolítico, com redução dos pensamentos recorrentes, seja um dos fatores que
levam à melhora consequente do sono.
Outros antidepressivos, como mianserina, mirtazapina e venlafaxina, aumentaram a
ocorrência de parassonias. A venlafaxina tem relação, inclusive, com o aumento da
incidência de bruxismo.32
Os idosos, como grupo altamente vulnerável aos efeitos colaterais dos hipnóticos
benzodiazepínicos e do grupo Z, talvez sejam bons candidatos ao uso de antidepressivos
em baixas doses para o tratamento da insônia. Seu uso off-label deve ser individualizado
considerando eficácia, segurança e tolerabilidade.
Prurido
Os antidepressivos são frequentemente usados no tratamento do prurido crônico por
seu efeito anti-histamínico em receptores H1 e H2. No entanto, são poucos e de
qualidade moderada os estudos que confirmam sua eficácia. A maior parte das
evidências aponta boa resposta nos casos de uremia e colestase.33,34
A amitriptilina (10 a 25mg/dia), a doxepina (10 a 20mg/dia) e a sertralina (dose
média nos estudos: 75mg/dia) foram testadas com bons resultados.33,34
ATIVIDADES
8. Observe as alternativas a seguir com relação ao uso de amitriptilina, 25mg à noite,
pela paciente do caso clínico.
I. Recomenda-se a realização de um ECG antes do início do uso da medicação.
II. Recomenda-se a realização de uma eletroneuromiografia antes da prescrição da
medicação.
III. Esta medicação pode ocasionar efeitos colaterais na pressão arterial.
IV. Esta medicação pode levar a efeitos colaterais na cognição.
Quais estão corretas?
a Apenas a I e a II.
b Apenas a I, a II e a III.
c Apenas a I, a III e a IV.
d Apenas a II, a III e a IV.
Confira aqui a resposta
9. No que se refere às alternativas aceitáveis diante da situação apresentada no retorno
da paciente do caso clínico, observe as alternativas a seguir.
I. Substituir a medicação por duloxetina 30mg, dada a possibilidade de sintomas
depressivos.
II. Fornecer explicações sobre o caráter crônico da condição.
III. Aumentar a dose da amitriptilina para 50mg.
Quais estão corretas?
a Apenas a I e a II.
b Apenas a I e a III.
c Apenas a II e a III.
d A I, a II e a III.
Confira aqui a resposta
Conclusão
Os antidepressivos são medicamentos altamente consumidos no mundo. Sua principal
indicação são, certamente, as condições psiquiátricas, mas eles vêm sendo
progressivamente reposicionados em doenças e situações não psiquiátricas. Isso ocorre
não só pela sobreposição de transtornos do humor com essas doenças, mas também pelo
compartilhamento do substrato fisiopatológico.
A farmacodinâmica dos antidepressivos é razoavelmente bem conhecida, mas persiste a
lacuna entre o que se sabe das ações farmacológicas desses medicamentos e a
compreensão última de como essas ações resultam em melhora clínica, seja na
depressão, seja em outras condições não psiquiátricas.
Atualmente, há evidências consistentes do benefício do emprego de antidepressivos em
diversos tipos de dor crônica, em condições uroginecológicas, em distúrbios
gastrintestinais funcionais e em alguns sintomas inespecíficos. No entanto, o emprego
desses fármacos deve sempre ser judicioso, pois a comprovação de seu benefício ainda é
necessária em muitas condições, e a incidência de efeitos colaterais, sobretudo nos
idosos, é significativa.
Atividades: Respostas
Atividade 1 // Resposta: A
Comentário: Apesar de serem mecanismos independentes, estudos apontam para uma
maior eficácia dos antidepressivos no controle da dor crônica naqueles pacientes que
possuem sintomas de humor associados. Nesses casos, é possível observar que o efeito
analgésico ocorre antes do efeito antidepressivo, que pode levar até quatro semanas. A
despeito da discreta superioridade nos pacientes deprimidos, estudos demonstram uma
boa resposta dos antidepressivos para o controle álgico em pacientes sem qualquer
sintoma relacionado ao humor.
Atividade 2 // Resposta: C
Comentário: A dor pós-amputação de um membro é altamente prevalente e representa
um grande desafio terapêutico. Apesar de antidepressivos serem largamente empregados
nessa situação, estudos demonstram resultados conflitantes na melhora da dor, e sua
indicação se limita à presença de transtorno do humor associado.
Atividade 3 // Resposta: D
Comentário: Os fogachos são um sintoma comum na menopausa. Os antidepressivos
são considerados uma opção eficaz para as mulheres com contraindicação ao uso de
estrógeno. Evidências mostram um efeito leve a moderado da venlafaxina (dose igual
ou superior a 75mg) e da desvenlafaxina (50 ou 100mg/dia) no controle de fogachos.
Tanto a paroxetina quanto a fluoxetina inibem a CYP2D6 e não devem ser usadas em
associação ao tamoxifeno.
Atividade 4 // Resposta: B
Comentário: A duloxetina não é um agonista α-adrenérgico, e sim um inibidor não
seletivo de serotonina e noradrenalina na fenda pré-sináptica. O benefício de seu uso na
incontinência urinária foi descrito para a incontinência urinária mista e de esforço. É
descrito um efeito significativo do uso da imipramina no tratamento de pacientes com
incontinência urinária de esforço e mista, no entanto, ele também está associado a
graves efeitos colaterais, de modo que o risco-benefício permanece incerto. O uso da
duloxetina no tratamento da incontinência urinária já foi aprovado na Europa, o que
ainda não aconteceu no Brasil (pela Anvisa) nem nos Estados Unidos (pela FDA).
Portanto, seu uso para tal fim segue off-label no Brasil. Tanto a duloxetina quanto a
imipramina têm efeito em reduzir a incontinência urinária de esforço, possivelmente por
atuarem aumentando a contratilidade do esfíncter uretral externo e a contratilidade dos
músculos do assoalho pélvico.
Atividade 5 // Resposta: B
Comentário: No trato digestivo, antidepressivos agem regulando a serotonina, a
noradrenalina e o fator de liberação de corticotropina, que atuam na motilidade e na
sensibilidade intestinal. Tomados em conjunto com o conhecimento básico sobre as vias
sensoriais viscerais, os moduladores centrais podem promover efeito analgésico, ao
reduzirem os sinais aferentes do intestino e assim regularem negativamente os sinais
viscerais recebidos.
Atividade 6 // Resposta: A
Comentário: A bupropiona é considerada a primeira linha de tratamento para a cessação
do tabagismo. Trata-se de uma boa opção quando há sintomas de humor associados,
quando o custo é um fator limitante ou quando o sobrepeso é uma preocupação. O
tratamento deve durar, pelo menos, 12 semanas. Seu uso é seguro em pacientes com
DPOC e doença cardiovascular. A nortriptilina, com eficácia moderada, é uma
alternativa para os pacientes com contraindicação à bupropiona.
Atividade 7 // Resposta: D
Comentário: Os ISRSs têm seus efeitos estabelecidos para a melhora da ejaculação
precoce por suas ações em nível central sobre os receptores 5-HT e por sua ação
periférica nos 5-HT na regulação das respostas contráteis do trato seminal, com efeito
inibidor. Contudo, quanto à disfunção erétil, a sertralina constitui o antidepressivo com
maior efeito adverso para a disfunção sexual. Os ISRSs são capazes de interferir em
nível central e bloquear a liberação do óxido nítrico no corpo cavernoso do pênis. Dessa
forma, não há suficiente dilatação nem relaxamento do corpo cavernoso, ocasionando a
disfunção erétil.
Atividade 8 // Resposta: C
Comentário: Apesar de ser o padrão-ouro para o diagnóstico de neuropatia diabética, a
eletroneuromiografia é trabalhosa, exige profissionais especializados e nem sempre é
acessível. Sua indicação não deve ser a regra. Diante do quadro clínico compatível, do
exame físico sugestivo e da exclusão de causas alternativas, já é possível indicar um
tratamento analgésico para a condição. Os antidepressivos tricíclicos têm eficácia
comprovada, mas, nas pessoas idosas, é importante atentar para efeitos adversos como
arritmia, constipação, boca seca, hipotensão postural, quedas e piora da cognição.
Atividade 9 // Resposta: A
Comentário: Entender a neuropatia diabética dolorosa como uma condição crônica, de
difícil tratamento e sujeita a pioras ocasionais é essencial tanto para os pacientes quanto
para os profissionais de saúde. Diante do potencial efeito anticolinérgico da
amitriptilina, ocasionando sonolência diurna, é recomendável selecionar outro fármaco.
A duloxetina também é eficaz nessa situação e ainda pode atuar em sintomas
depressivos. É válido avaliar, concomitantemente, medidas de controle do diabetes.