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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE

Faculdade de Gestão de Recursos Florestais e Faunísticos

Licenciatura em Direito

Palmira Mário Marcoa

Vicissitudes do Exercício da Acção Penal no Ordenamento Jurídico


Moçambicano

Lichinga, 2023
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE

Faculdade de Gestão de Recursos Florestais e Faunísticos

Licenciatura em Direito

Palmira Mário Marcoa

Vicissitudes do Exercício da Acção Penal no Ordenamento Jurídico


Moçambicano

A presente monografia para de fim de curso a ser


apresentado como requisito necessário para a obtenção
do Título de Licenciatura em Direito pela Universidade
Católica de Moçambique na Faculdade de Gestão de
Recursos Florestais e Faunísticos.

Supervisor:

_________________________

Dr. Célio Varieque

Lichinga, 2023
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE

Faculdade de Gestão de Recursos Florestais e Faunísticos

Licenciatura em Direito

Palmira Mário Marcoa

Vicissitudes do Exercício da Acção Penal no Ordenamento Jurídico


moçambicano

Nota final _______________________________________


Candidata: _______________________________________

Os elementos do júri:
Presidente:_______________________________________
Oponente:________________________________________
Supervisor:_______________________________________

Lichinga, 2023

iii
Índice

Dedicatória.................................................................................................................................vii

Agradecimentos........................................................................................................................viii

Lista de Abreviaturas..................................................................................................................ix

Declaração de Honra...................................................................................................................ix

Resumo .....................................................................................................................................x

Introdução..................................................................................................................................11

CAPÍTULO I: MARCO TEÓRICO...........................................................................................14

1. GENERALIDADES:VICISSITUDES DO EXERCÍCIO DA ACÇÃO PENAL NO


ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO...................................................................14

1.1 Conceito de Acção Penal......................................................................................................14

1.2 Processo, Procedimento e Pressupostos Processuais............................................................14

1.3 Evolução das Formas de Processo no Processo Penal Moçambicano...................................15

1.4 Âmbito do Direito Processual Penal.....................................................................................16

1.5 Sistemas de Processo Penal..................................................................................................17

1.5.1 A estrutura fundamental do processo penal em Moçambique............................................20

1.6 Objecto do Processo Penal...................................................................................................21

1.7 Fim do Processo Penal.........................................................................................................23

1.8 O Direito Processual Penal e a sua conformação jurídica com a Constituição.....................23

1.9 Princípios do Processo Penal relativos à promoção processual............................................24

1.9.1 O princípio da oficialidade................................................................................................24

1.9.2 Princípio da Legalidade.....................................................................................................27

1.9.3 Princípio da acusação........................................................................................................28

iv
1.10 O Ministério Público..........................................................................................................30

1.10.1Posição jurídica do Ministério Público no processo penal................................................30

1.10.1.1 O Ministério Público como órgão autónomo de administração da justiça....................30

1.10.2 Funções do Ministério Público no processo penal...........................................................32

CAPITULO-II: DIREITO COMPARADO................................................................................11

2. Sistema Jurídico-penal Angolano...........................................................................................11

2.1 Características fundamentais do processo penal...................................................................11

2.2 Características fundamentais do processo penal brasileiro...................................................12


2.3 Características fundamentais do processo penal português..................................................13

CAPITULO III. VICISSITUDES DO EXERCÍCIO DA ACÇÃO PENAL NO


ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO...................................................................15

3.1 Discussão do Problema........................................................................................................15

Conclusão...................................................................................................................................20

Recomendações..........................................................................................................................21

Referências Bibliográficas.........................................................................................................22

v
Dedicatória

Aos meus pais e irmãos.

vi
Agradecimentos

A Deus em primeiro lugar por ter abençoado minha vida e a vida dos meus entes
queridos, e por ter abençoado todas aquelas mãos que directas ou indirectamente
participaram na minha vida académica. Ainda aos meus pais Mário Marcoa e Fátima
João que se dedicaram por mim todos esses tempos por ter acreditado nas minhas
capacidades, pela confiança, pelo carinho pelos conselhos em fim e pelos puxões de
orelha, e ainda por nunca ter desistido mesmo depois de ter os desapontado, e que na
segunda encarnação que deus me de novamente vocês como meus pais; as minhas
madrinhas Jacinta e irmã Anapaula que mesmo sem saber ajudaram-me bastante,
principalmente a Jacinta que sempre teve tempo para me escutar, aconselhar e me
criticar quando necessário. E obrigada pelos ensinamentos, que deus continue
abençoando vocês; aos meus irmãos que são uma grande companhia que com cada
bagunça deles apreendo algo principalmente Kariath e Telmino vossa brincadeiras
significou muito pra mim, vocês são uma definição de amor, meus únicos e verdadeiros
amigos. MUITO OBRIGADO.

vii
Lista de Abreviaturas

Al/s. – Alínea/s;

Art/s – Artigo/s;

CP - Código Penal

CPP – Código de Processo Penal de Moçambique

CPC – Código de Processo Civil

CRM – Constituição da República de Moçambique

ET AL – e outros

IDEM- da mesma obra

IN FINE – Parte final

JIC – Juiz de instrucao criminal

MP – Ministério Público

N.O e / - Número

N.o/s. – Número/s;

Pág/s. – Página/s

SERNIC-Serviço nacional de investigação criminal

SIC - Secção de Instrução Criminal

SS – Seguintes

Vol. – Volume;

viii
Declaração de Honra

Declaro por minha honra que este trabalho de monografia constitui documento único,
nunca foi apresentado por nenhuma Universidade, e tem como fim aquisição de grau de
Licenciatura em Direito, no qual constitui o resultado da minha investigação, pessoal e
da orientação do supervisor. O seu conteúdo é original e todas as fontes consultadas
estão devidamente mencionadas no corpo do trabalho e na bibliografia.

Lichinga, aos _________ de ___________________ de 2023

A candidata
__________________________________
Palmira Mário Marcoa

ix
Resumo

O presente estudo de fim de curso para a obtenção do grau de Licenciatura em Direito


na Universidade Católica de Moçambique – Faculdade de Gestão de Recursos Florestais e
Faunísticos tem como tema, "Vicissitudes da Acção Penal no ordenamento jurídico
moçambicano. É nossa proposta neste trabalho analisar a constitucionalidade e ou legalidade do
no2 do artigo 61, 59 no2 alínea b) ambos do Código de Processo Penal face ao artigo 235 da
Constituição da República de Moçambique. As normas contidas na alínea b) do n o2 do artigo 59
e no no2 do artigo 61 ambos do Código de Processo Penal (CPP) diz que compete em especial
ao Ministério Público (MP): dirigir a instrução; por conseguinte, o n o2 do artigo 61 do mesmo
dispositivo legal, dispõe que: compete, em Especial, aos Serviços de Investigação Criminal
(SERNIC), mesmo por iniciativa própria, dai nos colocamos a seguinte questão: até que ponto a
alínea b) do no2 do artigo 59 e o no2 do artigo 61 do CPP obedecem ao princípio constitucional
previsto no artigo 235 da CRM? Objectivo geral, analisar a Constitucionalidade e ou legalidade
da alínea b) do no2 do artigo 59 e do no2 do artigo 61 do CPP tendo em conta o artigo 235 da
CRM. Específicos, identificar a inconstitucionalidade patente da norma alínea b) do no2 do
artigo 59 e do no2 do artigo 61 do CPP no ordenamento jurídico moçambicano; compreender a
inconstitucionalidade e legalidade da alínea b) do no2 do artigo 59 e do no2 do artigo 61 do CPP
face ao artigo 235 da CRM; propor formas da aplicabilidade da função de instrução do processo
pelo MP. Quanto a metodologia, o presente trabalho recorreu a pesquisa bibliográfica, na
medida em que procedemos com uma análise bibliográfica, legislação, manuais, e artigos
científicos. Onde apoiámo-nos ao enfoque qualitativo, visto que na ciência jurídica é por
excelência o método recomendado. Chegamos a seguinte conclusão que, a norma do n o2 do
artigo 61 do Código de Processo Penal, aprovado pela lei nº 25/2019, de 26 de Dezembro,
padecem de uma inconstitucionalidade formal superveniente e de ilegalidade, por regular
matéria exclusiva do legislador constituinte, Padece igualmente de inconstitucionalidade
material por estar contra os princípios constitucionais em que assentam as garantias processuais
dos indivíduos, como a tipicidade/legalidade e segurança jurídicas.

Palavras – Chave: Vicissitudes, Exercício, acção Penal .

x
Introdução

O tema da presente monografia científica é, Vicissitudes do Exercício da Acção Penal no


Ordenamento Jurídico moçambicano, nos termos do Código de Processo Penal, aprovado pela
leinº25/2019, de 26 de Dezembro, é o tema que nos propomos neste estudo, trata-se de um tema
de Direito Processual Penal, e Constitucional, portanto, é um trabalho enquadrado no Direito
público moçambicano. Trata-se de um tema onde analisamos a constitucionalidade da norma do
no2 do artigo 61 do (CPP) código de processo penal, uma vez que esta disposição legal contrasta
com o artigo 235 da (CRM), constituição da República de Moçambique e com o no2 do artigo 59
do (CPP) código de processo penal, que ao mesmo tempo constitui a razão pela qual escolhido
esse tema para estudo neste projecto de pesquisa. Ora, nos termos do artigo 235 da Constituição
da República de Moçambique, são funções e compete ao Ministério Público compete (...) dirigir
a instrução preparatória dos processos-crime, exercer a acção penal e (...), pelo que, o CPP na
versão introduzida pela Lei n° 25/2019, de 26 de Dezembro atribui ao Ministério Público, na
al.b), do art. 59 a função de “dirigir a instrução” cuja finalidade descrita no art. 307 CPP, é a
mesma que a da instrução preparatória constante do artigo 12 do Decreto-Lei n° 35007, de 13 de
Outubro de 1945 (ora revogado). Na verdade, a instrução ocorre em todo o processo, desde a
notícia do crime até ao julgamento. Não se trata de uma questão meramente formal. Esta
alteração pode ter interpretações díspares de implicações profundas no processo. As funções do
Ministério Público, no art. 235 da CRM, atribui a este órgão o do exercício da acção penal, o que
é contrariado pelo n°2 do artigo 61 do CPP aprovado em 26 de Dezembro de 2019, que atribui
competência especial ao Serviço de Investigação Criminal de, por iniciativa própria, colher
notícia dos crimes, impedir, quanto possível, as suas consequências, descobrir os seus agentes e
levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova. Esta tarefa
atribuída ao Serviço de Investigação Criminal é, constitucionalmente reservada, no artigo 236 da
CRM, ao Ministério Público. Isto resulta do facto de o Estado chamar a si a tarefa de administrar
a justiça, fazendo-o por meio do processo, que é o verdadeiro substitutivo da vingança privada.
Assim, passou o Estado, a ser o detentor do monopólio da administração da justiça. Mas é certo
que não proibiu, terminantemente, outras formas compositivas de litígios, como a autodefesa e a
auto-composição, que são formas excepcionais de resolver a lide. É a forma comum de exercício

11
da acção penal promovida exclusivamente pelo MP, não depende de qualquer manifestação de
vontade da vítima para a sua procedibilidade, mesmo, que eventualmente, possa submeter-se a
outras condições de procedibilidade. Será sempre incondicionada quando a lei, ou a
jurisprudência, não dispuser de forma expressa sobre qualquer forma específica para a sua
promoção, casos em que se utiliza as expressões: somente se procede mediante queixa, ou
somente se procede mediante representação. A titularidade é exclusiva do MP, mas depende da
provocação do ofendido (condição de procedibilidade). A presente monografia científica visa as
normas contidas na alínea b) do no2 do artigo 59 e no no2 do artigo 61 ambos do Código de
Processo Penal (CPP) dizem que compete em especial ao Ministério Público (MP): dirigir a
instrução; por conseguinte, o no2 do artigo 61 do mesmo dispositivo legal, dispõe que: compete,
em Especial, aos Serviços de Investigação Criminal (SERNIC), mesmo por iniciativa própria,
colher a notícia dos crimes e impedir, quanto possível, as suas consequências, descobrir os seus
agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova;
contudo, o artigo 235 da Constituição da República de Moçambique (CRM), que se ocupa das
funções do Ministério Publico, dispõe que: ao Ministério Públio compete (…) dirigir a instrução
preparatória dos processos-crime, exercer a acção penal (...). Ora, a alínea b) do n o2 do artigo 59
do CPP, aprovado pela lei no 25/2019, de 26 de Dezembro, atribui ao Ministério Público a
função de dirigir a instrução, cuja finalidade descrita no artigo 307 do CPP revogado, é, por
exemplo, a mesma que a da instrução preparatória constante do artigo 12 do Decreto 35007, de
13 de Outubro de 1945 ora revogado; nesses termos nos colocamos a seguinte questão de
partida: até que ponto a alínea b) do no2do artigo 59 e o no2 do artigo 61 do CPP obedecem ao
princípio constitucional previsto no artigo 235 da CRM? Assim, foi definido como objectivo
geral: Analisar a Constitucionalidade e ou legalidade do exercício da acção penal nos termos da
alínea b) do no2do artigo 59 e do no2 do artigo 61 do CPP tendo em conta o artigo 235 da CRM;
e como objectivos específicos: Identificar a inconstitucionalidade patente da norma alínea b) do no2do
artigo 59 e do no2 do artigo 61 do CPP no ordenamento jurídico moçambicano; explicar a
inconstitucionalidade e legalidade da alínea b) do no2do artigo 59 e dono2 do artigo 61 do CPP face ao
artigo 235 da CRM; Propor formas da aplicabilidade da função de instrução do processo pelo MP .O que
nos leva a optar por esta temática, é o facto de o CPP que contem as disposições legais em
alusão, ser actual, o que esta situação aqui por nos aludida pode trazer várias interpretações, e
mais ainda, ao condicionar os efeitos pretendidos pelas normas de direito fundamental à edição

12
da normatização infraconstitucional regulamentar, resultaria, em termos práticos, na eliminação
dos limites consubstanciados nos direitos fundamentais e na equiparação do poder estatal ao
poder constituinte, com consequente ameaça ao Estado constitucional. A metodologia, o presente
trabalho de pesquisa recorreu a pesquisa bibliográfica, na medida em que procedemos com uma
análise bibliográfica, legislação, manuais, e artigos científicos. Apoiámo-nos ao enfoque
qualitativo, visto que na ciência jurídica é por excelência o método recomendado. Este método
permite-nos a obtenção de dados de jeito eficiente com o menor custo na realização do presente
trabalho académico. Quanto a estrutura, presente trabalho de pesquisa, tem três capítulos
descritos da seguinte ordem: No primeiro capítulo é referente a fundamentação teórica, onde
encontra-se descrita os vários conceitos de teorias e concepções que os diversos doutrinários
apresentam relevantes para a problemática em estudo. O segundo capítulo tem como objectivo
principal comparar com diversos ordenamentos jurídicos tais como, Angola, Brasil e Portugal, a
escolha destes dois países, é pelo facto dos mesmos serem semelhantes ao nosso sistema jurídico,
e no terceiro capítulo por sinal o último, este é exclusivamente destinado à apresentação, análise
e discussão dos resultados obtidos no desenvolvimento do trabalho de pesquisa, com base a
fundamentação teórica, destinado especialmente para fazer uma abordagem detalhada e sobre os
aspectos fundamentais da problemática, buscando trazer argumentos, e tomar posições diante do
presente problema em estudo.

13
CAPÍTULO I: MARCO TEÓRICO

1. GENERALIDADES:VICISSITUDES DO EXERCÍCIO DA ACÇÃO PENAL NO


ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO

1.1 Conceito de Acção Penal

É o direito do Estado-acusação ou do ofendido de ingressar em juízo, solicitando a


prestação jurisdicional, representada pela aplicação das normas de direito penal ao caso concreto.
Por meio da acção, tendo em vista a existência de uma infracção penal precedente, o Estado
consegue realizar a sua pretensão de punir o infractor. Na óptica de ROGÉRIO LAURIA
TUCCI, acção é a “actuação correspondente ao exercício de um direito abstracto (em linha de
princípio, até porque, com ela, se concretiza), autónomo, público, genérico e subjectivo, qual seja
o direito à jurisdição” (Teoria do direito processual penal, p. 79).

1.2 Processo, Procedimento e Pressupostos Processuais

Viabiliza-se a acção penal por meio do processo, que segue um procedimento. O


processo é um instrumento de realização do direito de pedir ao Poder Judiciário a aplicação do
direito material ao caso concreto, formatando-se pelos aspectos externo e interno. Externamente,
o processo é uma sucessão ordenada de actos dirigida à sentença. Internamente, cuida-se de uma
relação estabelecida entre as partes contrapostas – acusação e réu – e o Estado-juiz. O
procedimento é a forma e o ritmo dado à sucessão dos actos que buscam a sentença. Pode ser
considerado comum ou especial, como veremos no capítulo próprio, significando um andamento
mais célere ou mais lento, com várias audiências ou uma única, enfim, espelha a maneira pela
qual se dará o desenvolvimento do processo. Os pressupostos processuais são os requisitos
necessários para a existência e a validade da relação processual, permitindo que o processo possa
atingir o seu fim. Como pressuposto de existência, pode-se citar a constatação da jurisdição, uma
vez que apresentar a causa a uma pessoa não integrante do Poder Judiciário nada resolve em
definitivo. Como pressuposto de validade, pode-se mencionar a inexistência de suspeição do
magistrado, bem como a sua competência para decidir a causa, além da ausência de
litispendência e coisa julgada1.
1
CUNA . Lições de Direito Processual Penal, Escolar, Maputo, 2014, p.145.

14
1.3 Evolução das Formas de Processo no Processo Penal Moçambicano

O artigo 62.º do Código de Processo Penal de 1929, na sua redacção originária, dizia que o
processo penal era comum ou especial. As cinco formas do processo comum então previstas
eram: o processo de querela, o processo correccional, o processo de polícia correccional, o
processo de transgressões e o processo sumário. O § único do mesmo artigo estabelecia: “Estas
formas de processo deverão empregar-se nos termos dos artigos seguintes, quando não haja
processo especial prescrito na lei.

Na distinção entre as diversas formas de processo comum, atendia-se à diferente


gravidade dos crimes, indiciada pelas respectivas penas, por se entender que, em regra, seriam
mais fáceis de julgar as pequenas infracções, exigindo a imposição das penas mais grave um
maior cuidado e acrescidas garantias. No que concerne ao processo sumário, a existência de
flagrante delito dispensava a investigação que, em regra, tinha lugar nos outros processos 2.

As formas do processo comum passaram a ser as seguintes: 1.ª – Processo de querela; 2.ª
– Processo correccional; 3.ª – Processo de transgressão; 4.ª – Processo sumário. Para além das
quatro formas de processo comum, o artigo 62.º do CPP de 1929 previa formas de processo
especial, a utilizar apenas nos casos expressamente admitidos por lei. No CPP de 1929, os
processos especiais encontravam-se regulados no Título VII do Livro II e eram os seguintes4: 1)
o processo de ausentes (artigos 625º e segs.); 2) o processo por difamação, calúnia e injúria
(artigos 587º e segs.); 3) o processo por infracções cometidas pelos juízes de direito de 1.ª
instância e magistrados do Ministério Público, junto deles, no exercício das suas funções ou por
causa delas (artigos 595º e segs.); 4) o processo por infracções cometidas pelos juízes de 1.ª
instância e magistrados do Ministério Público, junto deles, estranha ao exercício das mesmas
funções (artigos 609º e segs.); 5) o processo por infracções cometidas pelos juízes das Relações
ou do Supremo Tribunal de Justiça, pelos magistrados do Ministério Público, junto deles ou
outros de igual categoria (artigos 613º e segs.); 6) o processo de reforma de autos perdidos,
extraviados ou destruídos (artigos 617º e segs.). Assim com entrada em vigor da lei n o n.º

2
CUNA, Ribeiro José. Lições de Direito Processual Penal. Escolar, Maputo, 2014, pp.45-46.

15
25/2019 de 26 de Dezembro, passamos a ter como formas de processo penal: comum ou
especial3.

1.4 Âmbito do Direito Processual Penal

A função essencial do direito processual penal cumpre-se, como vimos, na decisão


jurisdictional de saber se foi praticado um crime e, em caso afirmativo, qual a consequência
jurídica que daí deriva.

Por isso, certos autores entendem que seu âmbito de aplicação se esgota com trânsito em
julgado da sentença, já não abrangendo a fase de execução da pena, que teria índole puramente
administrativo. Outros, pelo contrário, sustentam que o direito de execução das penas se integra,
todo ele, no direito processual penal, pese embora a circunstância de à administração
penitenciária estar reservada uma esfera de actuação própria, que pode dizer-se livre da
jurisdição.

Nesta última corrente se situa Figueiredo Dias, para quem, no entanto, é necessário
distinguir a regulamentação respeitante à determinação prática do conteúdo da sentença
condenatória – e, por conseguinte, à realização concreta da pena imposta - ,da regulamentação
referente ao efeito executivo da sentença (num sentido análogo àquele em que, no processo civil,
se fala da exequibilidade da sentença) e, consequentemente, aos preliminares ao controlo geral
da excução (incluindo os incidentes da execução. No primeiro caso, tratar-se-á de matéria
substantiva e no segundo, de matéria processual4.

Cremos poder concordar com este autor, tanto mais que, como ele próprio assinala, o C.P.Penal
vigente consagra um Título específico às execuções (o Título VIII do Livro II - arts.625 a 640) –
sem, todavia, abranger a parte respeitante às penas privativas de liberdade - , o que reforça o
argumento de ser esta, essencialmente, uma área de actuação do direito processual.

3
Cfr.artigos 305 a 306 ambos do CPP.
4
Fig. Dias. op.cit. p.37

16
1.5 Sistemas de Processo Penal

Para se realizar uma investigação, seguindo-se o consequente processo-crime, resultando


em uma condenação, pode-se utilizar variados sistemas. Historicamente, há, como regra, três
sistemas regentes do processo penal: a) inquisitivo; b) acusatório; c) misto. Entretanto, convém,
desde logo, mencionar que, na actualidade, eles jamais conseguiram ser adoptados, integral e
individualmente, por um único ordenamento jurídico. Há vantagens de um que, associadas aos
aspectos positivos de outro, constroem o mais apurado método de persecução penal.

a) Sistema Inquisitivo

É caracterizado pela concentração de poder nas mãos do julgador, que exerce, também, a
função de acusador; a confissão do réu é considerada a rainha das provas; não há debates orais,
predominando procedimentos exclusivamente escritos; os julgadores não estão sujeitos à recusa;
o procedimento é sigiloso; há ausência de contraditório e a defesa é meramente decorativa. Esse
sistema foi utilizado com sucesso em parte da Idade Média para combater os abusos cometidos
pelos senhores feudais e pela aristocracia em detrimento de vassalos e pessoas pobres. Diante
disso, os reis podiam enviar os juízes inquisidores, em seu nome, com poder suficiente para se
voltar contra os ricos, autores de delitos graves, que não podiam ser tratados com absoluta
igualdade. Aliás, aplicava-se a ideia da isonomia – tratar desigualmente os desiguais.

Actuando contra ricos e poderosos, o processo penal jamais poderia lastrear-se, à época,
em plena igualdade. Eis o motivo pelo qual o juiz inquisidor consegue amealhar provas, sem que
as testemunhas se furtasse aos depoimentos, com temor de represálias, fazendo-o de maneira
sigilosa, até que ficasse pronta a instrução. Assim, vítimas pobres poderiam ver a justiça ser
realizada mesmo quando seus algozes fossem nobres ou afortunados. Por óbvio, o sistema
inquisitivo, mesmo servindo a um lado positivo, apresentou várias falhas e deu ensejo a abusos.
Um dos principais custos do referido sistema deu-se, justamente, no âmbito da inquisição
promovida pela Igreja, à cata de hereges.

Em lugar de combater a injustiça social, terminou por promover uma autêntica caça às
bruxas (literalmente), sem a menor chance de defesa. O advento da Revolução Francesa, com as
ideias iluministas, torna o sistema inquisitivo incompatível com a nova realidade. Isso jamais

17
significou que seus postulados fossem completamente despropositados e inválidos para garantir a
eficiência de uma investigação criminal. Tanto é verdade que, no mundo actual, vê-se o sistema
inquisitivo permear a persecução penal em vários momentos.

b) Sistema Acusatório

Possui nítida separação entre o órgão acusador e o julgador; há liberdade de acusação,


reconhecido o direito ao ofendido e a qualquer cidadão; predomina a liberdade de defesa e a
isonomia entre as partes no processo; vigora a publicidade do procedimento; o contraditório está
presente; existe a possibilidade de recusa do julgador; há livre sistema de produção de provas;
predomina maior participação popular na justiça penal e a liberdade do réu é a regra.

Pode-se apontar a prevalência do sistema acusatório na época romana antiga, ao mesmo


tempo em que se pode encontrá-lo na legislação actual de vários países. Não é uma criação
inédita do Iluminismo, tampouco um sistema infalível. Mesmo os ordenamentos jurídicos mais
modernos, que adoptam a prática acusatória como regra, terminam por acolher alguns aspectos
do inquisitivo, no mínimo para a primeira fase da colheita da prova, pois mais eficiente e célere.

c) Sistema Misto

Surgido após a Revolução Francesa, uniu as virtudes dos dois anteriores, caracterizando-
se pela divisão do processo em duas grandes fases: a instrução preliminar, com os elementos do
sistema inquisitivo, e a fase de julgamento, com a predominância do sistema acusatório. Num
primeiro estágio, há procedimento secreto, escrito e sem contraditório, enquanto, no segundo,
presentes se fazem a oralidade, a publicidade, o contraditório, a concentração dos atos
processuais, a intervenção de juízes populares e a livre apreciação das provas.

Conforme bem atesta Gilberto Lozzi, na realidade, não existe um processo acusatório
puro ou um processo inquisitório puro, mas somente um processo misto, de onde se possa
perceber a predominância do sistema acusatório ou do inquisitivo (Lezioni di procedura penale,
p. 5). Essa é, sem dúvida, a realidade da maioria dos ordenamentos jurídicos do mundo actual.

18
d) Opção do Sistema Processual Moçambicano

O sistema adoptado no ordenamento jurídico moçambicano, é ao nosso ver, o misto. Na


Constituição da República, foram delineados vários princípios processuais penais, que apontam
para um sistema acusatório; entretanto, como mencionado, indicam um sistema acusatório, mas
não o impõem, pois quem cria, realmente, as regras processuais penais a seguir é o Código de
Processo Penal.

De outra parte, encontram-se na Constituição as normas prevendo a existência da polícia


judiciária, encarregada da investigação criminal. Para essa fase, por óbvio, os postulados
acusatórios não se aplicam. Aqueles que sustentam a existência exclusiva do sistema acusatório,
somente porque a Constituição apresenta princípios processuais penais pertinentes ao referido
sistema, esbarram em patente equívoco.

A adopção de princípios acusatórios não significa, em hipótese alguma, a eleição de um


sistema de persecução penal exclusivamente calcado nesse molde. Ao contrário, se a
Constituição fosse a fonte exclusiva das regras processuais, nem mesmo de Código e outras leis
precisariam os operadores do Direito. Por tal motivo, já tivemos a oportunidade de dizer que, se
fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição da República, em particular,
elegendo determinados arts. 65 e ss, poder-se-ia dizer que o sistema de persecução penal
moçambicano é o acusatório puro, algo distante da realidade. Entretanto, não é assim que se
constrói um autêntico sistema persecutório.

Ele é constituído pela junção dos princípios constitucionais de processo penal associado às
normas instituídas em legislação ordinária. Não há como negar o encontro dos dois lados da
moeda (Constituição e CPP), resultando, legitimamente, no hibridismo que temos hoje. Sem
dúvida, trata-se de um sistema complexo, pois é o resultado de um Código, cuja alma, em seu
nascedouro, possuía forte natureza inquisitiva, depois iluminado por uma Constituição da
República imantada pelos princípios democráticos do sistema acusatório. No entanto, várias
reformas ao Código de Processo Penal foram implantadas, desde 1929 até hoje, amenizando a
intensidade do inquisitivísmo e conferindo-lhe as nuanças do sistema acusatório, sem jamais
transformá-lo num sistema puro.

19
Por tudo isso, diz-se que “o moderno processo penal delineia-se inquisitório,
substancialmente, na sua essencialidade; e, formalmente, no tocante ao procedimento
desenrolado na segunda fase da persecução penal, acusatório. Defender o contrário, classificando
o nosso sistema como acusatório puro, é omitir que o juiz moçambicano produz prova de ofício,
decreta a prisão do acusado de ofício, sem que nenhuma das partes tenha solicitado, bem como
se vale, sem a menor preocupação, de elementos produzidos longe do contraditório, para formar
sua convicção.

Em suma, com todas as reformas havidas no Código de Processo Penal, continua ele com o
seu carácter misto, numa formação inquisitivo-garantista. E não se pode negar ter esse sistema as
suas inegáveis vantagens, pois a fase preliminar de investigação somente consegue ser célere e
dinâmica, impedindo a perda de provas, porque mantém seu carácter inquisitivo. A par disso,
quando se está em juízo, predominam os aspectos acusatórios.

1.5.1 A estrutura fundamental do processo penal em Moçambique

Face aos modelos estruturais acabados de descrever, e em função do que acima foi dito,
quer a propósito do objecto do processo, quer das diferenças entre os processos penal e civil,
facilmente se conclui que o tipo de processo penal definido na legislação entre nós não
corresponde a um puro processo de partes.

E não é um puro processo de partes, pelas seguintes razões essenciais: Contrariamente ao


que sucede com as partes naquele tipo de processo, o Ministério Público e o arguido não se
encontram, de facto e de jure, ao mesmo nível – as suas posições não são idênticas, nem entre
ambos se verifica uma absoluta igualdade de oportunidades no tratamento do objecto do
processo.

Na realidade, o Ministério Público beneficia de uma posição jurídica supra ordenada em


relação à do arguido: dispõe de um aparelho investigativo e coactivo (formado pelos chamados
órgãos auxiliares do Ministério Público – o SERNIC (art.61 e 64 ambos do CPP) e as outras
forças policiais, os estabelecimentos especializados de investigação, enfim, todos os organismos
do poder do Estado), de que pode e deve fazer uso o que falta por completo ao arguido.

20
O Ministério Público não tem, como as partes em processo civil, o domínio do objecto do
processo: não lhe cabe qualquer margem de discricionariedade em acusar ou não acusar, nem a
acusação pode ser retirada a partir do momento em que o tribunal for chamado a decidir sobre
ela.

Do exposto resulta que o processo penal em Moçambique é tipicamente um processo sem partes,
embora isso não signifique que a sua estrutura se confunde com a do tipo inquisitório (pelo
menos na sua forma pura). Ele é, na verdade, um processo basicamente acusatório, mas
integrado por um princípio de investigação, que, como vimos, está consagrado com carácter
geral no artigo 5 do CPP.

1.6 Objecto do Processo Penal

A determinação do objecto do processo – ou seja, da matéria à volta da qual se


desenvolvem as actividades processuais – é de extrema importância teórica e prática.

A estrutura do sistema processual penal vigente entre nós é, conforme veremos adiante 5,
basicamente acusatória se bem que integrada por um princípio de investigação. Isso implica que
o tribunal só possa intervir quando solicitado por uma acusação formulada por uma entidade dele
distinta e independente (o Ministério Público), e que o conteúdo da acusação delimita a própria
actividade processual do tribunal.

Existe assim uma identidade essencial entre o conteúdo da acusação, a pronúncia e a


sentença final, que constitui importante garantia para o arguido, na medida em que só terá de
defender-se do que é acusado (e pronunciado) e só pelo que é acusado poderá ser julgado.

Disto resulta que a sentença final, salvo casos excepcionais que a lei expressamente prevê, só
pode condenar por factos constantes do despacho de pronúncia ou equivalente.

No comentário a este preceito legal, Beleza dos Santos escreve: “Este limite imposto ao
tribunal de julgamento representa uma justa garantia para o réu e tem uma justificação fácil de
ver. O réu não deve ser surpreendido por uma imputação de factos feita na audiência de
julgamento e tomada em consideração na sentença, quando por tais factos não foi anteriormente

5
V. supra “A estrutura fundamental do processo penal em Moçambique”, ponto 1. 5.1

21
pronunciado e não pôde, por isso, organizar e deduzir a sua defesa a tal respeito, oferecer e
produzir a respectiva prova, com os prazos devidos.

A lei ordena a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente ao réu, sob pena de


nulidade (…) precisamente para que ele possa ter conhecimento dos factos que lhe são
imputados e com tempo necessário prepare a sua defesa. Por isso, haveria uma flagrante
incoerência e um manifesto contra-senso na lei se ela permitisse que o réu fosse condenado por
factos diversos daqueles que constassem da acusação de que foi notificado e de que lhe deram
cópia, por factos que ele desconhecia e que viriam a ser imputados na audiência de julgamento e
na sentença”.6

Pode, pois, concluir-se que o objecto do processo penal é o facto (ou comportamento
humano) concreto, na sua existência real, que importa averiguar e cuja verificação é pressuposto
da aplicação da pena7.

O objecto do processo penal não se apresenta delimitado desde o início deste. É susceptível de
diferentes graus de apreciação, consoante a evolução que o próprio processo vai tendo, quer
dizer, de acordo com as fases em que se desenvolve. A um primeiro juízo de suspeita sobre o
facto, segue-se uma fase instrutória destinada precisamente a obter a confirmação desse juízo de
suspeita. Com a acusação e pronúncia, o juízo de suspeita transforma-se num juízo de
probabilidade. Por último, para que a decisão final seja condenatória é necessária a formulação
de um juízo de certeza sobre o facto objecto do processo8.

É no momento da passagem do juízo de suspeita para um juízo de probabilidade – com o


trânsito em julgado do despacho de pronúncia ou equivalente – que se fixa , em termos
definitivos, o objecto do processo.

6
- in A sentença condenatória e a pronuncia em processo penal, Rev. de Legis. Jurisp., 63°Ano, págs. 385 e segts.
7
- ou, na definição de José da Costa Pimenta, “… é um conjunto de factos humanos, devidamente situados no tempo
e no espaço, que integram os pressupostos de que depende a aplicação ao seu autor de uma pena ou medida
segurança criminais” (in Introdução ao processo penal, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 22)
8
Sobre a distinção entre juízos de suspeita, de probabilidade e de certeza, v. Cavaleiro de Ferreira, op. cit. págs.33 e
II Volume, pág. 283.

22
1.7 Fim do Processo Penal

O processo penal visa a aplicação do direito penal substantivo aos casos concretos. Essa
função instrumental que lhe é característica exprime-se de forma simples nestas duas máximas
latinas: impunitus non relinqui facinus (nenhum criminosos deve ficar sem punição) e
innocentum non condemnari (nenhum inocente deve ser condenado).

De acordo com uma certa maneira de encarar o direito, e o processo penal em particular,
a aludida natureza instrumental impõe a este, como fim a prosseguir, a ideia de realização da
justiça, que só é possível obter com a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz
juridica violada.

Certo é, todavia, que a realização da justiça do mesmo modo que a segurança do direito e
a verdade material – todas elas categorias axiológicas por certo compreendidas no fim último do
processo penal- não podem ser estimadas como valores absolutos, antes devem entender-se na
sua referência a cada caso historicamente determinado. Tanto assim é que, frequentemente, estes
valores entram em conflito uns com os outros.

Com efeito, quantas vezes institutos como o do caso julgado, ou princípios como o in
dubio pro reo, de aplicabilidade mais do que reconhecida no processo penal, conduzem, na
prática, a condenações e absolvições materialmente injustas, em nome da segurança jurídica das
respectivas decisões.

1.8 O Direito Processual Penal e a sua conformação jurídica com a Constituição

A referência histórica que acabou de ser feita às diversas concepções políticas do Estado
e à sua conexão com os correspondentes modelos estruturais do processo penal mostra como este
está tão intimamente relacionado com o Direito Constitucional. De tal modo essa ligação é
estreita que um autor alemão, H. Henkel,9 considera o direito processual penal como verdadeiro
direito constitucional aplicado.

9
Citado por Figueiredo Dias, op. cit. págf.74.

23
Isto, não só porque os fundamentos daquele representam simultaneamente os alicerces
constitucionais do Estado, mas também porque a concreta regulamentação de problemas
essenciais do processo penal é, e deve ser, conformada com a Constituição.

Desta conformação jurídico-constitucional do processo penal resultam, como consequências:

- A obrigatoriedade de uma estrita e minuciosa regulamentação legal dos meios de coacção


e de quaisquer medidas que se traduzam numa limitação dos direitos fundamentais dos
cidadãos, constitucionalmente garantidos;
- A exigência de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial destes direitos, ainda
que a Constituição lhe conceda liberdade para os regulamentar;
- A necessidade de controlo judicial da actividade de todos os órgãos do Estado, mesmo
dos que cumpram funções puramente administrativas, quando estejam em causa as
garantias constitucionais;
- a proibição de jurisdições excepcionais, pela afirmação do princípio do juíz natural;10
- a não valoração de provas obtidas com violação da liberdade de querer e de entender da
pessoa;
- a interpretação e aplicação da lei ordinária a partir e de acordo com a Constituição.

Vejamos, então, alguns dos princípios consagrados na actual Constituição da República


de Moçambique que directamente se prendem com o direito processual penal: arts. 59- 60-
61-62-64-65-66 e 217 da Constituição de 2004, em atenção as alterações introduzidas em
2018.
1.9 Princípios do Processo Penal relativos à promoção processual
1.9.1 O princípio da oficialidade
Ao debruçarmo-nos sobre este princípio, há que indagar, desde logo, a quem compete a
iniciativa (impulso) de investigar a prática de uma infracção e a decisão de a submeter ou não a
julgamento. Incide tal questão no sentido de se estabelecer se uma tal iniciativa deve pertencer a
uma entidade pública ou estadual – que persegue o interesse da comunidade, constituído em
Estado, na investigação oficiosa das infracções – ou antes, a quaisquer entidades particulares,
designadamente ao ofendido pela infracção.

10
A proibição da retirada de uma acção em tribunal cuja competência fora fixada por lei anterior.

24
Sendo o Direito Penal um direito de protecção dos bens fundamentais da sociedade e o
processo penal um assunto da comunidade jurídica, em nome e no interesse da qual se tem de
esclarecer o crime, perseguir e punir o criminoso, torna-se assim compreensível que a
generalidade das legislações actuais se paute no sentido de reputar a promoção processual das
infracções tarefa estadual a realizar oficiosamente e em completa independência da vontade e da
actuação de quaisquer particulares.

Em reforço do bom fundamento deste princípio da oficialidade está a circunstância de o


carácter público das reacções criminais, que em processo penal se aplicam, se não coadunar com
o deixar-se ao arbítrio dos particulares a sua aplicação efectiva e, bem assim, no facto de, na
actual concepção do Estado, recair sobre este, em exclusivo, o dever de administração e
realização da justiça penal, decorrente da sua obrigação de promover as indispensáveis condições
de livre realização da personalidade ética dos membros da comunidade.

O princípio da oficialidade é, na verdade, uma conquista dos tempos modernos. No direito


romano vigorava o princípio da acção popular, segundo o qual qualquer pessoa (qui vis ex
populo) poderia deduzir a acusação penal. Poderia, à primeira vista, entender-se que se estaria
perante uma privatização extrema do processo penal: todavia, tal facto traduz-se no testemunho
maior da elevada consciência da co-responsabilidade de qualquer membro da comunidade na
administração da justiça penal, Considerava-se na asserção de Montesquieu, que “cada cidadão
tem quase no seu poder todos os direitos da Pátria”.

No anterior direito germânico vigorava o princípio da acusação privada, que deixava a


promoção processual penal na vontade do ofendido, ou da família ou grupo a que pertencia.

Com o desenvolvimento alcançado no domínio jurídico-político da ideia de Estado e o


consequente monopólio estadual da função jurisdicional, a par a influência de relevo do direito
canónico, assistiu-se por toda a parte a uma acentuação do princípio da oficialidade que não
conduziu, é claro, ao imediato afastamento dos princípios da acusação privada e da acção
popular, antes se combinou com eles em maior ou menor extensão.

No direito processual penal vigente o princípio da oficialidade pretende receber consagração


plena. A instrução preparatória acha-se por regra confiada a entidades oficiais sem funções

25
jurisdicionais, que devem promover oficiosamente o conjunto de diligências destinadas a provar
a culpa ou a inocência dos arguidos: (em regra ao Ministério Público).

O carácter público da acção penal no sentido de que o Estado é titular exclusivo da acusação
penal, que exerce oficiosamente por intermédio do M°P° (art.312 e 330 ambos do CPP) ou, em
casos particulares, (arts.308 a 309 ambos) de outras entidades oficiais, como as autoridades
administrativas e outros organismos do Estado com competência para a fiscalização de certa
actividade ou da execução de regulamentos especiais.

De notar, porém, que este princípio da promoção oficiosa não se afirma sem limitações,
que podem ser de ordem legal ou de ordem jurisprudencial. São de ordem legal as derivadas da
existência de crimes semipúblicos e dos crimes particulares. As de ordem jurisprudencial advêm
do facto de se continuar a admitir amplamente a possibildade de os particulares assistentes
acusarem por crimes públicos, mesmo nos casos em que o M°P° se tenha abstido de acusar.

São crimes públicos aqueles em que o M°P° promove oficiosamente e por inciativa
própria o processo penal e decide com plena autonomia – observando, porém, estritamente o
princípio da legalidade - da submissão ou não de uma infracção penal a julgamento.Crimes
particulars, latu sensu, são aqueles em que a legitimidade do M°P° para por eles acusar precisa
de ser integrada por uma denúncia ou também por uma acusação particular.

Fácil é de compreender a ratio dos crimes particulares e mesmo semi - particulares (ou
semi - públicos) se se atentar ao facto de que certas infracções, certas formas de ofensas
corporais, danos, furtos ,injúrias, não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da
comunidade de forma tão directa, de tal sorte que aquela sinta a necessidade de reagir
automaticamente contra o infractor. Se o ofendido entender não fazer valer a exigência da
retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal:
isto por um lado.

Por outro lado, há que reter a ideia de que em certas infracções ( v. g. crimes sexuais,
furto entre parentes) a prossecução penal contra a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou
mesmo de consequência negativa para interesses seus dignos de toda consideração, uma vez que
se encontram relacionados com a sua esfera íntima ou familiar. Face a tal conflito de interesses
juridicamente relevantes, o legislador optou por dar prevalência ao interesse do particular.

26
Para além destas razões, acresce, ainda, o princípio da legalidade, que vincula
estritamente o M°P° a dar acusação por todas as infracções cujos pressupostos considera
verificados. Não havendo, assim, limitações acima referidas e, por força do princípio da
legalidade, poderia resultar que os tribunais se vissem assoberbados por um elevado número de
processos penais de duvidoso valor e interesse comunitário.

1.9.2 Princípio da Legalidade

Com o princípio da perseguição oficiosa das infracções visa o Estado corresponder ao seu
dever de administração da justiça penal, de onde resulta a condenação de todos os culpados, e
somente deles,da prática de uma infracção. Daqui se extrai que a peça fundamental deste
processo – de modo contrário ao que acontece no processo civil, onde se dá ao autor a faculdade
de aquilatar da oportunidade de propositura da acção – o princípio da legalidade.

Em processo penal não há lugar a qualquer juízo de oportunidade sobre a promoção e


prossecução processual. Pelo contrário, a promoção e a prossecução do processo penal apresenta-
se como um dever para o M°P°. Como corolário lógico do princípio da legalidade no que
respeita à acusação pública, resulta o princípio da imutabilidade. De acordo com este princípio, a
acusação não pode ser retirada a partir do momento em que um tribunal foi chamado a decidir
sobre ela.

Resumindo: Sob este princípio da imutabilidade ou da indisponibilidade, os sujeitos


processuais não podem dispor da relação processual. O M°P° não pode desistir da acusação, o
arguido não pode pôr fim ao processo, mesmo que confesse, as partes não podem transigir. Este
princípio é dominante nos crimes públicos, em relação aos quais o M°P° não só tem a obrigação
de promover a acção penal, como o dever de com ela prosseguir depois de requerida.

O princípio da legalidade impõe ao M°P° a obrigação de promover sempre a acção penal,


desde que existam os necessários elementos (art.165 do CPP). A este princípio opõe-se o
princípio da oportunidade, que dá ao M°P° competência para deixar de exercer a acção penal
quando razões de consciência pública assim o exijam, ou quando se trate de infracções de
pequena gravidade.

27
O princípio da legalidade preserva um dos fundamentos essenciais do Estado de direito,
na medida em que isenta a justiça penal de suspeitas e tentações de parcialidade e arbítrio. Se
acaso fosse permitida aos órgãos públicos encarregados do procedimento penal apreciarem da
conveniência do seu exercício e omiti-lo por inoportuno, avolumar-se-ia o perigo de
aparecimento de influências externas da mais variada ordem, na administraçao da justiça penal e,
mesmo que tais influências não lograssem impôr-se, ficaria irremediavelmente comprometida a
confiança da comunidade na incondicional objectividade e imparcialidade daquela
administração.

Vem, assim, o princípio da legalidade em reforço e confirmação de uma máxima tão importante
como a da igualdade na aplicação do direito, máxima essa com foro constitucional na República
de Moçambique ( v. arts.35, 59 n°1, 234 n°2 e 236 da CRM de 2004, em atenção as alterações
introduzidas em 2018).

Depreende-se destas normas que o titular público da acusação deve exercer os poderes
conferidos por lei sem atentar no estado ou na qualidade da pessoa ou nos interesses de terceiros.
Ressalvam-se, naturalmente, as limitações derivadas dos pressupostos processuais ou de
condições de aplicabilidade do próprio direito penal substantivo 11.O princípio da legalidade
defende e potencia, neste contexto, o efeito da prevenção geral que deve estar e continuar ligado
não só à pena, mas a toda a administração da justiça penal.

1.9.3 Princípio da acusação

A imparcialidade e objectividade que associados à independência são condições


indispensáveis de uma autêntica decisão judicial, só estarão assegurados quando a entidade
julgadora não tenha funções de investigação preliminar e acusação de infracções mas apenas
possa “…investigar e julgar dentro dos limites que são postos por uma acusação fundamentada
e deduzida por um órgão diferenciado (em regra, o M°P° ou um juíz de intrução)”12. É assim
que modernamente se afirma o princípio da acusação.

11
De modo diverso expende Castanheira Neves, ao considerar a invocação da garantia política ou administrativa
como verdadeiro limite ao princípio da legalidade.
12
Figueiredo Dias, op. cit. pág. 136 e segs.

28
De realçar, no entanto, que pode formalmente existir um órgão diferenciado encarregado
da acusação sem, todavia, estar-se perante o princípio da acusação. Foi o que sucedeu durante a
vigência plena do CPP de 1929 quando o M°P° deduzia a acusação mas em função de uma
instrução preliminar (corpo de delito) dirigido pelo mesmo juíz a quem caberia o julgamento.
Trata-se, neste caso, de um processo com forma acusatória e não de um processo com princípio
de acusação.

Um processo de tipo acusatório (seja ele puro, como v.g., o inglês clássico, ou esteja
integrado por um princípio de investigação) supõe – para além do princípio da acusação – a
aceitação da participação constitutiva dos sujeitos processuais na declaração do direito do caso.

Da consagração deste princípio resultam substancialmente as seguintes implicações:

1. O tribunal a quem cabe o julgamento não pode, por sua iniciativa, começar uma
investigação tendente ao esclarecimento de uma infracção e a determinação dos seus
sujeitos. Tal só pode ter lugar numa fase processual cuja iniciativa e direcção caiba a uma
entidade diferente;
2. A dedução da acusação é pressuposto de toda a actividade jurisdicional de investigação,
conhecimento e decisão. Ela afirma publicamente que sobre alguém recai uma suspeita
tão forte de responsabilidade por uma infracção, que impõe uma decisão judicial; e, por
consequência, a afirmação pública e solene de que a comunidade jurídica chama um seu
membro à responsabilidade;
3. A acusação define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo. Num processo de tipo
inquisitório puro, a cognição do tribunal poderia dirigir-se indiscriminadamente a
qualquer suspeita de infracção ou de infractor, mesmo que aquela não tivesse nenhum
reflexo no contexto da acusação (se esta existisse). Segundo o princípio do acusatório,
pelo contrário - e esta é, sem dúvida a sua implicação mais relevante - a actividade
cognitiva e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação (e da
pronúncia). É a este efeito que alguns autores chamam de vinculação temática do
tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou da
indivisibilidade e da consução do objecto do processo penal, isto é, os princípios segundo
os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo desde a acusação ao trânsito em

29
julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e
indivisivelmente) e deve considerar-se irrepetivelmente decidido.

Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no


princípio da acusação, facilmente se apreendem quando se pensa que ela constitui a pedra
angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido – sem o qual o fim do processo
penal é inatingível -, que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade
cognitiva e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência; e
quando se pense também que só assim o Estado pode ter a esperança de realizar o seu interesse
de punir só os verdadeiros culpados.

1.10 O Ministério Público

1.10.1Posição jurídica do Ministério Público no processo penal

1.10.1.1 O Ministério Público como órgão autónomo de administração da justiça

A figura do Ministério Público, como titular das funções de investigação da suspeita de um


crime e de dedução da respectiva acusação, surge a partir da consagração do “processo penal
reformado, misto ou napoleónico” que, segundo as ideias iluministas e revolucionárias do séc.
XVIII em França, devia substituir o anterior processo de estrutura inquisitória. É através desta
magistratura que se logra obter:

- a separação entre a entidade que preside à instrução preparatória e se encarrega


da acusação e a que julga e profere a decisão;
- a vinculação temática do tribunal ao objecto do processo, pela exacta
delimitação dos seus poderes cognitivos, o que constitui uma importante garantia de
defesa do arguido e dos seus direitos fundamentais.

A separação institucional e funcional entre o Ministério Público e o juíz não impede,


todavia, uma estreita correlacionação dos dois sujeitos dentro do processo penal. Trata-se de
duas entidades públicas, órgãos do mesmo Estado, às quais a lei confere a categoria de
magistraturas paralelas, como veremos adiante. As actividades por ambas desenvolvidas
convergem na prossecução de um mesmo fim: a administração da justiça penal.

30
É este relacionamento estreito entre Ministério Público e juíz que torna difícil e muito
discutida a definição da posição jurídica do primeiro dentro do processo penal. A questão, mais
do que respeitar propriamente ao Direito processual penal, prende-se com o Direito
Constitucional e com a Organização Judiciária. As principais posições que se têm manifestado na
doutrina sobre o assunto podem reunir-se em três grupos:

a) as que consideram o Ministério Público como pura entidade administrativa, verdadeiro


órgão da Administração comum (numa palavra, como parte do Poder Executivo), considerando
os princípios da amovibilidade, responsabilidade e dependência hierárquica, que presidem à sua
orgânica estrutural.

As críticas dirigidas a esta posição alicerçam-se no facto de a actividade administrativa se


orientar predominantemente por critérios de oportunidade e de discricionaridade – embora
sempre na base dos limites impostos pelo Direito – e não pelo estrito princípio da legalidade, a
que está vinculada toda a actuação do Ministério Público. Além disso, a actividade do Ministério
Público desenvolve-se, desde o início da instrução preparatória até ao final do julgamento em
estreita colaboração com o juíz (mesmo é dizer, com a função judicial), tendo em vista a
descoberta da verdade e a realização da justiça penal.

b) as que defendem a ideia de que o M°P° participa na função e no poder judicial


e que, por conseguinte, lhe atribuem a qualidade de órgão integrante do poder
Judicial.

Esta tese é rejeitada por muitos autores, com a argumentação de que a função judicial se
concretiza, materialmente, pela declaração do direito do caso (ou seja, pela aplicação das
normas jurídicas a um caso penal concreto), através de uma decisão susceptível de transitar em
julgado. E esta possibilidade está vedada ao M°P°: ele participa dessa função, é verdade, como
dela participam os outros sujeitos processuais, mas não lhe pertence declarar o direito do caso,
nem as suas decisões assumem a característica ou virtualidade de caso julgado.

c) Finalmente a tese hoje dominante na doutrina alemã (que exerce enorme influência nos
paises de sistema romano-germânico), perfilhada, entre outros autores, por Moçambique, que
qualifica o M°P° como órgão autónomo de administração da justiça.

31
Segundo esta corrente doutrinária, há que distinguir a função de administração da justiça
da função judicial em sentido estrito, por um lado, e da função administrativa comum, por outro
lado. A primeira funciona como uma ponte entre o Poder Judicial e o Poder Executivo. A função
de administração da justiça ou administração judiciária, abrange toda a actividade, estadual ou
não, caracterizada pela sua estreita relacionação com o Direito (no sentido e com o fim da sua
realização no caso concreto) e subordinada aos valores da verdade e da justiça. Desta função
participam órgãos e entidades como os tribunais, os notários, os defensores em processo penal,
etc. Só uma parte do exercício desta actividade se pode considerar jurisprudência (e, portanto,
função judicial), enquanto a outra constitui simplesmente administração da justiça.

O Ministério Público é, portanto, um órgão autónomo desta administração-autónoma, no


sentido de independente dos tribunais e dotado de estrutura e organização próprias.

1.10.2 Funções do Ministério Público no processo penal

Como órgão encarregado de promover a perseguição dos crimes e outras infracções à lei
penal, compete ao Ministério Público, em primeiro lugar, proceder à sua completa investigação e
ao seu possível esclarecimento. Para lhe permitir a plena realização desta finalidade, a lei atribui-
lhe a direcção da instrução preparatória – art. 309 do CPP. Esta regra geral sofre, no entanto,
algumas restrições constantes dos preceitos seguintes do mesmo diploma legal. As autoridades
que, além do Ministério Público, podem exercer acção penal são as enumeradas no art. 315 do
CPP.

32
CAPITULO-II: DIREITO COMPARADO

2. Sistema Jurídico-penal Angolano

2.1 Características fundamentais do processo penal

A lei estabelece que, durante o inquérito, a medida de coacção que avulte a prisão
preventiva só pode ser aplicada mediante o requerimento do MP, funcionando aqui aquilo que a
doutrina tem denominado de princípio do pedido13. “Este facto justifica-se porque ao MP, na
qualidade de dominus da acção penal, compete avaliar a exigência de uma determinada medida
para dar cobro às finalidades cautelares nesta fase.
Uma qualquer aplicação de medida de coacção nesta fase por parte do juiz de instrução
infringiria o princípio do acusatório”. Aliás, se não tiver requerimento do MP, parece que a
decisão de aplicação da medida encontra-se contaminada de uma nulidade insanável. Esta é uma
decisão que parte da verificação do art.º 194.º do CPPP, quando sublinha que as medidas de
coacção devem ser aplicadas pelo juiz na fase de inquérito depois do requerimento do MP, e da
al. b) do art.º 119.º do CPPP, que sustenta a nulidade insanável perante a ausência do MP nos
actos relativamente aos quais a lei exige a sua comparência.
Na doutrina e na jurisprudência, levantou-se algumas discordâncias referentes até que
ponto o juiz está vinculado ao requerimento do MP para aplicação da medida de coacção.
Actualmente, esta questão está mais ou menos resolvida com a redacção do art.º 194.º, n.º 2 do
CPPP, introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, que prevê que durante o inquérito o
juiz possa aplicar medida de coacção diversa, ainda que mais grave, quanto à sua natureza,
medida ou modalidade de execução da requerida pelo MP com o fundamento das alíneas a) e c)
do art.º 204.º do CPPP.
Para melhor uma compreensão do parágrafo exposto, vamos ter de regressar no tempo
para entendermos o presente, daí que convém fazer alusão à solução legislativa consagrada
anteriormente.
O Decreto-Lei n.º 387/87, de 29 de Dezembro, apenas previa no art.º 194.º, n.º 2 que, à
excepção do TIR, as medidas de coacção e de garantias patrimoniais fossem aplicadas por

13
MESQUITA, Paulo Dá. – Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judicial. Editora Coimbra, p. 182. Ver também
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, op. cit., pp. 548-552. Ou ver 4.ª ed., 2003, pp. 570-571

11
despacho do juiz de instrução, durante o inquérito a requerimento do MP. Nada dizia em
concreto se o juiz podia aplicar medida diversa da requerida pelo MP. Por esse motivo, na
doutrina e na jurisprudência, começaram a surgir várias interpretações à volta deste artigo, há
quem entenda que o juiz não podia aplicar uma medida diferente da requerida pelo MP, cabendo
apenas ao juiz ou deferir a medida ou indeferir.
Em Angola o MP, por ter o dominus da investigação na fase de inquérito/instrução, é ele
mais do que ninguém que conhece quais são as medidas de coacção que precisam de ser
aplicadas, ao considerar que o juiz pode aplicar uma medida diferente do que a requerida pelo
dominus da investigação, poder-se-ia dar origem ao caso em que aquele estabeleça medidas de
coacção profundamente gravosas para o arguido (máxima a prisão preventiva) em situações em
que o MP acreditava que a aplicação desta medida atrapalharia a investigação.
2.2 Características fundamentais do processo penal brasileiro

No Brasil à tramitação, direcção do inquérito é atribuída ao Ministério Público, titular da


acção penal, sendo o juiz das garantias responsável pelo “exercício das funções jurisdicionais
alusivas à tutela imediata e directa das inviolabilidades pessoais”, na fase da investigação. O
controlo da acção penal passa a se realizar no âmbito exclusivo do Ministério Público,
atribuindo-se à vítima legitimidade para o questionamento acerca da correcção da acusação.
A ausência de qualquer órgão no controlo oficioso da acção penal reservando-se apenas e
exclusivamente ao Ministério Público bem se compreende, pois o mesmo violaria claramente a
estrutura acusatória do processo penal, o princípio da acusação e a autonomia entre o Ministério
Público e outros órgãos da administração da justiça.
Nesta estrutura acusatória, “integrada por um princípio de investigação – na terminologia
da doutrina portuguesa – que se revê um processo penal harmonizado à escala europeia…”,
sendo à luz do princípio da acusação, marcante na tramitação processual, que emerge a
interacção entre os diferentes actores do processo. A trindade ministério público, juiz, órgãos de
polícia criminal reparte entre os seus membros a responsabilidade da investigação e da decisão
sobre o caso, com competências delineadas com rigor. O percurso foi difícil, atravessado por
controvérsias e não raros equívocos estigmatizantes que só com dificuldade se libertaram do
ápodo igualmente inibidor de conservadoras ou progressistas

12
2.3 Características fundamentais do processo penal português

As características fundamentais do processo penal português são:


• Legalidade: no processo penal também vale o princípio da legalidade (artigo 2º CPP).
A lei sobrepõe--‐se à vontade das partes. Os sujeitos processuais têm a liberdade de decidir se
podem ou não praticar determinado acto, mas é o processo penal que decide as consequências
dessas decisões.
• Judicialidade: O processo penal (acção penal) é controlado por juízes. No nosso sistema a
investigação criminal é dirigida pelo Ministério Público, mas executada pro juízes judiciais. Não
existe, então, a figura do juiz de investigação criminal, mas sim a do juiz de instrução criminal
que pode, sim, intervir no inquérito praticando alguns actos numa lógica de controlo ou garantia.
A regra é a de que os actos processuais mais graves, praticados no inquérito, têm de ser
autorizados pelo juiz.
Exemplo1: O MP não pode determinar escutas telefónicas, o juiz de instrução tem de autorizar.
Exemplo 2: O MP pode requerer a prisão preventiva, mas só o juiz a pode aplicar.
Assim, no exercício da acção penal, o Ministério Público é um órgão autónomo de administração
da justiça, dotado de estatuto próprio e de autonomia, ao qual está constitucionalmente cometida,
entre outras, a competência para o exercício da acção penal – cf. artigo 219º nºs 1 e 2 da
Constituição da República.
A autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de
legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às
directivas, ordens e instruções previstas na lei – artigo 2º nº 2 do Estatuto do Ministério Público
(Lei 47/86, de 15-10, com a redacção da Lei nº 60/98, de 27-08). A autonomia do Ministério
Público, constitucionalmente consagrada, reporta-se aos demais órgãos do poder central, regional
e local (artigo 2º nº 1 do EMP), e implica: a não ingerência do poder político, maxime do
Ministro da Justiça, no exercício das suas atribuições, em especial no exercício da acção penal; a
sua concepção e estruturação como magistratura própria, orientada por um princípio de
paralelismo e estatuto idêntico ao da magistratura judicial; a adopção de um governo próprio 14. A
autonomia do Ministério Público vale também como “garantia da própria independência dos

14
Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A fase preparatória do processo penal – tendências na Europa. O caso
Português”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares. Coimbra Editora, 2001, p.952, Cunha
Rodrigues. “Ministério Público: Estatuto”, Coimbra Editora, 1999, p. 102.

13
tribunais, que são instâncias passivas (ne procedata iudex ex officio”15. Sendo a imparcialidade e
a passividade características do processo jurisdicional, o poder judicial carece, para o ser, de um
órgão que lhe assegure a iniciativa. A Instrução foi concebida, desde a versão originária do C. P.
Penal de 1987, como uma fase facultativa de controlo jurisdicional da decisão de deduzir
acusação ou de arquivar o inquérito – artigo 286º nº 1 do C. P. Penal 16. A mesma pode ser
requerida pelo arguido, visando a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, e pelo
assistente, visando a comprovação judiciai dos factos.
A direcção da instrução compete ao Juiz de Instrução, assistido pelos órgãos de polícia
criminal. Para além das suas competência próprias, na fase da instrução, ao Juiz de instrução
Criminal incumbe, na fase do inquérito, a prática de actos que se directamente se prendam com
os direitos fundamentais das pessoas, os quais são por si praticados ou autorizados – artigo 2º nº
45 da Lei nº 43/86, de 26-09, e artigos 268º e 269º do C. P. Penal. O JIC é, pois, entre nós um
juiz das liberdades, o juiz que, na fase preparatória controla o respeito pelas liberdades.

15
Cf. Figueiredo Dias.“Sobre a Revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português” ,2008, p. 368.
16
Cf. Nuno Brandão, “A Nova Face da Instrução), p. 228, bem como os Autores para
que o mesmo remete (nota 1).

14
CAPITULO III. VICISSITUDES DO EXERCÍCIO DA ACÇÃO PENAL NO
ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO

3.1 Discussão do Problema

A Acção Penal fundamenta-se do princípio radica na segurança jurídica e especialmente na


segurança do indivíduo frente ao Estado, o que num Estado de Direito Democrático se traduz no
direito do indivíduo de não ser afectado nos bens essenciais da sua vida, senão na medida exigida
por lei à realização dos fins do Estado. Para além deste fundamento originário, de natureza
jurídico-política, se funda ainda em razões político criminais, pois ao atribuir à pena uma função
pragmática de prevenção geral negativa ou de dissuasão, o iluminismo penal veio reforçar a
exigência de que a lei fosse clara e anterior ao facto: se a lei penal tem a função de levar a que os
cidadãos não pratiquem crimes, então ela deverá indicar com anterioridade e precisão o que é
crime e qual a pena que lhe é aplicável: nullum crimen, nulla poena sine lege 17. Além do
princípio ora referenciado, a Acção Penal também baseia-se do princípio da segurança jurídica
versa principalmente sobre a estabilidade dos actos jurídicos realizados, situações jurídicas
consolidadas e os direitos já incorporados ao património do cidadão, sustentando a estabilidade
social frente às constantes alterações efetuadas no direito. A garantia de seguridade num acto
determinado juridicamente permite que se estabeleça um Estado uniforme e sustentável do ponto
de vista jurídico18.Seguindo esse princípio, surgiria a necessidade de mitigação dos efeitos da
decisão no controle concentrado, visto que importa em grande benefício para a estabilidade dos
actos praticados.
Assim, no Estado Democrático de Direito do qual Moçambique alinha-se, se funda na
legitimidade de uma Constituição19, proveniente da vontade popular e que, dotada de supremacia,
vincule todos os poderes e os actos deles provenientes. Considerando que a Constituição é a lei
suprema dentro de um sistema jurídico, torna-se indispensável assegurar sua supremacia em face
da legislação infraconstitucional, havendo a necessidade de criação de um mecanismo para
verificação da compatibilidade de tais normas com a lei mãe. Neste capítulo tratamos desses
pressupostos.

17
Ferreira, Manuel de Cavaleiro .Direito Penal Português. Parte Geral II-Verbo, Lisboa, 1982,pp.90-94
18
Idem.
19
Cfr.art.3 da CRM.

15
Mais ainda, dir-se-ia controlo de Constitucionalidade como sendo mecanismo constitucional
e lógico de verificação da compatibilidade da legislação ordinária ou do acto normativo com a
Constituição, dentro de uma hierarquia em que o texto constitucional encontra-se no topo da
estrutura normativa. As normas que não passarem por este controle serão consideradas
incompatíveis, e por consequência declaradas inconstitucionais, tornando o poder constituinte
mais assegurado.
O Controlo é derivação directa do princípio da supremacia da Constituição, vector que
remete à existência de uma pirâmide normativa na qual a Constituição se coloca no vértice. Em
síntese, a função precípua do Controle de Constitucionalidade é tornar a Constituição a medida
suprema de regularidade jurídica20.
Do Princípio da Supremacia da Constituição, decorrem mecanismos completos de controlo,
possibilitando a aplicação das normas constitucionais, ficando, assim, visível que para haver
ordem constitucional, a produção legislativa do ordenamento jurídico deve ter um Controle de
Constitucionalidade incisivo.
Por esta posição, permanece a tripartição dos Poderes, em virtude da capacidade da
Constituição da República conseguir assegurar a sua preservação e aplicabilidade a todo o
ordenamento. Efetuada esta diferenciação, no que tange ao quesito estabilidade das
Constituições, pode-se buscar um conceito na doutrina para o Controle da Constitucionalidade.
As normas contidas na alínea b) do n°2 do artigo 59 e no n°2 do artigo 61, ambos do CPP que
passamos a citar: compete, em especial, ao Ministério Público: Artigo 59 (Posição e atribuições
do Ministério Público no processo), alínea b): dirigir a instrução.

Órgãos Auxiliares artigo 61/2 do CPP - (Competência dos serviços de investigação


criminal), que também passamos a citar, dizem: compete, em especial, aos serviços de
investigação criminal, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir, quanto
possível, as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e
urgentes destinados a assegurar os meios de prova. Violam o disposto no artigo 235, da CRM
que dispõe: Artigo 235, (Funções):ao Ministério Público compete (...) dirigir a instrução
preparatória dos processos-crime, exercer a acção penal e (...).

20
MACHADO, Hugo de Brito. Inconstitucionalidade da lei complementar 87/96. Temas de Direito Tributário:
ICongresso Nacional da Associação Brasileira de Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p.47.

16
Ora, o CPP na versão introduzida pela Lei n° 25/2019, de 26 de Dezembro atribui ao
Ministério Público, na al. b), do art. 59 a função de “dirigir a instrução" cuja finalidade descrita
no art.307 CPP, é a mesma que a da instrução preparatória constante do artigo 12 do Decreto-Lei
n°35007, de 13 de Outubro de 1945 (ora revogado).

Na verdade, a instrução ocorre em todo o processo, desde a notícia do crime até ao


julgamento. Há aqui uma aparente inconstitucionalidade somente pelo facto do legislador ter
suprimido o termo “preparatória" a que alude a Constituição. Não se trata de uma questão
meramente formal. Esta alteração pode ter interpretações díspares de implicações profundas no
processo.
Ainda na senda das funções do Ministério Público, o art.235 da CRM, atribui a este órgão
o pecúlio do exercício da acção penal, o que é contrariado pelo n o2 do art. 61 do CPP aprovado
em 26 de Dezembro de 2019,que atribui competência especial ao Serviço de Investigação
Criminal de, por iniciativa própria, colher notícia dos crimes, impedir, quanto possível, as suas
consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes
destinados a assegurar os meios de prova.

Esta tarefa atribuída ao Serviço de Investigação Criminal é, constitucionalmente


reservada, no artigo 236 da CRM, ao Ministério Público, daí a inconstitucionalidade do n o2,
artigo 61 do CPP. É incompreensível que um órgão “ab initio" coadjuvante (no1 do artigo 61
CPP), de repente assuma a liderança na função persecutória do crime e do criminoso e da própria
instrução do processo-crime (art.307 do CPP),pois que, ao pretender condicionar os efeitos
pretendidos pelas normas de direito fundamental à edição de normatização infraconstitucional
regulamentar resultaria, em termos práticos, na eliminação dos limites consubstanciados nos
direitos fundamentais e na equiparação do poder estatal ao poder constituinte, com consequente
ameaça ao Estado Constitucional.
Ora, o CPP na versão introduzida pela Lei n° 25/2019, de 26 de Dezembro atribui ao
Ministério Público, na al. b), do art. 59 a função de “dirigir a instrução" cuja finalidade descrita
no art.307 CPP, é a mesma que a da instrução preparatória constante do artigo 12 do Decreto-Lei
n° 35007, de 13 de Outubro de 1945 (ora revogado).

Na verdade, a instrução ocorre em todo o processo, desde a notícia do crime até ao


julgamento. Há aqui uma aparente inconstitucionalidade somente pelo facto do legislador ter

17
suprimido o termo “preparatória" a que alude a Constituição. Não se trata de uma questão
meramente formal. Esta alteração pode ter interpretações díspares de implicações profundas no
processo.
Ainda na senda das funções do Ministério Público, o art.235 da CRM, atribui a este órgão
o pecúlio do exercício da acção penal, o que é contrariado pelo n°2 do art. 61 do CPP aprovado
em 26 de Dezembro de 2019,que atribui competência especial ao Serviço de Investigação
Criminal de, por iniciativa própria, colher notícia dos crimes, impedir, quanto possível, as suas
consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes
destinados a assegurar os meios de prova.

Esta tarefa atribuída ao Serviço de Investigação Criminal é, constitucionalmente


reservada, no artigo 236 da CRM, ao Ministério Público, daí a inconstitucionalidade do n.°2,
artigo 61 do CPP. É incompreensível que um órgão “ab initio" coadjuvante (n° 1 do artigo 61
CPP), de repente assuma a liderança na função persecutória do crime e do criminoso e da própria
instrução do processo-crime (art. 307 do CPP),pois que, ao pretender condicionar os efeitos
pretendidos pelas normas de direito fundamental à edição de normatização infraconstitucional
regulamentar resultaria, em termos práticos, na eliminação dos limites consubstanciados nos
direitos fundamentais e na equiparação do poder estatal ao poder constituinte, com consequente
ameaça ao Estado Constitucional.
A desconformidade dos actos normativos com o parâmetro constitucional dá origem ao vício de
inconstitucionalidade. A doutrina costuma distinguir entre vícios formais, vícios materiais e vícios
procedimentais; (1) vícios formais: incidem sobre o acto normativo enquanto tal, independentemente do
seu conteúdo e tendo em conta apenas a forma da sua exteriorização; na hipótese de inconstitucionalidade
formal, viciado é o acto, nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final; (2)
vícios materiais: respeitam ao conteúdo do acto, derivando do contraste existente entre os princípios
incorporados no acto e as normas ou princípios da constituição; no caso de inconstitucionalidade
material, substancial ou doutrinária (como também se lhe chamou entre nós), viciadas são as disposições
ou normas singularmente consideradas; (3) vícios de procedimento: autonomizados pela doutrina mais
recente (mas englobados nos vícios formais pela doutrina clássica), são os que dizem respeito ao
procedimento de formação, juridicamente regulado, dos actos normativos”. O vício formal é aquele que
atinge o acto em seu processo de elaboração.
Como referido, a Constituição traz em seu seio uma série de normas atinentes ao
processo legislativo, disciplinando minuciosamente a matéria. Essas regras são, outrossim, de
observância obrigatória nas demais esferas federativas, de modo que qualquer espécie legislativa

18
aprovada sem sua observância padece de vício insanável de inconstitucionalidade, estendendo-se
a regra até mesmo ao processo de aprovação da Constituição. A inconstitucionalidade formal,
geralmente, acarreta a nulidade total do acto.
Nesse sentido, MENDES (1996, p. 263) citado por Carlos Roberto de Alckmin Dutra,
esclarece que defeitos formais, “tais como a inobservância das disposições atinentes a iniciativa
da lei ou competência legislativa levam, normalmente, a uma declaração de nulidade total, uma
vez que, nesse caso, não se vislumbra a possibilidade de divisão da lei em partes válidas e
inválidas”.
Já CANOTILHO (1999, p. 889 e 890), citado por Carlos Roberto de Alckmin Dutra,
todavia, delineia uma hipótese de vício formal causador de nulidade parcial do ato normativo:
“por ex., um decreto-lei, regulador de várias matérias, algumas das quais constituindo reserva de
lei da Assembleia da República. Um tal vício é um vício de incompetência e a invalidade do acto
derivará da sua inidoneidade para regulamentar certas matérias. (...) Só a parte que reveste a
forma de decreto-lei em vez de lei formal, mas que deveria necessariamente revestir esta última
forma, se deverá considerar viciada”. Inconstitucionalidade Orgânica -quando o acto do poder
político é emanado de um órgão que não dispõe de competência para a sua prática, face às
normas constitucionais.
Aqui, trata-se de uma inconstitucionalidade material revelada pela dissonância entre o
conteúdo do acto normativo e a Constituição. Sob o aspecto material, a inconstitucionalidade
pode atingir parte da lei ou ela toda, neste caso é a norma em concreto, (n° 2 do artigo 61; alínea
b). Se houver possibilidade de poupar parte do texto sem que ele perca o seu sentido, o Tribunal
declarará a inconstitucionalidade parcial. Caso contrário, toda a lei será declarada nula.
Também total será a nulidade da lei quando houver uma relação de dependência ou
interdependência entre as suas partes constitucionais e inconstitucionais evidenciando-se uma
inconstitucionalidade em virtude de relação de dependência unilateral. A lei também poderá ser
indivisível em virtude de forte integração entre suas partes, falando-se aí de dependência
recíproca (MENDES, 1996, p. 264) citado por Carlos Roberto de Alckmin Dutra. Como efeito a
esta inconstitucionalidade da norma em concreto ela tende a ser tida com ineficácia jurídica -
traduz-se no seguinte: os órgãos com competência para aplicar as normas jurídicas não as
aplicam aos casos concretos que vão surgindo.

19
Conclusão

O processo é um instrumento para a realização do Direito Penal, e deve, por isso, realizar
sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena, e de outro, servir como efectivo
instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra
os actos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de
limitação da actividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efectividade aos direitos
individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa,
isto porque antes de servir para a aplicação da pena, o processo serve ao Direito Penal. Pelo que,
tendo -se em conta o exposto supra, deve – se concluir que a não previsão daqueles crimes do n o2
do artigo 61 do CPP viola o princípio da legalidade e, deve por isso ser declarado
inconstitucional pelo nos termos do no 2 do artigo 244 da CRM. Tratando-se de uma
competência constitucionalmente reservada ao Ministério Publico oficiosamente, atribuir o
mesmo carácter a quaisquer outro órgão, seria claramente violar o artigo 235 da CRM. Dai a
inconstitucionalidade do no2, artigo 61 do CPP. Porque é incompreensível que um órgão “ab
initio" coadjuvante (no1 do artigo 61 CPP), de repente assuma a liderança na função persecutória
do crime e do criminoso e da própria instrução do processo-crime (art.307 do CPP),pois que, ao
pretender condicionar os efeitos pretendidos pelas normas de direito fundamental à edição de
normatização infraconstitucional regulamentar resultaria, em termos práticos, na eliminação dos
limites consubstanciados nos direitos fundamentais e na equiparação do poder estatal ao poder
constituinte, com consequente ameaça ao Estado Constitucional. Nestes termos, concluímos que
a norma do no2 do artigo 61 do Código de Processo Penal, aprovado pela lei nº 25/2019, de 26 de
Dezembro, padecem de uma inconstitucionalidade formal superveniente e de ilegalidade, por
regular matéria exclusiva do legislador constituinte, pelo que e deve ser por força do disposto no
no4 do artigo 2 da Constituição da República de Moçambique ser revogada por
inconstitucionalidade superveniente a ser declarada pelo Conselho Constitucional de
Moçambique. Padece igualmente de inconstitucionalidade material por estar contra os princípios
constitucionais em que assentam as garantias processuais dos indivíduos, como a
tipicidade/legalidade e segurança jurídicas.

20
Recomendações

Por base na conclusão aqui dada, recomenda-se que:

 Que o aplicador da lei não a ponha em prática o disposto nas normas dos artigos 59 e 61
aqui referenciadas em respeito ao princípio da legalidade.
 Que o legislador exclua o termo “por iniciativa própria” ao SERNIC no exercício da
acção penal, em consideração ao Estado de direito democrático, legalidade, liberdade por
garantirem a segurança jurídica; ou
 Que o conselho constitucional declare inconstitucional e ou ilegal a norma do n o2 do
artigo 61 e 59 alínea b) ambos do CPP por violação do princípio da liberdade e garantias
individuais previsto no no1 do artigo 56 da CRM, nos termos do n o 2 do artigo 244 da
CRM;
 Que a norma do no2 do artigo 61 do CPP não seja pelo aplicador e intérprete da lei
processual penal posta em prática respeitando dessa forma as liberdades e garantias
individuais ora citadas.

21
Referências Bibliográficas

 Legislação

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Constituição da República de Moçambique de 2004, com as


alterações introduzidas pela lei no 1/2018 de 12 de Dezembro, Publicada no Boletim da
República I Série Número 115 de 12 de junho.

_________________________Código Penal, aprovado pela Lei n.º 24/2019 de 24 de Dezembro,


publicado no Boletim da República I Série Número 248 de 24 de Dezembro.
__________________________Código de Processo Penal, aprovado pela Lei n.º 25/2019 de 26
de Dezembro, publicado no Boletim da República I Série Número 249 de 26 de Dezembro.
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23

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