Você está na página 1de 13

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMI-ÁRIDO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS E


HUMANAS - CCSAH

DISCIPLINA: TÓPICOS ESPECIAIS EM TEORIA DO DIREITO


PROFESSOR: THIAGO ARRUDA

NOTA DE AULA 01

ASSUNTO: O QUE É UMA TEORIA CRÍTICA DO DIREITO

O QUE É UMA TEORIA CRÍTICA DO DIREITO

Leituras relativas a esta aula e à próxima:

1. O que é uma teoria crítica do direito

• Antônio Carlos Wolkmer – Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico – p. 25-60

2. A crítica do direito em Marx

• Allyson Mascaro – Introdução à filosofia do direito – dos modernos aos


contemporâneos – p. 92-131

1. Problematização

v Preliminarmente, pode-se chamar de uma teoria crítica do direito aquela que põe em
questão e se interroga sobre os fundamentos sociais do direito.

v Ao fazê-lo, a crítica do direito questiona, especialmente, o conjunto das “ficções


jurídicas”, tratadas, comumente, como fatos, como simples dados da realidade.

v O que está implícito nisso é que a teoria do direito, no geral, é uma teoria que opera
com ficções técnico-políticas, para obter um certo resultado na distribuição da
justiça, dos bens e da aplicação do direito.
v No entanto, esse caráter ficcional da teoria do direito não é, na maioria das vezes,
esclarecido pelo próprio direito posto (lei, doutrina, jurisprudência). Só um
esforço crítico pode demonstrá-lo.

v Exemplos rápidos para o exercício da crítica da legalidade e do discurso jurídico:

a. Vadiagem como contravenção penal;


b. Conceito de “mulher honesta”;
c. Extinção de punibilidade pelo casamento com a vítima no caso de estupro;
d. Direito do homem a ter relação sexual no casamento e estupro;
e. Homem como chefe da sociedade conjugal;
f. A criminalização da capoeira no Brasil;
g. A discussão doutrinária sobre a validade dos Atos Institucionais na Ditadura
Militar.
h. Detenção x posse de bem público;
i. Educação como serviço essencial em meio às discussões sobre direito de greve
j. Teoria dos atos do comércio e Revolução Francesa.
k. Retroatividade da lei atingindo direitos “incompatíveis com o momento social”.
l. Os direitos humanos como produto da “evolução histórica” etc.

v O que esses elementos indicam? Indicam que a roupagem que a teoria do direito
busca assumir, enquanto neutra, autorreferente, autossustentada, apolítica, é
precária.

b. Conceito de mulher honesta

• No direito penal brasileiro, até 2005 (Lei 11.106/2005), determinados tipos de


ilícito penal se ligavam ao conceito de “mulher honesta”. Por exemplo:

• Rapto violento ou mediante fraude:

Art. 219, CP. Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou
fraude, para fim libidinoso;

Pena – reclusão, de dois a quatro anos.

• A posição da doutrina, de acordo com o importante penalista, que foi também


Presidente de uma Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal em
1969, Nelson Hungria. Livro publicado em 1981.

“A vítima deve ser mulher honesta, e como tal se entende, não somente aquela
cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão
também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos
bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher
francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet
(à disposição da lascívia de muitos), ainda não tenha descido à condição de
autêntica prostituta”. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega uns e outros, por
interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta – com ou sem
dinheiro recebido). Não perde a qualidade de honesta nem mesmo a amásia
(equivalente à concubina), a concubina, a adúltera, a atriz de cabaré, desde que
não se despeça dos banais preconceitos ou elementares reservas de pudor”
(HUNGRIA, LACERDA & FRAGOSO, 1981).

• A posição da doutrina, de acordo com Damásio de Jesus. Livro publicado em


1999.

Damásio de Jesus (1999): “Mulher honesta é aquela que se conduz pelos


padrões aceitos pela sociedade onde vive. É a que mantém a conduta regrada,
honrada e decente, de acordo com os bons costumes. Não se exige, todavia, um
comportamento irrepreensível, mormente dentro dos padrões de liberdade
sexual predominantes. Pautando-se a mulher pelo mínimo de decência exigido
pelos nossos costumes, será́ honesta”.

c. Extinção de punibilidade pelo casamento com a vítima no caso de


estupro.

• Além disso, crimes sexuais deixavam de ser punidos no caso de a vítima se casar
com o acusado. Isso foi mantido mesmo com a Reforma do CP em 1984. Cai
apenas em 2005. Art. 107, VII, CP: estupro (referência ao Capítulo I do Título
VI da Parte Especial do CP).

Art. 107 – Extingue-se a punibilidade: (...)

VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes,
definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;

VIII – pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso
anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a
ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal
no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração.

PARTE ESPECIAL
TÍTULO VI
CAPÍTULO I
DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL
(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Estupro
Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça:

Pena - reclusão, de três a oito anos.

d. Direito do homem a ter relação sexual no casamento e estupro.

• O direito do marido a ter relações sexuais com a mulher, também de acordo com
Hungria:
Nelson Hungria e Romão Lacerda (1959): “Questiona-se sobre se o marido
pode ser, ou não, considerado réu de estupro, quando, mediante violência,
constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negativo.
O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra
matrimonium é recíproco dever dos cônjuges. (...) O marido violentador, salvo
excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à
violência física em si mesma (...), pois é lícita a violência necessária para o
exercício regular de um direito. É bem de ver que solução diversa tem de ser
dada no caso em que a mulher se recuse à cópula por achar-se o marido
afetado de moléstia venérea. Já aqui, o marido, ao invés de pretender exercer
um direito, está incidindo na órbita do ilícito penal (art. 130 do CP)”.

• Damásio de Jesus, em 2012:

Damásio de Jesus (2012): “Para nós, o marido sempre pode ser sujeito ativo do
crime de estupro contra a própria esposa. Justificávamos lembrando que, embora
com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não
autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a
violência física ou moral que caracteriza o delito de estupro. Não fica a mulher,
com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a
manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor
de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual, desde que tal negativa
não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não
consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou
grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela
tenha justa causa para a negativa”.

e. Homem como chefe da sociedade conjugal.

Art. 233, CC/1916. O marido é o chefe da sociedade conjugal.

Compete-lhe:

I. A representação legal da família.


II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao
marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do
pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311).
III. direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 36 e 233, nº IV).
IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do
tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III).
V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277.

• Apenas em 1962, com o chamado “Estatuto da Mulher Casada” (Lei 4.121/62),


a mulher obteve liberdade para trabalhar.
• O Estatuto, no entanto, manteve o homem como chefe da sociedade conjugal.

f. A criminalização da capoeira no Brasil.

CP/1890 – CAPITULO XIII


DOS VADIOS E CAPOEIRAS
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que
ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que
habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou
manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes:

Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias.

(...)

Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza
corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com
armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando
tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor
de algum mal:

Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.

• O samba era criminalizado através da vadiagem.


• Calos nos dedos, porte de pandeiro, violão.
• Com que isso se parece nos dias atuais?
• Funcionamento da Polícia e da Justiça. Condenações com base unicamente na
palavra do policial – entendimentos atuais do STJ. Prisões e violências com base
na rotulação de jovens negros e pobres.

v Alguns dados sobre a Justiça no Brasil.


• 3 mulheres Ministras do STF, entre 169 no total, desde 1891: Ellen Gracie, Rosa
Weber, Cármen Lúcia. Ellen Gracie chegou em 2000 como a primeira mulher no
Supremo.

• 3 Ministros negros: Pedro Augusto Carneiro Lessa (1907-1921) Hermenegildo


de Barros (1919-1937), Joaquim Barbosa (2003-2014).

• 14,9% dos juízes são negros/as. Na população em geral, negros (pretos e pardos)
são 56%.

• Apesar de serem maioria da população (51.6%), as mulheres representam 38,8%


do Poder Judiciário.

• Primeiro Senador negro: 1991. Primeira Senadora negra: 1995.

• Negros ocupam 26% do CN.

• Como isso impacta a produção e a interpretação do Direito?

• Seja numa interpretação literal ou mais complexa, frequentemente a


interpretação jurídica esconde os seus pressupostos políticos.

• Na interpretação literal, torna-se uma justificação pura e simples da lei, como


vimos nos casos acima.

• Em outros casos, o intérprete esconde suas preferências políticas através de


princípios e conceitos jurídicos.

• Em todo caso, as opções políticas do julgador são apresentadas como uma


técnica, e não como política.

• Em seu aspecto político, ela se liga fundamentalmente ao campo do conflito


social – valores e interesses.

• Quais são os interesses dos juristas (agentes públicos ou privados)?

a) Manter/ampliar o próprio poder e o poder das próprias instituições que integram.


b) Economizar trabalho.
c) Ganhar mais dinheiro (mais poder).
d) Manter/ampliar prestígio/reputação.

• Não se quer dizer com isso que os juristas não tenham “consciência cívica”, que
não busquem ideais mais elevados como a justiça.
• Mas se quer dizer que: 1) os juristas têm diferentes compreensões sobre o que
seja justiça; 2) a própria noção do que é justo é influenciada pelos interesses do
jurista.

• Como essa noção, a noção de que juízes, advogados, promotores, professores


agem em interesse próprio e escondem as raízes políticas de suas atividades,
influencia a forma como entendemos o direito, a interpretação jurídica, a
aplicação?

• Quantos professores negros, homossexuais você teve? Com quantos juízes


negros, advogados negros, promotores negros você estagiou?

v O que se pode perceber, portanto, é que o discurso legal, judicial e doutrinário


comumente oculta suas próprias raízes.

v Ao tornarem-se jurídicas, certas ideias e práticas socialmente vigentes são cobertas


pelo verniz do interesse geral, do bem comum e da ordem social, no âmbito
político; do bom e do justo, no aspecto moral; do científico e do neutro, no
âmbito epistemológico.

v Ligam-se assim à ordem política, moral e epistemológica, recebendo um nobre


discurso de justificação que nos afasta de seus fundamentos histórico-sociais.

v Uma crítica da dogmática jurídica.

v Dogmática jurídica: inafastabilidade dos pressupostos; técnica decisória: “a


dogmática não questiona suas premissas, porque elas foram estabelecidas (por um
arbítrio, por um ato de vontade ou de poder) como inquestionáveis” (TÉRCIO
FERRAZ JR.).

v A dogmática jurídica é uma tecnologia de controle social, através da qual se


distribuem bens e uma certa forma de justiça.

v O discurso jurídico traz uma definição das relações sociais que serve a uma
tecnologia de controle social. Ele não explica propriamente como essas relações
sociais funcionam, mas, ao mesmo tempo, confunde-se com essa explicação.

v A crítica do direito deve funcionar, portanto, como um permanente processo de


dessacralização e deciframento do discurso jurídico – legal, doutrinário,
jurisprudencial.

v O que importa à crítica é compreender como se produzem as verdades no direito;


porque e como algo se torna – e deixa de ser – uma verdade jurídica.
v Pode-se indagar: o que o pensamento jurídico crítico demanda, no fundo, então?

a. Um discurso jurídico que, a todo tempo, deixasse claro seus pressupostos


políticos? No geral, não.

b. Um discurso jurídico livre de toda política, de todo interesse econômico, de todo


interesse de um segmento social específico? Neutro? Também não.

c. O fim do direito? Em alguns casos, sim. Veremos em quais termos isso ocorre.

v Quanto ao que demandam, as diferentes correntes críticas terão diferentes respostas.

a. Há aquelas que se contêm na denúncia, no deciframento do direito posto.

b. Há aquelas que apresentam uma proposta de como o discurso jurídico deveria


organizar-se.

c. Há aquelas que defendem uma extinção do direito.

v Mas o programa mínimo da crítica do direito é este exercício de constante


desvelamento dos fundamentos, das influências, dos vetores, das determinações
sociais do direito.

v É inegável que isso se sustenta como uma forma rica de produzir conhecimento,
atravessando o campo dogmático e ligando-se a disciplinas como Filosofia do
Direito, Filosofia Política, Ciência Política, Economia, Sociologia Jurídica,
Antropologia Jurídica.

2. Situando a crítica do direito: justificação, sentidos, espaço e tempo

v Crise das verdades que sustentam a modernidade: teologia, política, ciência e o


próprio direito.

Os modelos culturais, normativos e instrumentais que fundamentaram o mundo da


vida, a organização social e os critérios de cientificidade tornaram-se
insatisfatórios e limitados. A crescente descrença em modelos filosóficos e
científicos que não oferecem mais diretrizes e normas seguras abre espaço para se
repensarem padrões alternativos de fundamentação. Os paradigmas que
produziram um ethos, marcado pelo idealismo individual, pelo racionalismo liberal
e pelo formalismo positivista, bem como os que mantiveram a logicidade do
discurso filosófico, científico e jurídico, têm sua racionalidade questionada e
substituída por novos modelos de referência. (...) “À medida que a sociedade é vista
como um sistema necessariamente conflituoso, tenso e em permanente
transformação, toda e qualquer análise passa a ser considerada válida apenas se
for capaz de identificar os fatores de mudança responsáveis pela contínua
inadequação dos modelos culturais tradicionais – entre eles, o direito”.
(WOLKMER – no último período do parágrafo, citando FARIA, J. E.)

v Crise das tradições, das formas de produzir verdades, das formas de justificar o
saber e o poder estabelecidos.

v “Tudo que é sólido se desmancha no ar” (Marx e Engels). O capitalismo, desde sua
fase industrial sobretudo, representa uma permanente transformação econômica,
técnica, social, política e subjetiva.

v O capitalismo está sempre constituindo, desconstituindo e reconstituindo a


sociedade, as formas de subjetividade, a política, o direito.

v As mudanças na produção geram não apenas crises econômicas, mas também crises
dos modos de fundamentação e justificação da vida social.

v Ao mesmo tempo, o capitalismo tende a pôr formas novas de verdade e de


comportamento ligadas à sua própria lógica.

v Este processo chega a tal ponto que parece que vivemos em crise permanente.

v Crítica – crise. Proximidade etimológica. O velho não morreu e o novo não nasceu
(Gramsci). Momento decisivo.

v Nesse primeiro sentido, uma teoria crítica é uma teoria que responde a uma
crise, questionando o modelo vigente e podendo, ou não, buscar um novo modelo,
um novo paradigma, frente ao que é velho e está por morrer.

v Ao mesmo tempo, o termo crítica tem uma história na filosofia moderna, sobretudo,
ligando-se a Kant e Marx.

v Para Imannuel Kant (1724-1804), um iluminista, a crítica tinha o sentido de uma


reflexão profunda de natureza antidogmática, capaz de questionar os pressupostos
do próprio ramo do conhecimento ao qual se liga, colocando-os em xeque e
redefinindo os problemas colocados para aquele saber.

v Ou seja, uma teoria crítica não aceita os pressupostos (dogmas) estabelecidos em


dado saber para, aceitando-os, continuar a desenvolvê-los em diferentes direções de
pesquisa.

v Ela quer discutir os próprios pressupostos, apresentar sua precariedade, demonstrar


sobre o que eles estão assentados, problematizá-lo e decifrá-lo.
No prefácio de seu livro “Kant e o fim da metafísica, Gérard Lebrun tem uma
posição bem clara a respeito da questão que pretendemos abordar. Para ele, “a
Crítica não tem, portanto, como tarefa munir-nos de convicções novas, mas sim
fazer-nos colocar em questão o modo que tínhamos de ser convencidos. Ela não nos
traz uma outra verdade; ela nos ensina a pensar de outra maneira”. É preciso
salientar essa posição de Lebrun: a filosofia crítica não traz uma nova verdade, ela
ensina uma nova maneira de pensar. E, se essa nova maneira de pensar é a
verdadeira novidade da crítica, é porque ela o faz em solo pátrio, ou seja,
colocando em questão as próprias convicções da filosofia. (Keinert, Mauricio. Tese
sobre a crítica em Kant, p. 13-14)

v No senso comum, é recorrente uma visão do pensamento crítico que se aproxima


desta, em algum grau. Entendemos por “pensamento crítico” aquele que não apenas
replica uma visão de uma autoridade, política ou intelectual; ou uma visão de um
grupo, de uma massa.

v Pensamento crítico seria, assim, aquele formado com autonomia.

v Algo se aproveita dessa noção de crítica. Mas ela comporta certos riscos a serem
evitados:

1) O risco de confundir-se a crítica com um pensamento individual, que não pode


ligar-se a um grupo ou a política;

2) O risco de confundir-se pensamento crítico e neutralidade, separando razão e


política, razão e cultura, razão e afetos.

v Mas, certamente, um aspecto do pensamento crítico é que ele não seja mera
reprodução de um senso comum ou de um posicionamento de autoridade (política,
acadêmica, religiosa etc.)

v O pensamento crítico é aberto, não é permanente, “existe num contínuo processo de


fazer-se a si próprio” (Oscar Correas).

v Além disso, para refletir sobre os pressupostos de um saber, é preciso ir às raízes –


radicalidade da reflexão. Para Michel Miaille, a teoria crítica “deve abordar as
coisas pela raiz, retornar à genealogia que permitiu a existência de determinada
forma jurídica”.

v Então, se num primeiro sentido, a crítica se liga a crise, num segundo, crítica
significa liberdade, antidogmatismo, reflexão radical e questionamento dos
pressupostos de um saber.
v Note-se que, através disso, nos aproximamos de um sentido bastante prático da
crítica.

v Antidogmatismo, afirmação da liberdade de pensamento e discussão,


questionamento de verdades definidas por tradições, pelo senso comum, por
autoridades: isto por si nos leva a uma relação entre teoria e prática e entre saber e
poder.

v Mais do que uma forma de fazer teoria, a crítica é uma atividade prática, é
uma forma de conduta ou, nos termos de Foucault, é uma “atitude”, na qual
está em jogo a obediência e a desobediência.

(...) pois bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade
refletida. A crítica teria essencialmente por função a desassujeitamento no jogo do
que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade. (Foucault, “O que é
a crítica”)

v Mais do que político num sentido amplo, percebe-se que o tema da crítica é também
um tema subjetivo. Um tema com o qual cada indivíduo se depara no seu processo
de socialização, desde a infância e a todo tempo – na família, na escola, na cidade,
na universidade, no trabalho: obedecer ou não obedecer? Por que obedecer? Por que
desobedecer?

v Assim, o jurista se depara também com esse problema, em sua vida particular, mas
também no seu ofício, na universidade, nos tribunais.

v Além disso, compreende-se que uma teoria crítica não pode ser formulada sem uma
importante ligação com a prática social (academicismo). Caso contrário, é provável
que a teoria apenas reforce um lugar de autoridade do saber – no caso, acadêmica.

v Tal ligação com a prática implica, também, uma abordagem interdisciplinar.

v Mas a história da crítica não se encerra em Kant. Se, sob o iluminismo, o


pensamento crítico se chocava contra as tradições em defesa da ciência, da técnica e
de um Estado laico e liberal, desde o século XIX, a crítica já se dirige a outro objeto.

v Os movimentos de trabalhadores e o pensamento socialista, entre os chamados


utópicos e o pensamento de Marx, fizeram aparecer uma outra forma de crítica.
Uma crítica que se dirigia precisamente ao que o Iluminismo havia estabelecido.

v A ideologia por trás da ciência e do positivismo moderno; a alienação da


técnica própria às estruturas econômicas contemporâneas; o Estado e a
democracia capturadas pelo mercado; o vazio de uma vida organizada em
torno do consumo; o mito do sujeito consciente e autônomo liberal; a
dominação classista; o colonialismo; o peso dos marcadores de gênero e raça; a
unilateralidade e autoritarismo do próprio Estado Liberal e das formas atuais
de democracia; a destruição do meio ambiente serão os novos objetos da
crítica.

v Trata-se, portanto, da crítica ao próprio projeto da modernidade.

v A partir daqui, situa-se a teoria crítica contemporânea, como crítica do próprio


projeto da modernidade ocidental.

v Dessa maneira, podemos definir a teoria crítica hoje enquanto uma teoria que,
ligando-se à prática social (1), reflete sobre as raízes (2) das formas sociais
modernas (3) em crise (4), sob uma perspectiva antidogmática (5) e
interdisciplinar (6), podendo ou não, a partir disso, propor novas formas de
organizar as relações sociais (7).

v Os termos de Wolkmer são um pouco diferentes:

Desse modo, pode-se conceituar teoria crítica como o instrumento pedagógico


operante (teórico-prático) que permite a sujeitos inertes, subalternos e colonizados
uma tomada histórica de consciência, desencadeando processos de resistência que
conduzem à formação de novas sociabilidades possuidoras de uma concepção de
mundo libertadora, antidogmática, participativa, criativa e transformadora. Trata-
se de proposta que parte não de abstrações, de um a priori dado, de um instituinte
fundante, da elaboração mental pura e simples, mas da exigência histórico-
concreta das lutas, da prática cotidiana insurgente, dos conflitos e interações
sociais e das necessidades humanas essenciais.

v A partir disso, Wolkmer define o que seria uma teoria crítica do direito:

Justifica-se, assim, conceituar “teoria jurídica crítica” como a formulação teórico-


prática que se revela capaz de questionar e de romper com o normativo que está
disciplinarmente ordenado e oficialmente consagrado (no conhecimento, no
discurso, no comportamento e no institucional) em dada formação social e a
possibilidade de conceber e operacionalizar outras formas diferenciadas, não
repressivas e emancipadoras, de prática jurídica.

3. Principais fundamentos da teoria crítica do direito e suas origens

v Pode-se dizer que, na segunda metade do século XX, emerge um efetivo


movimento de crítica do direito, com expressões no Brasil, na América Latina,
Estados Unidos e Europa.
v Os fundamentos ou os antecessores teóricos desse movimento são
principalmente:

a) Marx e a crítica marxista do direito, em suas várias expressões (juristas


soviéticos, como Stutchka e Pachukanis; através da crítica da política do italiano
Antonio Gramsci; do marxismo estruturalista de Louis Althusser etc.)

b) A teoria freudiana;

c) A Escola de Frankfurt, que, entre outros referenciais, apoiava-se em Marx e


Freud;

d) A crítica francesa dos anos 60 e 70, que se ligou aos acontecimentos de maio de
1968 e à contracultura, com destaque para Michel Foucault;

v Na disciplina, iremos tratar da crítica marxista e foucaultiana do direito.

v O início do movimento de crítica do direito nos anos 70:

Ao longo dos anos 70, o movimento de crítica jurídica consolidou-se,


primeiramente na França, com professores universitários de esquerda (em
1978, surge o “manifesto” da Associação Crítica do Direito) e, posteriormente,
na Itália, com alguns magistrados politizados e antipositivistas (movimento do
“uso alternativo”). O movimento de crítica jurídica (principalmente o francês)
aos poucos acabou estendendo-se para Espanha, Bélgica, Alemanha, Inglaterra
e Portugal. Já na década de 80 seus ecos alcançaram a América Latina,
principalmente a Argentina (Carlos Cárcova, Ricardo Entelman, Alicia Ruiz,
Enrique Marí e outros), o México (Oscar Correas), o Chile (Eduardo Novoa
Monreal), a Colômbia (grupo de juristas integrantes do ILSA) e o Brasil. Aqui
as discussões acerca da “crítica jurídica” e da importância pedagógica da
teoria crítica no Direito ganharam força a partir da metade dos anos 80, graças
não só à repercussão dos movimentos críticos francês e italiano, mas também
ao pioneirismo e ao incentivo de alguns professores de filosofia e sociologia
jurídicas em diversas faculdades de Direito do país, como Roberto Lyra Filho,
Luiz Fernando Coelho e Luiz Alberto Warat.

v Não se deve, contudo, tomar “A Teoria Crítica do Direito” como um bloco


homogêneo. O que encontramos são diversas formas de pensar, orientadas por
uma mesma atitude crítica frente ao campo jurídico (Warat).

Você também pode gostar