Você está na página 1de 14

Como diagnosticar as alterações da

coagulação?
6.1 INTRODUÇÃO E FISIOLOGIA DA
COAGULAÇÃO
A hemostasia é o processo resultante do equilíbrio entre proteínas pró-coagulantes,
anticoagulantes e fibrinolíticas, para manter o sangue fluido e, quando necessário,
coibir o sangramento. O equilíbrio é alcançado pelo bom funcionamento de vasos
sanguíneos –endotélio –, plaquetas, proteínas da coagulação, da fibrinólise e dos
anticoagulantes naturais. Muitos fatores, genéticos ou adquiridos, podem contribuir
para romper esse equilíbrio, levando a estados de hipocoagulabilidade ou
hipercoagulabilidade. Didaticamente, a hemostasia pode ser dividida em três etapas
– Figura 6.1 –.

Figura 6.1 - Etapas da hemostasia

Fonte: acervo Medcel.

6.1.1 Hemostasia primária

#importante
A hemostasia primária é responsável por estancar o
sangramento por meio da formação do tampão
plaquetário.

Após lesão endotelial, ocorrem exposição do colágeno e vasoconstrição reflexa.


Plaquetas circulantes aderem ao colágeno por meio do fator de von Willebrand,
liberado pelo endotélio em razão do estresse de cisalhamento. Essa adesão ocorre
por intermédio das glicoproteínas Ib (GPIb) e Ia-IIa localizadas, respectivamente, na
superfície das plaquetas e do colágeno. As plaquetas aderidas ao colágeno são
ativadas, liberando secreções dos conteúdos granulares – adenosina difosfato,
prostaglandinas, tromboxano A2 e serotonina –, e sofrem alteração de sua estrutura,
expondo outra glicoproteína de membrana: GPIIb/IIIa. Esta é responsável pela
agregação plaquetária por meio da sua ligação ao fibrinogênio: agregação plaqueta-
plaqueta – Figura 6.2 –.

As secreções dos grânulos plaquetários são responsáveis por maiores


vasoconstrição, adesão, ativação e agregação plaquetária. Assim, forma-se o
tampão plaquetário, responsável pelo controle do sangramento em poucos minutos.

Por fim, o tampão plaquetário tem atividade pró-coagulante, por meio da exposição
de fosfolípides pró-coagulantes e complexos enzimáticos na superfície da plaqueta,
o que resulta na inter-relação entre ativação plaquetária e ativação da cascata da
coagulação.

As principais doenças relacionadas com distúrbios da hemostasia primária são


relacionadas com o aumento da fragilidade da parede vascular – púrpura trombótica
e púrpura de Henoch-Schönlein –, alterações na forma e na quantidade das
plaquetas – púrpura trombocitopênica imunológica –, além de alterações
quantitativas e qualitativas do fator de von Willebrand, que levam à doença de
mesmo nome.
Figura 6.2 - Hemostasia primária

6.1.2 Hemostasia secundária

Hemostasia secundária é o nome dado às reações da cascata da coagulação, que


consistem na ativação sequencial de uma série de pró-enzimas ou precursores
proteicos inativos em enzimas ativas, resultando na formação de fibras de fibrina
que fortalecem o tampão plaquetário.

A hemostasia secundária é capaz de evitar o ressangramento por meio da formação


de uma rede adesiva de fibrina que consolida o tampão plaquetário – a partir daí,
chamado de coágulo –.
No caso das alterações da hemostasia secundária, temos, como principais
problemas, a hemofilia por deficiências do fator VIII ou IX, a coagulação intravascular
disseminada e a deficiência de vitamina K comum nos usuários de cumarínicos.

Todos os fatores de coagulação são produzidos pelo fígado, com exceção do fator
VIII e do fator de von Willebrand, que são secretados pelo endotélio.

Essa cascata da coagulação é dividida didaticamente em duas vias principais: a via


intrínseca, desencadeada por fatores de contato, de carga negativa, presentes no
intravascular, e a via extrínseca, desencadeada pelo Fator Tecidual (FT), que
confluem para uma via comum.

#importante
A cascata da coagulação é dividida em duas vias
principais: a via intrínseca, desencadeada por fatores
de contato, de carga negativa, e a via extrínseca,
desencadeada pelo fator tecidual, que confluem
para uma via comum.

Na via extrínseca, o fator VII circulante liga-se ao FT – tromboplastina – exposto pelo


endotélio lesado e, juntos, ativam o fator X – via comum –.

Na via intrínseca, o fator XII, na presença de Cininogênio de Alto Peso Molecular


(CAPM) e pré-calicreína (PK), é ativado por fatores de contato – substâncias de carga
negativa, como toxinas bacterianas –. O XIIa ativa o fator XI, que atuará na ativação
do fator IX. O fator IXa, na presença do VIIIa, ativa o fator X.

Após a geração de fator Xa por ambas as vias, o fator Xa se associa ao fator Va e


ativa a protrombina – fator II – em trombina – fator IIa –, sendo essa, a responsável
pela transformação do fibrinogênio em fibrina. O fator XIII é fundamental para a
estabilização do coágulo de fibrina.

Cálcio e fosfolípides são cofatores importantes para a cascata da coagulação.

#importante
Os fatores de coagulação dependentes de vitamina
K são: II, VII, IX, X, proteínas C e S.
Figura 6.3 - Cascata da coagulação sanguínea

Nota: as pró-enzimas estão mostradas nos retângulos brancos, e os fatores


ativados, nos retângulos vermelhos; os fatores anticoagulantes – TFPI inibidor do
fator tissular (TFPI), proteína C ativada e antitrombina – e a plasmina estão
mostrados nos retângulos de cantos arredondados. Fonte: elaborado pelo autor.
Tal maneira clássica de apresentar a cascata da coagulação é importante para o
raciocínio na interpretação dos exames laboratoriais, mas não é o que acontece no
organismo. Fisiologicamente, sabe-se que o FT exposto após a lesão endotelial é o
evento primário da cascata da coagulação, pois o complexo FT-VIIa ativa os fatores X
e IX, gerando pequena quantidade de trombina. Sabe-se também que os fatores da
antiga via intrínseca – como XI, IX, VIII – funcionam como amplificadores do
processo dessa geração de trombina, peça-chave na formação do coágulo de fibrina.
Tal amplificação ocorre na membrana das plaquetas ativadas – aquelas ativadas no
processo da hemostasia primária –, utilizadas como fonte de fosfolípides, importante
para a localização do coágulo apenas no tecido lesado.

Três importantes substâncias agem como moduladoras da cascata da coagulação:


antitrombina (AT), o inibidor da via do Fator Tecidual (FT) e a proteína C ativada/
proteína S.

A AT, produzida no fígado e, possivelmente, nas células endoteliais, é um dos mais


potentes inibidores da cascata da coagulação. Exerce seu papel como
anticoagulante pela inibição da trombina, dos fatores XIIa, XIa, IXa, Xa e da calicreína.

O inibidor da via do FT bloqueia a ação do complexo VIIa-FT ao ligar-se com o fator


Xa, diminuindo a geração de trombina em sua fase mais inicial. A principal fonte do
inibidor da via do FT são as células endoteliais.

A trombina gerada pela cascata da coagulação liga-se à trombomodulina, presente


no endotélio sem lesão. O complexo trombomodulina-trombina ativa a proteína C
circulante (PCa), e esta, a proteína S (PSa). Tanto a PCa quanto a PSa exercem seus
papéis como anticoagulantes ao inativarem os fatores Va e VIIIa, bloqueando a
geração de mais trombina. Além dessa ação anticoagulante, a proteína C ativada é
capaz de bloquear a ação do inibidor do ativador do plasminogênio-1 (PAI-1) e do
inibidor da fibrinólise ativado pela trombina (TAFI), diminuindo o efeito supressivo
desses compostos sobre a fibrinólise. Portanto, a proteína C ativada apresenta papel
pró-fibrinolítico e, por fim, também é capaz de reduzir a resposta inflamatória por
vários mecanismos.
Figura 6.4 - Modulação da cascata da coagulação

Fonte: elaborado pelo autor.

Além desses mecanismos, o tromboxano, a prostaciclina e o óxido nítrico modulam a


reatividade da parede vascular e das plaquetas, contribuindo para o controle da
cascata da coagulação e para a fluidez do sangue.

6.1.3 Fibrinólise

Além dos fatores de coagulação e de anticoagulação, o organismo conta também


com um sistema fibrinolítico. O plasminogênio é uma proteína inativada circulante no
plasma que se liga à fibrina à medida que o coágulo se forma. Ao se ligar à fibrina,
converte-se em plasmina, a qual dissolve o coágulo e inicia a fibrinólise. Essa
conversão ocorre pela ação do ativador tecidual do plasminogênio – tissue
plasminogen activator (tPA) –, sintetizado pelo endotélio, e do ativador do
plasminogênio tipo uroquinase – urokinase-type Plasminogen Activator (uPA) –,
secretado por diversos tecidos. A liberação endotelial do tPA é estimulada pela
presença de trombina, serotonina, bradicinina, adrenalina e citocinas.
Os compostos que controlam a fibrinólise são PAI, especialmente o PAI-1, TAFI e
alfa-2-antiplasmina. O TAFI é ativado pelo complexo trombina-trombomodulina e
liga-se à fibrina já parcialmente lisada, impedindo a ligação do plasminogênio e a
formação de mais plasmina.

Os distúrbios da hemostasia terciária são causados principalmente pelas alterações


adquiridas da fibrinólise que ocorrem também na coagulação intravascular
disseminada, em hepatopatias crônicas, em neoplasias de próstata e em cirurgias
cardíacas. Essas doenças são abordadas no capítulo distúrbios da hemostasia
secundária e terciária.

Figura 6.5 - Fibrinólise

Fonte: elaborado pelo autor.

6.1.4 Avaliação laboratorial da hemostasia

Na avaliação da hemostasia, deve ser realizada avaliação laboratorial a depender do


tipo de distúrbio de hemostasia a ser suspeitado (primário ou secundário).

Nos distúrbios da hemostasia primária, devem ser solicitados:

• Contagem de plaquetas;

• Tempo de sangramento;

• Curva de agregação plaquetária;

• Fator de von Willebrand e fator VIII – investigação de doença de von Willebrand –.

Nos distúrbios da hemostasia secundária, devem ser solicitados:

• Tempo de Protrombina (TP);

• Tempo de Tromboplastina Parcial Ativada (TTPA);

• Tempo de trombina;

• Fibrinogênio;

• D-dímero.
Quadro 6.1 - Diferenças entre hemostasias primária e secundária

Quadro 6.2 - Interpretação laboratorial da hemostasia primária

1 Os valores podem variar de acordo com o laboratório de referência.


Quadro 6.3 - Interpretação laboratorial da hemostasia secundária

1 Os valores podem variar de acordo com o laboratório de referência.

Figura 6.6 - Resultados de agregação plaquetária

6.1.5 A via da coagulação

Para a análise da hemostasia secundária, deve ser lembrada a divisão didática em via
intrínseca/extrínseca, pois, assim é possível desenvolver raciocínio clínico com a
história do paciente e os exames laboratoriais.
#importante
O TP/Razão Normalizada Internacional (RNI) avalia a
via extrínseca, o TTPA, a via intrínseca, e a via
comum é avaliada por ambos.

TP alargado corresponde à presença de inibidores ou deficiência de VII; TTPA


alargado, à deficiência ou inibidores de VIII, IX, XI, XII, cininogênio de alto peso
molecular e pré-calicreína; TP e TTPA – ambos – alargados, à deficiência ou
inibidores da via comum – V, X, II, fibrinogênio –.

Figura 6.7 - Cascata da coagulação

Fonte: adaptado de Fisiologia da coagulação, anticoagulação e fibrinólise, 2001.

6.1.6 Avaliação de situações especiais

6.1.6.1 Pseudoplaquetopenia

A pseudoplaquetopenia – plaquetopenia espúria – é um diagnóstico diferencial


importante. Corresponde à aglutinação plaquetária in vitro, interpretada pelos
contadores automáticos como plaquetopenia, geralmente relacionada ao EDTA –
anticoagulante do tubo de coleta; tubo roxo –. Para confirmar a
pseudoplaquetopenia causada pelo EDTA, utiliza-se o anticoagulante citrato de
sódio – tubo de tampa azul –, que previne a aglutinação das plaquetas. Pela análise
de sangue periférico, pode-se avaliar a morfologia plaquetária –presença de
macroplaquetas, comuns nas púrpuras trombocitopênicas imunes –.

A plaquetopenia dilucional acontece nas transfusões sanguíneas maciças, em que o


aporte transfusional chega ao correspondente a uma volemia ou próximo disso.
Transfusão de 15 unidades de hemácias em 24 horas resulta na contagem
plaquetária entre 47 e 100.000/mm 3, e transfusão de 20 unidades pode levar à
contagem entre 25 e 61.000/mm3.

Figura 6.8 - Plaquetas aglutinadas, típicas do uso de anticoagulante EDTA

Fonte: Tleonardi.

6.1.6.2 Razão Normalizada Internacional

A fim de padronizar a monitorização dos pacientes que fazem uso de anticoagulante


oral – cumarínicos como a varfarina –, o valor do TP deve ser dado na forma de RNI.
A RNI nada mais é do que o TP corrigido a padrões mundiais. O uso de
anticoagulantes orais é avaliado somente pela RNI.
6.1.6.3 Diferença entre deficiência de fator e presença de inibidor

É feita por meio do teste com o plasma do paciente misturado com plasma normal, à
proporção 1:1. Em caso de deficiência, o alargamento do tempo em estudo será
corrigido completamente, visto que foi ofertado o fator deficiente. Em caso de
presença de inibidor, após a mistura a 50%, o tempo não corrige ou o faz
parcialmente.

A utilidade dos testes de coagulação é avaliar a deficiência de fator ou presença de


inibidor, detectadas pelo alargamento daqueles. O encurtamento dos testes é
possível em algumas circunstâncias especiais, sendo as principais erro de coleta e
técnica inadequada na realização dos testes. Afastadas essas causas, os fatores de
coagulação podem estar aumentados em neoplasias malignas, coagulação
intravascular disseminada ou após exercícios, resultando no encurtamento dos
testes.

Finalmente, pode-se solicitar a dosagem dos fatores individualmente, como no caso


da hemofilia A – fator VIII – e hemofilia B – fator IX –.

6.1.6.4 Avaliação de fibrinólise

Além dos anteriores, pode-se utilizar o teste do tempo de lise de euglobulina, que
consiste em separar do plasma do paciente a fração de euglobulina – proteínas que
incluem fibrinogênio, plasminogênio, plasmina ativa, ativadores e inibidores do
plasminogênio; ativadores da fibrinólise –. Essa fração separada é ressuspensa junto
à trombina, e, a partir daí, conta-se o tempo para a formação do coágulo; tempo
encurtado equivale a hiperfibrinólise, e tempo alargado, a hipofibrinólise.

Como diagnosticar as alterações da


coagulação?
Para avaliar o tipo de distúrbio de hemostasia, é importante avaliar o
coagulograma, fator de von Willebrand, fibrinogênio e D-dímero.

Você também pode gostar