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Dinis Abrantes Figueiredo

Direito Comercial I

Ano letivo de 2023/2024


1. O âmbito de aplicação do Direito Comercial
Nas suas origens, o Direito Civil confundia-se com todo o Direito Privado, pois regulava
todas as relações jurídico-privadas. No entanto, a prática social fez emergir um corpo especial
de normas jurídicas que passou a regular um conjunto restrito de relações jurídicas dentre um
conjunto mais amplo de relações jurídico-privadas: o Direito Comercial. Diz-se, por
conseguinte, que o Direito Comercial é um Direito Privado especial face ao Direito Privado
Comum (Direito Civil). Tendo em conta esta afirmação, coloca-se a questão de saber quais as
relações jurídico-privadas que estão sujeitas ao Direito Comercial.
1.1 Os critérios de delimitação do âmbito de aplicação do Direito Comercial e os
setores da atividade económica por ele abrangidos consoante o critério eleito
Tendo em consideração a evolução histórica da delimitação do âmbito de aplicação do
Direito Comercial face ao Direito Civil, é possível distinguir três critérios jurídicos que
refletem perspetivas diferentes acerca do Direito Comercial e que têm reflexos no modo
como este ramo do Direito Privado abrange os setores da atividade económica:
- Critério subjetivista: Na Alta Idade Média, assistiu-se a um enorme desenvolvimento
económico sob o impulso da atividade de interposição nas trocas (comércio em sentido
económico) exercida pelos membros das corporações que se tinham organizado nessa altura.
Neste novo contexto, a prática social sentiu um desajustamento do Direito Civil para regular
as relações jurídicas nas quais se fazia notar a presença de um comerciante-membro da
corporação, tendo feito emergir um corpo especial de normas jurídicas que as passou a
regular: o Direito Comercial. Neste primeiro momento, o critério de delimitação do âmbito de
aplicação do Direito Comercial face ao Direito Civil é constituído pela qualidade de
comerciante. A partir deste critério, o Direito Comercial abrange os setores da atividade
económica exercidos por comerciantes-membros da corporação (corte vertical).
Nota fundamental:
A dinâmica da atividade comercial e a importância que obteve na vida económico-social
refletiram-se num tendencial alargamento subjetivo e objetivo do Direito Comercial:
- Alargamento subjetivo: Para além das relações jurídicas nas quais se fazia notar a
presença de membros das corporações, o Direito Comercial passou a regular as relações
jurídicas nas quais se fazia notar a presença de sujeitos não-inscritos em corporações, mas
que exerciam a atividade de interposição nas trocas (comerciantes ocasionais).
- Alargamento objetivo: Para além da atividade de interposição nas trocas, o Direito
Comercial passou a abranger outros setores da atividade económica (ex. indústria).

Critério subjetivista
Corte vertical
Corte horizontal

Membro da corporação Não-membro da corporação


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- Critério objetivista: Fruto dos ideias liberais (essencialmente os princípios da liberdade de
exercício da atividade económica e da igualdade) conquistados pela Revolução Francesa de
1789 e do desenvolvimento económico dela resultante, o Direito Comercial deixou de regular
as relações jurídicas nas quais se fazia notar a presença de um comerciante-membro da
corporação para passar a regular as relações jurídicas que emergiam a partir de um ato de
comércio praticado por um comerciante ou por um comerciante ocasional. Neste segundo
momento, o critério de delimitação do âmbito de aplicação do Direito Comercial face ao
Direito Civil é constituído pelo ato de comércio. A partir deste critério, o Direito Comercial
abrange os setores da atividade económica exercidos através da prática, por parte de
comerciantes ou comerciantes ocasionais, de um ato de comércio (corte horizontal). Acontece
que os Códigos objetivistas não apresentaram uma noção de “ato de comércio”, limitando-se
a prever uma lista implícita ou explícita de operações económicas qualificáveis como tal.
Nessa medida, o ato de comércio foi e continua a ser uma categoria puramente formal (é
definida como sendo aquilo que está previsto na lei comercial) e não-substancial (é
indefinível a partir de certas características intrínsecas a todas as operações económicas).
Nota fundamental:
Com a substituição do critério subjetivista pelo critério objetivista, surgiu uma corrente
unificadora ou unitarista, segundo a qual se o âmbito de aplicação do Direito Comercial
face ao Direito Civil fosse delimitado a partir de um critério substancialmente indefinível,
tal implicaria que o Direito Comercial perdesse, por um lado, a sua substancialidade e, por
outro lado, a sua autonomia, tendendo a diluir-se no Direito Civil.

Critério objetivista

Corte horizontal

- Critério empresarialista: O contexto económico-financeiro na Alemanha do século XIX


implicou um retorno ao critério que havia justificado a existência de um Direito Comercial
autónomo face ao Direito Civil, retirando-o do caminho do objetivismo, negando a corrente
unificadora ou unitarista e reformulando o subjetivismo. Desta forma, o Direito Comercial
passou a regular as relações jurídicas nas quais se fazia notar a presença de um comerciante-
empresário. No entanto, este critério subjetivista foi mais tarde remodelado pelo
empresarialismo que veio substituir o comerciante-empresário como critério de delimitação
do âmbito de aplicação do Direito Comercial face ao Direito Civil pela empresa (comercial).
Neste terceiro momento, o critério de delimitação do âmbito de aplicação do Direito
Comercial face ao Direito Civil é constituído pela empresa (comercial). A partir deste
critério, o Direito Comercial abrange os setores da atividade económica exercidos em moldes
empresariais (corte vertical).

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Nota fundamental:
O empresarialismo ocasionou uma redução do Direito Comercial a um “magro complexo
de normas” atinentes às empresas (comerciais), insuficiente para justificar a existência de
um Direito Comercial autónomo face ao Direito Civil. Surgiu, assim, uma nova corrente
unificadora ou unitarista, defensora da diluição do Direito Comercial no Direito Civil.
Critério empresarialista
Corte vertical
Corte horizontal

Empresário Não-empresário

1.1.1 Um novo critério de delimitação do âmbito de aplicação do Direito Comercial?


O Prof. Dr. Cassiano dos Santos constata que a realidade económico-social suscita especiais
necessidades de regulamentação, necessidades estas que o atual Direito Comercial é incapaz
de satisfazer. Deste modo, propõe a emergência de um novo Direito Comercial cujo âmbito
de aplicação face ao Direito Civil deveria ser delimitado a partir de um novo critério jurídico:
a presença nas relações jurídicas de um operador económico (sujeito que opera no mercado).
1.1.2 Conclusão
A existência de um Direito Comercial autónomo face ao Direito Civil é justificada pelas
especiais necessidades de regulamentação que, em cada fase histórica, os setores mais
dinâmicos da atividade económica suscitam. Foi assim que, nos meados do século XIX –
numa época marcada pelo confronto entre o objetivismo e a corrente unificadora ou unitarista
–, surgiu o Código Comercial Português de 1888 e, com ele, o Direito Comercial Português
cujo âmbito de aplicação face ao Direito Civil era delimitado a partir do critério objetivista.
No entanto, à medida que foi surgindo legislação comercial avulsa cujo âmbito de aplicação
foi delimitado a partir de outros critérios jurídicos, a coincidência que existia entre o Código
Comercial e o Direito Comercial foi desaparecendo. Hoje, embora o âmbito de aplicação do
Direito Comercial Português não seja delimitado a partir de um único critério, mas visto que
o Código Comercial Português constitui o núcleo essencial do Direito Comercial Português,
conclui-se que, em geral, o critério eleito pelo legislador português para delimitar o âmbito de
aplicação do Direito Comercial face ao Direito Civil é o critério objetivista (1º CCom).
1.2 A empresa no atual Direito Comercial Português
1.2.1 As notas características da empresa
A empresa é uma realidade da vida económica, pelo que o Código Comercial Português
optou por não apresentar uma noção de “empresa”, limitando-se a acolhê-la tal como ela se
apresenta na realidade. Enquanto entidade juridicamente relevante, a expressão “empresa” é
utilizada no Direito em três aceções que correspondem a três perfis distintos:
- Perfil subjetivo: a empresa enquanto atividade exercida por um sujeito
- Perfil objetivo: a empresa enquanto organização de meios da qual o sujeito se serve para

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exercer uma atividade qualificada pelo Direito Comercial como comercial
- Perfil institucional: a empresa enquanto entidade própria no mercado
Destes três perfis é possível extrair algumas notas características da empresa:
1. A empresa é uma organização estruturada de fatores produtivos (terra, trabalho e
capital), destinada à produção de bens ou de serviços e à sua colocação no mercado.
2. A empresa assenta a sua atividade num processo produtivo (combinação dos fatores de
produção) através do qual se obtém um determinado resultado que consiste num valor
económico novo suscetível de troca no mercado.
3. A empresa e o processo produtivo em que ela assenta são caracterizados pela autonomia
funcional, i.e. por um lado, a empresa é dissociável do sujeito que a titula e aparece no
mercado como uma entidade própria e, por outro lado, o resultado que se obtém através do
processo produtivo é imputável ao próprio processo no seu conjunto.
4. A empresa é caracterizada pela autonomia financeira, i.e. tem como objetivo a
maximização das receitas e a minimização das despesas.
1.2.2 Os interesses que a empresa postula e o seu reflexo no Direito Comercial
Identificados as notas características da empresa, importa ainda analisar os interesses que ela
postula e que são tidos em conta pelo Direito Comercial Português. São eles:
- Tutela do fácil acesso ao crédito: Tendo em conta que as empresas necessitam de
financiamento para exercer a sua atividade, é-lhes essencial que o Direito Comercial garanta
a facilidade de acesso ao crédito (quanto menores forem os riscos que incidam sobre o
financiador, mais fácil será o acesso ao crédito por parte das empresas).
- Tutela da celeridade dos negócios: Tendo em conta que as empresas exercem a sua
atividade num contexto marcado pela celeridade, é-lhes essencial que o Direito Comercial
desformalize ou simplifique a celebração dos negócios por parte das empresas.
- Tutela da fácil circulação de valor: Tendo em conta que as empresas obtêm receitas
essencialmente através da mobilização de bens móveis e de créditos, é-lhes essencial que o
Direito Comercial garanta a facilidade de circulação desses valores.
- Tutela especial da aparência: Às empresas é-lhes essencial que o Direito Comercial tutele a
confiança, a boa-fé e, em especial, a aparência suscitada face aos credores das empresas e
àqueles que com elas contratam.
- Tutela da segurança e firmeza dos negócios: Às empresas é-lhes essencial que o Direito
Comercial garanta que os negócios celebrados pelas empresas gozem de segurança e de
firmeza.
1.2.3 Conclusão
Como foi mencionado, a existência de um Direito Comercial autónomo face ao Direito Civil
é justificada pelas especiais necessidades de regulamentação que, em cada fase histórica, os
setores mais dinâmicos da atividade económica suscitam. Hoje, com a extensão da lógica
capitalista a todos os setores da atividade económica que conduziu a que as atividades
económicas desses setores passassem a ser exercidas e organizadas em moldes empresariais –
falando-se, a este propósito, de uma empresarialização de todos os setores da atividade
económica –, é na empresa (comercial), com as suas características e os interesses que
postula, que o Direito Comercial Português encontra o seu fundamento e a justificação para a
sua existência.

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2. A qualificação de uma relação jurídico-privada como relação jurídico-
comercial
2.1 Os artigos 1º e 2º CCom
Como foi acima analisado, embora o âmbito de aplicação do Direito Comercial Português
não seja delimitado a partir de um único critério, e visto que o Código Comercial Português
constitui o núcleo essencial do Direito Comercial Português, poder-se-á concluir que, em
geral, o critério eleito pelo legislador português para delimitar o âmbito de aplicação do
Direito Comercial face ao Direito Civil é o critério objetivista (1º CCom).
Acontece que o Código Comercial Português não apresenta uma noção de “ato de comércio”,
limitando-se a prever uma lista implícita de operações económicas qualificáveis como tal .
Nessa medida, o ato de comércio é uma categoria puramente formal (é definida como sendo
aquilo que está previsto na lei comercial) e não-substancial (é indefinível a partir de certas
características intrínsecas a todas as operações económicas). Tal resulta do artigo 2º CCom
que se pode dividir em duas partes:
- A primeira parte do artigo 2º CCom refere-se aos atos objetivos de comércio que são todos
aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código.
- A segunda parte do artigo 2º CCom refere-se aos atos subjetivos de comércio que são
todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente
civil, se o contrário do próprio ato não resultar.
Nota fundamental:
Os atos objetivos de comércio não se confundem com os atos subjetivos de comércio:
- Enquanto que os atos objetivos de comércio têm algum aspeto do seu regime regulado
no Código Comercial e, em geral, na lei comercial, os atos subjetivos de comércio
dependem de uma apreciação casuística.
- Enquanto que os atos objetivos de comércio não pressupõem um comerciante, os atos
subjetivos de comércio dependem de um comerciante.
2.2 Os atos objetivos de comércio
A primeira parte do artigo 2º CCom refere-se aos atos objetivos de comércio que são “todos
aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código.” Analisando os elementos
deste preceito mais detidamente, é possível chegar à seguinte conclusão:
1) Serão considerados atos de comércio todos aqueles que tenham algum aspeto do seu
regime previsto (“especialmente regulados”) neste Código.
2) À luz dos ensinamentos de Ferrer Correia e Lobo Xavier, o Prof. Dr. Cassiano dos Santos
entende que se deve interpretar a expressão “neste Código”, conferindo-lhe um sentido
atualista: em vez de “neste Código” dever-se-á passar a entender “neste Código e, em geral,
na lei comercial”. Entende-se que assim o seja, uma vez que à data da entrada em vigor do
Código Comercial Português, este e o Direito Comercial tendiam a coincidir. No entanto, esta
coincidência foi desaparecendo à medida que foi surgindo legislação comercial avulsa. Sendo
assim, para efeitos do artigo 2º, 1ª parte CCom, “lei comercial” é o Código Comercial e toda
a legislação que lhe seja análoga, i.e. que contenha uma regulamentação que prossiga os
mesmos interesses que o Código Comercial visa prosseguir.

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Conclusão:
Todos os atos que não tenham algum aspeto do seu regime regulado no Código Comercial
e, em geral, na lei comercial não serão considerados atos objetivos de comércio à luz do
artigo 2º, 1ª parte CCom; mas poderão sê-lo à luz do artigo 230º CCom!

2.2.1 O artigo 230º CCom


Na posição do Curso, o artigo 230º CCom tem dois sentidos diferentes:
- O artigo 230º CCom tem um sentido imediato que desempenha duas funções:
1) Por um lado, o artigo 230º CCom serve para incluir na comercialidade as empresas,
singulares ou coletivas, que já existem e que exercem ou se propõem exercer as atividades
económicas que foram previstas nos números 1 a 7 pelo legislador português à data da
elaboração do Código Comercial Português como sendo as atividades económicas dos setores
mais dinâmicos à época, ou atividades económicas análogas a estas. Com a extensão da
lógica capitalista a todos os setores da atividade económica que conduziu a que as atividades
económicas desses setores passassem a ser exercidas e organizadas em moldes empresariais,
conclui-se que “atividades económicas análogas” são aquelas que sejam exercidas e
organizadas em moldes empresariais, incluindo a agricultura e a prestação de serviços
liberais, desde que exercidas nestes termos.
2) Por outro lado, o artigo 230º CCom serve para excluir da comercialidade as atividades
económicas que não são exercidas, nem organizadas em moldes empresariais, como é o caso
da agricultura tradicional, do artesanato e da prestação de serviços liberais.
- O artigo 230º CCom tem um sentido mediato que é o de servir para qualificar como
objetivamente comerciais todos os atos1 praticados no exercício de uma empresa que se
qualifica como comercial através do seu sentido imediato.
2.2.2 Atos objetivos de comércio por analogia?
Parte significativa da doutrina admite o recurso à analogia para qualificar como comerciais
atos isolados que, embora não tenham nenhum dos aspetos do seu regime regulado no Código
Comercial e, em geral, na lei comercial, têm características análogas às de algum ato
especialmente previsto na lei comercial. Na posição do Curso, todavia, só é admissível o
recurso à analogia para qualificar como comerciais atos que, embora não tenham nenhum dos
aspetos do seu regime regulado no Código Comercial e, em geral, na lei comercial, sejam
praticados no exercício de uma empresa que seja análoga a alguma das empresas qualificadas
como comerciais à luz do artigo 230º CCom. Sendo a empresa análoga a uma empresa
comercial, e dado que o artigo 230º CCom tem um sentido mediato que serve para qualificar
como objetivamente comerciais todos os atos praticados no exercício de uma empresa
comercial, o ato será também ele objetivamente comercial.
2.3 Os atos subjetivos de comércio
A segunda parte do artigo 2º CCom refere-se aos atos subjetivos de comércio que são “todos
os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil,
se o contrário do próprio ato não resultar”. A qualificação de um ato como subjetivamente

1São atos objetivamente comerciais tanto os atos que constituem a atividade da empresa (atos constitutivos),
como os atos que definem o modo como a empresa atua e se organiza (atos organizatórios).
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comercial depende da verificação cumulativa de três pressupostos:
1. É necessário que o ato seja praticado por um comerciante. → ver ponto 3
2. É necessário que o tipo negocial em que o ato se insere seja suscetível de ter uma conexão
com o comércio, em abstrato. Sendo assim, excluem-se da comercialidade subjetiva os atos
pessoais (casamento, perfilhação, adoção, testamento).
3. É necessário que do próprio ato não resulte o contrário, i.e. que um sujeito medianamente
prudente, razoável, diligente, colocado na posição do real declaratário (teoria da impressão do
destinatário) (1), possa deduzir das declarações do comerciante, do objeto do negócio e das
circunstâncias que rodearam o ato (2) na ocasião da sua celebração (3) que o ato tem uma
conexão com a atividade profissional do comerciante, em concreto (4). Deste juízo podem
resultar três conclusões:
- Do próprio ato resulta que não tem uma conexão com a atividade profissional do
comerciante (resulta o contrário). Neste caso, o ato não é subjetivamente comercial.
- Do próprio ato não resulta que não tem uma conexão com a atividade profissional do
comerciante (não resulta o contrário). Neste caso, o ato é subjetivamente comercial.
- Do próprio ato nada resulta quanto à sua conexão com a atividade profissional do
comerciante. Ora, se do próprio ato nada resulta, é porque não resulta o contrário. Neste caso,
o ato é subjetivamente comercial.

3. Os comerciantes
3.1 O artigo 13º, n. 1 CCom
De acordo com o artigo 13º, n. 1 CCom, são comerciantes as pessoas que, tendo capacidade
(1) para praticar atos de comércio (2), fazem deste profissão (3). Portanto, a qualificação de
pessoas, singulares ou coletivas 2, como “comerciantes” depende da verificação cumulativa
dos seguintes pressupostos:
1) Capacidade: Na posição do Curso, a capacidade referida no artigo 13º, n. 1 CCom é a
capacidade de exercício de direitos, essencialmente por duas razões:
- Tratando-se de um requisito excludente, se a capacidade referida fosse a capacidade de
gozo, nenhuma pessoa humana seria excluída, pois todas elas têm capacidade de gozo.
- Tendo em consideração que os três pressupostos têm de ser entendidos à luz uns dos
outros, entende-se que a capacidade referida tem de ser aquela que é necessária para praticar
atos de comércio e fazer dessa prática profissão: a capacidade de exercício.
No entanto, desta conclusão não se pode retirar a ideia de que os incapazes de exercício não
podem aceder à qualidade de comerciante:
1. Se a incapacidade de exercício for suprida, deve ter-se o pressuposto por verificado.
2. Se os atos praticados pelo incapaz forem confirmados ou tiver decorrido o prazo para
arguir a sua anulabilidade, deve ter-se o pressuposto por verificado.
3. Na posição do Curso, enquanto os atos praticados pelo incapaz não forem efetivamente

2Pode acontecer que existam pessoas coletivas que não sejam sociedades comerciais, nem estejam abrangidas
pelo artigo 17º CCom. Na posição do Curso, tais pessoas coletivas poderão adquirir a qualidade de comerciante
se preencherem os pressupostos do artigo 13º, n. 1 CCom. Portanto, o artigo 13º, n. 1 CCom abrange, não só as
pessoas singulares, mas também as pessoas coletivas que não sejam sociedades comerciais, nem entidades
abrangidas pelo artigo 17º CCom.
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anulados, deve ter-se o pressuposto por verificado. A partir do momento em que tais atos são
efetivamente anulados, a retroatividade da anulação afeta a qualidade do incapaz como
comerciante (o incapaz deixará de ser comerciante), mas já não afeta a qualidade do ato por
ele praticado como comercial (o ato por ele praticado não deixará de ser comercial).
2) Prática de atos de comércio: É necessário que a pessoa pratique atos de comércio. A
questão que este pressuposto suscita é a de saber, perante a multiplicidade de atos de
comércio que se encontram na lei comercial, se todos eles são aptos a conferir a qualidade de
comerciante:
- Primeiro, os atos subjetivos de comércio não são aptos a conferir a qualidade de
comerciante, uma vez que eles pressupõem precisamente essa qualidade.
- Segundo, dentre os atos objetivos de comércio, só são aptos a conferir a qualidade de
comerciante aqueles que sejam suscetíveis de um exercício profissional, pois os pressupostos
têm de ser entendidos à luz uns dos outros. Sendo assim:
-» Os atos formalmente comerciais (atos cuja comercialidade advém do mero uso de
mecanismos sujeitos ao Direito Comercial (ex. títulos de crédito, cheques, letras, livranças,
etc.)) não são aptos a conferir a qualidade de comerciante, uma vez que são insuscetíveis de
um exercício profissional.
-» Os atos acessórios de comércio (atos cuja comercialidade objetiva advém da conexão
com um ato objetivo de comércio) podem, conforme os casos, ser aptos a conferir a qualidade
de comerciante, uma vez que podem ser suscetíveis de um exercício profissional:
1. O empréstimo (394º CCom), o penhor (379º CCom) e a fiança (101º CCom) são atos
acessórios de comércio que não são aptos a conferir a qualidade de comerciante, uma vez
que, pela sua natureza, são insuscetíveis de um exercício profissional por parte de uma pessoa
humana. No entanto, quando o empréstimo for exercido profissionalmente por parte de um
banco, dá lugar a operações de banco que, à luz do artigo 362º CCom, são qualificáveis
como atos objetivos de comércio e, portanto, aptas a conferir a qualidade de comerciante.
2. O mandato (231º CCom), a comissão (266º CCom) e o depósito (403º CCom):
- O mandato consiste no contrato pelo qual o mandatário se encarrega de praticar atos de
comércio no interesse, por conta e em nome do mandante, pelo que os efeitos jurídicos da sua
atuação transferem-se para a esfera jurídica deste. Como se entende que só os atos de
comércio praticados em nome próprio conferem a qualidade de comerciante e o mandato, em
regra, é insuscetível de um exercício profissional, conclui-se que, em regra, o mandato não é
apto a conferir a qualidade de comerciante. No entanto, na posição do Curso, se o mandato
for exercido profissionalmente, o mandatário passa a praticar atos de comércio em nome
próprio e, consequentemente, passa a ser apto a conferir a qualidade de comerciante.
- A comissão consiste no contrato pelo qual o mandatário se encarrega de praticar atos de
comércio no interesse e por conta do mandante, mas em nome próprio, pelo que haverá um
momento subsequente em que o mandatário será obrigado a transferir os efeitos jurídicos da
sua atuação para a esfera jurídica do mandante. Como os atos de comércio são praticados em
nome próprio e a comissão é suscetível de um exercício profissional, conclui-se que a
comissão é apta a conferir a qualidade de comerciante.
- O depósito consiste no contrato pelo qual o depositário se obriga a guardar géneros ou

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mercadorias destinadas a qualquer ato de comércio. Como o depósito é suscetível de um
exercício profissional, conclui-se que o depósito é apto a conferir a qualidade de comerciante.
3) Profissionalidade: Na posição do Curso, a profissionalidade supõe sistematicidade
(atividade com continuidade), unidade (um mínimo de organização), escopo lucrativo e
autonomia. Por conseguinte, a profissionalidade tenderá a equiparar-se à empresarialidade.
Analisados os três pressupostos do artigo 13º, n. 1 CCom, importa ainda saber a partir de que
momento uma pessoa adquire a qualidade de comerciante. De acordo com os artigos 1º e 2º,
al. a) CRC, o início da atividade do comerciante em nome individual está sujeito a registo,
registo este que toma a designação de matrícula (55º e 62º CRC). A matrícula, apesar de
obrigatória, não é condição necessária (uma pessoa pode ser comerciante apesar de não estar
matriculada), nem suficiente (uma pessoa pode não ser comerciante apesar de estar
matriculada) da aquisição da qualidade de comerciante, não sendo, portanto, constitutiva da
qualidade de comerciante. O que a matrícula constitui é uma presunção da qualidade de
comerciante (presume-se que, por uma pessoa estar matriculada, é comerciante), presunção
esta que é ilidível mediante prova em contrário (11º CRC). Sendo assim, poder-se-á concluir
que, para que uma pessoa adquira a qualidade de comerciante, basta que estejam preenchidos
os pressupostos do artigo 13º, n. 1 CCom, i.e. o sujeito torna-se comerciante a partir do
momento em que pratica atos de comércio e faz dessa prática profissão.
Nota fundamental:
Quanto aos atos preparatórios, entende-se que, enquanto a pessoa não faz da prática de
atos de comércio profissão, não adquire a qualidade de comerciante. A partir do momento
em que a pessoa pratique atos de comércio e faz dessa prática profissão, há uma retroação
da qualidade de comerciante ao momento em que a pessoa praticou os atos preparatórios,
o que faz com que esses atos sejam qualificáveis como atos subjetivos de comércio.
3.2 O artigo 13º, n. 2 CCom
De acordo com o artigo 13º, n. 2 CCom, são comerciantes as sociedades comerciais. Uma
sociedade é comercial quando preenche os seguintes requisitos:
- É necessário que tenha objeto comercial, i.e. que se proponha à prática de atos de comércio.
- É necessário que tenha forma comercial.
Preenchidos estes requisitos, a sociedade é comercial e, pelo facto de o ser, é comerciante.

Nota fundamental:
Existe uma diferença fundamental entre as pessoas, singulares ou coletivas (13º, n. 1
CCom), e as sociedades comerciais (13º, n. 2 CCom): Enquanto que as sociedades
comerciais são comerciantes pelo simples facto de se proporem à prática de atos de
comércio, as pessoas, singulares ou coletivas, só são comerciantes se praticarem efetiva e
profissionalmente atos de comércio!

De acordo com o artigo 5º CSC, as sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e


existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem. A
questão que este artigo suscita é a de saber se podem existir sociedades comerciais antes do
registo definitivo e, por conseguinte, sem personalidade jurídica. Na posição do Curso, é
possível que existam sociedades comerciais antes do registo definitivo do contrato pelo qual
se constituem e sem personalidade jurídica, exigindo-se a verificação cumulativa dos

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seguintes requisitos:
- É necessário que já tenha sido formalizado o ato constitutivo de sociedade (7º CSC).
- É necessário que já tenham sido praticados atos de comércio.
Por conseguinte, ainda que não se tenha procedido ao registo definitivo pelo qual uma
sociedade comercial se constitui e, portanto, ainda que não goze de personalidade jurídica,
desde que já se tenha formalizado o ato constitutivo de sociedade e já tenham sido praticados
atos de comércio, existirá sociedade comercial e, portanto, existirá comerciante. Não estando
preenchidos os dois requisitos, existirá sociedade à qual se aplicará o regime do Código Civil.
→ Em síntese, o registo é constitutivo da personalidade jurídica das sociedades comerciais,
mas não é constitutivo da sua qualidade de comerciante.
As sociedades civis sob forma comercial, apesar de o artigo 1º, n. 4 CSC permitir que
adotem um tipo societário comercial, não são sociedades comerciais, uma vez que não têm
objeto comercial. Não sendo sociedades comerciais, também não são comerciantes.
3.3 O artigo 17º CCom
De acordo com o artigo 17º CCom, as pessoas coletivas de Direito Público, por muitos atos
de comércio que pratiquem, nunca podem ser comerciantes. Excluem-se do âmbito deste
artigo as entidades públicas empresariais e as empresas públicas municipais e intermunicipais
que podem ser comerciantes se preencherem os pressupostos do artigo 13º, n. 1 CCom.
3.4 O artigo 14º CCom
De acordo com o artigo 14º CCom, não podem praticar atos de comércio e fazer dessa
prática profissão as associações ou corporações que não tenham por objeto interesses
materiais e as pessoas que por lei ou disposições especiais não possam comerciar. No entanto,
pode acontecer que tais entidades, apesar de não poderem praticar atos de comércio, o fazem.
Neste caso, importa estabelecer a seguinte distinção:
- Se tais entidades forem pessoas coletivas, elas têm a sua capacidade de gozo limitada pelo
seu fim. Sendo assim, quando praticam atos de comércio fora do âmbito da sua capacidade,
esses atos serão nulos e, consequentemente, essas entidades não podem ser comerciantes.
- Se tais entidades forem associações que alteraram o seu fim estatutário por um fim
lucrativo, quando praticam atos de comércio, essas entidades podem tornar-se sociedades
comerciais e, portanto, comerciantes, desde que preenchidos os seus requisitos.

4. O regime jurídico das relações jurídico-comerciais


Delimitado o âmbito de aplicação do Direito Comercial face ao Direito Civil, importa agora
saber que consequências resultam da aplicação do Direito Comercial às relações que se
qualificam como jurídico-comerciais.
4.1 A interpretação das normas jurídico-comerciais
4.1.1 A relação entre o Direito Comercial e o Direito Civil
De acordo com o artigo 1º CCom, as relações jurídico-comerciais são regidas pelo Direito
Comercial. Porém, o Direito Comercial é um ramo do Direito Privado que, por um lado, não
pretende regular todos os aspetos das relações jurídico-comerciais e, por outro lado, é
lacunoso. Tratando-se de duas situações distintas, merecem soluções distintas:
- Sendo o Direito Comercial um Direito Privado especial face ao Direito Privado Comum
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(Direito Civil), tal significa que os aspetos de regime que não suscitem especiais necessidades
de regulamentação e que, por essa razão, não se encontram especialmente regulados no
Direito Comercial, serão regidos pelo Direito Civil enquanto Direito Privado Comum. Neste
caso, não existe nenhuma lacuna.
- Sendo que o artigo 3º CCom estabelece uma precedência do Direito Comercial sobre o
Direito Civil no que diz respeito à integração de lacunas, o recurso ao Direito Civil está
condicionado às situações em que não seja possível integrar a lacuna pelo texto da lei
comercial, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos nela prevenidos. Neste caso,
existe uma lacuna que carece de ser preenchida.
4.1.2 O regime aplicável aos atos unilateralmente comerciais
Todas as relações jurídico-comerciais que emergem a partir de um ato de comércio têm dois
lados. Desta constatação decorre uma consequência:
- A uma relação jurídica que seja comercial pelos dois lados (bilateralmente comercial)
aplica-se, no seu todo, o regime do Direito Comercial.
- A uma relação jurídica que seja comercial por um dos lados (unilateralmente comercial),
aplica-se, no seu todo, o regime do Direito Comercial (99º CCom).
4.2 O regime geral das relações jurídico-comerciais
4.2.1 A cessão da posição contratual
O Código Comercial não contém nenhuma norma que regule a cessão da posição contratual.
Uma tal norma existe, contudo, no Direito Civil: o artigo 424º CC, segundo o qual a cessão
da posição contratual depende do consentimento do outro contraente. Esta norma jurídica foi
pensada para os casos em que o cedente atua fora de um contexto empresarial. Sem embargo,
atuando o cedente dentro de um contexto empresarial, é possível mobilizar duas normas
jurídico-comerciais que afastam aquela norma jurídico-civil:
1. O trespasse, que consiste numa designação genérica que abrange uma multiplicidade de
negócios que incidem sobre um estabelecimento comercial ou empresa e que envolvem a
transmissão do direito de propriedade sobre ele/ela, não tem qualquer aspeto do seu regime
regulado no Código Comercial e, em geral, na lei comercial. No entanto, existe um aspeto
específico do seu regime (cessão da posição contratual de arrendatário no caso de trespasse
de estabelecimento comercial) que se encontra regulado no artigo 1112º, n. 1, al. a) CC: O
arrendatário/trespassante não carece do consentimento por parte do senhorio para ceder a
posição contratual de arrendatário com a transmissão do estabelecimento comercial ao
trespassário.
→ Na posição do Curso, o artigo 1112º, n. 1, al. a) CC aplica-se por analogia a todos os
contratos em que haja um confronto entre um interesse comercial (transmissibilidade da
empresa) e um interesse civil (424º CC).
2. O contrato de locação financeira (leasing), que consiste no contrato pelo qual uma
entidade financeira se obriga a adquirir um bem por indicação de um sujeito, obrigando-se a
ceder o gozo desse bem a este, mediante certa contrapartida e durante um determinado prazo,
e conferindo ao locatário financeiro a faculdade de adquirir o bem no final do contrato,
encontra-se regulado no DL n. 149/95, de 24 de Junho que contém uma norma (11º) que
regula a cessão da posição contratual de locatário financeiro: O locatário

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financeiro/trespassante não carece de consentimento do locador para ceder a sua posição
contratual de locatário financeiro ao trespassário, podendo o locador opor-se à cessão da
posição contratual, provando que o cessionário não oferece garantias bastantes à execução do
contrato.
→ Na posição do Curso, o artigo 11º DL n. 149/95, de 24 de Junho aplica-se por analogia
a todos os contratos em que haja um confronto entre interesses comerciais (transmissibilidade
da empresa – relação de confiança).
4.2.2 A responsabilidade solidária das obrigações comerciais
O regime-regra do Direito Civil é a conjunção: o credor só pode exigir de cada um dos
devedores a respetiva quota-parte da prestação integral; cada um dos codevedores responde
individualmente pela sua quota-parte da prestação integral. No entanto, o Direito Comercial
consagra, no artigo 100º CCom, o regime da solidariedade, salvo convenção em contrário
entre credor e codevedores: o credor pode exigir de cada um dos codevedores a prestação
integral (relações externas); o devedor que satisfizer o direito de crédito tem direito de
regresso contra cada um dos codevedores (relações internas).
Notas fundamentais:
- Quanto ao lado passivo, é necessário que o ato seja comercial pelo lado dos devedores!
- Quanto ao lado ativo, não é necessário que o ato seja comercial pelo lado do credor.
4.2.3 A responsabilidade solidária na fiança comercial
O Direito Comercial consagra, no artigo 101º CCom, o regime da solidariedade na fiança
comercial, salvo convenção em contrário entre credor e afiançado: o credor pode exigir do
fiador e do afiançado a prestação integral; o fiador não goza do benefício da excussão prévia;
tendo o fiador pago ao credor integralmente, poderá atuar contra o afiançado, o qual terá de
pagar, em último termo.

Notas fundamentais:
- Quanto ao lado passivo, é necessário que o ato seja comercial pelo lado dos devedores.
- Quanto ao lado ativo, não é necessário que o ato seja comercial pelo lado do credor.
4.2.4 As dívidas comerciais do cônjuge comerciante
De acordo com o artigo 1691º, n. 1, al. d) CC, são da responsabilidade de ambos os cônjuges
as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar
que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o
regime de separação de bens. Ora, para facilitar a aplicação deste artigo a favor do credor, o
legislador comercial estabeleceu o artigo 15º CCom, segundo o qual as dívidas comerciais do
cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio. Sendo assim,
para que o credor beneficie da presunção que o artigo 15º CCom estabelece e, portanto, da
aplicação do artigo 1691º C, n. 1, al. d) CC, só terá de provar que, por um lado, o cônjuge que
contraiu a dívida é comerciante e, por outro lado, que a dívida foi contraída por um ato de
comércio. Verificados estes dois pressupostos da presunção, presumir-se-á que a dívida foi
contraída no exercício do comércio e por ela responderão os bens comuns do casal e, na falta
ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de cada um (1695º, n. 1 CC), a não
ser que qualquer um dos cônjuges consiga ilidir, ou algum dos pressupostos em que assenta a
presunção do artigo 15º CCom, ou a presunção de proveito comum do casal.

13
Nota fundamental:
Na posição do Curso, a presunção que o artigo 15º CCom estabelece funciona para
qualquer comerciante, independentemente de estar casado ou não!

4.2.5 O vencimento das obrigações mercantis


O artigo 4º, n. 3 DL n. 62/2012, de 10 de Maio prevê que sempre que do contrato não conste
a data ou o prazo de vencimento, o credor tem direito a juros de mora após o termo dos
prazos nele previstos, os quais se vencem automaticamente sem necessidade de interpelação.
Isto significa que o prazo de vencimento das obrigações de pagamento resultantes de
transações entre titulares de empresas é de 30 dias.
4.2.6 Os juros comerciais
De acordo com o artigo 102º CCom, haverá lugar ao decurso e contagem de juros em todos
os atos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos
especiais fixados no Código Comercial. Portanto, os atos de comércio só vencerão juros em
caso de convenção das partes nesse sentido ou de disposição legal que o determine.
4.2.7 A prescrição de créditos comerciais
Os direitos de crédito podem “nascer” com um prazo de vida definido (caducidade) ou, não
“nascendo” com um prazo de vida definido, podem ter um prazo para serem exercidos e que
decorre da lei (prescrição). No Direito Civil, vigora o artigo 309º CC, segundo o qual o prazo
ordinário da prescrição é de 20 anos. O Direito Comercial não contém nenhuma norma que
regule a prescrição de créditos comerciais. No entanto, ao lado daquele artigo, o artigo 317º,
al. b) CC dirige-se às relações jurídico-mercantis, prevendo que prescrevem no prazo de 2
anos os créditos (emergidos de um ato de comércio) dos comerciantes (13º CCom) pelos
objetos vendidos a quem não seja comerciante ou a quem seja comerciante que esteja a atuar
fora da sua atividade profissional, e bem assim os créditos daqueles que exerçam
profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de
trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efetuado, a menos
que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor. Trata-se de uma prescrição
presuntiva, i.e. assenta numa presunção de cumprimento: ao fim de 2 anos, presume-se que o
direito de crédito já foi satisfeito. Pelo exposto, é possível concluir que:
- O prazo de prescrição do direito de crédito de um comerciante sobre um comerciante é de
20 anos.
- O prazo de prescrição do direito de crédito de um comerciante sobre um comerciante que
atua fora da sua atividade profissional é de 2 anos. Neste caso, se o comerciante que atua fora
da sua atividade profissional (devedor) invocar contra o credor a prescrição presuntiva, este
pode beneficiar da presunção do artigo 15º CCom e evitar, desta forma, a aplicação do artigo
317º, al. b) CC.
- O prazo de prescrição do direito de crédito de um comerciante sobre um não-comerciante é
de 2 anos.
- O prazo de prescrição do direito de crédito de um não-comerciante sobre um não-
comerciante é de 20 anos.

14
4.2.8 A cessação dos contratos comerciais de execução duradoura
Os contratos comerciais de execução duradoura podem ser divididos em duas categorias:
- Contratos comerciais celebrados com prazo: Os contratos comerciais com prazo cessam por
caducidade (1) ou por resolução (2). Pode, todavia, acontecer uma das seguintes situações:
1. Que as partes tenham previsto uma cláusula sobre a prorrogação do prazo.
2. Que as partes continuem a executar o contrato, como se se tivesse transformado num
contrato sem prazo.
- Contratos comerciais celebrados sem prazo: Em respeito pelo princípio da não-vinculação
perpétua, segundo o qual as relações jurídicas estabelecidas não podem ser perpétuas, os
contratos comerciais sem prazo cessam por denúncia (1) ou por resolução (2).
No que diz respeito à denúncia, é possível mobilizar duas normas jurídico-comerciais:
- Nos contratos de agência celebrados sem prazo ou por tempo indeterminado é permitida
denúncia por qualquer umas das partes desde que comunicada ao outro contraente, por escrito
e com respeito, entre o exercício do direito à denúncia e a data da cessação efetiva do
contrato, de um prazo de pré-aviso cuja duração varia em função da duração do contrato. É o
que resulta do artigo 28º, n. 1 DL n. 178/86, de 3 de Julho. A violação do prazo de pré-aviso
não põe em causa o efeito extintivo da denúncia, mas faz incorrer o contraente em
responsabilidade pelos danos decorrentes da cessação abrupta.
→ Na posição do Curso, este artigo aplica-se por analogia aos contratos comerciais
duradouros.
- Nos contratos de consórcio celebrados sem prazo ou por tempo indeterminado é permitida
denúncia por qualquer uma das partes, em qualquer momento (sem prazo de pré-aviso), desde
que decorridos 10 anos sobre a celebração do contrato. É o que resulta do artigo 30º, n. 3 DL
n. 231/81, de 28 de Julho. O exercício abusivo do direito à denúncia faz incorrer o
contraente em responsabilidade pelos danos decorrentes da cessação abrupta.
→ Na posição do Curso, este artigo aplica-se por analogia aos contratos comerciais
duradouros que impliquem uma especial relação de cooperação entre as partes no exercício
de determinada atividade económica.
4.2.9 Os deveres de informação
Os deveres de informação assumem relevância no âmbito do Direito Comercial
essencialmente em duas situações:
- Sempre que haja um desnível informativo, sobre a parte que na relação jurídico-comercial
tiver informação a mais recai um dever de informação (espontâneo e provocado).
- Sempre que haja um desnível no acesso à informação, sobre a parte que na relação jurídico-
comercial tiver informação a mais recai um dever de equilibrar tal desnível.

CONCLUSÃO DA MATÉRIA ATINENTE À PRIMEIRA FREQUÊNCIA

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5. O regime geral dos comerciantes
5.1 As obrigações impostas aos comerciantes
A lei comercial conhece um conjunto de obrigações que se dirigem especialmente aos
comerciantes. A disposição central nesta matéria é o artigo 18º CCom, segundo o qual os
comerciantes são especialmente obrigados:
n. 1: A adotar uma firma (Registo Nacional de Pessoas Coletivas)
n. 2: A ter escrituração mercantil
n. 3: A fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos (Código do Registo
Comercial)
n. 4: A dar balanço e a prestar contas
A estas quatro obrigações, há que acrescentar duas obrigações constantes de outros diplomas:
- Não-comercializar produtos que não sejam seguros (DL n. 66/2005, de 17 de Março)
- Apresentar-se à insolvência (Código da Insolvência e Recuperação de Empresa)
5.2 A obrigação de adotar uma firma
5.2.1 A firma-nome, a firma-denominação e a firma mista
Sobre os comerciantes recai a obrigação de, em todos os atos praticados no exercício da sua
atividade, usar uma firma. A firma é o sinal que o comerciante usa no tráfico comercial para
ser identificado e distinguido dos demais sujeitos que aí atuam. A firma pode ser uma firma-
nome, uma firma-denominação ou uma firma mista:
- Firma-nome: A firma-nome é composta pelo nome do(s) comerciante(s).3
- Firma-denominação: A firma-denominação é composta por uma referência à atividade
exercida ou por uma designação de fantasia.4
- Firma mista: A firma mista é composta em parte pelo nome do(s) comerciante(s) e em
parte por uma denominação.5
Três notas acerca da firma:
1. Nota: Das quatro obrigações previstas no artigo 18º CCom, a obrigação de adotar uma
firma deixou de ser regulada pelo Código Comercial e encontra-se, hoje, regulada no Registo
Nacional de Pessoas Coletivas. Tal deve-se ao facto de esta obrigação ter passado a recair,
não só sobre os comerciantes, mas também sobre não-comerciantes. Ora, apesar de a
obrigação de adotar uma firma continuar a ser típica dos comerciantes, não lhes é privativa.
2. Nota: A firma, que identifica e distingue comerciantes, não se confunde com outros sinais:
- Marca: A marca é o sinal que individualiza e distingue produtos e serviços.
- Logótipo: O logótipo é o sinal que individualiza e distingue estabelecimentos comerciais.
3. Nota: Pode acontecer que o mesmo sinal seja usado como firma, como marca e como
logótipo.6

3 Luís Simões
4 Caixa Geral de Depósitos
5 Luís Simões Transportes

6 O sinal “Continente” é usado como firma (individualiza e distingue comerciantes), como marca (individualiza

e distingue produtos e serviços) e como logótipo (individualiza e distingue estabelecimentos comerciais).


16
5.2.2 A composição da firma
No que diz respeito ao regime de composição da firma, importa estabelecer uma distinção
entre os comerciantes em nome individual e as sociedades comerciais:
Comerciantes em nome individual:
De acordo com o artigo 38º, n. 1 RNPC, o comerciante em nome individual deve adotar uma
só firma (princípio da unidade da firma), composta pelo seu nome, completo ou abreviado,
conforme seja necessário para a sua identificação e distinção no tráfico comercial (princípio
da capacidade distintiva) (ex. António Ferreira da Silva; António da Silva). Pode o
comerciante em nome individual ainda aditar ao seu nome uma alcunha ou uma expressão
alusiva à atividade exercida (ex. António Ferreira da Silva, Transportes) (n. 1) e, no caso de
ter adquirido, por qualquer título entre vivos ou por herança ou legado, o estabelecimento
comercial de outrem, a indicação “Sucessor de” ou “Herdeiro de” e a firma do
estabelecimento comercial que tenha adquirido (ex. António Ferreira da Silva,
Sucessor/Herdeiro de Maria Helena Barbosa) (n. 2). O nome do comerciante em nome
individual não pode ser antecedido de quaisquer expressões ou siglas, salvo as
correspondentes a títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que tenha direito, e a
sua abreviação não pode reduzir-se a um só vocábulo, a menos que a adição efetuada o torne
completamente individualizador (n. 3).
Sociedades comerciais:
De acordo com o artigo 37º, n. 1 RNPC, a firma das sociedades comerciais deve ser
composta nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais:
- Sociedades por quotas: A firma das sociedades por quotas é composta, com ou sem sigla,
pelo nome ou firma de todos, algum ou alguns dos sócios, ou por uma denominação
particular, ou pela reunião de ambos esses elementos, mas em qualquer caso concluirá pela
palavra «limitada» ou pela abreviatura «Lda.» (200º, n. 1 CSC).
- Sociedades anónimas: A firma das sociedades anónimas é composta, com ou sem sigla,
pelo nome ou firma de um ou alguns dos sócios ou por uma denominação particular, ou pela
reunião de ambos esses elementos, mas em qualquer caso concluirá pela expressão
«sociedade anónima» ou pela abreviatura «S. A.» (275º, n. 1 CSC).
Nota fundamental:
A firma das sociedades de responsabilidade limitada (sociedades por quotas, sociedades
anónimas) pode ser uma firma-nome, uma firma-denominação ou uma firma mista.

- Sociedades em nome coletivo: A firma das sociedades em nome coletivo, quando não
individualizar todos os sócios, é composta, pelo menos, pelo nome ou firma de um deles, com
o aditamento, abreviado ou por extenso, 'e Companhia' ou qualquer outro que indique a
existência de outros sócios (177º, n. 1 CSC).
- Sociedades em comandita: A firma das sociedades em comandita é composta pelo nome
ou firma de um, pelo menos, dos sócios comanditados e o aditamento 'em Comandita' ou '&
Comandita', 'em Comandita por Ações' ou '& Comandita por Ações' (467º, n. 1 CSC).
Nota fundamental:
A firma das sociedades de responsabilidade ilimitada (sociedades em nome coletivo,
sociedades em comandita) tem de ser uma firma-nome.

17
5.2.3 Os princípios relativos à composição da firma
A composição da firma deve ser orientada pelos seguintes princípios:
1) Princípio da unidade da firma: O princípio da unidade da firma, que se encontra
consagrado no artigo 38º, n. 1 RNPC, exige que cada comerciante em nome individual adote
uma só firma.
2) Princípio da capacidade distintiva: O princípio da capacidade distintiva, que se encontra
consagrado no artigo 38º, n. 1 RNPC, exige que cada comerciante em nome individual adote
uma firma que seja capaz de identificá-lo e distingui-lo dos demais sujeitos que atuam no
tráfico comercial.
3) Princípio da verdade: O princípio da verdade, que se encontra consagrado no artigo 32º,
n. 1 RNPC, exige que os elementos componentes da firma sejam verdadeiros e não induzam
em erro sobre a identificação, natureza ou atividade do seu titular. Este princípio tem dois
conteúdos possíveis em função da natureza do titular da firma:
- Conteúdo positivo: Para os comerciantes em nome individual, o princípio da verdade tem
um conteúdo positivo, devendo a firma ser verdadeira.
- Conteúdo negativo: Para as sociedades comerciais, o princípio da verdade tem um conteúdo
negativo, não tendo a firma que ser verdadeira, mas não podendo induzir em erro.
→ O respeito pelo princípio da verdade é aferido de acordo com o critério do homem médio.
4) Princípio da licitude: O princípio da licitude, que se encontra consagrado no artigo 32º,
n. 4 RNPC, exige que da firma não façam parte:
al. a) Expressões que possam induzir em erro quanto à caracterização jurídica da pessoa
coletiva, designadamente o uso, por entidades com fim lucrativo, de expressões
correntemente usadas na designação de organismos públicos ou de associações sem
finalidade lucrativa
al. b) Expressões proibidas por lei ou ofensivas da moral ou dos bons costumes
al. c) Expressões incompatíveis com o respeito pela liberdade de opção política, religiosa ou
ideológica
al. d) Expressões que desrespeitem ou se apropriem ilegitimamente de símbolos nacionais,
personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou significado seja de salvaguardar por
razões históricas, patrióticas, científicas, institucionais, culturais ou outras atendíveis
5) Princípio da novidade: O princípio da novidade, que se encontra consagrado no artigo
33º, n. 1 RNPC, exige que cada firma seja distinta e insuscetível de confusão ou erro com
todos os sinais (firmas, marcas, logótipos) anteriormente registados, independentemente de
estarem dentro ou fora do âmbito da atividade exercida pelo seu titular.7 Acontece que quanto
mais próximas forem as atividades exercidas, mais distintas terão que ser as firmas; quanto
mais distantes forem as atividades exercidas, mais semelhantes poderão ser as firmas.
→ O respeito pelo princípio da novidade é aferido de acordo com o critério do homem médio,
tendo em conta o tipo de pessoa, o seu domicílio ou sede, a afinidade ou proximidade das
suas atividades e o âmbito territorial destas (n. 2), bem como a existência de marcas e

7Sendo assim, conclui-se que, na posição do Curso, no Direito das Firmas não vale o princípio da especialidade
que vale no Direito das Marcas.
18
logótipos já concedidos que sejam de tal forma semelhantes que possam induzir em erro
sobre a titularidade desses sinais distintivos (n. 5).

Nota fundamental:
O princípio da novidade não se confunde com o princípio da capacidade distintiva:
Enquanto que o princípio da novidade exige que a firma seja distinta de outros sinais
distintivos, o princípio da capacidade distintiva exige que a firma seja capaz de distinguir
o seu titular dos outros sujeitos que atuam no tráfico comercial.
6) Princípio da exclusividade: O princípio da exclusividade, que se encontra consagrado no
artigo 35º RNPC, define o âmbito territorial de tutela que o direito ao uso exclusivo da firma
confere ao seu titular:
- Os comerciantes em nome individual…:
-» … que usem como firma apenas o seu nome, completo ou abreviado, não têm direito ao
uso exclusivo da sua firma. Entende-se que assim o seja, uma vez que, se se levasse o
princípio da exclusividade até às últimas consequências, tais comerciantes impedir iam que
comerciantes homónimos, que estão especialmente obrigados a adotar uma firma que deve
ser composta pelo seu nome, pudessem adotar uma firma. Porém, entende-se que estes
comerciantes, apesar de poderem adotar uma firma idêntica à firma daqueles, devem aditar-
lhe um elemento distintivo, em respeito pelos princípios da capacidade distintiva, da verdade
e da novidade.
-» … que não usem como firma apenas o seu nome, completo ou abreviado, têm direito ao
uso exclusivo da sua firma no âmbito do concelho onde se encontra o seu estabelecimento
principal (38º, n. 4 RNPC).
- As sociedades comerciais têm direito ao uso exclusivo da sua firma em todo o território
nacional (37º, n. 2 RNPC).
5.2.4 A transmissão da firma
A firma é um sinal vinculado, mas dissociável do estabelecimento comercial a que se achar
ligada. Sendo assim:

Não se pode transmitir a firma, sem Pode-se transmitir a firma com o


transmitir-se o estabelecimento comercial a estabelecimento comercial a que se achar
que se achar ligada (44º, n. 4 RNPC). ligada.
Pode-se transmitir o estabelecimento Pode-se transmitir o estabelecimento
comercial, sem transmitir-se a firma que se comercial com a firma que se achar ligada a
achar ligada a ele. ele.
Transmissão inter vivos:
De acordo com o artigo 44º, n. 1 RNPC, o adquirente, por qualquer título entre vivos, de um
estabelecimento comercial pode aditar à sua própria firma a menção de haver sucedido na
firma do anterior titular do estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito (ex.
António Ferreira da Silva, Sucessor de Maria Helena Barbosa).
Transmissão mortis causa:
De acordo com o artigo 44º, n. 3 RNPC, o adquirente, por herança ou legado, de um
estabelecimento comercial pode aditar à sua própria a firma a menção de haver sucedido na

19
firma do anterior titular do estabelecimento (ex. António Ferreira da Silva, Sucessor/Herdeiro
de Maria Helena Barbosa).
Nota fundamental:
Em rigor, o adquirente de um estabelecimento comercial não adquire o direito de
propriedade sobre a firma do anterior titular do estabelecimento, mas tão-só o direito de
aditar à sua própria firma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular do
estabelecimento.
5.2.5 O direito ao uso exclusivo da firma
Diz o artigo 35º RNPC que, após o registo definitivo da firma, é conferido o direito ao uso
exclusivo da mesma ao seu titular. Ora, constata-se que o registo da firma é constitutivo, i.e.
sem registo, não há direito ao uso exclusivo da firma. Isto não significa, todavia, que, na
ausência de registo da firma, não exista nenhuma tutela para quem a use:
- Quem usa um sinal a título de firma que não registou, independentemente de ter 8 ou ainda
não ter requerido o certificado de admissibilidade de firma, apesar de não ser titular de um
direito ao uso exclusivo da mesma, pode opor-se ao uso e/ou ao registo de um sinal igual ou
confundível com o seu por parte de outrem se demonstrar que está em causa a prática de um
ato de concorrência desleal.
- Quem usa um sinal a título de firma que registou, é titular de um direito ao uso exclusivo da
mesma que se desdobra num poder de usar a sua firma no âmbito territorial especialmente
definido (1) e num poder de opor-se ao uso e/ou ao registo de um sinal igual ou confundível
com a sua firma por parte de outrem (2).
5.3 A obrigação de ter escrituração mercantil
Sobre os comerciantes recai a obrigação de ter escrituração mercantil (29º e ss. CCom), na
qual devem inscrever todos os factos relativos à sua atividade comercial.
5.3.1 O modo de organização da escrituração mercantil
O Código Comercial consagra o princípio da liberdade de organização da escrituração
mercantil (30º CCom), segundo o qual o comerciante pode escolher o modo de organização
da escrituração mercantil, bem como o seu suporte. Para as sociedades comerciais são
estabelecidas regras especiais quanto aos livros de atas (31º, 37º e 38º CCom).
5.3.2 A obrigação de arquivar a correspondência, a escrituração mercantil e os
documentos
A escrituração mercantil e os documentos a ela relativos, bem como a correspondência
emitida e recebida pelo comerciante, devem ser arquivados e mantidos durante pelo menos 10
anos (40º CCom).
5.3.3 A privacidade da escrituração mercantil
Em regra, a escrituração mercantil é privativa do comerciante a que diga respeito e só por ele
pode ser exibida. Porém, o tribunal pode, a pedido dos interessados, ordenar a exibição
judicial da escrituração mercantil e dos documentos a ela relativos em questões de sucessão

8 Quem usa um sinal a título de firma que não registou, mas já requereu o certificado de admissibilidade de
firma, apesar de não ser titular de um direito ao uso exclusivo do mesmo, goza de uma presunção de
exclusividade (35º, n. 2 RNPC).
20
universal, comunhão ou sociedade e no caso de insolvência (42º CCom). Pode ainda
proceder-se, a pedido dos interessados ou oficiosamente, ao exame da escrituração mercantil
e dos documentos a ela relativos quando o comerciante a quem digam respeito nisso tenha
interesse ou responsabilidade (43º CCom).
5.3.4 A força probatória da escrituração mercantil
A escrituração mercantil é um elemento de prova entre comerciantes relativamente a questões
emergentes de relações jurídico-comerciais (44º CCom):
n. 1: Os factos inscritos na escrituração mercantil, regular ou irregularmente arrumados,
fazem prova contra o comerciante a que dizem respeito. No entanto, se o outro comerciante
pretender prevalecer-se de factos inscritos nessa escrituração mercantil que lhe sejam
favoráveis, deve aceitar outros que lhe possam ser desfavoráveis.
n. 2: Os factos inscritos na escrituração mercantil regularmente arrumados fazem prova a
favor do comerciante a que dizem respeito, desde que os factos inscritos na escrituração
mercantil do outro não lhes sejam opostos e estejam regularmente arrumados.
n. 3: Se os factos inscritos na escrituração mercantil de ambos estiverem regularmente
arrumados, e houver contradição entre eles, o tribunal decidirá a questão pelo merecimento
de quaisquer provas do processo.
n. 4: Se os factos inscritos na escrituração mercantil de um comerciante estiverem
regularmente arrumados e os factos inscritos na escrituração mercantil do outro estiverem
irregularmente arrumados, e houver discrepância entre eles, aqueles farão fé contra estes.
§ único: Se um comerciante não tiver escrituração mercantil ou recusar apresentá-la, a
escrituração mercantil do outro, regularmente arrumada, fará fé contra aquele.
5.4 A obrigação de fazer inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos
Sobre os comerciantes recai a obrigação de fazer inscrever no registo comercial os atos a ele
sujeitos.
5.4.1 O registo obrigatório e facultativo
Os artigos 2º CRC (relativamente aos factos relativos aos comerciantes em nome individual)
e 3º CRC (relativamente aos factos relativos às sociedades comerciais) preveem um conjunto
de factos que estão sujeitos a registo comercial. De acordo com o artigo 15º, n. 1 CRC, o
registo de alguns desses factos é obrigatório, sendo o registo dos restantes, por maioria de
razão, facultativo.
5.4.2 O registo por transcrição e por depósito
De acordo com o artigo 53º-A, n. 1 CRC, os registos são efetuados por transcrição ou por
depósito.
- Registo por transcrição: O registo por transcrição9 consiste na extração, com controlo
substancial, dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo
constantes dos documentos apresentados (n. 2).
- Registo por depósito: O registo por depósito consiste no mero arquivamento, sem qualquer
controlo substancial, dos documentos que titulam factos sujeitos a registo (n. 3).

9De acordo com o artigo 11º CRC, o registo por transcrição (que não o registo por depósito) definitivo constitui
presunção de que existe a situação jurídica inscrita, nos precisos termos em que é definida.
21
5.5 A obrigação de se apresentar à insolvência
Sobre os comerciantes 10 recai a obrigação de se apresentar à insolvência.
5.5.1 A situação de insolvência
No Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é possível encontrar três
conceitos distintos de insolvência aos quais correspondem regimes distintos:
- Situação de insolvência atual: Encontra-se em situação de insolvência atual o devedor que
se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (3º, n. 1 CIRE).
- Situação de insolvência meramente iminente: Encontra-se em situação de insolvência
meramente iminente o devedor que ainda não se encontre impossibilitado de cumprir as suas
obrigações vencidas, mas pode antever que irá encontrar-se nessa situação.
- Situação económica difícil: Encontra-se em situação económica difícil o devedor que
enfrente dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, por ter falta de
liquidez ou por não conseguir obter crédito (17º-B CIRE).
Em regra11, o critério de insolvência é o da cessação de pagamentos. Uma vez em situação de
insolvência, o legislador entende que não deve ficar na discricionaridade do devedor a
decisão sobre a quem pagar, essencialmente por duas razões:
1. Por um lado, se a decisão sobre a quem pagar ficasse na discricionaridade do devedor, tal
colocaria em causa o princípio da igualdade dos credores (par conditio creditorium).
2. Por outro lado, se a decisão sobre a quem pagar ficasse na discricionaridade do devedor,
não seria possível garantir a boa administração do seu património, interesse prosseguido
pelos seus credores.
Tanto o princípio da igualdade dos credores, como a boa administração do património do
devedor são garantidos pelo legislador através de um processo de insolvência.
5.5.2 O processo de insolvência
De acordo com o artigo 1º, n. 1 CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução
universal que tem como finalidade a satisfação dos credores, seja através de um procedimento
legalmente previsto, seja através de um plano de insolvência.
O processo de insolvência inicia-se com a apresentação do devedor à insolvência, requerida
pelo próprio devedor, por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer
credor ou pelo Ministério Público, dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da
situação de insolvência ou à data em que devesse conhecê-la (18º, n. 1 CIRE e 20º CIRE).

10 Apesar de a obrigação de se apresentar à insolvência continuar a ser típica dos comerciantes, não lhes é
privativa. Na verdade, o critério de delimitação do âmbito de aplicação do CIRE é constituído pela titularidade
de uma empresa, i.e. a obrigação de se apresentar à insolvência recai sobre os titulares de uma empresa para
efeitos do artigo 5º CIRE, independentemente de serem ou não comerciantes.
11 Para além do critério geral da insolvência consagrado no artigo 3º, n. 1 CIRE, existem outros dois critérios:

- De acordo com o artigo 3º, n. 2 CIRE, são consideradas em situação de insolvência atual as pessoas coletivas
cujo passivo seja manifestamente superior ao ativo.
- De acordo com o artigo 3º, n. 4 CIRE, equipara-se à situação de insolvência atual a situação de insolvência
meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência. O legislador decidiu conceder ao
devedor em situação de insolvência meramente iminente a faculdade (e não o dever !) de se apresentar à
insolvência, beneficiando do mesmo tratamento como se se encontrasse em situação de insolvência atual.
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Situação de insolvência O devedor pode requerer a Os credores do devedor não
meramente iminente declaração da sua podem requerer a declaração
insolvência. da insolvência deste.
Situação de insolvência O devedor deve requerer a Os credores do devedor
atual declaração da sua podem requerer a declaração
insolvência. da insolvência deste.
5.5.3 Os efeitos da sentença de declaração de insolvência
Apresentado o devedor à insolvência, o tribunal profere uma sentença de declaração de
insolvência da qual resultam, nomeadamente, os seguintes efeitos:
1) Nomeação do administrador da insolvência: Na sentença que declarar a insolvência, o juiz
nomeia o administrador da insolvência (36º, n. 1, al. d) CIRE).
2) Apreensão do património do insolvente: Na sentença que declarar a insolvência, o juiz
decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da
contabilidade do devedor e de todos os bens integrantes da massa insolvente (36º, n. 1, al. g)
CIRE, conjugado com o artigo 149º, n. 1 CIRE).
3) Designação de prazo para reclamação de créditos: Na sentença que declarar a insolvência,
o juiz designa prazo, até 30 dias, para a reclamação de créditos (36º, n. 1, al. j) CIRE).
Dentro do prazo fixado pelo juiz, devem os credores da insolvência reclamar a verificação
dos seus créditos (128º, n. 1 CIRE).
4) Transferência dos poderes de administração e disposição: A declaração de insolvência
priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de
administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a
competir ao administrador da insolvência (81º, n. 1 CIRE).
5) Vencimento imediato de dívidas: A declaração de insolvência determina o vencimento de
todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva (91º CIRE).
6) Resolução em benefício da massa insolvente: Podem ser resolvidos em benefício da massa
insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do
início do processo de insolvência (120º CIRE).
5.5.4 O plano de insolvência
A recuperação da empresa compreendida na massa insolvente ou, quando tal não se afigure
possível, a liquidação do património do devedor e a repartição do produto obtido pelos
credores podem ser regulados num plano de insolvência.
- Se o plano de insolvência for aprovado pela assembleia dos credores, das duas uma:
-» Se o plano de insolvência estiver de acordo com a lei, o tribunal homologa-o.
-» Se o plano de insolvência não estiver de acordo com a lei, o tribunal não o homologa.
- Se o plano de insolvência não for aprovado pela assembleia dos credores, o tribunal não o
homologa.
5.5.5 O processo especial de revitalização
O processo especial de revitalização, que se encontra previsto nos artigos 17º-A e ss. CIRE,
destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica
difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de
recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com
estes acordo conducente à sua revitalização e evitar a execução universal do seu património.

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6. Os negócios sobre o estabelecimento comercial (ou empresa)
6.1 O estabelecimento comercial (ou empresa) como objeto de negócios
A expressão “empresa” é utilizada no Direito em três aceções que correspondem a três perfis
distintos:
- Perfil subjetivo: a empresa enquanto sequência de atividades levada a cabo por um sujeito
- Perfil objetivo: a empresa enquanto organização de meios da qual o sujeito se serve para
exercer uma atividade qualificada como comercial pelo Direito Comercial
- Perfil institucional: a empresa enquanto entidade própria no mercado
Na prática dos negócios e na própria lei, utiliza-se, com frequência, como sinónimo de
empresa que realça a sua faceta objetiva a expressão “estabelecimento comercial”,
estabelecimento comercial este que, por ser um instrumento de intervenção no mercado e por
suscitar interesse por parte de outros sujeitos, pode ser e é objeto de negócios.
6.1.1 O estabelecimento comercial
O estabelecimento comercial é uma realidade da vida económica que existe antes e
independentemente do Direito. Por essa razão, o Direito optou por não apresentar uma noção
de “estabelecimento comercial”, limitando-se a acolhê-lo tal como ele se apresenta na
realidade. A este propósito, importa fazer referência a três correntes que surgiram e que
refletem perspetivas diferentes acerca daquilo que o estabelecimento comercial é:
- Doutrina agregacionista: A doutrina agregacionista vê no estabelecimento comercial um
conjunto de meios do qual um sujeito se serve para exercer a sua atividade comercial.
- Doutrina organicista: A doutrina organicista vê no estabelecimento comercial uma
organização de meios do qual um sujeito se serve para exercer a sua atividade comercial.
- Doutrina imaterialista: A doutrina imaterialista vê no estabelecimento comercial um
conjunto de relações com o exterior (clientes, fornecedores, financiadores).
Ora, por um lado, nenhuma destas três correntes apreende, só por si, aquilo que o
estabelecimento comercial é na realidade e, por outro lado, o estabelecimento comercial, no
seu todo, é mais do que a simples justaposição dos contributos por elas fornecidos. Desta
forma, à luz dos ensinamentos de Orlando de Carvalho, poder-se-á concluir e definir o
estabelecimento comercial como uma organização concreta de fatores produtivos (ou
valores do lastro ostensivo) enquanto valor de posição no mercado.
6.1.2 Os patamares do estabelecimento comercial
Daquela definição, é possível identificar três patamares do estabelecimento comercial:
1) Valores do lastro ostensivo: O estabelecimento comercial tem na sua base fatores
produtivos ou valores do lastro ostensivo – todos os elementos que sejam dotados ou de
autonomia ou, pelo menos, de um tratamento jurídico ou económico relativamente autónomo
em relação ao estabelecimento comercial –, que tanto podem ser materiais (ex. edifícios,
máquinas, mobiliário, contratos com trabalhadores, fornecedores e financiadores), como
imateriais (ex. marca, direitos, dívidas, etc.), mas todos cumprem uma dupla-função:
- Função produtiva: Por um lado, os valores do lastro ostensivo participam na produção de
bens ou serviços que o sujeito visa colocar no mercado.
- Função sensibilizadora: Por outro lado, os valores do lastro ostensivo sensibilizam ou
radicam e transportam o valor de posição do estabelecimento comercial no mercado.

24
2) Valores de organização: Os fatores produtivos ou valores do lastro ostensivo são
integrados, de acordo com os princípios da seleção ótima, da dimensão adequada e da
combinação ótima, numa organização dirigida pelo sujeito para a intervenção no mercado.
Surgem, deste modo, os valores de organização e, com eles, o estabelecimento comercial que
assume uma identidade própria no mercado, tornando-se apto a nele intervir (não
necessariamente nele funcionar) – aviamento-organização.
3) Valores de exploração: Quando o estabelecimento comercial começa a funcionar no
mercado e estabelece relações de facto de valor económico com clientes (clientela), com o
público em geral (reputação), com fornecedores (bom-nome) e com financiadores (crédito),
surgem os valores de exploração e, com eles, o estabelecimento comercial torna-se apto para
funcionar no mercado – aviamento-exploração.
O valor de posição do estabelecimento comercial no mercado radica nos seus valores de
organização e valores de exploração.
6.2 O trespasse do estabelecimento comercial
6.2.1 O trespasse
Na prática social, o negócio translativo do direito de propriedade sobre um estabelecimento
comercial é designado por trespasse. O trespasse consiste numa designação genérica que
abrange uma multiplicidade de negócios, cuja matriz é a compra e venda, que têm por objeto
um estabelecimento comercial 12 e que envolvem a transmissão do direito de propriedade
sobre ele. Nessa medida, não se incluem na noção de trespasse os negócios sobre
participações sociais em sociedades, pois não têm por objeto um estabelecimento comercial.
6.2.2 O âmbito de entrega: os âmbitos natural, máximo e imperativo
Tendo em conta que o estabelecimento comercial é uma organização concreta de fatores
produtivos (ou de valores do lastro ostensivo) enquanto valor de posição no mercado,
qualquer trespasse sobre um estabelecimento comercial levanta o problema do âmbito de
entrega, i.e. do apuramento dos valores do lastro ostensivo que devem ser incluídos e dos que
podem ser excluídos e/ou aditados no negócio entre trespassante e trespassário:
1) Âmbito natural: O trespassante e o trespassário podem, à luz do princípio da liberdade de
conformação do estabelecimento comercial na negociação, fazer menção aos elementos
incluídos no negócio ou omitir essa menção. Neste último caso, entende-se que o
estabelecimento comercial é negociado no seu âmbito natural. O âmbito natural é composto
por todos os valores do lastro ostensivo que integram o estabelecimento comercial, com
exceção dos elementos que compõem o âmbito máximo. No entanto, o âmbito natural pode, à
luz daquele mesmo princípio, ser objeto de exclusões (desde que respeitado o âmbito
mínimo) e de aditamentos (valores do lastro ostensivo que compõem o âmbito máximo).

12O trespassante pode ter por objeto um estabelecimento comercial no seu todo ou parte de um estabelecimento
comercial que seja um ramo autónomo ou autonomizável desse mesmo estabelecimento comercial (ex. café ou
restaurante com uma secção no balcão de tabacaria – neste caso, o café é um ramo, a tabacaria é outro ramo). A
diferença entre um ramo autónomo e um ramo autonomizável reside no facto de aquele já ter o seu próprio valor
de posição no mercado que radica em valores de organização e valores de exploração próprios, enquanto que
este ainda não tem o seu próprio valor de posição no mercado, mas poderá vir a ter, desde que seja aviado .
25
2) Âmbito máximo ou convencional: O âmbito máximo ou convencional é composto por
todos os valores do lastro ostensivo para os quais a lei exige uma convenção entre
trespassante e trespassário especialmente dirigida à sua transmissão. Do âmbito máximo
fazem parte:
- A firma: A firma é um sinal vinculado, mas dissociável do estabelecimento comercial a que
se achar ligada. Sendo assim, a transmissão da firma carece de uma convenção entre
trespassante e trespassário especialmente dirigida a essa transmissão.
- Os direitos reais sobre imóveis: Quando o estabelecimento comercial funciona em prédio
próprio, o seu titular é também titular de um direito real sobre o imóvel. Sendo assim, a
transmissão de direitos reais sobre imóveis carece de uma convenção entre trespassante e
trespassário especialmente dirigida a essa transmissão.
- As dívidas: Tendo em conta que as dívidas se traduzem em desvalores, entende-se que
ninguém deve assumir uma dívida sem uma declaração de vontade nesse sentido. Sendo
assim, a transmissão de dívidas carece de uma convenção entre trespassante e trespassário
especialmente dirigida a essa transmissão.
Nota fundamental:
O âmbito natural contrapõe-se ao âmbito máximo: Enquanto que o âmbito natural é
composto por elementos que se transmitem, não sendo necessário uma convenção
especialmente dirigida a essa transmissão, o âmbito máximo é composto por elementos
que só se transmitem mediante uma convenção especialmente dirigida a essa transmissão!

3) Âmbito imperativo ou legal: O âmbito imperativo ou legal é composto por todos os


valores do lastro ostensivo cuja transmissão é legalmente imposta (ex. contratos de trabalho).
6.2.3 O âmbito mínimo
O trespassante e o trespassário podem, à luz do princípio da liberdade de conformação do
estabelecimento comercial na negociação, tanto incluir no negócio todos os valores do lastro
ostensivo que integram o estabelecimento comercial, como excluir do negócio alguns valores
do lastro ostensivo que integram o estabelecimento comercial. Neste último caso, como bem
se entende, existe um limite àquele princípio, sob pena de se descaracterizar o
estabelecimento comercial a trespassar – o âmbito mínimo. O âmbito mínimo é composto
por todos os valores do lastro ostensivo que são imprescindíveis para sensibilizar ou radicar e
transportar o valor de posição do estabelecimento comercial no mercado. Sendo assim,
constata-se que o âmbito mínimo não é composto por um elenco fixo de valores do lastro
ostensivo; um valor do lastro ostensivo pode ser excluído desde que se transmita outro que
cumpra igual função sensibilizadora.
O apuramento dos valores do lastro ostensivo que compõem o âmbito mínimo faz-se de
acordo com a lei tendencial da negociação do estabelecimento comercial, segundo a qual
quanto maior/menor é o tempo de funcionamento do estabelecimento comercial, mais/menos
radica o seu valor de posição no mercado nos valores de exploração e menos/mais radica nos
valores de organização. Nessa medida, como os valores de exploração se relacionam menos
com os valores do lastro ostensivo, que têm uma relação mais próxima com os valores de
organização, quanto maior/menor é o tempo de funcionamento do estabelecimento comercial,
menor/maior o número de valores do lastro ostensivo que compõem o âmbito mínimo.

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A lei tendencial da negociação do estabelecimento comercial conhece um limite: Por muito
tempo de funcionamento que o estabelecimento comercial tenha, por muito importantes que
sejam os seus valores de exploração, o trespassante e o trespassário não podem deixar de
incluir no negócio valores do lastro ostensivo, pois são eles que integram a organização na
qual se refletem aqueles mesmos valores de exploração.

Nota fundamental:
Os negócios que têm por objeto um estabelecimento absolutamente vinculado têm de
incluir o valor do lastro ostensivo com o qual tal estabelecimento tem uma relação de
incindibilidade (ex. hotel com vista panorâmica para a Serra da Estrela, estação termal,
etc.), pois tal valor do lastro ostensivo pertence ao âmbito mínimo!

Quando os valores do lastro ostensivo que compõem o âmbito mínimo sejam suficientes para
sensibilizar ou radicar e transportar o valor de posição do estabelecimento comercial no
mercado, não se levantam quaisquer problemas. O problema levanta-se quando o âmbito
mínimo, ou seja o limite ao princípio da liberdade de conformação do estabelecimento
comercial na negociação, não é respeitado (ex. Imagine-se que as partes não incluíram um
valor do lastro ostensivo que pertence ao âmbito mínimo – seja porque o excluíram do âmbito
natural, seja porque não convencionaram a sua inclusão no negócio). Nestes casos, coloca-se
a questão de saber se aquilo que o trespassante e o trespassário quiseram foi, de facto,
celebrar um trespasse sobre o estabelecimento comercial:
- Por um lado, poder-se-á chegar à conclusão de que as partes não quiseram transmitir o
estabelecimento comercial. Neste caso, o negócio incidirá sobre outro objeto que não o
estabelecimento comercial.
- Por outro lado, poder-se-á chegar à conclusão de que as partes quiseram transmitir o
estabelecimento comercial. Neste caso, haverá uma contradição entre a declaração de
transmissão do estabelecimento e a exclusão do valor do lastro ostensivo que compõe o
âmbito mínimo. Prevalecendo aquela declaração, exclui-se a transmissão do valor do lastro
ostensivo a título real e atribui-se ao trespassário um direito de disponibilidade simples.
6.2.4 A obrigação de não-evicção
A generalidade da doutrina entende que, em caso de trespasse sobre um estabelecimento
comercial, recai sobre o trespassante a obrigação de não se restabelecer com estabelecimento
comercial que faça concorrência ao estabelecimento comercial trespassado. Essa obrigação
designa-se por obrigação de não-concorrência. Embora seja esta doutrina dominante, um
conjunto de autores veio defender uma posição radicalmente oposta, afirmando que, uma vez
que a obrigação de não-concorrência não tem consagração legal específica e viola a liberdade
de concorrência, não deveria existir. Na posição do Curso, dever-se-á entender que sobre o
trespassante não recai nenhuma obrigação de não se restabelecer com estabelecimento
comercial que faça concorrência ao estabelecimento comercial trespassado (nesse aspeto dá-
se razão a estes autores); o que sobre ele recai é uma obrigação de não se restabelecer
reproduzindo total ou parcialmente a organização que trespassou para com ela assumir no
mercado uma identidade similar à do estabelecimento comercial trespassado e, assim,
recuperar o valor que o estabelecimento comercial trespassado ocupava no mercado. Não há,
assim sendo, uma obrigação de não-concorrência, mas antes uma obrigação de não-evicção.

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A obrigação de não-evicção delimita-se por um âmbito temporal, espacial e subjetivo:
- Âmbito temporal: A obrigação de não-evicção dura o tempo que seja necessário e suficiente
para a consolidação do valor que o estabelecimento comercial trespassado ocupava no
mercado nas mãos de um trespassário medianamente prudente, razoável, diligente.
- Âmbito espacial: A obrigação de não-evicção vale apenas no espaço de irradiação do
estabelecimento comercial trespassado.
- Âmbito subjetivo: A obrigação de não-evicção recai sobre o trespassante e sobre os sujeitos
que devido a uma especial relação que tenham com o estabelecimento comercial, se revelem
perigosos sob o ponto de vista da reprodução da organização e da recuperação do valor que o
estabelecimento comercial trespassado ocupava no mercado.
A violação da obrigação de não-evicção, além da responsabilidade nos termos gerais, pode
acarretar o encerramento do estabelecimento comercial reproduzido, aplicando-se, mutatis
mutandis, o artigo 829º, n. 1 CC.
6.2.5 A transmissão de créditos, dívidas e contratos
Quando o trespassante e o trespassário incluem no trespasse sobre um estabelecimento
comercial créditos, dívidas e contratos, importa estabelecer uma distinção entre dois planos:
- No plano entre trespassante e trespassário, coloca-se a questão de saber se os créditos, as
dívidas e os contratos foram transmitidos. A resposta a esta questão resulta da convocação
dos âmbitos de entrega – âmbito natural, âmbito máximo, âmbito imperativo, âmbito mínimo.
- No plano entre trespassante/trespassário e outro contraente, credor nas dívidas e devedor
nos créditos, coloca-se a questão de saber que efeitos tem o trespasse em relação a estes
terceiros. A resposta a esta questão resulta da mobilização das seguintes normas jurídicas:
A transmissão de créditos:
A transmissão de créditos, com ou sem o estabelecimento comercial, não carece do
consentimento do devedor (577º, n. 1 CC).
A transmissão de dívidas:
A transmissão de dívidas pode verifica-se por contrato entre o antigo devedor (trespassante) e
o novo devedor (trespassário), ratificado pelo credor, ou por contrato entre o novo devedor
(trespassário) e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor (trespassante) ( 595º,
n. 1 CC).
A transmissão de contratos (ou posições contratuais):
O Código Comercial não contém nenhuma norma que regule a cessão da posição contratual.
Uma tal norma existe, contudo, no Direito Civil: o artigo 424º CC, segundo o qual a cessão
da posição contratual depende do consentimento do outro contraente. Esta norma jurídica foi
pensada para os casos em que o trespassante atua fora de um contexto empresarial. Sem
embargo, atuando o trespassante dentro de um contexto empresarial, é possível mobilizar
duas normas jurídico-comerciais que afastam aquela norma jurídico-civil:
- A transmissão da posição contratual nos contratos em que haja um confronto entre um
interesse comercial e um interesse civil não carece de consentimento por parte do outro
contraente (1112º, n. 1, al. a) CC).
- A transmissão da posição contratual nos contratos em que haja um confronto entre
interesses comerciais não carece de consentimento por parte do outro contraente, podendo
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este, todavia, opor-se à transmissão da posição contratual, provando que o trespassário não
oferece garantias bastantes à execução do contrato (11º DL n. 149/95, de 24 de Junho).
6.2.6 O trespasse de estabelecimento comercial em prédio arrendado
Quando o trespassante e o trespassário incluem no trespasse sobre um estabelecimento
comercial que funciona em prédio arrendado a cessão da posição de arrendatário, importa
estabelecer uma distinção entre dois planos.
- No plano entre trespassante e trespassário, coloca-se a questão de saber se houve ou não
cessão da posição de arrendatário. A resposta a esta questão resulta da convocação dos
âmbitos de entrega – âmbito natural, âmbito máximo, âmbito imperativo, âmbito mínimo.
- No plano entre trespassante/trespassário e outro contraente, coloca-se a questão de saber se
a cessão da posição de arrendatário carece ou não de consentimento por parte do senhorio. A
resposta a esta questão resulta da mobilização do artigo 1112º CC que é objeto de várias
interpretações doutrinais:
A desnecessidade de consentimento para a transmissão por parte do senhorio:
O Código Comercial não contém nenhuma norma que regule a cessão da posição contratual.
Uma tal norma existe, contudo, no Código Civil: o artigo 424º CC, segundo o qual a cessão
da posição contratual depende do consentimento do outro contraente. Esta norma jurídica foi
pensada para os casos em que o trespassante atua fora de um contexto empresarial. Sem
embargo, atuando o trespassante dentro de um contexto empresarial, dever-se-á mobilizar o
artigo 1112º, n. 1, al. a) CC, segundo o qual a cessão da posição de arrendatário em caso de
trespasse de estabelecimento comercial em prédio arrendado não carece de consentimento
por parte do senhorio.
Quando é que não há trespasse para efeitos do artigo 1112º, n. 1 CC? De acordo com o
artigo 1112º, n. 2 CC, não há trespasse para efeitos do artigo 1112º, n. 1 CC:
- al. a): Quando a cessão da posição de arrendatário não seja acompanhada de transferência,
em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o
estabelecimento comercial. Na posição do Curso, esta alínea não pode ser literalmente
interpretada, uma vez que não há qualquer razão para se exigir a transmissão de todos os
elementos que integram o estabelecimento comercial; exige-se, sim, que o estabelecimento
comercial seja trespassado, na sua essência, tal como existia nas mãos do trespassante. Não se
trata, portanto, de respeitar o âmbito mínimo, pois se fosse esse o caso a omissão de algum
dos elementos previstos no artigo 1112º, n. 2, al. a) CC implicaria a inexistência de trespasse
sobre o estabelecimento comercial e, assim, não funcionaria sequer o artigo 1112º, n. 1 CC.
Pelo exposto, dever-se-á entender que não há trespasse para efeitos do artigo 1112º, n. 1 CC,
carecendo a cessão da posição de arrendatário de consentimento por parte do senhorio,
quando não seja acompanhada do trespasse do estabelecimento comercial, na sua essência.
- al. b): Quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou
indústria ou, de um modo geral, a sua afetação a outro destino. Na posição do Curso, dever-
se-á entender que não há trespasse para efeitos do artigo 1112º, n. 1 CC, carecendo a cessão
da posição de arrendatário de consentimento por parte do senhorio, quando o trespassante e o
trespassário tenham acordado a mudança de ramo de comércio ou, de um modo geral, a
afetação do prédio a outro destino.

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Na posição do Curso, diz ainda o artigo 1112º, n. 5 CC que, quando, logo após a cessão da
posição de arrendatário, seja dado outro destino ao prédio, ou o trespassário não continue o
exercício da mesma profissão liberal, em violação do fim estabelecido no contrato de
arrendamento, o senhorio pode resolver o contrato.
A notificação da transmissão em caso de trespasse:
A cessão da posição de arrendatário em caso de trespasse de estabelecimento comercial que
funciona em prédio arrendado deve ser celebrada por escrito e comunicada ao senhorio
(1112º, n. 3 CC), no prazo de 15 dias (1038º, al. g) CC), ainda que este tenha nela
consentido, sob pena de se aplicar o regime da resolução do contrato de arrendamento, na
medida em que o incumprimento do dever de notificação torne, pela sua gravidade ou
consequências, inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento (1083º, n. 2 CC).
O direito de preferência do senhorio:
O senhorio tem direito de preferência no trespasse de estabelecimento comercial que funciona
em prédio arrendado por venda ou dação em cumprimento, salvo convenção em contrário
(1112º, n. 4 CC).

CONCLUSÃO DA MATÉRIA ATINENTE À SEGUNDA FREQUÊNCIA

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