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Espondilodiscite – a propósito

de um caso clínico
REUNIÃO NÚCLEO INTERNOS USF AFONSO HENRIQUES
3 FEVEREIRO 2020

Dra. Lara Ribeiro, Dra. Ângela Machado


Importância
A espondilodiscite é rara nos adultos…

Inespecificidade dos
Evolução insidiosa
sintomas

Elevada morbilidade e Dificuldade


mortalidade diagnóstica

Diagnóstico é baseado sobretudo num elevado índice de suspeição


Caso Clínico
Homem de 59 anos, autónomo para AVD's.
AP:
- Fibrilhação auricular
MH:
- Xarelto 20 mg (1+0+0)
- sotalol 160 mg (1/2+0+1/2)

Alergias: desconhece.

Internamento de 22/11 a 06/12 por Sépsis com ponto de partida urinário com disfunção
multiorgânica
Caso Clínico
Durante o internamento:
• ITU por E. coli multissensível, com bacteriémia
• à admissão: mialgias e disúria com 48h de evolução agravada por dor lombar esquerda. Murphy renal
negativo. Sem febre
> Analiticamente sem leucocitose, PCR 80.4;
> HC: E. coli multissensível e UC: E .coli multisenssível

Sem > TC AP: “…apenas alguns quistos corticais renais medindo até 4 cm. Sem significativas alterações na
alterações loca vesicular. Sem dilatação dos sistemas excretores renais. Não se observam cálculos urinários."
de relevo
Caso Clínico
Durante o internamento, iniciou:
• Lombalgia bilateral
- Dor à palpação dos músculos paravertebrais lombares, sem contractura identificável.
- Agravamento com os movimentos
Sem
alterações - TC lombar (04.12.2019): "...Em L3-L4 e L4-L5 observam-se procidências circunferenciais dos
de relevo discos que moldam o saco tecal e que se insinua na base dos buracos de conjugação, em planos
infrajacentes à emergência radicular. Em L5-S1 identifica-se procidência disco-osteofitária de
base larga que ocupa parcialmente os buracos de conjugação e que contacta as raízes L5, sem
sinais seguros da sua compressão...Quistos renais bilaterais."
Caso Clínico

Recorreu à sua MF, sem


Alta do internamento Consulta aberta
queixas aparentes

6/12 9/12 e 30/12 6/01


Caso Clínico – USF no dia 6/01/2020
S • Dor abdominal nos quadrantes superiores, com irradiação dorsal, agravada pela dorsiflexão e
pelos movimentos. Intensidade elevada. Sem relação com os alimentos. Ocorre mesmo durante
a noite.
• Astenia, Anorexia, Náuseas, Arrepios, dores musculares
• Picos febris de 2 a 5/01. Hipersudorese noturna que obriga a mudar de roupa 4x
• Manutenção de dor na região lombar, intensidade ligeira, sem agravamento com a palpação.
Está a fazer MFR com familiar

O • Aspeto pálido e amarelado “doente”


• -TA: 113/69 mmHg -FC: 72 bpm -FR: 15 cpm -SpO2: 99% aa -Tª: 36,2ºC
• Abdómen mole e depressível, mas muito queixoso na palpação generalizada, sem massas ou
organomegalias. Ruídos hidroaéreos presentes.
Caso Clínico – USF no dia 6/01/2020
A • Dor Abdominal Generalizada

P •REFERENCIAÇÃO PARA MÉDICO / ESPECIALISTA / CLÍNICA / HOSPITAL - SU HSO


Caso Clínico – SU no dia 6/01
Realizou TC abdominal:
“Irregularidades das placas basais de
D9-D10, com aumento de partes
moles e pequenas coleções
subjacentes, podendo traduzir um
eventual espondilodiscite, onde
eventual estudo complementar por
RM poderá fornecer informações
adicionais, caso haja indicação
clínica.
Discopatia degenerativa em L5-S1.”
Caso Clínico
• No SU: “Sem indicação para intervenção cirúrgica urgente por ortopedia.”
• Ficou internado medicado com Levofloxacina+ Vancomicina ev
• RM: Confirmam-se sinais sugestivos de espondilodiscite em D9-D10, definindo-se a destruição
das plataformas vertebrais e captação do produto contraste na dependência dos corpos
vertebrais e do disco intersomático, definindo-se incipiente componente inflamatório/infecioso
epidural anterior que não comprime a medula, mas que se estende discretamente aos buracos
de conjugação, reduzindo a amplitude foraminal para a emergência das raizes D9. Definem-se
ainda componentes inflamatórios/infeciosos paravertebrais bilaterais, esboçando pequenos
abcessos.
• Biópsia guiada por imagem: inexistência de coleções líquidas que traduzem abcessos
paravertebrais.
• Ao 16ºdia de internamento, teve Alta para hospitalização domiciliária.
Breve Revisão Teórica
Espondilodiscite
Espondilodiscite
• Processo infecioso que atinge o disco intervertebral e corpos vertebrais contíguos, afetando
regra geral dois corpos vertebrais e o disco intervertebral adjacente

• Termo global que inclui osteomielite vertebral, espondilite e discite


Epidemiologia
• Causa rara de lombalgia no adulto
• Ocorre em cerca de 0.5 a 2.5 casos por cada 100 000 habitantes/ano

• Afeta mais o sexo masculino com um ratio de 2:1 a 5:1

• Pico de incidência bimodal: primeiro pico até aos 20 anos e o segundo entre os 50 e 70 anos

• A incidência, embora baixa, tem vindo a aumentar devido a fatores como o uso crescente de
drogas endovenosas, cirurgia raquidiana, envelhecimento da população e co-morbilidades
associadas
Etiopatogénese
• Piogénica
• O agente bacteriano mais frequente é o Staphylococcus aureus

• Granulomatosa, causada por micobactérias, Brucella, espiroquetas ou fungos.


• O Mycobacterium tuberculosis causa a maioria das infecções não-piogénicas.

Vias de disseminação:
1. via hematogénica a partir de um foco bacteriémico distante → + frequente (70% dos casos)
2. inoculação direta
3. por contiguidade (deve-se a abcessos retrofaríngeos ou retroperitoneais)
Localização
• Localização mais frequente da Espondilodiscite Piogénica:
• Vértebras lombares (60%)
• Vértebras torácicas (30%)
• Região cervical (10%)

• A espondilodiscite tuberculosa localiza-se com maior frequência a nível do segmento torácico,


envolvendo habitualmente mais do que dois segmentos vertebrais, contíguos ou não, bem como
os elementos vertebrais posteriores.
Fatores de Risco A maioria dos doentes apresenta pelo menos 1 fator de
risco; no entanto, caso não se verifique esta condição,
deve ser considerado um diagnóstico alternativo.
- Diabetes Mellitus
- Infeção recente (até 8 semanas)
- Trato urinário
- Pneumonia
- Tecidos moles
- Abcesso dentário
- Relacionada com acesso vascular (cateter venoso central/cateter venoso periférico/ fístula arterio-venosa)
- Idade (> 50 anos)
- Utilizadores de drogas endovenosas (Pseudomonas)
- Imunodeficiência ou terapêutica com imunossupressores
- Cirrose Hepática / Insuficiência hepática
- Doença renal crónica, principalmente sob hemodiálise
- Artrite Reumatóide
- Desnutrição (albumina sérica < 3,5 g/dL e linfócitos < 1.500) ou obesidade
- Neoplasia
- Tabagismo ou etilismo crónico
- Fratura exposta, trauma penetrante
- Cirurgia recente à coluna vertebral (discectomia, artrodese) ou procedimentos invasivos (punção lombar, raquianestesia)
Manifestações Clínicas
• A sintomatologia da espondilodiscite piogénica é inespecífica e a sua apresentação muito
dependente da localização anatómica, extensão da doença e competência imunológica do
doente, sendo necessário um índice de suspeição elevado para o seu diagnóstico.

O início é insidioso, com raquialgia de agravamento progressivo, podendo o doente recorrer múltiplas
vezes ao serviço de urgência.

• Num estadio mais avançado da doença, dor intensa à palpação das apófises espinhosas e
musculatura paravertebral, não cedendo à terapêutica analgésica.
Manifestações Clínicas
• O agravamento das queixas no período noturno é muito frequente, devendo assim alertar para
um quadro infecioso ou neoplásico.
• A raquialgia pode ser acompanhada de irradiação para a região torácica ou abdominal.

• A ocorrência de febre não é comum, existindo apenas em cerca de 15 a 50% dos doentes.
• Apesar da história de episódios febris recentes em todos os doentes, apenas dois terços têm elevação
da temperatura corporal na altura da admissão.

•Um défice neurológico pode estar presente em 10 a 20% dos doentes.


• Pode existir diminuição da força muscular, alterações sensitivas, radiculopatia, mielopatia, alterações
esfincterianas ou paraplegia (se compressão por abcesso vertebral ou colapso vertebral).

Dor lombar ou cervical, conforme a localização da infeção, é o sintoma mais frequente, seguida pelos
sintomas constitucionais e a febre.
Diagnóstico
• O diagnóstico da espondilodiscite é estabelecido com base nas manifestações clínicas,
alterações laboratoriais e imagiológicas.
• Se diagnosticada atempadamente, tem uma elevada taxa de sucesso de 80%;
• No entanto, devido à sintomatologia fruste na sua fase inicial, alta prevalência de lombalgia na
população geral ou à própria raridade da doença, o seu diagnóstico leva em média 11 a 59 dias
até ser estabelecido, após o início dos sintomas, facto que pode levar a consequências tão
devastadoras como incontinência esfincteriana ou paraplegia.

•A avaliação inclui uma anamnese cuidada, exame neurológico completo, avaliação laboratorial e
imagiológica, e biopsia.
Diagnóstico

Positivas em 33 a 66% dos casos

Exame gold standard


Tratamento
• O tratamento da espondilodiscite pode ser conservador ou cirúrgico.
• O tratamento conservador está indicado:
• infeção recente
• inexistência de défice neurológico
• comorbilidades que impeçam uma cirurgia.

•A antibioterapia dirigida consiste em 4 a 6 semanas de tratamento endovenoso até melhoria dos


sintomas; deve posteriormente ser convertida para a via oral e assim mantida por um período
mínimo de 6 a 12 semanas, sob controlo analítico dos parâmetros de infeção.
•O tratamento conservador leva à resolução em cerca de 80% dos casos, em associação com
repouso no leito e imobilização com ortótese, para conforto do doente ou prevenção da
deformidade.
Tratamento
• O tratamento cirúrgico deve estar reservado:
• apresentação tardia
• persistência da infeção ou abcesso sem resposta à antibioterapia instituída
• deformidade progressiva e instabilidade (atingimento de mais de uma coluna)
• presença ou progressão de défice neurológico
• abcesso epidural com atingimento neurológico
Conclusão
• A espondilodiscite é uma entidade rara, mas a sua incidência tem vindo a aumentar devido ao
envelhecimento da população, aumento da população imunocomprometida, uso de drogas
endovenosas e ao aumento de procedimentos invasivos da coluna vertebral, associada ao
desenvolvimento dos meios complementares de diagnóstico.
• É necessário um elevado índice de suspeição, devendo ter-se em atenção os casos de lombalgia
prolongada, sem resposta à terapêutica instituída e sem evidência de outra patologia.
• O diagnóstico é, muitas vezes, um verdadeiro desafio para o clínico, mas, se atempado, garante
bons resultados a longo prazo.
Obrigada pela vossa atenção!

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