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Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova gera‐
ção de leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do Brasil.
Em 1992, fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas vidas, muitos mestres, de Bri‐
an Weiss, livro que deu origem à Editora Sextante.
Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geral‐
do desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.
Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais aces‐
síveis e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a esta fi‐
gura extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirar nas coisas verdadeiramente
importantes e não perder o idealismo e a esperança diante dos desafios e contratem‐
pos da vida.
Título original: Talk Sweetly to Me
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou re‐
produzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos edito‐
res.
CDD: 813
23-85023 CDU: 82-3(73)
Capítulo um
Capítulo dois
Capítulo três
Capítulo quatro
Capítulo cinco
Capítulo seis
Capítulo sete
Capítulo oito
Capítulo nove
Epílogo
Nota da autora
Agradecimentos
Sobre a autora
Sobre a Arqueiro
Capítulo um
A Srta. Rose Sweetly não ia soltar aqueles pacotes de jeito nenhum. Todos os
seis estavam equilibrados precariamente debaixo de um braço enquanto ela
enfiava a mão livre no bolso. Seus dedos encontraram cotos usados de lápis
e uma carta dobrada ao meio, enquanto os itens que ela carregava balança‐
vam de leve, deslizando… Se aquela droga de chave não estivesse nesse bol‐
so, e sim no outro… Arrá!
O polegar e o indicador tocaram o metal frio. Rose estava triunfante‐
mente tirando o achado do bolso quando uma voz a interrompeu.
– Boa tarde, Srta. Sweetly.
O som da voz do Sr. Shaughnessy – sua cadência aveludada – desenca‐
deou o inevitável. Primeiro, o livro embrulhado em papel deslizou; depois,
enquanto Rose tentava pegá-lo, o caderno começou a cair. Ela conseguia
calcular a equação da situação na mente: mãos de menos e gravidade de
mais, resultando em uma avalanche de pacotes. Teria tempo de tomar uma
única decisão: salvar a régua de cálculo ou as compras?
A régua de cálculo ganhou. Ela apanhou o estojo de couro com a ponta
dos dedos logo antes de ele atingir o chão.
O resto das coisas que ela carregava não teve a mesma sorte. Splat e foi-
se o livro. As compras caíram com um som mais complexo, que lembrava
ovos se quebrando. Três laranjas escaparam da sacola e quicaram desgover‐
nadamente calçada abaixo.
O Sr. Stephen Shaughnessy estava parado a duas portas dela. Ele ergueu
as sobrancelhas ao avistar a pequena catástrofe, e Rose sentiu as bochechas
corarem. Mas não havia mais o que fazer, apenas agir como se nada tivesse
acontecido.
Ela lhe deu o sorriso mais brilhante de que era capaz e acenou com o es‐
tojo da régua.
– Boa tarde, Sr. Shaughnessy.
O estojo deu uma escorregada, mas ela conseguiu pegá-lo antes que um
desastre ainda maior acontecesse.
Três meses antes, o Sr. Shaughnessy se mudara para a casa logo abaixo
da residência da irmã de Rose. Durante todo esse tempo, Rose nunca conse‐
guira superar o nervosismo que sentia perto do novo vizinho. Pena que ele
nunca tinha feito nada que justificasse tal sentimento. Na verdade, era infali‐
velmente bem-educado.
Como prova, ele não a provocou por causa da falta de jeito, nem comen‐
tou nada. Apenas foi até ela. Deu três passos em sua direção, e Rose deu um
para atrás. Foi só então que ela percebeu que a única intenção dele era pegar
as laranjas que tinham escapado.
Que outro motivo o Sr. Shaughnessy poderia ter para se aproximar dela?
Essa parte era só imaginação de Rose.
Ela soltou o estojo da régua com cuidado, depois pegou a sacola de com‐
pras. Era de lona, e a maioria dos itens continuava ali dentro. A carne, em‐
brulhada em papel de cera, ainda estava no fundo. Os ovos… bem, Rose te‐
ria que verificar depois de entrar em casa, mas tinha uma leve suspeita de
que ela e a irmã comeriam omelete no jantar. Apenas as frutas realmente ti‐
nham se espalhado por todos os cantos. Ela pegou uma maçã, sem olhar na
direção do Sr. Shaughnessy.
Mas não precisava olhar diretamente para ele para ter consciência de sua
presença. O Sr. Shaughnessy era jovem – apenas alguns anos mais velho do
que ela. Era alto e seu corpo era marcado por músculos belos e bem defini‐
dos, do tipo que moças com a intenção de continuarem inocentes suposta‐
mente não deveriam notar. O sorriso dele era simpático, daqueles que fazi‐
am uma mulher querer sorrir em resposta, e sua fala tinha um leve traço de
sotaque irlandês. Tinha cabelos escuros, olhos escuros e uma má reputação
que o precedia.
Mas ele pegou uma das frutas infratoras e sorriu na direção de Rose.
– Por que será que as laranjas quicaram, mas as maçãs não?
Era como se seu sorriso fosse uma flecha, que atingiu Rose direto no
peito. Então ela ajustou os óculos no nariz e disse a primeira coisa em que
pensou.
Infelizmente, a primeira coisa em que pensou foi…
– É por causa da Terceira Lei de Newton. Com a colisão, a maçã exerce
força na calçada e, portanto, a calçada também precisa exercer uma força
igual e inversa na maçã. A estrutura da maçã é inelástica, então ela fica ma‐
chucada. Já a laranja, por outro lado… – Ela engoliu em seco, pois percebeu
que estava tagarelando, e fechou a boca. – Desculpe, Sr. Shaughnessy. Creio
que não era isso que o senhor estava perguntando, não é?
Ele endireitou as costas. Ah, sim, ele era incrivelmente atraente. Era visí‐
vel que cuidava da aparência. Estava de barba feita, embora fossem três da
tarde. A gravata estava tão impecável que poderia ter acabado de ser passa‐
da, em vez de às seis da manhã. Nada a respeito do Sr. Shaughnessy sugeria
que ele era um degenerado de primeira ordem. Quer dizer, nada além de seu
trabalho e das fofocas persistentes nos jornais.
– Não precisa me deixar tagarelar assim quando eu me distraio – disse
Rose. – Todo mundo me manda parar. Nessas bandas, é considerado boa
educação interromper a Srta. Sweetly quando ela se deixa levar.
– Bobagem – disse o Sr. Shaughnessy.
Ele deu um passo na direção dela, depois outro. O peito de Rose se aper‐
tou – ele estava pavorosa e prazerosamente perto –, e então ele lhe entregou
as laranjas que havia recolhido.
Por um momento, quando ela as pegou, suas mãos se roçaram. Nenhum
deles estava de luvas: ela, porque não conseguiria ter encontrado as chaves;
ele, porque… bem, só Deus sabia, e ela não ia perguntar. Os dedos dele
eram quentes e pálidos contra os dela.
– Eu nunca interromperia a senhorita – disse o Sr. Shaughnessy. – Adoro
ouvi-la falar.
Ela afastou a mão depressa.
– Não deveria dizer esse tipo de coisa, Sr. Shaughnessy. Alguém pode
ouvir e fazer uma ideia errada.
Os olhos dele encontraram os dela. Por um brevíssimo segundo, Rose
imaginou uma faísca neles – como se um diabrete dentro do Sr. Shaughnes‐
sy sussurrasse que qualquer pessoa que tivesse ouvido o que ele dissera ia
entender perfeitamente. Ele tivera a intenção de flertar e sabia muito bem o
quanto a havia deixado agitada.
Mas ele não disse isso. Apenas deu de ombros.
– Não queremos que ninguém faça uma ideia errada.
Se houvesse um único traço de sarcasmo na voz dele, Rose teria lhe dado
as costas naquele exato momento. Mas não havia.
– Então permita-me reformular. Se eu não quisesse ouvir a senhorita fa‐
lar sobre suas reações iguais e inversas, não lhe perguntaria sobre seus ma‐
pas estelares. O que está calculando desta vez?
– Ah, não são os mapas estelares, não hoje. Não vou mexer nisso por
meses. Agora é o Grande Cometa, e depois disso vai ser o trânsito de Vênus.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Existe um cometa grande?
– O senhor não lê artigos científicos? Pode ser o cometa mais brilhante
que já foi observado. Será possível vê-lo a olho nu mesmo com o Sol no céu.
O Sr. Shaughnessy ergueu os olhos rapidamente para o Sol, no qual não
havia nenhuma marca da cauda de um cometa.
– Se podemos vê-lo a olho nu, por que é que eu nunca o vi antes?
Ela bufou.
– Porque Londres não fica no Hemisfério Sul. A visibilidade aqui não é a
mesma que em Melbourne, por exemplo.
– Ah.
– De qualquer jeito, Finlay, da Cidade do Cabo, mandou as medições
que fez para o Dr. Barnstable, e ele me pediu para fazer os cálculos.
– E como estão as coisas?
Rose pegou o caderno e o abriu na página certa.
– Aqui está. O cometa passou pelo Sol há pouco mais de um mês.
Por um momento, ele encarou a coluna de números para a qual ela esta‐
va apontando, depois balançou a cabeça.
– Certo.
Ela se sentiu corar de novo. Porém, antes que pudesse deixar a vergonha
dominá-la, ele a interrompeu, apontando para uma laranja na sacola dela.
– Então digamos que essa laranja seja o Sol. Onde está o cometa?
– Não seja ridículo, Sr. Shaughnessy. Se a laranja representa o Sol, nós
aqui na Terra estaríamos a 21 metros de distância.
– A 21 metros? – perguntou ele.
– A 21,818 metros, segundo a última medição da distância entre o céu e
a Terra, mas tento não ser pedante. Faz as pessoas rirem de mim. – Rose
apontou para um pontinho na página do caderno. – Imagine que isso aqui é
o Sol. Então somos esse grão de pequenez inimaginável aqui. – Ela indicou
um pontinho a alguns centímetros do primeiro ponto. – O cometa, então,
viajou ao longo desse trajeto… – O dedo dela, de cor negra, destacava-se na
folha branca enquanto traçava uma curva elíptica. – Mas essa não é a parte
interessante. Veja bem, qualquer um consegue calcular o trajeto de um co‐
meta se tiver dados suficientes.
– Eu não diria qualquer um – murmurou o Sr. Shaughnessy.
Ela descartou isso com um aceno.
– Até onde sabemos, o núcleo desse cometa se partiu em algum momen‐
to após o periélio. O Dr. Barnstable acredita que podemos prever o trajeto
de cada pedaço… e como estão muito próximos um do outro agora, não vai
ser nada simples. É um problema de três corpos, o que significa que é im‐
possível resolvê-los com equações. O Dr. Barnstable me pediu para solucio‐
nar essa questão para ele.
Rose sorriu para o Sr. Shaughnessy.
Ele retribuiu o sorriso.
– Isso é genial, Srta. Sweetly.
– É claro que nós vamos errar – ela começou a explicar –, mas a parte
mais interessante é o quanto nós vamos errar. Veja bem…
A porta se abriu atrás deles. Rose deu outro pulo, mas dessa vez conse‐
guiu não derrubar a sacola de compras. Ela se virou e encontrou a irmã pa‐
rada na soleira da porta. Patricia tinha uma das mãos na maçaneta e a outra
nas próprias costas. Usava um vestido rosa volumoso e um lenço combinan‐
do cobria seu cabelo. Suas sobrancelhas se ergueram diante da cena à sua
frente, mas os olhos castanho-escuros cintilavam com divertimento.
– E eu aqui pensando que tinha ouvido você na porta horas atrás – co‐
mentou Patricia. Ela balançou a cabeça com exasperação, mas Rose tinha
certeza, quase certeza, de que a irmã estava sorrindo. Patricia se abaixou o
melhor que podia. A barriga pesada a deixava sem jeito, mas ela pegou as
chaves de Rose do chão. – Ah. Ouvi mesmo.
– Eu… derrubei algumas coisas – confessou Rose, sentindo-se corar de
novo. – Eu estava catando tudo.
Patricia olhou para o caderno de Rose, aberto nas mãos da irmã. Olhou
para o Sr. Shaughnessy, parado a meio metro dela. Depois deu uma olhada
na calçada, onde os outros pacotes de Rose – a correspondência, o jornal, o
livro embrulhado – ainda estavam esparramados.
– Sim – disse ela secamente. – Estou vendo. Isso explica tudo.
– Vou deixá-la ir, então – disse o Sr. Shaughnessy. Ele acenou com o cha‐
péu. – Srta. Sweetly. Sra. Wells.
– Sr. Shaughnessy. – Rose meneou a cabeça. – Eu faria uma reverência,
mas as maçãs não aguentariam outra colisão inelástica.
Ao seu lado, Patricia soltou um som de protesto, mas esticou as mãos
com um gesto. Rose lhe entregou o livro e o estojo com a régua. Enquanto o
Sr. Shaughnessy desaparecia na esquina da rua, ela recolheu o resto dos itens
espalhados pelo chão.
Patricia não a repreendeu de imediato. Na verdade, nem a repreendeu.
Normalmente teria se oferecido para ajudar Rose, mas estava grávida de oito
meses, desengonçada e sem jeito, e curvar-se não era fácil para ela. Depois
que recolheram tudo, voltaram para dentro de casa – Rose andando, Patricia
cambaleando.
Ela não disse nada enquanto atravessavam a sala de estar e iam à des‐
pensa, nos fundos. Não falou até Rose ter colocado as compras na frente de‐
las.
– Rose – disse Patricia baixinho –, já considerou voltar para a casa do
papai?
Rose não tinha pensado em nada do gênero. Seu estômago se revirou só
de pensar.
– Como eu poderia abandonar você? O Dr. Wells só vai voltar da viagem
de serviço daqui a mais de uma semana. Eu prometi a ele.
O marido de Patricia era médico naval. Ele fora enviado a Serra Leoa na
mesma época em que Patricia descobrira que estava grávida, então Rose fo‐
ra cuidar da irmã enquanto ele estava ausente. Mas Rose não estava preocu‐
pada apenas com o bem-estar da irmã. Os pais das duas moravam em Lon‐
dres – tão perto e, ainda assim, impossivelmente longe do Observatório Re‐
al. Na casa do pai, não haveria cálculos, não haveria cometas.
Não haveria o Sr. Shaughnessy deixando-a com os nervos à flor da pele.
– Bom – comentou Patricia –, você sabe que ele é o libertino mais ina‐
creditável de todos.
Ela não especificou quem era ele. Não precisava.
Rose arrumou as laranjas numa tigela, recusando-se a olhar para a irmã.
– Ele nunca se ofereceu para me seduzir, nem uma única vez. Acho que
nunca pensou nisso.
– Ah, ele já pensou sim – respondeu Patricia num tom de voz seco. – E,
francamente, Rose, do jeito que ele fala com você, acho que está bastante
evidente.
Rose soltou o ar devagar e fechou os olhos. Infelizmente, era verdade. O
Sr. Shaughnessy era… bem, ele era. Seu nome estava na boca de todas as
moças da alta sociedade desde que Rose tinha 17 anos, quando ele ganhara a
fama – ou infâmia, dependendo de quem estivesse falando – de ser o pri‐
meiro homem a escrever uma coluna de conselhos para o Imprensa Livre das
Mulheres, um jornal radical que Rose definitivamente não deveria ter gosta‐
do tanto de ler. Nos cinco anos desde a primeira coluna, ele apenas reforçara
essa reputação. Havia publicado quatro romances. Alguns chamavam os li‐
vros de “obras-primas da sátira”; outros, de “disparates perigosos que seriam
mais bem aproveitados em chamas e não lidos”.
Diziam que as obras tinham vendido bem – e que aqueles que resmun‐
gavam sobre fazer fogueiras com livros eram os mais propensos a comprá-
los furtivamente, embalados em papel marrom.
Ficar sonhando com o Sr. Stephen Shaughnessy era tolice. Ela sabia a
distância social que separava os dois. Era como se ele fosse uma laranja em
Westminster e Rose um… sabugueiro em algum lugar na região da Tanzâ‐
nia.
– Eu amo você, Rose. – Patricia suspirou. – E sei que você vai conseguir
um casamento bom, tão incrível quanto o meu. Mas você precisa lembrar
que a maioria dos homens que a olharem não verá você. Eles não vão ver
que você é inteligente e engraçada. – A irmã se aproximou e tomou a mão
de Rose na dela. – Eles vão ver isso. – Ela esfregou as costas da mão de Rose.
Pele negra contra pele negra. – Não importam as roupas respeitáveis que vo‐
cê use ou o quanto você insista. A maioria dos homens só vai ver que você é
negra e vai supor que está disponível. Então, por favor, Rose, se cuide. Não
quero que sofra.
Rose limpou a última maçã com uma toalha.
– Não se preocupe com isso – disse ela com suavidade. – Não vou fazer
nenhuma tolice.
Ela não disse nada sobre sofrimento. Não havia motivo para se preocu‐
par com isso. Pensou no sorriso do Sr. Shaughnessy, no brilho malicioso em
seu olhar. Pensou nele lhe perguntando sobre laranjas e cometas, nele
olhando para ela e naquela cadência sombria e perigosa de sua voz dizendo:
Adoro ouvir a senhorita falar.
Rose também já tinha visto os comentários sobre ele nas colunas de fo‐
foca. Ele era completamente ousado e, não importava como ele a fazia se
sentir, a última coisa de que Rose precisava era um homem ousado.
Não, não havia motivo para se preocupar com sofrimento.
Àquela altura, a dor já era inevitável.
Capítulo dois
N aquela noite, Rose sonhou que uma coluna de números a perseguia atra‐
vés de uma paisagem esquisita, nada cartesiana, um panorama de linhas
e cores que rodopiava. Ao longe, alguém ria – não uma risada cruel, nem às
custas dela. Apenas uma risada amigável, acolhedora.
Os números a pegaram, segurando-a pelo ombro. Ela se debateu, mas
eles foram rápidos.
Como números eram capazes de segurar algo? Ela se virou para eles, fas‐
cinada… e, sentindo-se muito grogue, acordou.
O quarto estava escuro, iluminado apenas por uma nesga de luar, que en‐
trava por uma abertura de poucos centímetros nas cortinas. Nenhum som vi‐
nha da rua. Era, de fato, a calada da noite.
Mas havia a mão quente de alguém no ombro de Rose. Ela a balançou de
leve.
– Rose, está acordada? – sussurrou Patricia.
– Patricia?
Rose se virou e encontrou a irmã sentada na cama ao seu lado, sua figura
tênue na escuridão da noite.
– Começou.
A voz da irmã falhou de animação, mas a mão no ombro de Rose parecia
tensa, quase temerosa.
Rose não precisou perguntar o que tinha começado. Havia apenas uma
coisa na cabeça delas naqueles dias.
Ela se sentou rápido na cama.
– O quê? Já? É cedo demais.
– Trinta e seis semanas, segundo a contagem do Dr. Chillingsworth. É,
sim, cedo demais, mas eu definitivamente senti uma contração. Está come‐
çando.
– Não pode começar. Isaac está…
Rose se interrompeu. O marido da irmã ainda não estava em casa. Eles
estiveram tão certos de que ele já teria retornado quando o bebê nascesse.
Haviam traçado as semanas que restavam da gravidez de Patricia e as com‐
parado com o retorno previsto do navio dele com um suspiro de alívio.
Quando descobriram que Patricia estava grávida – dias antes da data
marcada para o Dr. Wells partir –, ele ficara chateado por perder a maior par‐
te da gravidez. Rose havia prometido escrever para ele, contando-lhe sobre as
ocorrências do dia a dia.
– Cuide dela por mim – pedira o Dr. Isaac Wells em resposta. – Se eu não
posso estar presente, você vai ter que ficar no meu lugar.
Rose era a irmã mais nova. Patricia sempre cuidara dela. Mas, de alguma
forma, esse pedido solene, feito por um cunhado de quem ela gostava, apenas
firmara ainda mais sua decisão. Se Patricia sempre cuidara de Rose, significa‐
va apenas que Rose teria a chance de retribuir o favor.
Então ela escreveu para Isaac com frequência, contando-lhe tudo que
acontecia. Avisara fielmente toda vez que Patricia passava mal de manhã.
Descrevera desde as primeiras tentativas de movimento do bebê, quase inde‐
tectáveis, até os chutes mais recentes que batucavam na mão de Rose. Ela lhe
contara tudo… mas isso não mudou nada. Patricia queria que o marido esti‐
vesse de volta antes de o bebê nascer, e Isaac desejava o mesmo. Faltava pou‐
co mais de uma semana para o retorno dele. Que o bebê nascesse tão perto
de ele chegar seria…
… Uma bênção, disse Rose a si mesma com firmeza. Independentemente
de quando ele nascesse.
Então ela engoliu o que estivera prestes a falar. Em vez disso, perguntou:
– Já chamou Chillingsworth?
– Josephs saiu há alguns minutinhos. Deve voltar logo.
O Sr. e a Sra. Josephs eram o casal que cuidava da casa para Patricia – a
Sra. Josephs como empregada doméstica e o Sr. Josephs como faz-tudo. Na
vizinhança deles, ter dois criados era considerado um gasto enorme. Rose já
ouvira alguém sussurrando que Patricia estava esquecendo qual era o seu lu‐
gar. Mas também o marido de Patricia estava fora, e ela estava grávida.
– Está com medo? – perguntou Rose. – Como é ter uma contração? Eu
prometi contar tudo para Isaac quando ele voltasse. Você precisa me contar.
– Ah, não estou mais tendo contrações… agora só me sinto… não sei,
um pouco estranha. – Patricia deu uma risadinha depreciativa. – Como um
pato inflado prestes a estourar. Mas eu já me sentia assim ontem à noite.
– Você consegue andar?
– Claro que consigo. Como acha que cheguei ao seu quarto? Até patos in‐
flados conseguem se locomover.
Rose sorriu.
– Bem, o trabalho de parto não mudou seu senso de humor. Continua
terrível.
– Espere até eu ter outra contração – retrucou Patricia. – Daí não vou ter
senso de humor nenhum. Quer esperar lá embaixo comigo?
Rose se vestiu depressa e segurou a mão da irmã enquanto desciam as es‐
cadas, embora Patricia tivesse tentado impedi-la, argumentando que era per‐
feitamente capaz de andar por conta própria. Após acomodar a irmã no lugar
de honra no sofá, Rose se apressou ao redor, acendendo lamparinas, afastan‐
do todas as sombras da noite. Era ótimo ter algo para fazer. Ela andou para lá
e para cá, buscando e carregando coisas para a irmã: pantufas, um cobertor
quentinho, um chá de camomila, um pãozinho que tostou no fogo e depois
cobriu generosamente com manteiga e geleia de groselha.
– Hum – murmurou Patricia, fechando os olhos. – Não quer um tam‐
bém?
– Eu já estava tendo um sonho esquisitíssimo quando você me acordou –
respondeu Rose. – Não preciso piorar minha indigestão.
– Um sonho, é? – Patricia cerrou os olhos. – Por acaso você não estava
sonhando com…
– Eu sonhei que estava sendo perseguida por um monte de números – in‐
terrompeu Rose.
Patricia se engasgou, quase rindo.
– Só você…
Sim, alguém estivera rindo no sonho. Quase desse jeitinho. Uma risada
amigável, o som da alegria de alguém que sabia todos os defeitos de Rose e a
amava mesmo assim.
A risada fora grossa demais para ter vindo de Patricia e não fora feliz o
suficiente para soar como a mãe delas. A risada do pai se assemelhava mais a
um estrondo. E, ainda assim, lhe parecera conhecida.
A resposta veio para Rose quando a irmã deu outra mordida no pãozi‐
nho. O Sr. Shaughnessy ria daquele jeito.
Ela estivera evitando pensar nele. Apesar dos seus protestos, sabia exata‐
mente o que ele estava fazendo. Era assim que homens como ele seduziam
mulheres como ela: passo a passo, cautelosos, destruindo as inibições dela
uma a uma.
Rose não tinha ilusões de que sua inocência a protegeria; isso cabia ape‐
nas a mulheres de outra classe completamente diferente. Rose era filha de um
comerciante, era uma mulher que trabalhava para se sustentar. Os homens
abastados capazes de comandar o respeito da sociedade costumavam pensar
que mulheres como ela existiam para servir em qualquer condição que lhes
fosse exigida.
Ela não sabia por que não tinha mandado o Sr. Shaughnessy deixá-la em
paz. Era estupidez, com certeza. Um romantismo deslocado. Mas não era ho‐
ra de se repreender.
Quando a irmã estava dando outra mordida no pãozinho, a porta da
frente se abriu, e o Sr. Josephs entrou.
Atrás dele veio o Dr. Chillingsworth. O casaco do médico estava molha‐
do, cintilando com gotas de chuva, e ele colocou um guarda-chuva no cabi‐
deiro, franzindo o cenho como se o objeto não tivesse direito algum de estar
úmido. Ele tirou as luvas e esfregou as mãos pálidas uma na outra para aque‐
cê-las. Depois olhou para Patricia – sentada no sofá, embrulhada em cober‐
tores de lã, tentando não derrubar geleia vermelha no queixo – e sua expres‐
são congelou em algo que, alarmantemente, parecia escárnio.
A nuca de Rose se eriçou. Mas o médico balançou a cabeça e a insinuação
de desdém sumiu de seu rosto.
Talvez ela tivesse imaginado. Talvez ele apenas não gostasse de geleia.
Chillingsworth era um homem alto e mais velho. Sempre tivera uma ati‐
tude da qual Rose não gostava. Não era exatamente desprezo, apenas uma
sensação leve de desaprovação.
Ela tentou dizer a si mesma que estava vendo coisas. No fim das contas,
ele fora muito bem recomendado. Antes de se aposentar e começar a cuidar
de civis, passara trinta anos como médico naval. Talvez essa atitude dele não
passasse de resquícios da disciplina militar.
O marido de Patricia não tinha essa mesma atitude – mas, também, ele
estava com apenas 32 anos. Talvez, pensou Rose, levasse anos para esse jeito
arrogante se desenvolver.
Chillingsworth tirou as galochas, o casaco externo, o cachecol e, por fim,
o chapéu azul listrado. Depois, se aproximou.
O exame foi breve, quase superficial. Os olhos de Patricia se fecharam
com força e a respiração dela sibilou quando ele colocou o estetoscópio na
barriga dela. O metal devia estar frio como gelo. Mas ela não reclamou.
O médico se endireitou depois de terminar.
– Bem – disse ele. – Me tiraram da cama por nada.
Patricia piscou.
– As dores que a Sra. Wells está sentindo são um alarme falso do parto –
anunciou ele.
A princípio, Rose não fazia ideia de a quem ele estava se dirigindo – ao
cômodo como um todo, talvez? –, até que seguiu a direção de seu olhar e en‐
controu o Sr. Josephs, que tentava secar da melhor maneira a água que espir‐
rara no hall de entrada quando eles tinham chegado.
Que estranho o médico falar sobre a saúde de Patricia com um criado.
Mas as pessoas às vezes cometiam esse erro. O Sr. Josephs podia ser um cria‐
do, mas era o único homem – o único homem branco – na casa toda, e, como
resultado, as pessoas com frequência ficavam confusas ou desconfortáveis.
Nunca adiantava fazer um alarido a respeito. Todos se sentiriam melhores se
apenas imaginassem que Chillingsworth havia se pronunciado ao cômodo
em geral.
– Ainda não é a hora – continuou o médico. – O bebê ainda nem virou, e
ela não está dilatada. Mulheres como ela frequentemente são dramáticas. Na
próxima vez, tenha certeza de que as contrações estão acontecendo com certa
proximidade, antes de mandar me buscar no meio da madrugada. – Ele vol‐
tou a olhar para a entrada. – Na chuva fria.
– Pode deixar, Dr. Chillingsworth – disse Patricia, arrependida. – Peço
desculpas. É minha primeira gravidez, e não sei o que esperar.
– Hunf.
– O senhor gostaria de uma xícara de chá para se aquecer? – ofereceu Ro‐
se.
– Eu gostaria da minha cama – respondeu o Dr. Chillingsworth, curto e
grosso.
Ele marchou de volta até a entrada sem olhar para Rose, calçou as galo‐
chas com força e recolheu suas coisas. Murmurou consigo mesmo enquanto
enrolava o cachecol no pescoço. Depois pegou o guarda-chuva, batendo-o no
chão – fazendo gotas de chuva se espalharem por todo o hall de entrada – e
foi embora.
– Nossa. – Patricia encarou as costas dele. – Isso… não correu tão bem
quanto poderíamos esperar.
– Foi grosseiro – destacou Rose.
Patricia descartou o comentário com um aceno da mão.
– Ninguém gosta de ser acordado no meio da madrugada sem motivo.
Então talvez ele não devesse ser médico, pensou Rose, irritada. Mas não fa‐
lou nada. Em vez disso, ajudou a irmã a se levantar.
– Lá vamos nós – disse Patricia com animação. – Parece que o pato infla‐
do vai continuar por aqui por mais algumas semanas. E graças a Deus. Signi‐
fica que, no fim das contas, Isaac vai estar em casa a tempo.
No dia seguinte, a Srta. Sweetly levou a aula para o lado de fora. Stephen não
sabia dizer se ela fizera isso para acalmar o ardor insinuado dele, ou se ape‐
nas pensou que seria uma boa ideia. De qualquer jeito, ela os levou até a mar‐
gem do rio, além das docas. Eles ficaram à beira da água, no abrigo de um
poste de luz que não lhes fornecia proteção alguma contra o vento.
As pessoas que passavam por eles lembravam Stephen do porquê de ele
ter se mudado para Greenwich. Ali, ele não era o único irlandês intruso nu‐
ma vizinhança esnobe. O porto próximo trazia visitantes de todo o mundo:
lascarins da Índia, guardas-marinhas das Índias Ocidentais, marinheiros de
Portugal… e, sim, havia um número considerável de irlandeses trabalhando
nos navios e nos armazéns.
Ali, um homem irlandês ao lado de uma mulher negra talvez atraísse
uma segunda olhada de relance, mas nada além disso. Stephen avistou um
estivador que conhecia da igreja e o cumprimentou com um meneio de cabe‐
ça.
O vento soprou no seu colarinho com o gesto, atingindo-o com o frio
úmido do Tâmisa. O nariz de Stephen estava gelado; as mãos, dormentes.
Mas a Srta. Sweetly estava ao seu lado como se estivesse confortavelmente se
aquecendo numa lareira, em vez de estar segurando um disco de metal nas
mãos enluvadas. Se ela não sentia frio, Stephen também não sentiria.
A Sra. Barnstable, ao contrário, havia desistido nos primeiros cinco mi‐
nutos e fugido para uma casa de chá próxima, prometendo ficar de vigia da
janela.
– Para calcular as medidas de uma paralaxe – dizia-lhe a Srta. Sweetly –,
o senhor precisa determinar os ângulos e as distâncias. Normalmente é possí‐
vel calcular ângulos em terra firme usando apenas uma bússola prismática.
Segure a bússola…
Ele estendeu a mão e ela soltou o objeto sem cerimônia na palma dele. O
metal estava frio. Stephen estivera tomando notas, e não dava para usar o lá‐
pis com luvas. Quando ele inspirou fundo, o ar sibilou.
– Agora olhe pela ocular e ajuste o prisma até que o fio toque o objeto
que o senhor está medindo. Leia o ângulo magnético aqui.
Outra pessoa poderia achar que não havia emoção alguma nessas pala‐
vras.
Mas, quando a Srta. Sweetly disse a palavra “prisma”, seus lábios quase
formaram um beijo. Quando ela esticou a mão para ajustar a bússola na mão
de Stephen, seus dedos roçaram a palma dele. E, quando ela ergueu os olhos
depois da explicação, olhou para ele e o fluxo de palavras travou em seus lá‐
bios. Ela ficou imóvel, com os dedos na bússola e os olhos arregalados.
Stephen a fascinava. Ele era bom em fascinar mulheres, nem precisava se
esforçar muito. A única diferença era que a Srta. Sweetly o considerava tanto
fascinante quanto leviano, tudo ao mesmo tempo – e ele tinha bastante certe‐
za de que a moça tinha razão.
Ele afastou a mão e tomou a medida, focando o prédio que ela havia es‐
colhido, alinhando o fio, anotando o ângulo no caderno.
– Agora vamos fazer a segunda medição. Deve ser de um ângulo diferen‐
te e de uma distância conhecida.
Ela ajustou os óculos no nariz.
Stephen se perguntou se o nariz dela estava frio. Devia estar, já que eles
estavam sob o mesmo vento. Mas ela não parecia vacilar nem um pouco di‐
ante do clima. Stephen se afastou com alguns passos e mediu o ângulo sem
dizer nada. Enquanto ele desenhava um diagrama no caderninho, ela se
aproximou dele pelas costas, olhando por cima dos ombros de Stephen.
– Quando a senhorita fica me observando calcular é como… – Ele fez
uma pausa, procurando uma analogia adequada. – É como se Beethoven as‐
sistisse ao primeiro recital de piano de uma criança.
A Srta. Sweetly soltou um som leve de desdém atrás dele.
– Acho que não. Tem algumas diferenças evidentes.
– Tem razão. Beethoven não era uma mulher. Beethoven não era uma
mulher encantadora. A senhorita é bem mais desconcertante.
– Hum. O senhor não está pensando em todos os detalhes. Veja bem, Be‐
ethoven não está vivo. Imagino que seria bem mais alarmante receber a visita
do cadáver de um compositor.
– Isso faz dele um decompositor?
Ela engasgou, soltando um som surpreendido.
Stephen sorriu consigo mesmo.
– Acho que essa analogia realmente se dissolve após ser avaliada – co‐
mentou.
Ele subtraiu os ângulos magnéticos e começou a calcular os triângulos. A
Srta. Sweetly o observou em silêncio por mais um tempinho.
– Não entendo por que o senhor quer que eu lhe ensine astronomia.
– Não quero que a senhorita me ensine astronomia. – Enquanto falava,
ele virou a régua e consultou as tabelas trigonométricas. – Quero que me en‐
sine a ver o mundo como a senhorita o vê.
– E como eu vejo o mundo? – indagou ela, perplexa.
– Se eu soubesse, não teria que aprender, não é? – Ele deu de ombros. –
Mas sei como a senhorita me vê. Acha que sou um libertino ousado, um ho‐
mem fútil que não pensa em nada além da próxima piada.
– E o senhor vai me dizer que tem algo a mais?
Ela soava duvidosa.
– Se tem, eu não consigo ver por conta própria. Mas, às vezes, me per‐
gunto se a senhorita conseguiria.
Ele moveu a lingueta do instrumento alguns centímetros, leu um número
na escala inferior e o anotou.
– Está tentando me intrigar insinuando que o senhor tem profundidades
ocultas, Sr. Shaughnessy?
Stephen deu de ombros.
– E por que eu faria isso? Não tenho nem superfícies ocultas. O que a se‐
nhorita vê é exatamente como sou.
– Nada de traumas escondidos, decepções na infância, ressentimentos
duradouros?
– Absolutamente nada. Ah, não. Espere. Acho que tenho um, sim. Quan‐
do eu tinha 12 anos, fui chicoteado numa estaca por agitar trabalhadores
contra o patrão.
Ela se virou para ele, piscando.
– Isso é terrível.
Ele baixou a voz, indicando que ela se aproximasse. Contra a vontade, ela
se inclinou.
– Quer saber no que eu pensei quando o chicote me atingiu? Devo divul‐
gar o voto solene que fiz?
A Srta. Sweetly não respondeu, mas seus olhos brilharam com a luz da
curiosidade.
Ele curvou a cabeça para perto da dela.
– Eu pensei: ai.
Ela ficou imóvel, como se esperasse mais.
– Foi isso. Já acabei. Ai. Se puder evitar, nunca seja chicoteada como pu‐
nição, Srta. Sweetly. Não recomendo.
– Obrigada – disse ela, com solenidade. – Vou lembrar disso.
Mas Rose mordeu o lábio ao falar, e Stephen pôde ver que ela estava su‐
primindo um sorriso.
Ele alinhou os últimos números na lingueta.
– É 78, por sinal – anunciou para ela.
– Setenta e oito o quê?
– Metros. Até aquele prédio lá.
Ela piscou, como se recordasse apenas nesse momento que estava lhe
dando uma aula.
– Eu tinha calculado 77.
– Ah. Droga.
– Mas considerando que o senhor calculou as medidas da distância mar‐
cando o comprimento em metros, sua medição certamente está dentro da
margem de erro. – Ela sorriu para ele. – Muito bem. Gostaria de tentar algo
difícil agora?
– Isso não foi difícil? Tive que fazer o cálculo de senos. E de arcos tangen‐
tes. A meu ver, nenhum problema que envolva arcos tangentes deveria ser
considerado fácil.
– Cale-se, seu bebezão. – Ela balançou a cabeça, mas estava sorrindo para
ele. – O senhor só teve que encontrar números numa tabela. Foi difícil de‐
mais para o seu cérebro?
– Uma tabela grandiosa e monumental, cercada por logaritmos temero‐
sos, com seus terríveis, terríveis… – Stephen deixou a voz morrer. – Ah, pois
bem. Me dê outro problema, Srta. Sweetly. Minha determinação é resoluta e
meus cálculos são sagazes. Mas tome cuidado. Se eu tiver que desenhar outro
diagrama, pode ser que os ângulos sejam graves.
A Srta. Sweetly ergueu as mãos, se rendendo.
– Chega de piadas matemáticas – pediu ela, horrorizada.
– Por quê? Está com medo de algo… sair pela tangente?
– Não é isso. – Ela mordeu o lábio. – Para começo de conversa, matemá‐
tica é coisa séria. Além disso, suas piadas são horríveis.
– Não consigo me controlar. – Ele deu uma piscadinha para ela. – Não é
uma má temática.
Ela colocou uma das mãos no quadril.
– Sr. Shaughnessy, vou precisar expulsá-lo do píer?
– Ah, acho que não vai ser necessário. A não ser que a senhorita me faça
calcular com Pi. São minhas pi-ores pi-adas.
Ela grunhiu.
– Seus fãs sabem que Stephen Shaughnessy, Homem de Verdade, conta
piadas com trocadilhos horríveis?
– Infelizmente não. Eu sempre tento colocar alguns nas minhas colunas,
mas Free, minha editora, Frederica Marshall-Clark, tira todas.
Stephen fez uma careta.
– Já terminou seu showzinho de gozação, Sr. Shaughnessy? – As palavras
dela poderiam ter soado bruscas, mas ela estava reprimindo um sorriso. – Eu
tinha a intenção de lhe passar um problema se o senhor se lembra bem.
– É claro. Vá em frente.
– Vê aquela balsa?
– Aquela no meio do Tâmisa?
Ela estava em meio a águas agitadas.
– Essa mesmo. Descubra a que distância ela está, por favor. Mas eis a
questão: dessa vez, o senhor não pode medir a distância em metros. Na ver‐
dade, não pode mover os pés um centímetro sequer. Vou permitir que mova
a mão meio centímetro, e nada além disso.
– Mas a balsa está se movendo.
– Está, não é?
– Pois bem.
Ele pegou a bússola, olhou pela ocular…
– Posso andar até o guarda-corpo só para ter onde apoiar a bússola?
– Não – disse ela com um sorriso calmo.
Era impossível firmar a mão o suficiente.
Ele soltou o ar.
– Mas a agulha no prisma está vibrando. Não consigo fazer uma leitura
exata do ângulo e, se só posso mover a mão meio centímetro, vou precisar de
uma leitura bem exata.
Como se para enfatizar isso, uma carroça passou retumbando, e a agulha
tremeu.
A Srta. Sweetly sorriu diante do desânimo dele.
– Então o senhor não consegue.
– E eu disse isso? Eu consigo. Claro que consigo.
Stephen tentou estabilizar a mão com o outro braço, depois tentou segu‐
rar a bússola entre o polegar e o indicador. O vento ficou mais forte, fazendo
com que segurar a bússola fosse ainda mais complicado – e com que seus de‐
dos ficassem ainda mais frios. Certa hora, ele conseguiu fazer uma leitura
quase decente – ou assim pensou –, mas, quando moveu a mão o meio centí‐
metro permitido e tentou estabilizar a agulha de novo, a posição da balsa era
tão diferente que a primeira medição se tornara inútil.
A Srta. Sweetly observou os esforços dele com um sorriso beatífico. E foi
isso que finalmente o fez perceber o que estava acontecendo. Se fosse possível
resolver o problema, ela ficaria irritada ao vê-lo resolver errado.
– Srta. Sweetly – disse ele, endireitando-se. – Por acaso a senhorita me
passaria um problema impossível, só para ver eu me debater com ele?
Ela colocou uma das mãos sobre o coração.
– Como ousa dizer algo assim? Deve pensar que sou desnecessariamente
cruel.
– Não. É claro que não. Mas…
Ela sorriu.
– Ótimo. Eu odiaria que o senhor estivesse enganado a meu respeito.
Stephen abaixou a bússola, deixando-a pender ao seu lado.
– Srta. Sweetly. Está debochando de mim. Estou absolutamente encanta‐
do.
E estava mesmo. Cada dia que passava com ela fazia a moça deixar mais
um pouco do nervosismo para trás. Quanto mais a via, mais gostava dela, e
não era como se precisasse gostar mais da Srta. Sweetly.
Ela desviou os olhos com um sorrisinho no rosto.
– Vamos nos unir à Sra. Barnstable. Um chá não ia mal. Estou com um
pouco de frio.
Um pouco de frio. Só um pouco. Stephen balançou a cabeça. Ela partiu
na direção da casa de chá, e ele foi atrás.
– Eu não estava tentando ser maldosa, na verdade – disse-lhe ela enquan‐
to caminhavam. – Eu estava tentando provar uma coisa. As estrelas mais pró‐
ximas estão a trilhões de quilômetros. Mesmo se observássemos uma estrela
de lugares opostos do globo, apenas conseguiríamos alguns milhares de
quilômetros entre os dois pontos. Fui generosa lhe dando meio centímetro
para calcular o ângulo.
Stephen assentiu e abriu a porta da casa de chá para ela. Um calor bem-
vindo do forno a carvão lá de dentro o atingiu.
Mas a Srta. Sweetly parou logo na entrada, e Stephen percebeu que os
óculos dela haviam embaçado. Ela os tirou, limpou-os com cuidado, depois
os colocou no nariz de novo. Ela lhe lançou um olhar suspeito, como se o de‐
safiasse a rir dela.
Sem chance. Stephen foi tomado por uma fantasia repentina na qual ele
mesmo fazia os óculos embaçarem, inclinando-se para perto dela e…
A Sra. Barnstable acenou para eles quando entraram, mas já estava senta‐
da numa mesa com outra mulher, com quem fofocava.
Stephen indicou que Rose tomasse um assento na mesa ao lado da Sra.
Barnstable.
– Então como se calcula a paralaxe astronômica?
Os olhos dela se iluminaram.
– Se medirmos o ângulo de uma estrela no céu duas vezes num único
ano, levando em consideração… – ela deixou a voz morrer, acenando a mão,
depois retomou – todos os vários fatores que devemos considerar, vamos
conseguir ter duas medidas que possuem bem mais de alguns milhares de
quilômetros uma da outra.
– Ah. Que inteligente.
E era. Um ano antes, ele nunca teria imaginado que acharia essa conversa
tão fascinante. Mas isso tinha sido antes de vê-la ficar animada com o assun‐
to. Seus olhos brilhavam, suas mãos gesticulavam. Ela parecia… parecia…
Por que Stephen nunca tinha percebido o quanto eram inadequadas to‐
das as analogias para mulheres no auge da completa fascinação? Ela parecia
uma mulher falando sobre paralaxe astronômica, e isso fazia com que ficasse
brilhantemente bela.
– Então, na verdade, é o mesmo conceito de medir dois edifícios ao longo
do Tâmisa, mais ou menos – disse-lhe ela. – Se eu lhe desse duas dessas me‐
didas, Sr. Shaughnessy, o senhor seria capaz de determinar a distância de
uma estrela?
– Acho que sim.
Ela ditou dois números. Ele começou a calcular – e percebeu que havia se
gabado cedo demais. Quando ergueu os olhos, encontrou a Srta. Sweetly ob‐
servando-o com aquele mesmo sorriso beatífico no rosto. Uma garota lhes
trouxe chá e biscoitos. A Srta. Sweetly serviu o chá, mas não disse mais nada.
– Srta. Sweetly.
– Sim, Sr. Shaughnessy? – perguntou ela inocentemente.
– Falei cedo demais. Não vou conseguir fazer nada até saber a distância
entre os dois pontos de medição.
– Ah! – exclamou ela com um suspiro longo e demorado. – É mesmo?
– É duas vezes a distância entre a Terra e o Sol, mas como se mede tal coi‐
sa? É possível deixar um pedaço de cordão gigante pendurado da Terra quan‐
do ela passar, depois puxá-lo de volta? Não faço ideia. Acho que a senhorita
gosta de me passar problemas impossíveis.
– Apenas estou deixando o senhor à vontade com a noção de derrota –
disse-lhe a Srta. Sweetly, baixando os olhos. – Quando se trata de mim, o se‐
nhor deveria esperar o fracasso. Com frequência.
Ele apoiou o queixo nas mãos.
– Prefiro fracassar com a senhorita do que ser bem-sucedido com qual‐
quer outra.
A Srta. Sweetly ficou completamente imóvel. Cerrou o maxilar, olhou de
esguelha para um lado, garantindo que a Sra. Barnstable não estivesse ouvin‐
do, depois voltou a fitá-lo.
– Isso é demais. Quando diz coisas extravagantes assim, lembro que isso
não passa de um jogo para o senhor. Seria melhor se não usasse tantos elogi‐
os calorosos.
– Se um dia eu decidir seduzi-la, vou me lembrar disso. – Ele pegou a xí‐
cara de chá e tomou um gole generoso do líquido quente. – Mas não acha
que é meio irônico? A senhorita estava prestes a me dizer como calcular a
distância entre a Terra e o Sol sem usar um cordão. Consegue imaginar nú‐
meros maiores do que eu jamais sonhei. E, ainda assim, não consegue enten‐
der a possibilidade de que talvez, apenas talvez, a senhorita me deixe de joe‐
lhos.
Ela recuou, balançando a cabeça com força.
– Não seja ridículo. Mulheres como eu não…
Stephen apoiou a mão na mesa, interrompendo esse pensamento.
– Meu pai era mestre de estábulo – falou para ela. – Minha mãe era cos‐
tureira. Tenho uma boa vida, mas não imagine que sou um daqueles cava‐
lheiros que a menospreza.
Ela desviou os olhos, colocando um cubo de açúcar no chá.
– Quanto a mulheres como a senhorita… Acho que nunca encontrei uma
mulher assim. Me diga, Srta. Sweetly. Como se tornou o tipo de mulher que
calcula a órbita de cometas?
Ela pegou uma colher de chá.
– Sempre fui excepcional na matemática. E foi sempre mesmo. Quando
eu tinha 4 anos, nós ainda morávamos com meu avô em Liverpool. Ele tinha
um comércio lá, e um dia um homem se aproximou do caixa com uma cesta
de produtos. Eu sabia qual seria o total, então falei em voz alta. – Ela deu de
ombros. – Meu avô transformou isso num jogo. Eu conseguia somar os itens
de uma cesta só de olhar. Homens adultos apareciam para assistir. Muitos de‐
les. Na época em que fui embora, tinha uma multidão lá todo dia.
Os lábios dela se torceram como se ela tivesse sentido o gosto de algo de‐
sagradável.
– Srta. Sweetly, isso me parece uma profundeza oculta.
– Ao contrário do senhor, nunca declarei não ter nenhuma. – Ela colocou
a colher de chá na xícara e lentamente mexeu o líquido marrom. – Me deixa‐
va desconfortável, todas aquelas pessoas olhando. E as coisas que elas dizi‐
am… Fiquei muito aliviada quando meu pai se mudou para Londres para
abrir o próprio empório. Eu não ficava mais exposta, não até meu pai tentar
me fazer aprender boas maneiras. – Ela sorriu. – Não deu muito certo. Eu
não gostava da ideia de me apresentar à sociedade. Por fim, seguindo um
conselho de Patricia, ele me subornou para prestar atenção me oferecendo
tutoria em matemática avançada.
A Srta. Sweetly ainda estava mexendo o chá, embora o açúcar provavel‐
mente já tivesse se dissolvido fazia bastante tempo.
– Então, como o senhor vê, não é nada de mais, na verdade. É só um tru‐
quezinho, algo que me traz certo divertimento.
– Certo – repetiu ele, cético. – Só um truquezinho. Me diga, Srta. Sweetly.
Como é que realmente se calcula a distância entre a Terra e o Sol?
Ela ergueu os olhos, que brilhavam.
– Ah, tem tantas formas. Mas só tem mesmo um evento astronômico que
nos permite fazer uma medição verdadeiramente exata. Podemos observar o
tempo exato que leva para Vênus atravessar entre a Terra e o Sol. Duas obser‐
vações desse gênero, feitas em latitudes diferentes, nos daria a distância mais
exata possível.
– A senhorita fala como se isso não tivesse sido feito ainda.
– Já tentaram antes, mas aconteceram algumas dificuldades… – Ela en‐
controu o olhar dele. – Mas as dificuldades não importam. Toda a comunida‐
de astronômica está se preparando para esse próximo trânsito. Só o Reino
Unido tem doze estações tripuladas ao redor do mundo apenas para esse
evento.
– Bastante trabalho por causa de um numerozinho – provocou ele.
– Mas eu já lhe disse! – Ela parecia chocada. – Não é só um numerozi‐
nho. É o único critério que temos para medir todo o universo, e não sabemos
a distância disso! Se tivéssemos a medida exata, saberíamos não apenas a dis‐
tância das estrelas, mas também teríamos como deduzir a distância de todos
os planetas do Sistema Solar. Com esse número, saberíamos a medida da
massa deles, o que nos permitiria testar nossas medidas da constante gravita‐
cional, para verificar se esse tal éter existe…
A Srta. Sweetly deixou a voz morrer de novo e voltou a encará-lo. Aos
poucos, a luz esvaneceu de seus olhos. Vê-la tornar a se encolher com cons‐
trangimento era como ver a chama de uma vela tremular com um vento re‐
pentino e depois se apagar.
– Ah – disse ela com a voz fraquinha. – O senhor estava me provocando.
– Não – respondeu Stephen. – Eu estava provando uma coisa.
Ela se encolheu.
– O quê? Que o senhor é capaz de me fazer tagarelar?
– A senhorita fica procurando motivos obscuros e complexos, Srta. Swee‐
tly. Eu não sou complexo. Sou simples. Gosto de ouvi-la falar sobre o sistema
solar. Se não gostasse, não perguntaria a respeito.
– Não pode fingir ser um entusiasta da matemática. Já o vi enfrentar um
arco tangente, Sr. Shaughnessy, e não tenho certeza se o senhor sairia vitorio‐
so.
Stephen se inclinou na direção dela.
– É porque seu entusiasmo é contagiante. A senhorita olha para o céu e
não vê luzinhas bonitinhas, mas sim um cosmos a ser descoberto. Se eu con‐
seguisse ouvir a senhorita falar sem sorrir de admiração, eu seria um bruto
sem sentimentos. E acha que os elogios que lhe faço são extravagantes de‐
mais? Um dia desses, a senhorita vai perceber o quanto eu realmente estou
me controlando.
A moça lançou um olhar para ele, um olhar que era ao mesmo tempo
desconfiado e esperançoso.
– Então me diga – pediu Stephen. – Quando vai ser a próxima vez que
Vênus vai estar entre nós e o Sol? Do jeito que a senhorita estava falando, pa‐
rece que vai ser logo.
Os dedos dela brincaram com uma colher de chá.
– Daqui a apenas alguns dias – respondeu ela. – Dia 6 de dezembro, qua‐
se às duas horas da tarde em ponto.
– E, naturalmente, a senhorita vai observar esse evento.
– Ah… – Ela baixou os olhos de novo. – Daqui de Londres, apenas meta‐
de do trânsito estará visível, e isso se o clima colaborar. O Sol vai se pôr antes
que termine. Tenho um pedaço de vidro fumê que vou usar para observar…
o que não é o ideal, pois o planeta é tão pequeno, e…
A Srta. Sweetly deixou a voz morrer.
– Não entendo. A senhorita trabalha num observatório. Certamente tem
acesso a ferramentas de observação mais eficientes que um vidro fumê.
– Não faço parte dos astrônomos – explicou ela, falando baixinho. – Sou
apenas uma calculista. Não tem muito espaço e todo o resto das pessoas quer
ver.
Apenas. Ela ainda não acreditava nele.
– Ah, sim. – Stephen lhe deu seu melhor sorriso. – Na próxima vez, ga‐
ranta que faça parte de um dos times de cientistas indo a… onde é que a se‐
nhorita disse mesmo? Nas ilhas Bermudas?
Mas ela voltara a balançar a cabeça.
– Não, não.
– Acha que não pode? – Ele fez uma pausa, considerando-a. – O fato de a
senhorita ser mulher causa algumas dificuldades. Imagino que a questão da
raça também seja um empecilho?
A moça assentiu.
– Mas isso certamente é ofuscado pela genialidade absoluta da sua mente.
A Srta. Sweetly abriu um sorriso, mas era trêmulo, oscilante.
– Não é essa a questão, Sr. Shaughnessy. Quero dizer, sim, é, mas, nesse
caso, não ajudaria. – Ela engoliu em seco. – Veja bem, o trânsito de Vênus é
um evento astronômico raro… extremamente raro. Não haverá uma próxima
vez, não durante a minha vida. O próximo trânsito acontecerá apenas em ju‐
nho do ano 2004. – Ela balançou a cabeça com tristeza para ele. – Então, não,
Sr. Shaughnessy. Não serei uma das pessoas que o observarão em toda a sua
glória. Mulheres como eu terão que se contentar com vislumbres do fenôme‐
no através de vidros fumês.
Stephen não soubera quais eram suas intenções quando tinha abordado o
Dr. Barnstable pela primeira vez. Mas, olhando para a Srta. Sweetly nesse
momento, para sua cabeça baixa, negando qualquer importância… pela pri‐
meira vez, ele sabia o que queria.
Capítulo quatro
Caro Homem, sinto informar que passei os últimos cinco anos num
manicômio. Meu tio e guardião me mandou para lá quando me recu-
sei a casar com meu primo. Passei o tempo naquele lugar terrível fa-
zendo uma lista de todas as coisas que eu faria se um dia fosse liber-
tada. Agora ele já morreu, e eu estou livre, mas me encontro incapaz
de fazer um único item da lista. Como uma pessoa pode se libertar?
Ass.: Não-Sou-Louca
Cara Não-Sou-Louca,
Normalmente escrevo minhas colunas com certa jocosidade.
(Não conte para minhas leitoras, elas nunca acreditariam.) Mas sua
situação pede seriedade. A senhorita deve se preparar para atingir
seus desejos pouco a pouco. Antes que possa dançar no túmulo do
seu tio (o que imagino estar na sua lista), deve primeiro visitá-lo e
pisar na grama. Na próxima visita, não deixe de batucar o dedão do
pé e cantarolar uma cantiga. Antes que perceba, estará valsando
pelo cemitério.
Caso a senhorita precise de um parceiro, pense neste que vos fa-
la.
Sinceramente,
Stephen Shaughnessy,
Homem de Verdade
– Viu? – insistiu Patricia. – Ele está flertando em público com outra mu‐
lher. Esse é o tipo de homem que ele é. Não se esqueça disso da próxima vez
que o encontrar.
Ela assentiu consigo mesma como se tivesse comprovado algo.
Rose balançou a cabeça. Não era um flerte, não mais do que quando ele
dera aquela demonstração do Homem de Verdade para a Sra. Barnstable.
Era… o jeito dele, de uma forma doce e ousada. Doía ler, não porque ela pen‐
sava que o Sr. Shaughnessy era infiel, mas porque ela conseguia ouvi-lo por
inteiro na coluna.
Não tenho superfícies ocultas, dissera ele. Talvez não tivesse. Ela suspeita‐
va que se o julgasse de acordo com a coluna, veria…
Um homem que se oferecia para dançar com uma mulher que fora grave‐
mente ferida. Um homem que tirava sarro de outros homens quando eles se
achavam importantes demais. Um homem que queria fazer os outros rirem,
mesmo quando sofriam. Ela nunca tinha olhado para ele e visto um homem
mau, e quanto mais olhava, mais profundos ficavam seus sentimentos.
Isso, talvez, fizesse dele o espécime mais perigoso de todos.
O Sr. Shaughnessy gostava de pessoas. Ele gostava dela. Rose suspeitava
que ele havia lhe dito a pura verdade, que não estava tentando seduzi-la.
Ainda assim, estava sendo muito bem-sucedido.
– Essa vai ser nossa última aula – anunciou Rose quando o Sr. Shaughnessy
se acomodou no escritório dela dois dias depois. – Há um limite para o que o
senhor precisa aprender, e a partir de amanhã estarei cheia de trabalho. Tere‐
mos os dados do trânsito de Vênus e, com eles em mãos, precisaremos atuali‐
zar mapas estelares, e estarei soterrada debaixo de cálculos. Não terei mais
como encaixar o senhor na minha rotina.
A Sra. Barnstable olhara para cima ao ouvir isso, mas tinha que datilogra‐
far um relatório para o marido e o barulho da máquina de escrever sobres‐
saía-se à conversa.
A verdade era que Rose nunca deveria ter encaixado o Sr. Shaughnessy
em sua rotina. Ele era… Cativante era a palavra que ela usara, mas isso soava
um tanto doce, inocente. E, pela própria natureza, o Sr. Shaughnessy nunca
era inocente.
Ele não a estava observando com inocência nesse momento.
Esse era o problema. Ela sabia precisamente o que estava acontecendo.
Conseguia senti-lo persuadindo-a ao longo do caminho da sedução. Todo dia
que passavam juntos, ele a fazia se esquecer de quem era, e uma hora Rose
cruzaria uma linha que não poderia ser cruzada. Se ele continuasse perto de‐
la, a levaria ao mau caminho.
Ele apertou os lábios, mas assentiu muito de leve, como se estivesse acei‐
tando o decreto dela.
– Ainda vai me contar no que está trabalhando quando nos encontrar‐
mos na rua – comentou ele. – E agora conseguirei entender melhor.
Ela balançou a cabeça.
– Não acho que eu deveria fazer isso.
Não, isso era insosso demais. O ruído da máquina de escrever da Sra.
Barnstable estava começando a lhe dar nos nervos.
– Na verdade, sei que não devo fazer algo do gênero.
– Ah, Rose. – Ele a fitou nos olhos. – Sabe que eu amo quando me diz pa‐
lavras doces.
A garganta dela pareceu se fechar com essas palavras. Ela se sentia rouca,
quase doente. Seu coração martelava e sua cabeça estava leve. Mas isso não
era uma doença, e Rose queria mais.
Eis o problema. O Sr. Shaughnessy tinha lhe dito que seu entusiasmo era
contagioso.
Logo, a falta de inocência dele era uma praga ardente, e Rose fora infecta‐
da. A olhadela mais tímida na direção do Sr. Shaughnessy causava um frenesi
dentro dela – um lampejo dos olhos dele, um vislumbre do pulso quando o
punho de uma das mangas se erguia. A imagem dele lhe dava ideias, e ela
não precisava ter ideias sobre ele.
Quando pôs na cabeça que ele poderia fazer coisas com ela, não conse‐
guiu deixar de imaginá-las. Beijos, e não apenas nos lábios ou nas mãos, mas
no pescoço, na parte interior do pulso, até nos cotovelos. Talvez ele a acarici‐
asse também, toques sem pressa, lânguidos, pelo corpo inteiro. Ele não preci‐
sava seduzi-la, ela mesma estava fazendo todo o trabalho de sedução por
conta própria.
– Por favor, Sr. Shaughnessy – disse Rose bruscamente. – Tenho certeza
de que o senhor sonha com coisas mais importantes do que me ouvir tagare‐
lar. Não quero ser apenas uma parada no seu caminho para algo maior e me‐
lhor. – Ela baixou os olhos. – Gostei de passar esse tempo com o senhor, tal‐
vez até demais. Mas acho que será melhor para mim se nosso tempo juntos
chegar ao fim.
O Sr. Shaughnessy absorveu isso em silêncio. Seus lábios estavam com‐
primidos numa linha quase raivosa, e ele desviou o rosto.
– Aqui – insistiu ela. – Eu preparei… preparei alguns problemas para o
senhor resolver. Só umas paralaxes simples.
As palavras saíram verdadeiramente sufocadas, como se ela fosse chorar
por causa de matemática.
Era melhor. Melhor chorar por causa da matemática do que por um ho‐
mem, especialmente um malandro como esse. Ele mal tivera que se esforçar e
Rose já se pegara observando seus dedos, torcendo para que ele dobrasse um,
chamando-a… e temendo que, se fizesse isso, ela fosse correndo.
Ele pegou o papel dela e começou a trabalhar.
– Sabe – comentou –, percebi ontem à noite que a senhorita me concedeu
uma grande honra quando permitiu que eu usasse sua régua de cálculo.
Obrigado.
O Sr. Shaughnessy não parecia estar debochando dela. Ela lhe lançou um
olhar suspeito.
– Não sonho com coisas maiores e melhores – continuou ele, fazendo a
primeira anotação na página. – Já lhe disse: sou espantosamente simples.
Não existe nenhum plano grandioso.
– O senhor é escritor. E colunista. Não há nada de simples no senhor.
– Pois é. Sou extremamente esperto e ultrajante. Mas isso não faz de mim
um homem extremamente diabólico.
– Mas o senhor deve ter feito algum tipo de plano para subir na vida tão
rápido.
Ele deu um sorriso torto.
– Eis a totalidade do meu plano. Quando eu tinha 15 anos, percebi que
era um irlandês católico e pobre na Inglaterra, um país com irlandeses católi‐
cos e pobres em excesso. Minha única e verdadeira habilidade era um talento
para revoltar os outros. Eu tinha duas escolhas: acabar com minha única fon‐
te de genialidade para conseguir uma chance de viver do jeito mais servil
possível, ou aproveitar essa habilidade ao máximo e torcer pelo melhor. – Ele
deu de ombros. – E aqui estou. Nos próximos anos, estarei em demanda o su‐
ficiente para ganhar mil libras por livro da minha editora. Quando esse poço
secar, e a capacidade do público para qualquer forma de ousadia sempre seca,
terei guardado o suficiente para não me importar. Viu? Não tenho nenhum
plano grandioso, nenhum sonho meteórico. Apenas um desgosto por traba‐
lho braçal e um talento para irritar os outros.
Rose fungou.
– Já a senhorita, por outro lado…
Ela balançou a cabeça.
– Não estamos falando de mim.
– Eu aposto que a senhorita não tem sonhos tímidos. A senhorita anda
com a cabeça nas nuvens.
– Ah, não. As nuvens ficam na troposfera. Meus pensamentos ficam mui‐
to além da mesosfera.
– Exatamente. Então me diga, Srta. Sweetly. O que é que a senhorita vê
para si mesma, após me mandar seguir meu próprio caminho? Qual é o seu
plano grandioso?
Atrás deles, a Sra. Barnstable trocou uma folha na máquina de escrever.
Rose corou e desviou os olhos.
– Não existe nenhum plano grandioso. Meu pai está no comitê do Afri‐
can Times. Durante as últimas décadas, eles trabalharam com a missão de ver
a ascensão da nossa raça. Patrocinaram vários estudantes de medicina, come‐
çando com Africanus Horton. – Ela não conseguia fitá-lo nos olhos. – Patri‐
cia, minha irmã, se casou com um desses estudantes. Eles se conheceram
num jantar, trocaram um único olhar… e foi o fim da história. Todo mundo
espera que eu me case com um dos estudantes que vai chegar no ano seguin‐
te. – Ela traçou um ramo bordado na saia. – Acho que eu também tenho essa
expectativa.
– E é isso o que a senhorita quer? – perguntou ele baixinho. – Casar com
um estudante de medicina bolsista? Ter os filhos dele e cuidar da casa?
– Não me oponho ao casamento. E, sim, quero ter filhos.
Rose ainda não conseguia se forçar a encará-lo.
– Seu marido vai deixá-la passar os dias calculando? Vai ouvi-la falar so‐
bre paralaxes e o trânsito de Vênus? Ou vai querer que a senhorita se dimi‐
nua e se conforme, que guarde a régua de cálculo até que ela esteja empoeira‐
da e deformada?
Rose ergueu o queixo.
– Como acha que eu conheci o Dr. Barnstable? Ele também está no comi‐
tê do African Times. Trabalhou na Cidade do Cabo e não gostou de algumas
coisas que viu. Ouviu falar desse talento ridículo que eu tenho e, quando dei
por mim, o doutor estava implorando que meu pai me deixasse trabalhar
com ele. Sei com certeza que existem homens neste mundo que permitirão
que uma mulher tenha os próprios interesses.
– Verdade. Mas será que irão adorar a senhorita por esses interesses? On‐
de outros veem números e mapas, a senhorita vê um universo, imenso e po‐
deroso. Vê a face do cosmos em algumas luzinhas dançantes. A senhorita não
deveria ter que trocar as estrelas no céu por uma casa, um casamento e filhos.
Ela deixou escapar um suspiro trêmulo.
– Admito que precisei mais do que apenas uma troca de olhares num jan‐
tar – acrescentou ele. – Precisei de cinco ou seis. Mas também não consigo
enxergar a oito trilhões de quilômetros de distância.
O coração dela estava martelando.
– Sr. Shaughnessy.
– Sou um homem inteligente – continuou ele. – Sei que não sou o que
seu coração quer. Sou ousado demais, frívolo demais para ser o tipo de ho‐
mem com quem a senhorita sonha.
Rose não conseguia falar. Não ousava lhe dizer o que realmente desejava.
Se dissesse, ele usaria isso contra ela.
A Sra. Barnstable, alheia a toda essa conversa, tirou a última folha da má‐
quina de escrever e disse:
– Srta. Sweetly, vou só entregar isso aqui para o Dr. Barnstable se não ti‐
ver problema.
Não. Rose precisava dizer não. Não podia ficar a sós com o Sr. Shaugh‐
nessy, nem que fosse por um minuto. Especialmente nesse momento.
– É claro, Sra. Barnstable – disse mesmo assim.
– Sei que não sou o que seu coração deseja – repetiu o Sr. Shaughnessy
em voz baixa, assim que a Sra. Barnstable se retirou da sala –, mas ainda pos‐
so lhe dar o seu desejo.
Ela ergueu os olhos.
– O que o senhor sabe sobre os desejos do meu coração?
Fitá-lo nos olhos foi um erro. Ele lhe deu um sorriso – não um sorriso
vulgar e astuto, ou um sorriso inteligente, com traços de sedução. Era um
sorriso caloroso e acolhedor – do tipo que a fazia pensar que tinha chegado
em casa.
– Sei o que a senhorita quer. Dá para ver.
Ela o queria, por mais que fosse um libertino impossível. Rose o queria
apaixonado por ela, fiel a ela. Até Rose sabia que era pedir demais.
– Dá? – perguntou baixinho.
– Sim. – Ele inclinou a cabeça para ela. – Srta. Sweetly, eu lhe imploro.
Aceite só uma coisinha de mim.
O coração dela martelava.
O Sr. Shaughnessy se levantou. Rose olhou ao redor do cômodo – mas
sem a Sra. Barnstable ali, não havia ninguém para vê-los. Ninguém para vê-
lo aproximando-se dela. Ninguém para detectar o brilho nos olhos dele, a luz
cintilante que a fez paralisar na cadeira.
Ele se abaixou num joelho diante dela. Rose não conseguia pensar, não
conseguia imaginar o que dizer ou como dizer. Ele não iria realmente pedi-la
em casamento – não ali, não nunca, e, mesmo que pedisse, certamente não
estaria falando sério. Homens prometiam coisas a mulheres como ela o tem‐
po todo, e nunca significava nada.
Mas o que o Sr. Shaughnessy tirou do bolso não era um anel. Era um tipo
de papel-cartão, com uma borda decorativa. Ele o entregou para ela, que
aceitou. Estampado na frente estavam as palavras Convite para uma pessoa.
Abaixo, havia apenas um endereço.
– O que é isso? – perguntou ela, confusa.
– Isso? – Ele abriu um sorriso presunçoso, como se tivesse acabado de fa‐
zer algo muito engenhoso. – Esse é o desejo do seu coração, Srta. Sweetly: um
convite para a melhor vista em toda Greenwich do trânsito de Vênus. Corte‐
sia de… Bem, seria de mim.
Se alguém tivesse perguntado a Rose sobre as coisas que ela queria, assis‐
tir ao trânsito de Vênus certamente estaria na lista. Não em primeiro lugar,
nem em segundo… mas no topo da lista, de qualquer jeito.
Mas não foi a astronomia que fez o ar se prender em seus pulmões. Foi o
fato de que o Sr. Shaughnessy havia adquirido o convite como um presente.
Era o regalo mais atencioso que ela já tinha recebido. E fora o Sr. Shaughnes‐
sy que pensara nele.
– É uma exibição bem exclusiva – disse ele –, de um dos pontos mais al‐
tos da própria Greenwich. A senhorita terá que subir vários degraus, e não
haverá aquecimento na sala de observação. Leve isso em consideração ao se
vestir.
Havia apenas uma coisa errada nessa história.
– As pessoas vão falar se eu chegar num evento assim com o senhor.
– Ah. – Os olhos dele brilharam. – É um evento extremamente exclusivo.
Garanto que ninguém vai falar da senhorita. Ninguém mesmo. Quanto a
mim? Prometo não importuná-la.
Assistir ao trânsito de Vênus com meia dúzia de pessoas desconhecidas
seria interessante. Até prazeroso. Mas o desejo do coração dela, mesmo que
fosse por apenas uma tarde…
… era que ele se importasse verdadeiramente com ela. Podia ser tempo‐
rário. Podia ser tolice. Mas, se o Sr. Shaughnessy tinha se dado a todo esse
trabalho, ela significava mais do que um bel-prazer para ele.
Ele está seduzindo você, disse ela a si mesma.
Só dessa vez, implorou ela em resposta. Só dessa vez, e depois não irei
além.
– Ah, pois bem – disse Rose.
Porém, quando o fitou nos olhos, não conseguiu conter o sorriso.
Meu Deus, como era tola.
Como era tola, disse Rose a si pela vigésima vez no mesmo número de horas.
Estivera discutindo consigo mesma desde que o Sr. Shaughnessy fizera o con‐
vite.
Discutira consigo mesma em silêncio, enquanto avisava a irmã que volta‐
ria para casa no dia seguinte até às quatro e meia da tarde, porque estaria ob‐
servando um evento astronômico. Discutira consigo mesma o tempo todo
enquanto fazia cálculos na manhã seguinte. Discutira consigo mesma até na‐
quele momento, à uma e meia da tarde, enquanto se dirigia ao endereço no
convite que o Sr. Shaughnessy lhe dera.
Ela sabia como ele era, sabia que não deveria aceitar um convite para
qualquer evento com ele, não importava o quanto fosse intelectualmente en‐
volvente. Devia mesmo ter insistido em trazer uma acompanhante – por que
não pensou nisso antes?
Ah. Porque era uma tola.
Mas, toda vez que se chamava de tola, também se lembrava do que ele ti‐
nha dito. A senhorita não tem sonhos tímidos.
O endereço que o Sr. Shaughnessy lhe dera não ficava muito longe do
Observatório Real; era no mesmo terreno elevado. Ela se perguntou futil‐
mente se algum dos conhecidos do Dr. Barnstable estaria presente nesse
evento de observação.
Ele prometera que as pessoas não falariam sobre ela, mas como sabia dis‐
so? Como podia impedi-las?
Havia uma parte de Rose, parcamente enterrada, que sonhava que o Sr.
Shaughnessy estava apaixonado por ela. Que pensava que não importava o
quanto poderiam parecer diferentes se comparados, pois eles se dariam bem
juntos. Ela conseguia vê-los se encaixando na vida um do outro com muita
tranquilidade. Ele morava perto do Observatório Real, então ela poderia con‐
tinuar a trabalhar lá de manhã. À tarde, eles passeariam juntos, e ele poderia
lhe contar sobre o trabalho dele, para variar. E à noite…
Era aí que tudo se estilhaçava. Rose conseguia imaginar muito bem as
noites deles a sós. Mas sempre que tentava se imaginar acompanhando-o em
saídas, lembrava-se de quem era e de como seria recebida.
A senhorita não tem sonhos tímidos.
Ela não queria ter sonhos tímidos. Apenas sabia a verdade: não havia lu‐
gar para Rose na esfera do Sr. Shaughnessy e mulheres como ela não eram
convidadas a se unir a homens como ele em matrimônio. O único jeito de ter
um homem como ele seria se ele a seduzisse. Os dois se dariam muito bem a
sós. Era apenas quando ela imaginava… ah, qualquer outra pessoa por perto,
que tudo se despedaçava.
O endereço que ele lhe dera ficava na Crooms Hill. Quando Rose estava
quase chegando, percebeu que ele não havia lhe dado direções a uma obser‐
vação no terraço de uma mansão particular. Havia apenas um lugar alto o su‐
ficiente para observar o trânsito de Vênus.
E esse lugar era uma igreja. Não qualquer igreja, mas uma igreja católica
romana – um lugar pelo qual ela passava com frequência, mas no qual nunca
tinha entrado. Se o Sr. Shaughnessy fora convidado para observar o trânsito
de Vênus ali, é porque devia frequentar a paróquia com regularidade – regu‐
laridade suficiente para que as pessoas o conhecessem.
De certa forma, essa ideia parecia completamente incompatível com o Sr.
Shaughnessy que ela conhecia. O Sr. Shaughnessy que ela conhecia era ousa‐
do. Ele participava de todo tipo de ato imoral. Escrevia colunas com insinua‐
ções que Patricia se recusara a explicar e que Rose tivera que descobrir o que
eram por conta própria, na melhor de suas habilidades. E isso sem falar nas
fofocas que o conectavam a mulheres e mais mulheres.
Era impossível pensar nele como um paroquiano.
E, ainda assim, ele a convidara até ali. Rose chegou ao prédio elegante,
com telhas de ardósia e um revestimento de pedras de Caen. Uma torre alta
erguia-se para os céus, terminando numa cruz.
Nem o Sr. Shaughnessy a seduziria numa igreja.
Certo?
Ela encarava a igreja com uma sensação parecida com desalento quando
ele saiu pelas portas da frente e andou até ela.
– Aí está a senhorita – comentou.
– Aqui estou – repetiu ela. – O senhor prometeu não me importunar, não
foi?
– Ah, mas tenho certeza que a senhorita já descobriu a brecha nessa pro‐
messa. – Ele deu uma piscadela para ela. – Nunca falei nada sobre o que a se‐
nhorita poderia fazer comigo. Vamos lá.
Ele não a levou até a capela-mor. Rose teve um vislumbre de uma estátua
de mármore de uma mulher, um navio banhado a ouro ao lado dela, antes de
o Sr. Shaughnessy a conduzir para um caminho que levava aos fundos.
– Sr. Shaughnessy – chamou ela, relutando um pouco. – Aonde estamos
indo?
– Até o topo, é claro. Vamos subir até o pináculo da torre.
Ele parou na frente de uma porta de madeira e tirou um molho de chaves
do bolso.
– Onde o senhor conseguiu isso?
A porta se abriu para uma escadaria escura de pedra.
– Com o padre Wineheart – respondeu ele. – Ele gosta de mim.
Rose não tinha nada a dizer sobre isso. Havia algo de estranho na situa‐
ção, algo terrivelmente estranho na escadaria escura…
– Sr. Shaughnessy, está me dizendo que ninguém mais vai assistir ao
trânsito de Vênus conosco? Ninguém mesmo?
Ele parou e ergueu uma sobrancelha para ela.
– Eu avisei que era um evento bem exclusivo e que ninguém falaria nada.
Ela pensara que ele quisera dizer que o evento era discreto. Talvez não ti‐
vesse se permitido pensar muito a respeito. Talvez tivesse sido de propósito.
Rose era mesmo uma tola. Se tivesse pensado com mais clareza, teria entendi‐
do. E, se tivesse entendido – por mais tola que estivesse sendo nesse momen‐
to –, não teria ido.
– Sr. Shaughnessy. – Ela colocou as mãos nos quadris. – Eu tinha imagi‐
nado que haveria homens e mulheres nesse evento, que eu não estaria a sós
com o senhor durante o pôr do sol. Seria terrivelmente inadequado se eu en‐
trasse… entrasse aí com o senhor.
Ele parou e olhou para ela. Por um momento, torceu o nariz. Rose queria
saber no que ele estava pensando. Quase queria que ele usasse sua personali‐
dade cativante para convencê-la a aceitar, a subir com ele. Conseguia imagi‐
nar como tudo se desenrolaria. Como é que libertinos faziam as mulheres
perder a cabeça? Com champagne? Com vinho Madeira?
O Sr. Shaughnessy lhe ofereceria uma taça. Ela iria…
Dane-se tudo. Rose não iria dizer não. Mas, se permitisse que isso acon‐
tecesse agora – se permitisse que ele entrasse com ela a sós numa torre som‐
bria –, deixaria que acontecesse uma segunda vez, depois uma terceira. Tal‐
vez na quarta, aceitasse o vinho. Na quinta, seria algo além disso. Ela sabia
como libertinos seduziam mulheres e sabia que já tinha mais de meio cami‐
nho andado. Havia prometido a si mesma que esse era seu limite e que não o
ultrapassaria… e, se não mantivesse essa promessa nesse momento, era me‐
lhor desistir e se render.
Ela engoliu em seco com força e olhou para longe.
– Sinto muito. Sinto muito mesmo. Mas não posso entrar numa torre de‐
serta sozinha com o senhor.
– Ah, Rose.
Não. Ele não podia suplicar. Ele a convenceria.
– Nem mesmo pelo trânsito de Vênus – insistiu ela, a voz falhando.
Mas, quando ela o olhou, ele não a encarava de um jeito suplicante. Em
vez disso, havia outra expressão em seu rosto, uma que Rose não conseguia
interpretar.
Ela não queria deixar-se interpretar.
– É melhor eu ir.
Ela se virou para fazer justamente isso.
– Espere. Rose.
Contra suas melhores intenções, ela parou. Sabia que não deveria. Sabia
que ele a faria rir, que a deixaria à vontade. Mal teria que se esforçar para
convencê-la. Ela queria desesperadamente ser convencida.
Ele se aproximou dela com um passo, depois outro, parando tão perto
que poderia ter colocado os dedos no queixo dela. Rose conseguia se sentir
abrindo-se para o Sr. Shaughnessy, erguendo os olhos brilhantes para ele. O
homem poderia beijá-la nesse instante, à vista da capela-mor, e ela permiti‐
ria.
Mas não fez isso. Em vez disso, ele baixou o tom de voz.
– Acha que eu faria isso com a senhorita?
– Acho que o senhor não teria que se esforçar muito.
Rose já estava tentando se persuadir sem esforço algum da parte dele.
Apenas tinha que ficar calada, ficar distante. Poderia assistir ao trânsito, de‐
pois descer as escadas, e ninguém nunca saberia. Se nunca fizesse isso de no‐
vo…
Não. Era exatamente com esse tipo de pensamento que garotas como ela
acabavam arruinadas.
Ele baixou o olhar para os lábios dela.
– Não é isso que eu quis dizer. – Ele inspirou com vigor, depois lhe ofere‐
ceu o molho de chaves. – Certo. Então. A chave da porta do pináculo é essa
pequenininha aqui, de cobre.
Ela piscou para ele, confusa.
– Faltam doze minutos para o começo do trânsito. Tem vários degraus,
mas, se a senhorita se apressar, não devem ser um problema. No topo da es‐
cadaria tem uma vista excelente do rio.
Rose balançou a cabeça.
– Do que o senhor está falando?
– Esse é um evento astronômico raro. Não vai se repetir até 2004. Real‐
mente acha que eu a deixaria perdê-lo? Se a senhorita não pode ir comigo,
pode ir sozinha. – Ele se encostou na parede. – Vou esperar aqui. Preciso de‐
volver as chaves para o padre Wineheart depois que a senhorita terminar.
– O senhor não vem mesmo?
– Não foi o que eu acabei de dizer? Vá. Depressa. A senhorita não vai
querer perder.
O Sr. Shaughnessy acenou para ela com as mãos, instando-a a passar pela
porta e tomar a escadaria escura. Ela começou a subir. A escadaria era fria e
só um pouquinho embolorada, mas ela não conseguia pensar nisso.
Rose viera, esperando que o Sr. Shaughnessy destruísse cada uma de suas
defesas – e quase desejando que ele fosse bem-sucedido.
E… ele nem tinha tentado. Sem piadas. Não havia lhe dado qualquer alfi‐
netada quando ela hesitara. Apenas lhe entregara as chaves e a mandara su‐
bir. Não havia tentado lisonjeá-la ou cativá-la, mesmo que, se tivesse feito o
mínimo esforço, a teria convencido. Rose tinha bastante consciência disso. E
o Sr. Shaughnessy, Homem de Verdade, especialista que era no sexo femini‐
no, deveria ter ficado consciente disso também.
Era quase como se ele se importasse com o que ela queria. Rose chegou
ao lance superior da escada da torre. Suas panturrilhas já estavam um pouco
aquecidas com o exercício, e o ar ao redor dela esfriara. Havia uma janelinha
retangular, e através dela Rose conseguia ver o rio e o Sol descendo o céu
preguiçosamente. Nuvens bem longe, acima de Londres, eram uma ameaça,
mas não chegariam ali a tempo de bloquear a vista. Ela pegou o molho de
chaves, encontrou a chavezinha de cobre e, hesitante, a colocou na porta que
levava ao pináculo.
Oito minutos até o começo do trânsito. Oito minutos até ela estar ali, as‐
sistindo-o a sós, enquanto seu coração permanecia ao pé da escadaria de pe‐
dra.
Rose inspirou fundo. Então, estupidamente, começou a descer os lances
de escada, primeiro devagar, depois cada vez mais rápido, até seus sapatos
baterem com força nos degraus, pulando dois ou três de cada vez. Quando
chegou ao primeiro lance, estava indo tão rápido que seus pés deslizaram na
pedra lisa. Ela ergueu as mãos para se impedir de bater com tudo numa pare‐
de, depois voltou a correr.
Saiu pela portinha de madeira. Ele estava sentado num banco ali perto,
lendo um livrinho.
– Stephen.
Ela nunca o tinha chamado pelo nome de batismo antes e não tivera in‐
tenção de fazer isso nesse momento. Apenas escapara.
Ele ergueu a cabeça. Nem Rose tinha entendido por que voltara. Não até
ver o rosto dele. O Sr. Shaughnessy a enxergou. Seus olhos se arregalaram, e
ele abriu um sorriso, um sorriso lindo e brilhante que pareceu iluminar todo
o corredor que escurecia. Ela sentiu um sorriso em resposta espalhar-se timi‐
damente pelo próprio rosto.
– Rose. O que está fazendo aqui? O trânsito está prestes a começar.
– Não consigo assistir sem o senhor – explicou ela. – Eu não conseguiria
aproveitar.
Ele a olhou.
– Vamos – incentivou ela. – Rápido. Se eu perder o trânsito por causa do
senhor…
Ele se levantou. Em seguida, muito devagar, com um sorriso cada vez
maior, foi até ela.
Capítulo cinco
E le soube que foi um erro assim que as palavras saíram de sua boca, assim
que ouviu a si mesmo e percebeu que parecia um convite para um encon‐
tro ilícito em vez de um pedido para passar a vida com ele. Rose se endirei‐
tou, afastando-se dele.
– Rose.
Ele esticou o braço.
Ela empurrou a mão dele para longe.
– Não. Por favor, não.
– Rose. Desculpe. Foi uma piada.
– Eu sei que foi uma piada. – A voz dela tremia. – É claro que foi uma pi‐
ada. É sempre uma piada para você.
Ela pegou o casaco no chão e encontrou as luvas na escuridão crescente.
– Rose?
E se Stephen não tinha conseguido decifrar a voz dela antes? Foi apenas
porque não estivera ouvindo direito. E depois de ter aberto a boca cedo de‐
mais e ter falado demais… Conseguia ouvir a mágoa ali.
– Rose. Querida. Eu nunca quis magoar você. Sabe disso. Precisa saber
disso.
Ela vestiu as luvas.
– Eu sei. Stephen, eu… – Ela baixou a voz. – Deve saber o que eu sinto
por você. Mas não acho que você entende. Isso não é fácil para mim, e você
não está facilitando as coisas. Quero confiar em você. Estou tentando confiar
em você. Até confio nas suas intenções. – A voz ficou ainda mais baixa. – Só
não confio nos seus resultados.
– Rose.
Ela balançou a cabeça.
– É tarde. Eu prometi a minha irmã que estaria em casa logo depois das
quatro, e sabe Deus que horas são. Tenho que ir.
– Rose.
– Obrigada. – Ela engoliu em seco. – Por me trazer até aqui e por provi‐
denciar um telescópio.
– Pelo menos me deixe acompanhá-la…
– Acho que você já passou tempo suficiente comigo por enquanto. Por fa‐
vor, Stephen. Falei para mim mesma que não iria… e olhe só para mim. Pre‐
ciso pensar.
Ele recuou, como se tivesse levado um soco. Mas segurou a língua e não
deu a resposta afiada que queria dar. Fora ele que a havia magoado em pri‐
meiro lugar. Falaria com ela quando a dor das palavras inoportunas tivessem
passado, quando se sentisse mais como ele mesmo – menos vulnerável, mais
no controle.
Ela desceu pela escada. Ele mal conseguia vê-la sumindo na escuridão.
– Tome cuidado – disse ele, em voz baixa.
Rose não respondeu nada por um bom tempo. Mas ele a ouviu chegar ao
último lance da escadaria. Por um momento prolongado, ela não se mexeu.
Stephen se perguntou se ela estava olhando para ele, se conseguia vê-lo na es‐
curidão que se acumulava. Perguntou-se no que ela estava pensando.
– Eu deveria ter tomado cuidado horas atrás – disse ela. – Agora já é tar‐
de demais.
A casa não estava escura quando Rose chegou. As luminárias no térreo esta‐
vam todas acesas. Rose pôde ver uma silhueta se movendo na janela da fren‐
te.
Ela relembrou com inquietação a última batida do relógio. Já eram… só
Deus sabia quanto tempo depois das seis.
A porta não estava trancada. Seu estômago doeu quando ela girou a ma‐
çaneta, mas as dobradiças se abriram com facilidade, e ela caminhou até a
luz.
– Agora.
A voz de Patricia estava rouca e irregular.
Rose precisou de um momento, parada ali piscando diante da luz cegan‐
te, para entender que a irmã não estava falando com ela. Patricia estava sen‐
tada no sofá, de roupão. Suas mãos estavam nos joelhos, e ela fez uma cara
feia ao falar, o corpo inteiro tenso.
O Dr. Chillingsworth estava acomodado na cadeira diante dela, olhando
para um relógio.
Rose conseguia ver a tensão no rosto da irmã, o ranger de seus dentes, a
camada fina de suor nas têmporas. Ficou parada, incerta do que estava obser‐
vando.
Contudo, o doutor ergueu uma sobrancelha, pouco impressionado.
– Francamente, Sra. Wells – disse ele em tom de reprovação. – Acha mes‐
mo que pode fingir uma contração e me convencer?
As mãos de Patricia apertaram os joelhos.
– Fingir? Eu não mentiria sobre algo assim.
Chillingsworth recebeu essa declaração com um aceno da mão.
– Exagerar, então. O ranger dos dentes proeminentes demais, o barulho
baixo na sua garganta… Sra. Wells, é esposa de um médico. Não lhe compete
se comportar dessa maneira. – Ele se levantou. – Não há dilatação cervical.
As… hã… contrações, como a senhora as chama, não parecem ser particular‐
mente intensas. E o bebê ainda não está encaixado. Pelas minhas estimativas,
ainda faltam pelo menos três semanas. Isso é de novo um falso trabalho de
parto, Sra. Wells. Tente dormir e faça um esforço para não me incomodar
com trivialidades até que realmente seja a hora.
O rosto de Patricia era uma máscara. Rose deu um passo à frente, todo o
calor subindo ao seu rosto.
– Dr. Chillingsworth, minha irmã não…
Patricia interrompeu essa defesa com um balançar rápido da cabeça.
– Obrigada por me atender, doutor. Fico muito grata pelo senhor ter
acalmado meus medos. Agora que explicou o que devo esperar, garanto que
não o incomodarei de novo até chegar a hora.
– É bom garantir mesmo. – Chillingsworth correu a mão pelos cabelos e
olhou para o relógio de bolso outra vez. – Bem no meio do jantar – murmu‐
rou.
Ele guardou o disco dourado no colete e pegou a maleta.
Patricia não disse nada até ele ter ido embora. E, na verdade, nem disse
nada imediatamente depois disso. Apenas ficou sentada no sofá observando
Rose, enquanto Rose continuou parada, com medo de falar.
– Fiquei enlouquecida – disse Patricia por fim. – Esperando você voltar
para casa. Fiquei com medo que algo tivesse acontecido com você. Procurei
por todo lugar, por todo lugar mesmo, até fui ao Observatório, mas me disse‐
ram que você não estava lá. Fiquei muito agitada, e daí achei que minhas
contrações estavam começando.
Não importava quais eram as intenções de Stephen. Não importava o que
ele queria. Não importava o quanto ele tinha sido doce ou gentil. Não impor‐
tava nem o quanto Rose o amava, o quanto ainda ansiava por voltar corren‐
do até a torre e se jogar nos braços dele.
Ele não havia feito Rose se esquecer de si mesma. Ela apenas se esquecera
da irmã.
Ela entrou e sentou na cadeira que Chillingsworth havia desocupado.
– Sinto muito mesmo, Patricia. Mas o trânsito de Vênus…
– Não teria sido visível depois do pôr do Sol – interrompeu Patricia. – Ou
depois que as nuvens cobriram o céu. Eu escuto sim o que você diz. O que vo‐
cê estava fazendo?
– Eu sei que parece ruim, mas…
– E é ruim. Sou responsável por você, e você desapareceu debaixo do meu
nariz. Fora de casa depois do pôr do sol… isso não parece bom, Rose. Por fa‐
vor, me diga que você estava com o Dr. Barnstable e a esposa dele o tempo
todo, celebrando… o que quer que seja que astrônomos celebram.
Rose engoliu em seco.
– Hum.
– Por favor, me diga que o Sr. Shaughnessy não estava com você.
Ah, nesse momento ela entendeu bem. Patricia tinha razão. Não apenas
parecia ruim. Era ruim. O que ela deveria fazer, mentir para a irmã o resto da
vida? Dizer que ia se casar com um homem que se comportava de tal manei‐
ra? O pai delas havia batalhado e trabalhado muito duro para conquistar até
a mínima medida de requinte. Será que Rose iria abrir mão disso tão facil‐
mente?
Ela examinou os nós dos dedos.
– Eu não… – Ela engoliu em seco. – Eu não mencionei que estou dando
aulas para ele sobre métodos de cálculos de distâncias astronômicas?
Os olhos de Patricia ficaram enormes.
– Não. Sabe muito bem que não mencionou nada do gênero.
– Pode ser que ele tenha organizado um telescópio na torre da igreja. Pa‐
ra que eu pudesse observar o trânsito.
– Juntos?
Rose assentiu.
– Sozinhos?
Ela assentiu de novo, sentindo as bochechas arderem de mortificação.
– Ele a machucou? – questionou Patricia.
– Não. Ele não faria isso. – Não no sentido que Patricia falara, de qual‐
quer jeito. – E não me olhe assim. Não sei o que deve pensar dele, mas ele
não me machucaria.
Stephen lhe diria que ela era bonita e inteligente. Ele diria que gostava
dela. Mas, no fim das contas, o resultado sempre seria o mesmo: se alguém
descobrisse que ele estava interessado nela, instantaneamente pensariam o
pior.
– Ah, Rose. O que eu vou fazer com você?
– Como é que eu vou saber? – respondeu Rose com amargura. – Nem eu
sei o que fazer comigo.
Patricia não hesitou. Ela esticou as mãos e Rose se levantou, indo até a ir‐
mã, abraçando-a.
– Às vezes – disse Rose –, consigo me forçar a lembrar que vivemos em
dois mundos diferentes: ele no dele, eu no meu. Outras vezes, penso que vi‐
vemos no mesmo lugar, um único mundo, um mundo melhor porque ele
existe. Acho que eu poderia me apaixonar por ele se eu ousasse. – Ela engoliu
em seco. – Mas só consigo ousar fazer certo número de coisas ao mesmo
tempo. – Sua voz estava densa. – E agora, ousando fazer essa coisinha… Eu a
abandonei.
– Ah, Rose. Não precisa se preocupar comigo.
Era tão típico de sua irmã insistir que não precisava de nada para ela
mesma.
– Como não? Prometi ao Dr. Wells que estaria ao seu lado, e não estava.
– Shh. Você está aqui agora. E eu entendo, de verdade. Hipoteticamente
falando, pode ser que eu também estivesse disposta a escapar à noite para ver
Isaac quando tinha sua idade.
Rose deu um sorriso fraco.
– Ora, Patricia. Estamos falando mesmo hipoteticamente, certo?
– Ah, calada. Então digamos que tenha sido realista também. Só… não se
encontre com um homem a sós à noite, a não ser que tenha certeza que ele
vai se casar com você.
Rose suspirou.
– E, hã, mesmo assim… Não deixe as coisas irem muito longe – acrescen‐
tou Patricia.
– Mas o que você quer dizer com isso? – perguntou Rose de maneira ino‐
cente.
Inocente demais, pelo jeito, porque Patricia lhe deu um tapa no ombro.
– Assanhada. Você não é tão ingênua assim. Se ficou com vontade de
dormir depois, você foi longe demais.
– Ah, puxa vida. Estou com vontade de dormir agora – disse-lhe Rose, fe‐
chando os olhos.
– Ficar agarradinha com a sua irmã não vale – retrucou Patricia com se‐
veridade. – Eu não estou de olho na sua virtude. A única coisa que quero fa‐
zer a essa altura é dormir. Usar o penico e dormir.
– Que indelicada.
– Qualquer uma que ache que mulheres são delicadas ou nunca ficou grá‐
vida, ou apagou a experiência da memória por puro horror.
Rose bufou. Por um longo tempo, elas não disseram nada. Rose segurou
as mãos da irmã, a cabeça apoiada no ombro dela. Quase conseguia fingir
que ainda eram jovens, que ela era uma criança e Patricia apenas alguns anos
mais velha, que mais uma vez caía no sono ouvindo os batimentos do cora‐
ção da irmã.
Mas não era verdade. Rose tinha 20 anos. Sua irmã estava grávida, e Rose
tinha que cuidar dela. Havia pensado que nada seria capaz de fazê-la se es‐
quecer disso… mas também, subestimara Stephen Shaughnessy por tempo
demais.
Ele a fazia pensar que isso seria muito fácil – que bastava amá-lo e todos
os seus problemas desapareceriam. Mas não iriam desaparecer. Iriam se mul‐
tiplicar: os problemas dele com os dela. A única coisa que ele podia fazer era
o que conquistara esta noite: fazer Rose se esquecer de quem era por tempo o
suficiente para que o perigo genuíno chegasse ameaçando.
Ela enterrou a cabeça no ombro da irmã.
– Desculpe – falou. – Nunca mais vou deixar você preocupada assim de
novo. Prometo.
– Eu sei.
Após bastante tempo, as mãos de Patricia apertaram os ombros de Rose,
não com força, mas por um momento prolongado: cinco segundos, depois
dez. Rose se virou e olhou para ela. A respiração da irmã estava entrecortada,
seu maxilar rígido. Por fim, porém, Patricia relaxou e olhou para o relógio.
– 47 minutos – falou com calma. – O tempo entre elas foi de 47 minutos.
– Você teve outra contração? – Rose se sentou ainda mais ereta. – Deve‐
ríamos chamar…
Patricia balançou a cabeça.
– Contrações falsas, lembra? O Dr. Chillingsworth acabou de sair daqui.
– Mas…
– Mesmo que sejam reais – insistiu Patricia –, o que eu duvido, ainda as‐
sim, o tempo entre elas é de 47 minutos. Terá que ser bem mais curto antes
que chegue a hora. Daí podemos chamá-lo.
Capítulo sete
Rose fechou a porta atrás de si. Suas mãos tremiam, sua barriga doía. Mas es‐
tava feito. Ela havia cortado laços com Stephen Shaughnessy – e tinha sobre‐
vivido. Ela olhou ao redor da entrada e franziu o cenho.
A casa estava escura. O sol ainda não tinha se posto, mas a noite estava
próxima o suficiente para que algumas luzes devessem estar acesas. Mas não
havia iluminação alguma na antessala, nem na sala de jantar ou na despensa.
Ela fechou o rosto e chamou:
– Patricia?
Uma porta se abriu no andar superior. Alguns momentos depois, a cabe‐
ça da Sra. Josephs apareceu por cima do guarda-corpo.
– Sua irmã não está se sentindo muito bem, Srta. Sweetly.
Rose franziu a testa.
– Ela chamou o médico?
– Não desde ontem à noite – respondeu a mulher mais velha. – Ela disse
que é um falso trabalho de parto de novo. Ela não quer incomodá-lo.
Rose teve um pressentimento horrível.
– Mas ele não disse que as dores de parto falsas deveriam parar? Como
ela pode ter certeza de que é alarme falso e não outra coisa?
A Sra. Josephs balançou a cabeça.
– Nunca fui abençoada com um filho, senhorita. Realmente não sei nada
sobre o assunto.
Rose balançou a cabeça, depois subiu as escadas com cuidado. O quarto
da irmã estava escuro, mas Patricia não estava na cama. Ela andava em círcu‐
los no carpete.
– Rose. – Patricia ergueu o rosto quando a porta se abriu. – Você já vol‐
tou. Não se preocupe comigo, logo vou estar bem de novo. Na verdade, não
me sinto tão mal agora.
Ela conseguiu abrir um sorriso convincente.
– Você não deveria se deitar?
– Me sinto melhor andando.
– Qual é o problema?
– Não é nada, na verdade – respondeu Patricia. – Só aquelas dores falsas
de parto de novo, só isso. E o tempo entre elas não está particularmente rápi‐
do… ainda é de apenas 23 minutos.
Rose sentiu dedos gelados apertarem seu coração.
– Você ainda está tendo contrações? Passou o dia todo assim? Estão mais
próximas?
– Contrações falsas. – Mas Patricia soava como se estivesse tentando con‐
vencer a si mesma. – É cedo demais para o parto de verdade. Eu… mandei
outra mensagem para o Dr. Chillingsworth ao meio-dia, e ele respondeu que,
pela minha descrição, eu não tinha nada com que me preocupar, que a única
coisa que precisava fazer era me acalmar.
– Eu não gosto do Dr. Chillingsworth – declarou Rose, inquieta.
– Ele também me deixa um pouco apreensiva – respondeu Patricia, como
sempre sendo gentil demais. – Mas não quero incomodá-lo com algo bobo.
Se eu fizer isso, pode ser que ele não venha quando for urgente. Então, por
enquanto… – Ela sorriu. – Ele está a apenas cinco minutos daqui, menos ain‐
da se Josephs correr. Não faz mal nenhum esperar. E, se eu prefiro andar, não
pode ser tão ruim assim, certo?
Não havia necessidade de assustar a irmã, não importava a velocidade
com que o coração de Rose estivesse martelando no peito, ou os cenários que
sua imaginação estivesse inventando.
– Não, é claro que não – disse ela. – Você vai estar melhor amanhã, sem
dúvida. Por enquanto, quer que eu caminhe com você?
– Quero. Seria ótimo.
Rose pegou a mão da irmã e caminhou com ela ao longo da faixa de 1,2
metro de carpete. Os passos de Patricia eram lentos e hesitantes, mas sua voz
era acolhedora como sempre.
– Seu dia foi bom?
Rose hesitou. Ela poderia falar sobre seus cálculos, sobre a história que a
Sra. Barnstable havia lhe contado. Mas Patricia não se deixaria enganar pelo
falso bom humor nem por um instante. Já estava encarando Rose com os
olhos cerrados e uma careta.
– Eu disse ao Sr. Shaughnessy que não posso mais vê-lo – contou Rose,
falando rápido.
– Ah, Rose. Sei que você teve que fazer isso… mas sinto muito que tenha
sido necessário.
Rose balançou a cabeça.
– Foi o melhor a ser feito, de verdade. Mas…
– Mas você gostava dele mesmo assim, mesmo que ele seja um libertino.
– Mas eu queria ser outra pessoa. – Rose ouviu-se dizer em vez disso. –
Alguém que não tivesse que pensar tanto sobre casar com um homem ousa‐
do sem arriscar nada.
– Casar? – Patricia virou a cabeça a fim de olhar para Rose. – Ele não an‐
dou falando sobre casamento, não é?
Elas deram outra volta no carpete, os pés pousando em flores, antes que
Rose se sentisse pronta para responder.
– Falou – admitiu ela, suavemente.
– Você duvidou da fidelidade dele no futuro?
Ah, deveria ter duvidado. Toda a Inglaterra duvidaria da fidelidade dele –
todo mundo, menos Rose.
– Não – disse ela, a voz à beira das lágrimas. – Não, disso não. Mas eu
apareceria em todos os jornais de fofoca. As pessoas escarneceriam papai por
trabalhar com comércio. E isso seria apenas o começo. Seria difícil. Todo dia
seria difícil, e ele simplesmente não admite o quanto seria difícil.
– Ah, Rose. – A mão de Patricia apertou a dela. – Eu te amo. Mas às vezes
você precisa fazer o que mais quer na vida. Não pode se esconder de tudo.
– Eu não me escondo – retrucou Rose, ofendida.
Patricia não falou por um momento.
Rose pensou em seus portfólios, em suas colunas de números. Pensou no
trânsito de Vênus, em abaixar a cabeça e insistir que nunca faria parte de
uma viagem científica.
A questão não é que você pensa que vai ser difícil demais para mim. É que
você pensa que vai ser difícil demais para você.
– Eu não me escondo – insistiu ela, falando mais devagar dessa vez.
– Se esconde sim. Um pouquinho. Desde que você era criança. É por isso
que o papai brigou com o vovô todos aqueles anos atrás, sabe?
– Quê?
– Quando o papai se mudou de Liverpool para Londres? Não foi apenas
para organizar aquela primeira loja de importados. Era porque ele não gosta‐
va do que o vovô fazia com você, expondo você, insistindo que você fizesse o
seu truquezinho de somatória com a cesta na frente de multidões. Você nem
era tímida antes daquela época. Depois disso… O papai queria que acabasse,
mas o vovô insistiu que atraía clientela. – Patricia deu de ombros. – Então o
papai e a mamãe foram embora.
Rose engoliu em seco. Ela não tinha percebido que eles tinham ido em‐
bora por causa dela. Pensara… Bem, era nova demais para pensar nos moti‐
vos. Apenas pensara que os pais quiseram se aventurar sozinhos.
A única coisa que conseguia lembrar de quando se mudaram era uma
sensação de alegria – que poderia parar de sentir vergonha da melhor parte
dela, que poderia sentar e desfrutar de seu talento sem os olhos de todo
mundo sobre ela. Havia parado de pertencer a outras pessoas.
Rose sempre pensara que tinha sido uma coincidência feliz. Mas não era
verdade. Tinha sido um presente de seus pais.
– Então eu me preocupo com você às vezes. – Patricia apertou sua mão. –
Me preocupo muito com você, na verdade, trancada num escritório quieto
com nada além de números para lhe fazer companhia.
– Não são só números – respondeu Rose. – Eu gosto de astronomia. É
empolgante. E parece tão… seguro. Sem nada por perto por milhões de
quilômetros.
Mas, na noite anterior, ela não tinha se sentido solitária. Na noite anteri‐
or, quando tinha tomado a mão de Stephen e o beijado, ela se sentira valente.
Sem medo de que o mundo fosse rir dela, não quando ele estava ao seu lado.
Patricia apertou a mão de Rose de novo –, porém, dessa vez foi um aper‐
to duro e prolongado. Foi apenas porque ela parou de andar que Rose perce‐
beu que a intenção do gesto não era de conforto. Patricia estava tendo outra
contração.
– Patricia – falou Rose quando a irmã aliviou o aperto –, realmente acho
que deveríamos chamar Chillingsworth.
Capítulo oito
A Sra. Josephs tinha ido buscar água quente para Patricia, que lutava para fi‐
car acordada com o pequeno Isaac em seus braços, quando Rose percebeu
que Stephen não estava mais no quarto. Ela se retirou sem delongas, correu
até a escadaria e o avistou lá embaixo, encarando a porta da frente com uma
expressão confusa.
– Stephen – chamou ela.
Ele se virou, erguendo a cabeça. Parecia tão exausto quanto ela. Fazia
tempo que sua camisa perdera qualquer frescor: estava desabotoada no pes‐
coço, mostrando um triângulo de pele branca e pelos escuros e crespos.
– Já estou indo embora – disse ele com um sorrisinho – É só que percebi
que já estamos em plena luz do dia… e vai ser extraordinariamente chocante
se me virem saindo pela sua porta da frente. Ainda mais com essa aparência.
Ele apontou para si mesmo.
Rose acompanhou o gesto. As mangas estavam erguidas até os ombros,
mostrando uma quantidade chocante e deliciosa de pele. As calças estavam
amarrotadas, o que apenas as fazia se moldarem ainda melhor às coxas dele.
Sem um casaco, o tecido da camisa abraçava seus ombros – e, se ela se lem‐
brava das fofocas direito, por acaso ele não costumava praticar remo em
Cambridge? Pela aparência, era verdade.
E ela conseguia ver exatamente do que ele estava falando. Pantufas de
usar em casa, sem casaco. De fato, seria chocante.
– Ah, puxa. – Rose se pegou descendo as escadas até ele. – Puxa vida. En‐
tendo o que você quer dizer. Se sair assim, vai causar um belo de um tumulto.
Ele piscou uma vez… depois, muito devagar, começou a sorrir.
– Não pode ir embora antes de eu lhe agradecer.
– Ah, Rose. Não precisa disso.
Ela continuou a descer a escada.
– Precisa sim. Depois do que eu lhe disse ontem…
Uma batida forte veio da porta. Rose franziu o cenho – e então percebeu
que a Sra. Josephs estava ajudando a irmã lá em cima e que o Sr. Josephs ain‐
da não tinha voltado. Ela era a única que podia atender à porta, e Stephen es‐
tava parado ali, num estado chocante de vestimenta. Não que ela estivesse
muito melhor. Seu vestido estava arruinado, não apenas amassado, mas co‐
mo se tivesse passado o último ano enfiado nos fundos do guarda-roupa.
– Vá para os fundos – pediu ela a Stephen. – Rápido.
Ele lhe deu uma piscadela e sumiu.
Rose passou as mãos no vestido, o que não ajudou em nada. Era inútil,
então ela desistiu e abriu a porta assim mesmo.
Realmente não deveria ter ficado surpresa ao ver o homem que estava pa‐
rado ali. Afinal, ele havia prometido vir pela manhã. Mas ao avistar o Dr.
Chillingsworth, todas as emoções que havia escondido ao longo da noite bor‐
bulharam até a superfície – todo o medo, todo o desespero. Cada gota de pre‐
ocupação impossível que tivera que engolir voltara numa onda ofuscante.
– Dr. Chillingsworth – cumprimentou ela com a voz fria.
Ele olhou para ela por cima do nariz.
– Aqui estou, como prometido.
– O senhor chegou tarde demais. Patricia deu à luz há uma hora.
O rosto dele nem tremeu diante da novidade. Ele não parecia surpreso.
Não pediu desculpas pelas palavras odiosas da noite anterior.
– Ah, é mesmo? – perguntou em vez disso.
Rose sentiu suas mãos se cerrarem em punhos ao seu lado.
– O senhor disse que ainda não era a hora. – Não. Não era desespero o
que a estava preenchendo. Era uma fúria fria, que ameaçava dominá-la. – O
senhor disse que ela era uma mentirosa dissimulada…
Ele deu de ombros.
– Bem, havia certa chance de que eu estivesse enganado… sempre existe
essa chance. Mas imaginei que não apresentaria nenhum perigo. Mulheres do
tipo dela são como vacas. Mal precisam de ajuda para parir as crias.
Ele foi para o hall de entrada e tirou o casaco, alheio – ou talvez apenas
indiferente – ao som de indignação que Rose soltou.
– Acho que vou dar uma olhada agora.
Mentirosa dissimulada. Mulheres do tipo dela são como vacas . Era demais
– demais mesmo.
Rose deu um passo para perto dele.
– Quando o Dr. Wells partiu, ele pediu que eu ficasse no lugar dele, que
lhe contasse toda vez que ouvia o coração do bebê, que narrasse cada chute
que sentisse.
Não fazia muito tempo que ela segurara a mão da irmã, colocara as mãos
na barriga dela e empurrara a cabeça do filho por aqueles últimos centíme‐
tros. Não tinham precisado desse homem – mas poderiam ter precisado.
Desconcertava-a o que poderia ter acontecido caso as coisas tivessem sido só
um pouquinho piores. A ausência dele poderia ter custado a vida do bebê.
Ou a de Patricia. E, para ele, era apenas uma questão que podia ser ignorada
com um dar de ombros. Rose mal conseguia pensar com a raiva que a domi‐
nava.
– Em nome do marido da minha irmã, isso é para o senhor.
E, ao dizer tais palavras, ela lhe deu um soco no estômago. Ela sentiu o
golpe reverberar por todo o seu braço, doendo com uma gratificação absolu‐
ta. O ar dele saiu com força, e ele soltou um grunhido satisfatório.
– Isso é por ela. – Rose lhe deu outro soco. – E isso é por mim.
Ela ia enfiar o punho na barriga dele de novo, mas ele a segurou dessa
vez.
– Ora, sua…
– É melhor o senhor soltá-la.
As palavras vieram de trás de Rose. Ela sentiu um sorriso se abrir no ros‐
to – um sorriso lindo, impossível, gratificante.
Chillingsworth paralisou. Ele ergueu os olhos para Stephen, que aparece‐
ra no hall de entrada.
– E quem é o senhor?
– Alguém mais alto que o senhor – disse Stephen. – Mais forte que o se‐
nhor. Mais jovem que o senhor. E, nesse momento, mais zangado que o se‐
nhor também. Solte a Srta. Sweetly e saia daqui, antes que eu o segure no
chão para que ela possa espancá-lo.
O médico soltou o pulso de Rose. Ele deu um passo para trás, depois, trê‐
mulo, tirou o casaco do gancho.
– Agora caia fora – mandou Stephen.
Ele deu outro passo para a frente. Chillingsworth abriu a porta com tudo,
deixando uma rajada de vento frio entrar, depois, o mais rápido que era ca‐
paz, sumiu. A porta se fechou às suas costas.
Rose conseguia sentir a própria respiração ecoando num frenesi no hall
de entrada. Ela havia agredido um homem. Duas vezes. E ele tinha merecido.
E Stephen…
Ela se virou para ele. Stephen a olhava com uma expressão extremamente
intensa no rosto, uma expressão que fez o corpo todo de Rose formigar, da
cabeça aos dedos do pé.
– Stephen. – Ela deu um passo até ele. – Stephen.
Ele ergueu um dedo e o colocou nos lábios dela.
– Não prometa nada quando suas emoções estão intensas. Ou quando es‐
tiver exausta.
Por mais cansada que estivesse, Rose nunca se sentira tão convicta. Toda
a sua preocupação fora incendiada.
Não sabia ao certo quando isso tinha acontecido. Não fora quando ele se
sentara com a irmã dela. Nem quando concordara em acompanhá-la. Talvez
tivesse sido quando Chillingsworth a mandara embora, quando Rose não
soubera a quem recorrer… até saber. Ela soubera que a ajuda não estava a
milhões de quilômetros dali, mas na porta ao lado. Que ela apenas tinha que
esticar a mão e pedir, e seria dela.
Rose soubera. Tinha ido até Stephen, e ele a ajudara.
– Agora – falou ele –, você tem um casaco para me emprestar para que eu
esteja decente por tempo suficiente para voltar para casa?
Ela sorriu para ele.
– É claro. Tenho tudo de que você precisa.
Ela encontrou um dos casacos antigos de Isaac e um par de botas num
baú, depois os levou à sala. Stephen estava sentado no sofá, parecendo um
tanto atordoado. Ele sorriu para ela, cansado.
– Aqui – disse Rose. – Me deixe ajudar você.
Ambas as peças ficaram grandes demais no corpo de Stephen. Ele deixou
que Rose abotoasse o casaco com mãos trêmulas. Ela o tinha beijado, o tinha
deixado tocá-la. Mas, de alguma forma, esse parecia o ato mais íntimo que já
tinham feito, o tipo de favor que esposas faziam para maridos.
Quando ela fechou o último botão, ergueu os olhos para os dele. Espera‐
ra, talvez, ver um reflexo de sua própria emoção.
Em vez disso, o olhar dele estava duro e completamente impossível de ler.
– Você está exausto.
Mas não era apenas isso.
– Estou contemplando – respondeu ele, devagar.
– Venha. Vou levar você para casa, onde você pode descansar.
Ele não resistiu quando ela o puxou pelo braço. Rose vestiu o próprio ca‐
saco, abriu a porta da frente e olhou rápido para os dois lados da rua. Não
havia nada além de amontoados de neve.
– Rápido – disse-lhe ela –, enquanto não tem ninguém.
Ela o acompanhou. Talvez fosse porque sentia a necessidade de garantir
que ele chegasse em segurança; talvez fosse porque ele parecia peculiarmente
contido e Rose temesse que ele não estivesse pensando direito. Ele destran‐
cou a própria porta e olhou para ela.
– Você tinha razão – disse Stephen. – Eu não entendia como as coisas po‐
deriam ser difíceis para você… não até agora, no final.
O medo que ela estivera tentando não sentir varreu o corpo de Rose. Ele
a tinha impedido de fazer uma declaração. É claro que tinha; ele vira o que
Chillingsworth dissera e fizera, tinha entendido todas as afrontas que ela en‐
frentaria, pequenas e grandes. E é claro que tinha mudado de ideia. Ela olhou
para Stephen, arrasada.
– Os irlandeses são conhecidos como bêbados violentos – continuou ele.
– Viciados em jogo, sem noção de responsabilidade e seres humanos terrí‐
veis, por completo. Mas pelo menos somos considerados seres humanos.
Rose não deixaria seu coração se partir. Não ali, não na neve, não com o
filho recém-nascido da irmã na porta ao lado. Ela ficaria ali e o fitaria nos
olhos. Ela…
Ela engasgou e abaixou a cabeça.
– Mas tem uma coisa que você não entende – disse ele. – Quando eu falei
que amava você, não quis dizer que lhe daria as costas quando percebesse
que sua vida era difícil. O fato de que eu entendo como as coisas podem ser
difíceis significa que quero ficar ainda mais ao seu lado e tentar com mais
afinco ainda melhorar a situação.
Rose mal conseguia acreditar. Ergueu o rosto para o dele, seu coração
martelando no peito.
E então ele sorriu para ela, e todos os seus medos a abandonaram.
– Eu amo você. Me deixe lhe comprar telescópios e beijá-la por metade
da noite. E, quando as coisas ficarem difíceis, me deixe melhorá-las um pou‐
co.
Ela olhou para Stephen. Sentia-se atordoada, completamente esgotada.
Então, disse a primeira coisa que lhe veio à mente, o que por acaso foi…
– Sabia que o Dr. Maro, na Itália, calculou que a probabilidade de a Terra
ser atingida por um asteroide é de uma chance em 250 milhões?
Ele piscou.
– Não. Eu não sabia disso. É… relevante?
– Sim.
E então Rose esticou a mão, abriu a porta dele e, antes que a coragem a
abandonasse, entrou.
Ele a seguiu, coçando a cabeça, confuso.
– Sim – repetiu ela. – É muito relevante. Veja bem, a chance de a Terra
ser atingida por um asteroide é 160 vezes maior do que a chance de você me
seduzir. E, ainda assim… – Ela engoliu em seco, erguendo os olhos para ele.
– Estou seduzida. Completamente. A única explicação é que todos estamos
prestes a perecer.
Ele baixou os olhos para ela, soltando o ar com um sibilo.
– Rose. Querida.
– E já que vamos morrer de qualquer jeito… – Sua garganta parecia seca.
– Quer… me levar para a cama?
Stephen a olhou. Realmente a olhou. Seus olhos estavam escuros, e uma
luz dançava neles. Ele se curvou sobre ela e traçou sua bochecha com um de‐
do.
– Rose. Tenho apenas uma pergunta.
Ela assentiu.
– A probabilidade funciona mesmo assim?
As bochechas dela arderam, e ela abaixou a cabeça.
– Não – lamentou, sentindo-se um tanto envergonhada. – Não funciona.
Sinto muito, eu ia lhe contar depois. E sei que fazer uma coisa dessas sob fal‐
sos pretextos… – Ela soltou uma risadinha. – Sei que não faz sentido. Mas eu
amo você e… e… acho que, se vamos fazer isso, preciso aprender a ser um
pouco ousada. – Ela engoliu em seco. – E em algumas horas meus pais esta‐
rão aqui, e depois que nós estivermos noivos vai levar quatro meses até nos
deixarem ficar a sós de novo, e…
– Quatro meses! Não, deixe isso de lado por enquanto. Rose, você acabou
de mentir para mim sobre matemática para me levar para a cama? – Ele riu.
– Acho que nunca me senti tão lisonjeado. – Ele pegou sua mão. Seus dedos
estavam quentes contra os dela, e todo o corpo de Rose se acendeu com o to‐
que dele. – Venha, Rose.
Ela o seguiu escada acima.
A cama dele era de madeira sólida, coberta com uma colcha de vários
tons de verde. Ele parou no batente da porta do quarto.
– Tem certeza, Rose?
O coração dela martelava.
– Tenho.
Ela não sabia o que esperar. Mas Stephen não se lançou sobre ela imedia‐
tamente. Não tirou suas roupas. Em vez disso, virou-a para si, colocou um
dedo debaixo do queixo dela e a beijou.
Era um beijo doce, intenso – reconfortante em sua própria maneira. E,
ainda assim, a mão dele se esgueirou por ela, e dedos tocaram sua nuca. Sua
pele estava completamente sensível.
– Olá, Rose – murmurou ele contra seus lábios.
Ela sorriu e inclinou a cabeça para trás.
– Stephen. Eu amo você.
– Ah, que bom.
O toque dele era ao mesmo tempo gentil e muito firme, acariciando a ba‐
se da nuca de Rose. Ela nem percebeu que ele estava desabotoando os botões
que lhe desciam pelas costas até sentir o ar frio em sua pele. Mas ele não pa‐
rou de beijá-la, e, aos poucos, ela sentiu todo o seu corpo ganhar vida.
Stephen ergueu a cabeça por um segundo – apenas por tempo suficiente
para deslizar o vestido dela pelos ombros. Rose sentiu o tecido se amontoar a
seus pés. E então Stephen se aproximou de novo. Porém, em vez de beijá-la
na boca, ele curvou a cabeça e pôs os lábios em seus ombros. Dedos se entre‐
laçaram com os cordões do espartilho que Rose tinha amarrado na frente,
abrindo-os com destreza, soltando-os… e depois afastando os aros e o tecido
pesado do corpo dela.
Quando ele tomou um de seus mamilos na boca através da chemise, ela
jogou a cabeça para trás. Sua respiração estava cada vez mais rápida. E, ainda
assim…
Ela abriu os olhos. Stephen estava focado nela, suas mãos tocando-a com
gentileza. Mas ela não queria apenas se entregar para ele. Queria ser corajosa
e, talvez, um pouco ousada. Então, bem devagar, Rose esticou as mãos e as
colocou na braguilha das calças dele. Os olhos de Stephen se fecharam en‐
quanto ela sentia o comprimento rijo dele através do tecido.
– Meu Deus, Rose.
Isso era o que ela queria fazer: não apenas se entregar a ele, mas possuí-lo
também. Suas mãos não tinham tanta prática quanto as dele quando desabo‐
toaram seu vestido, mas ele não pareceu se importar. Pressionou os quadris
contra a mão dela, incentivando-a enquanto ela tirava sua calça. A roupa de
baixo foi a próxima, revelando um membro longo e pálido que já estava cres‐
cendo sob a atenção dela. Rose passou um dedo pela ponta, e ele soltou um
grunhido curto.
E então ela ergueu os olhos para ele.
– Aí está você – disse Rose, sentindo os lábios se curvarem num sorriso. –
Stephen Shaughnessy, Homem de Verdade.
Ele soltou uma risada, porém, antes que pudesse dizer qualquer coisa, an‐
tes que ela pudesse perder a coragem, ela o tomou completamente na mão,
acariciando-o por todo o comprimento. Era a coisa mais incrível do mundo,
o órgão masculino: responsivo, movendo-se muito de leve a cada toque dela.
A respiração de Stephen ficou irregular, e seu membro pulsou nas mãos dela,
ficando mais duro e mais longo.
– Rose. – Ele colocou uma das mãos no ombro dela. – Me deixe ter a mi‐
nha vez com você, meu amor.
Ela ergueu os olhos para ele. E então, com extrema gentileza, Stephen a
deitou na cama. O coração de Rose batia loucamente; ela quase não conse‐
guia acreditar que estava prestes a fazer isso.
Mas depois ele se deitou sobre ela. Apoiou o peso no corpo de Rose, mui‐
to, muito devagar, até que seus quadris se encaixassem, até que os seios dela
roçassem no peito dele através da última camada de roupa. Stephen a beijou
primeiro no ombro, depois no queixo, até que, erguendo a cabeça dela, a bei‐
jou nos lábios. Esse beijo não teve fim. Ela se deixou afundar nele enquanto o
corpo de Stephen se acomodava sobre o dela. Estavam quadril com quadril,
separados apenas pelo tecido transparente da chemise de Rose. Era, ao mes‐
mo tempo, demais e não o suficiente. Seus corpos acharam um ritmo juntos,
um puxa-e-vai como batimentos do coração, como a onda da gravidade en‐
tre eles.
Stephen se afastou dela, apenas o suficiente para tirar a chemise de Rose,
expondo o corpo dela ao ar gelado. Ele tirou a própria camisa, relevando
músculos rijos. E, por fim, a fitou nos olhos.
– Quatro meses – repetiu, balançando a cabeça. – Vamos mesmo ter um
noivado de quatro meses?
– Vai ter que ser longo o bastante para evitar qualquer fofoca.
– Quatro meses. – Ele soltou um barulhinho, mas sorria para ela. – Então
vou pegar uma camisa de vênus e seremos bem cuidadosos.
Ela não sabia ao certo o que responder.
Ele se afastou dela por um momento enquanto procurava algo na mesa
de cabeceira. Colocou aquele negócio no próprio membro e depois se virou
para ela.
– Agora é a minha vez de preparar você.
Stephen avançou nela. Porém, em vez de se deitar sobre Rose de novo,
abriu as pernas dela e depois, muito devagar, deslizou os dedos entre elas.
– Meu Deus, como você é linda. Linda e molhada para mim. E mal posso
esperar para sentir seu gosto.
E foi o que fez. Ele a tomou com a boca, e Rose sentiu o toque confiante
da língua dele. Ver Stephen fazer isso, provando-a, encontrando aquele botão
ali, era a coisa mais chocantemente íntima que ela já tinha experienciado,
muito além de sua imaginação. Ele deslizou um dedo para dentro dela, e a
respiração de Rose falhou. Entre a mão e a língua dele, ela não conseguia
pensar, apenas experienciar um prazer delicioso e crescente. Seu corpo pare‐
cia inquieto. Ela o empurrou contra ele, querendo…
Ele se afastou muito de leve. E, em seguida, enquanto o corpo dela ainda
estava desesperado por mais, ele fez um caminho de beijos até os quadris de‐
la, depois até o umbigo. Sua boca deixou uma marca quente na barriga de
Rose, subindo pelo corpo dela costela a costela, até chegar à curva de seu
seio.
Stephen tomou um mamilo na boca de novo enquanto começava a mo‐
ver o dedo dentro dela. Esses dois pontos de prazer – tão deliciosos e com‐
pletamente quentes – a deixaram frenética. Ela estava perto de algo, tão per‐
to, bastava Stephen…
Mas Stephen não a deixou alcançá-lo. Ele retirou a mão. Rose quase pro‐
testou, mas ele deitou sobre ela de novo. Dessa vez, posicionou o membro
entre as pernas dela.
– Rose, querida.
Ela ergueu os olhos para ele.
– Eu amo você – disse Stephen.
E deslizou para dentro dela. Rose esperara que fosse doloroso e bruto,
porém, àquela altura, já estava molhada e pronta para ele. Houve uma pica‐
da… ela prendeu a respiração… ele parou…
E ela conseguia sentir a ponta dele dentro dela, quente e dura, conseguia
senti-lo sobre seu corpo, os músculos tensionando enquanto ele se segurava.
Ela esticou uma das mãos, hesitante, e a colocou no peito dele. Muito deva‐
gar, desceu os dedos pela pele. Stephen fez um som na garganta, e seus qua‐
dris flexionaram. Ele deslizou mais um centímetro para dentro dela, depois
outro, movendo-se devagar até que a tivesse preenchido por completo. Seus
corpos estavam unidos intimamente. Ela ergueu os olhos para ele…
E Stephen sorriu, descendo a mão para roçar a bochecha dela.
– Bem – disse ele. – É melhor eu garantir que você goste disso. Porque
daqui a quatro meses, vou possuí-la de novo e de novo e de novo.
Ele mexeu os quadris, saindo dela e depois deslizando para dentro de no‐
vo – repetindo e repetindo, até que o ritmo que encontraram antes tomasse
os dois por completo. Até que a pele de Rose parecesse pegar fogo, até que as
mãos dele tomassem seus quadris. Ela sentiu se render ao redor dele. Stephen
rangeu os dentes e, bem quando ela achou que não aguentava mais, arfou e
investiu nela uma última vez.
Depois, eles flutuaram. Mal tinham dormido na noite anterior, e Rose
não conseguia ficar de olhos abertos. Ela adormeceu sentindo os dedos dele
em suas têmporas e ouvindo o murmúrio suave da voz de Stephen.
– Puxa vida – lamentou ele. – Quatro meses.
– Quatro meses.
Eram seis da tarde, e os pais de Rose – que tinham viajado através de gelo
e neve para ver o primeiro neto – estavam sentados à mesa de jantar, franzin‐
do a testa para Stephen Shaughnessy.
– Quatro meses – repetiu o pai dela. – Tem algum motivo para o noivado
ser tão curto?
Eles já tinham interrogado Stephen sobre a situação financeira e familiar
dele. O pai de Rose murmurara quando ele dissera que era irlandês, depois fi‐
zera uma cara duvidosa quando ele mencionou que trabalhava para um jor‐
nal. Rose dera um tapa no pai, mandando-o se comportar… e, quando
Stephen deu uma resposta atrevida, fez a mesma coisa com ele. Mas Stephen,
na verdade, até que se comportou de um jeito quase respeitável.
Se alguém não mencionasse alguma coisa logo, os pais teriam a maior
surpresa da vida deles quando descobrissem as coisas que Rose não lhes con‐
tara. Ela realmente teria que mostrar uma das colunas de Stephen para eles.
Se o pai as descobrisse por conta própria…
– Na verdade – falou Stephen –, eu gostaria que o noivado fosse mais
curto.
Certo. Uma forma excelente de introduzir o tópico da reputação dele pa‐
ra os pais de Rose. Ela conseguiu conter a careta.
O pai dela enrijeceu, fuzilando Stephen com os olhos. Mas o noivo dela –
e como essa palavra era doce – apenas se recostou casualmente na cadeira,
como se não tivesse anunciado a todos no cômodo – aos pais de Rose, que o
observavam, chocados, de olhos arregalados – que ele queria levá-la para a
cama, e logo.
E, realmente, os pais deveriam ter adivinhado isso, considerando o fato
de que ele queria se casar com ela, mas às vezes eles eram deliberadamente
cegos a coisas do gênero.
– Vejam bem – acrescentou Stephen, com um tom devoto –, pelo que en‐
tendi, o Dr. Wells estará de volta a qualquer dia. Quando ele estiver em casa,
não há motivo para Rose continuar aqui. E depois que a irmã dela se recupe‐
rar do parto… Bem, imagino que o Dr. e a Sra. Wells gostariam de um pouco
de privacidade.
– Rose virá ficar conosco em casa, em Londres – rosnou o pai. – É claro.
– Mas então como ela vai trabalhar com o Dr. Barnstable? – perguntou
Stephen. Ele esticou a mão e segurou a dela por debaixo da mesa. – Ela gosta
tanto de trabalhar com ele, e eu odiaria que minha Rose fosse privada de algo
que gosta apenas porque eu não estava disposto a me comprometer com o
matrimônio num prazo razoável.
Ah, que esperto.
O pai de Rose soltou uma bufada.
– Ah, o senhor é bom. – Ele olhou com suspeita para o futuro genro. –
Um pouco bom demais.
– Ah, não – comentou Stephen angelicamente. – Sinto dizer que não. O
senhor provavelmente vai ouvir tudo a respeito disso muito em breve. É o
único motivo para eu concordar com quatro meses no fim das contas… por‐
que, se eu insistisse em três semanas, a fofoca seria acirrada demais.
O pai de Rose suspirou, porém, antes que pudesse dizer mais alguma coi‐
sa, a porta da frente se abriu.
Rose ouviu pés batendo, um baque abafado – e então um homem apare‐
ceu na sala dos fundos. Sua pele negra estava mais desgastada do que da últi‐
ma vez que ela o vira. Ele usava os cabelos cortados rente à cabeça, e o leve
tom cinzento nas têmporas o fazia parecer ainda mais solene. Ele usava uma
faixa vermelha por cima da manga do uniforme.
– Rosie? – Ele piscou, olhando ao redor, confuso. – O que está acontecen‐
do? Onde está Patricia?
Rose soltou a mão de Stephen e deu um pulo, soltando um gritinho de
alegria.
– Isaac! Você voltou. Ah, você voltou. Patricia já teve o bebê…
– Quê?
– E ela está bem, e ele está bem… você deve ir vê-los agora.
– Espere – dizia o pai dela. – Ainda não terminamos aqui. Ainda não
concordei.
– Papai – falou Rose –, não deixe ele enganar o senhor. É um patife e um
ousado. – Ela deu uma piscadela para o pai. – E, quando o senhor conhecê-lo
bem, vai gostar muito dele. Prometo.
Stephen encontrou o olhar dela e depois, muito devagar, sorriu.
– Ah! – exclamou, balançando a cabeça. – Adoro quando me diz palavras
doces.
Epílogo
Dezembro de 1882
Caro Homem,
Não desejo saber o que um homem qualquer quer numa mulher.
Desejo saber o que o senhor quer numa mulher. Me diga, como é
que uma mulher como eu poderia conquistá-lo?
Enrubescida em Bedford
Cara Enrubescida,
Ao longo dos anos que escrevi esta coluna, recebi literalmente
milhares de cartas me fazendo essa pergunta. Até agora, nunca res-
pondi a nenhuma.
Não procuro nada de muito especial numa mulher. Gosto de ma-
temática, de astronomia e de mulheres que conseguem multiplicar
números de nove dígitos de cabeça. A parte difícil foi convencê-la
a sentir o mesmo.
É melhor que todas vocês lhe desejem sorte. Acho que ela vai
precisar.
Sinceramente dela,
Stephen Shaughnessy
Homem Comprometido
Obrigada!
Obrigada por ter lido O vizinho da Srta. Rose. Espero que tenha gostado!
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Resenhas ajudam outros leitores a encontrar livros. Agradeço por todas
as resenhas, sejam positivas ou negativas.
O vizinho da Srta. Rose é um conto da série Os Excêntricos e foi publi‐
cado apenas no formato e-book, assim como os outros contos O caso
da governanta e O passado da Srta. Lydia. Espero que goste de todos!
Nota da autora
A ideia para esta história veio de duas fontes. A primeira foi um curso em
mecânica quântica que fiz em 2001, ministrado pelo Dr. Jerzy Cioslowski. O
Dr. Cioslowski era o tipo de pessoa que contava um milhão de histórias
alheias enquanto ensinava. Uma dessas histórias era de Hartree, um dos pri‐
meiros gigantes dos cálculos de mecânica quântica. Sua maior vantagem,
disse Cioslowski, era que seu pai era um calculista: ele podia fazer todos os
cálculos para ele, permitindo que Hartree tivesse liberdade para fazer a mai‐
or parte do trabalho.
Antigamente, ele nos disse, esses cálculos eram feitos por uma pessoa.
Na verdade, a maioria deles era feita por mulheres. Ele falou isso – deixando
metade da turma (de mulheres) indignada – e seguiu em frente de maneira
alegre.
Não se sabe muito sobre as histórias das mulheres calculistas. Elas se
destacaram durante a Segunda Guerra Mundial, quando serviram no Proje‐
to Manhattan, ajudando a decifrar o código da máquina Enigma alemã. Mas
essas mulheres existiram antes disso. Pouco se fala sobre os calculistas, seja
homem ou mulher, então tive que complementar.
A outra fonte de inspiração para essa história foi uma mulher que real‐
mente existiu. Seu nome era Shakuntala Devi, e ela era conhecida como um
computador humano por sua habilidade de calcular raízes cúbicas comple‐
xas de cabeça e em questão de segundos. Sua família era modesta – seu pai
trabalhava no circo –, mas, além de ser um gênio na matemática, ela tam‐
bém escreveu livros de receitas, não ficção sobre homossexualidade, não fic‐
ção sobre aprender matemática e romances (muitos dos quais estão disponí‐
veis hoje em e-book). Ela até entrou na política.
No que se refere ao trabalho que Rose estava fazendo, acabei deletando
uma boa parte da astronomia e da matemática do livro durante a escrita.
(Tenho certeza que é uma baita surpresa saber disso.) Uma das coisas que
deletei foi o motivo para Rose estar usando a Lei da Gravidade para calcular
a trajetória do Grande Cometa. Isso na verdade foi um grande e notório
problema da astronomia da época: todo mundo sabia que cometas não obe‐
deciam apenas às Leis da Gravidade ao fazerem seu trajeto ao redor do Sol, e
ninguém conseguia descobrir o motivo disso. Era uma fonte de séria discór‐
dia. Pessoas inventaram todo tipo de teoria para a fonte dessa discrepância.
A resposta final – desgaseificação assimétrica de materiais do cometa à me‐
dida que ele se aproximava do Sol e alguns efeitos relativistas – só foi desco‐
berta depois de muitos anos. O objetivo de Rose nos cálculos seria tentar
encaixar a Teoria da Gravidade nas outras teorias conhecidas, a fim de veri‐
ficar qual delas se aproximava mais da realidade.
Sim, em certo ponto havia uma explicação prolongada disso no livro.
Sim, eu a deletei.
Quanto ao marido de Patricia, a explicação breve de Rose também é fi‐
dedigna. Africanus Horton, o primeiro médico negro da Inglaterra, foi pa‐
trocinado pelo editor do African Times. A partir disso, vários outros homens
negros receberam patrocínio com regularidade, muitos dos quais se casaram
com mulheres inglesas (algumas brancas). Apesar de não termos estatísticas
disso por cor da pele, em 1882 a Inglaterra já tinha provavelmente a mesma
quantidade de médicos negros formados que o número de duques. Também
havia uma série de famílias negras como a de Rose – comerciantes, advoga‐
dos e similares. Não vou fingir que havia muitos deles em proporção à po‐
pulação total, mas, em especial nas áreas do país próximas aos grandes por‐
tos – Liverpool, Londres, Manchester e afins –, havia concentrações conhe‐
cidas de pessoas não brancas. Sou grata ao livro Black Victorians, Black Vic‐
toriana pelo trabalho de investigar os registros históricos dessa questão.
Por fim, um comentário breve sobre o trânsito de Vênus. Basicamente,
tudo o que Rose diz sobre ele é verdade. Fiz apenas uma alteração para os
propósitos da história. Na realidade, a neve do dia 6 de dezembro começou a
cair antes do início do trânsito e, portanto, ele não foi visto em Londres nem
por um único momento. Atrasei a nevasca por algumas horas e dei a Rose
aquela primeira visão do fenômeno. Espero que me perdoem por essa pe‐
quena alteração.
Agradecimentos
A história de alguns livros surge naturalmente, de forma que quase não pre‐
ciso me esforçar para escrevê-los. Outros exigem um trabalho substancial‐
mente maior da minha parte para encontrar a história. Esse foi um livro que
eu achei que entendia… até começar a escrevê-lo e descobrir que a história
que eu quisera contar não era nada parecida com a história que surgia nas
páginas. Levei mais tempo para organizá-lo do que eu esperava.
Mas eu tinha prometido a meu marido que, pela primeira vez em cinco
anos, quando saíssemos de férias, eu não teria nenhum prazo a cumprir. (O
número de vezes que ele saiu e teve que entreter a si mesmo enquanto eu me
debatia com um manuscrito num quarto de hotel é enorme. Aconteceu
em… bem, em Londres, no Havaí, em Chamonix, em Nova York, em Chica‐
go, enquanto visitávamos os pais dele, enquanto visitávamos os meus
pais…) As pessoas que me ajudaram com este livro o fizeram sob a pressão
de um prazo extraordinário: Robin Harders, Keira Soleore, Martin O’Hearn,
Martha Trachtenberg, Maria Fairchild, Rawles Lumumba… Todas elas pe‐
garam este livro e o devolveram em tempo absolutamente recorde.
Este é o último livro da série Os Excêntricos, e é estranho deixá-la ir em‐
bora. Essa série me trouxe milhares e milhares de novos leitores e me permi‐
tiu largar o emprego fixo. Pode parecer dramático demais dizer que mudou
minha vida – mas o que mais posso dizer de algo que fez justamente isso? A
todo mundo que curtiu essa série: muito obrigada por mudar minha vida.
Muito obrigada por tudo.
Espero que eu possa fazer jus à minha próxima série.
Sobre a autora
Seus livros já figuraram na lista de mais vendidos do The New York Times e
do USA Today e ela foi finalista do prêmio RITA.
OS EXCÊNTRICOS
O caso da governanta (apenas e-book)
O segredo da duquesa
O passado da Srta. Lydia (apenas e-book)
O desafio da herdeira
A conspiração da condessa
O escândalo da sufragista
O vizinho da Srta. Rose (apenas e-book)
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