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HABEAS CORPUS Nº 826327 - RS (2023/0178248-1)

RELATOR : MINISTRO JESUÍNO RISSATO (DESEMBARGADOR


CONVOCADO DO TJDFT)
IMPETRANTE : ANDERSON VAN RIEL SANTOS
ADVOGADO : ÂNDERSON VAN RIEL SANTOS - RS064541
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL
PACIENTE : JOAO VALZOMEU DA SILVA RODRIGUES
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL

DECISÃO

Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado contra acórdão de


fls. 22-36.
Consta dos autos que o paciente foi denunciado como incurso no artigo 302,
§1º, inciso III, da Lei n. 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro).
A defesa alega que, apesar de o paciente ter preenchido todos os requisitos
objetivos, o Ministério Público deixou de oferecer o acordo de não persecução penal, nos
termos do art. 28-A do CPP.
Afirma que "ainda que em sede de interrogatório policial o paciente tenha
ficado em silêncio, em nenhum momento o mesmo foi cientificado de que em caso de
confissão poderia lhe ser proposto o acordo de não persecução penal." (fl. 14).
Requer, liminarmente, que seja suspensa a marcha processual até que o
presente writ seja apreciado e, no mérito, a concessão da ordem para que "seja cumprida a
regra do artigo 28-A, §14º, do CPP, a fim de que os autos sejam remetidos ao Procurador
Geral de Justiça do Rio Grande do Sul, para que este reanalise o pedido do Paciente para
que lhe seja oferecido o acordo de não persecução penal, haja vista que este preenche
todos os requisitos objetivos necessários ao oferecimento da benesse, sanando assim o
constrangimento ilegal que coloca em risco à liberdade do Paciente." (fl. 18).
A liminar foi indeferida (fls. 205-206).
Prestadas as informações (fls. 219-267), o parecer do Ministério Público
Federal foi pelo não conhecimento da impetração (fl. 273).

Edição nº 0 - Brasília, Publicação: quarta-feira, 02 de agosto de 2023


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O Tribunal de origem assim dispôs sobre o não oferecimento do ANPP (fls.
24-36):
Eminentes Colegas, imputa-se ao paciente a suposta prática do crime de homicídio
culposo na direção de veículo automotor, com a majorante da omissão de socorro. O Parquet
não ofereceu o ANPP e, apesar de haver pleito defensivo, o juízo a quo entendeu por não
remeter os autos à instância superior do Ministério Público, razão pela qual a defesa
impetrou o presente habeas corpus. A liminar foi indeferida pelos seguintes fundamentos, os
quais reproduzo a fim de evitar desnecessária tautologia (evento 5, DESPADEC1):
[...]
No caso em análise, ao ser ouvido na esfera policial, o paciente,
acompanhado de advogado, reservou-se ao direito de se manifestar somente
em juízo (fl. 20 - evento 1, TERMO_CIRCUNST1). Logo, não tendo o
investigado confessado formal e circunstancialmente a prática do delito,
requisito objetivo para o oferecimento do ANPP, não se verifica, de plano,
constrangimento ilegal na decisão do juízo a quo que entendeu desnecessária a
remessa dos autos ao Órgão Superior do Ministério Público, diante da
manifesta inadmissibilidade da medida.
Como se vê, o acusado, ora paciente, não confessou formal e circunstancialmente a
prática do delito, requisito objetivo para o oferecimento do ANPP, com o que se revela
desnecessária a remessa dos autos ao Órgão Superior do Ministério Público, diante da
manifesta inadmissibilidade da medida.

Quanto ao ponto, cabe destacar que há entendimento consolidado nesta Corte


de que não há direito subjetivo do réu aos mecanismos de justiça penal consensual, como
a suspensão condicional do processo, a transação penal e o acordo de não persecução
penal.
Entretanto, destaca-se que tais mecanismos não se traduzem em faculdades a
serem operadas pelo Ministério Público.
Ressalta-se, nessa linha, que o ANPP é um poder-dever do órgão ministerial,
que não pode deixar de exercê-lo sem fundamentação idônea.
No presente caso, a defesa alega que "ainda que em sede de interrogatório
policial o paciente tenha ficado em silêncio, em nenhum momento o mesmo foi
cientificado de que em caso de confissão poderia lhe ser proposto o acordo de não
persecução penal." (fl. 14).
Razão assiste à defesa, uma vez que a inexistência de confissão do recorrente
em contexto de desconhecimento da existência de Acordo de Não Persecução Penal não
deve ser interpretada como desinteresse em aderir ao ANPP.
Ademais, exigir que haja confissão antes do oferecimento do acordo pelo
Ministério Público pode ensejar ofensa ao Princípio Nemo tenetur se detegere (ninguém é
obrigado a se auto-incriminar ou produzir prova contra si mesmo). Nesse sentido,
destaca-se jurisprudência desta Corte:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME

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PREVISTO NO ART. 337-E DO CÓDIGO PENAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO
PENAL (ANPP). ART. 28-A, CAPUT, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
PROPOSITURA DO PACTO APÓS O OFERECIMENTO E RECEBIMENTO DA
DENÚNCIA. PODER-DEVER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE PROPOR O ACORDO
NO MOMENTO PROCESSUAL OPORTUNO, CASO CONFIGURADOS OS
PRESSUPOSTOS LEGAIS. NULIDADE ABSOLUTA. FORMALIZAÇÃO DO ACORDO
QUE NÃO PODE SER CONDICIONADA À CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL.
PRESUNÇÃO DE PREJUÍZO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. ORDEM DE
HABEAS CORPUS CONCEDIDA.
1. O acordo de não persecução penal foi instituído com o propósito de resguardar tanto o
agente do delito, quanto o aparelho estatal, das desvantagens inerentes à instauração do
processo-crime em casos desnecessários à devida reprovação e prevenção do delito. Para
isso, o Legislador editou norma despenalizadora (28-A, caput, do Código de Processo
Penal) que atribui ao Ministério Público o poder-dever de oferecer, segundo sua
discricionariedade regrada, condições para o então investigado (e não acusado) não ser
denunciado, caso atendidos os requisitos legais. Ou seja, o benefício a ser eventualmente
ofertado ao agente em hipótese na qual há, em tese, justa causa para o oferecimento de
denúncia, aplica-se ainda na fase pré-processual e, evidentemente, consubstancia hipótese
legal de mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal.
2. Não há previsão legal de que a oferta do ANPP seja formalizada após a instauração da
fase processual. Para a correta aplicação da regra, há de se considerar o momento processual
adequado para sua incidência, sob pena de se desvirtuar o instituto despenalizador. É por
isso que a consequência jurídica do descumprimento ou da não homologação do acordo é
exatamente a complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia, nos termos
dos §§ 8.º e 10 do art. 28-A do Código de Processo Penal, e não o prosseguimento da
instrução.
3. Configuradas as demais condições objetivas, a propositura do acordo não pode ser
condicionada à confissão extrajudicial, na fase inquisitorial. Precedente: STJ, HC n.
657.165/RJ, relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em
09/08/2022, DJe 18/08/2022.
4. Por constituir um poder-dever do Parquet, o não oferecimento tempestivo do
ANPP desacompanhado de motivação idônea constitui nulidade absoluta.
5. Presunção de prejuízo decorrente da instauração do processo-crime detalhadamente
declinada no voto-vista do Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, como a interrupção do
prazo prescricional, eventual óbice à incidência do art. 89 da Lei n. 9.099/95 por outras
condutas, v.g.
6. Agravo regimental provido para reformar a decisão monocrática recorrida e,
consequentemente, conceder a ordem de habeas corpus a fim de anular o procedimento
criminal desde a ocasião em que foram configurados os pressupostos objetivos para a
propositura do acordo de não persecução penal pelo Ministério Público Estadual.
(AgRg no HC n. 762.049/PR, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em
7/3/2023, DJe de 17/3/2023.)

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO


PENAL. PODER-DEVER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE CONFISSÃO
NO INQUÉRITO POLICIAL. NÃO IMPEDIMENTO. REMESSA DOS AUTOS À
PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA. INTELIGÊNCIA DO ART. 28-A, § 14, DO
CPP. NECESSIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1. O acordo de não persecução penal, de modo semelhante ao que ocorre com a transação
penal ou com a suspensão condicional do processo, introduziu, no sistema processual, mais
uma forma de justiça penal negociada. Se, por um lado, não se trata de direito subjetivo do
réu, por outro, também não é mera faculdade a ser exercida ao alvedrio do Parquet. O ANPP
é um poder-dever do Ministério Público, negócio jurídico pré-processual entre o órgão
(consoante sua discricionariedade regrada) e o averiguado, com o fim de evitar a

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judicialização criminal, e que culmina na assunção de obrigações por ajuste voluntário entre
os envolvidos. Como poder-dever, portanto, observa o princípio da supremacia do interesse-
público - consistente na criação de mais um instituto despenalizador em prol da otimização
do sistema de justiça criminal - e não pode ser renunciado, tampouco deixar de ser exercido
sem fundamentação idônea, pautada pelas balizas legais estabelecidas no art. 28-A do CPP.
2. A ausência de confissão, como requisito objetivo, ao menos em tese, pode ser
aferida pelo Juiz de direito para negar a remessa dos autos à PGJ nos termos do art.
28, § 14, do CPP. Todavia, ao exigir a existência de confissão formal e circunstanciada
do crime, o novel art. 28-A do CPP não impõe que tal ato ocorra necessariamente no
inquérito, sobretudo quando não consta que o acusado - o qual estava
desacompanhado de defesa técnica e ficou em silêncio ao ser interrogado perante a
autoridade policial - haja sido informado sobre a possibilidade de celebrar a avença
com o Parquet caso admitisse a prática da conduta apurada.
3. Não há como simplesmente considerar ausente o requisito objetivo da confissão
sem que, no mínimo, o investigado tenha ciência sobre a existência do novo instituto
legal (ANPP) e possa, uma vez equilibrada a assimetria técnico-informacional, refletir
sobre o custo-benefício da proposta, razão pela qual "o fato de o investigado não ter
confessado na fase investigatória, obviamente, não quer significar o descabimento do
acordo de não persecução" (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de
Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 (Pacote Anticrime). Salvador:
JusPodivm, 2020, p. 112).
4. É também nessa linha o Enunciado n. 13, aprovado durante a I Jornada de
Direito Penal e Processo Penal do CJF/STJ: "A inexistência de confissão do
investigado antes da formação da opinio delicti do Ministério Público não pode ser
interpretada como desinteresse em entabular eventual acordo de não persecução
penal".
5. A exigência de que a confissão ocorra no inquérito para que o Ministério Público
ofereça o acordo de não persecução penal traz, ainda, alguns inconvenientes que evidenciam
a impossibilidade de se obrigar que ela aconteça necessariamente naquele momento.
Deveras, além de, na enorme maioria dos casos, o investigado ser ouvido pela autoridade
policial sem a presença de defesa técnica e sem que tenha conhecimento sobre a existência
do benefício legal, não há como ele saber, já naquela oportunidade, se o representante do
Ministério Público efetivamente oferecerá a proposta de ANPP ao receber o inquérito
relatado. Isso poderia levar a uma autoincriminação antecipada realizada apenas com base
na esperança de ser agraciado com o acordo, o qual poderá não ser oferecido pela ausência,
por exemplo, de requisitos subjetivos a serem avaliados pelo membro do Parquet.
6. No caso, porque foi negada a remessa dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça
(art. 28-A, § 14, do CPP) pela mera ausência de confissão do réu no inquérito,
oportunidade em que ele estava desacompanhado de defesa técnica, ficou em silêncio e
não tinha conhecimento sobre a possibilidade de eventualmente vir a receber a
proposta de acordo, a concessão da ordem é medida que se impõe.
7. Ordem concedida, para anular a decisão que recusou a remessa dos autos à
Procuradoria Geral de Justiça - bem como todos os atos processuais a ela posteriores - e
determinar que os autos sejam remetidos à instância revisora do Ministério Público nos
termos do art. 28-A, § 14, do CPP e a tramitação do processo fique suspensa até a
apreciação da matéria pela referida instituição.
(HC n. 657.165/RJ, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em
9/8/2022, DJe de 18/8/2022.)

Ante o exposto, concedo o habeas corpus para declarar nula a Ação Penal de
origem n. 5001425-71.2022.8.21.0122/RS, desde a decisão que indeferiu a remessa dos
autos à PGJ, nos termos do art. 28, § 14, do CPP, para que seja dada a oportunidade de

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celebração do acordo de não persecução penal.
Comunique-se.
Publique-se.
Intimem-se.
Brasília, 01 de agosto de 2023.

Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT)


Relator

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