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Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

Currículo, Organização Escolar e Inclusão

BRINCAR, APRENDER E ENSINAR:


A FALTA DE LUDICIDADE NO CURRÍCULO ESCOLAR

JOSÉ CARLOS PEREIRA MATEUS


Mestrado em Ensino de Música: Formação Musical| 3220170
3220170@ese.ipp.pt

RESUMO:
A separação entre o que é ensinar e aprender e o que é jogar e brincar está patente no
desenvolvimento de currículos e planificações de aulas. Os principais prejudicados são as
crianças que, sobrecarregadas em atividades escolares e extracurriculares, perderam o tempo
para disfrutar dos jogos e brincadeiras. Brincar e jogar são fundamentais no desenvolvimento
infantil, enquanto espaço de aprendizagem e interação consigo própria, com os outros e o
mundo. É fundamental pensar o currículo escolar de modo a incluir tempos apropriados e
espaços específicos para a brincadeira e o jogo, garantindo o direito da criança a ser criança.
Também é importante tirar vantagem do jogo e da brincadeira enquanto ferramentas de ensino,
elaborando atividades lúdico-pedagógicas que incorporem as suas características como: a
liberdade de construção do próprio percurso, a aceitação do erro e do fracasso como hipótese
de aprendizagem, a valorização do trabalho em equipa e o constante feedback e retorno
construtivo.
PALAVRAS CHAVE: Ludicidade | Currículo | Gamificação

ABSTRACT:
The separation between what is teaching and learning and what are games and playfulness is
evident in the development of school curricula and lesson plans. The main victims are the
children who, overloaded with school and extracurricular activities, have lost the time to enjoy
games and be at leisure. Playing is fundamental in child development, as a space for learning
and interacting with oneself, with others and the world. It is essential to think about the school
curriculum in order to include appropriate times and specific spaces for play and games,
guaranteeing the child’s right to be a child. It is also important to take advantage of games and
play as teaching tools, creating ludic-pedagogical activities that incorporate their characteristics,
such as: the freedom to build one's path, accepting mistakes and failure as a learning
opportunity, valuing teamwork and constant feedback and constructive feedback.
KEYWORDS: Ludicity | Curriculum | Gamification
1. CONTEXTUALIZAÇÃO

Todos sabem que brincar e jogar fazem parte integral de ser criança. Porém na
sociedade contemporânea, o brincar não é visto no mesmo patamar de importância como o
estudar ou qualquer outra atividade ao serviço da escola ou tempo escolarizado. Atividades
ao serviço da escola são aquelas “nas quais as crianças se envolvem e que se justificam pela
sua possível repercussão no seu percurso escolar” e tempo escolarizado “refere-se à
pluralidade de ações ou dinâmicas nas quais as crianças e os jovens se envolvem e
adquirem características específicas de um certo modelo de escola” (Duarte, 2023). O
tempo das crianças gira em torno de uma escola, cujo sistema de ensino está reduzido às
suas finalidades pragmáticas de preparação como o mercado económico e é refém dos
rankings competitivos entre países, organizações, diretores, professores e alunos.
Estruturando o currículo de forma a atender aos conteúdos valorizados pela sociedade da
aprendizagem formal, como a escrita, a leitura ou o cálculo, focando-se sobretudo em
aspetos cognitivos, ficam excluídos aspetos emocionais e sociais, estruturais no
desenvolvimento integral da pessoa (Kobori & Silva, 2021). Esta perspetiva económico e
funcional do ensino estrutura as escolas de forma semelhante a organizações laborais,
reduzindo a interação entre alunos e professores a uma transação de conhecimento e que
um ensina e detém o poder e o outro aprende passivamente. Este modelo de educação
bancária (Freire, 1994) sufoca os alunos, o seu pensamento e a sua criatividade, perdendo-
se a espontaneidade e a motivação, excluindo-se o jogo e a diversão.

As práticas pedagógicas predominantes progressivamente retiraram da escola os


brinquedos e momentos para brincar, ficando os pátios, quase todos sem brinquedos, e os
recreios como o último bastião da ludicidade. O brincar e o jogar estão separados das
restantes tarefas escolares, uma vez que não se adequam aos modelos pragmáticos e
utilitaristas vigentes. “Só se brinca na escola se sobrar tempo ou na hora do recreio”
(Fortuna, 2000). E mesmo em casa é depois de os trabalhos de casa estarem concluídos e
as atividades extracurriculares terminadas. Esta separação entre atividades lúdicas e
atividades de ensino, em que as primeiras são apresentadas de forma livre e flexível em
contraste com as segundas altamente estruturadas e rígidas, alimenta e promove
preconceitos entre crianças, pais e professores de que a primeira leva à anarquia

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descontrolada e a segunda a um necessário suplício tendo em vista um futuro brilhante
(Collares, 2022).

Que pontes construir entre brincar, ensinar e aprender?

2. BRINCAR E APRENDER

“As crianças não brincam para aprender, mas aprendem porque brincam” (Araújo,
2009). A brincadeira é estrutural na vida da criança. Desde os primeiros meses de vida, as
brincadeiras são formas de alargar o conhecimento da criança de si próprio, do outro e do
mundo que a rodeia, constituindo-se desde cedo como uma atividade intrinsecamente
relacionada com a aprendizagem e o desenvolvimento da criança. Jogar e brincar
constituem-se partes integrantes na construção e transmissão de uma cultura. É brincando
que as crianças aprendem a expressar-se a integrar a sociedade que vivem, estabelecendo
laços e vínculos consigo mesmas, com os outros e com o mundo (Fortuna, 2000). Os jogos
e as brincadeiras são necessários em qualquer idade e não devem ser entendidos
exclusivamente como diversão ou ocupação de tempos livres.

Segundo Caillois (1990 in Conceição, 2004), o jogo tem as seguintes características: é


livre e nenhum dos seus participantes é obrigado a nada; tem limites espaciais e temporais;
é incerto no seu desenrolar; é improdutivo no sentido em que não gera bens nem riqueza; é
regulamentado com regras estabelecidas entre os participantes; e é fictício, uma vez que a
realidade é reconstruída com um novo sentido, surgindo um espaço com as suas próprias
regras e personagens. Carvalho (2018) acrescenta ao jogo, tendo em conta jogos e
brincadeiras em grupo, os aspetos da comunicação e interação social, cooperação e
autonomia. Foerstnow e Miguett (2018), focando-se sobretudo nos jogos digitais online,
definem jogo como uma conjugação de objetivos e de regras, associados a um sistema de
retorno e feedback, cuja participação é voluntária. Para Mattar (2012), um jogo é um sistema
dinâmico explorável, construído e reconstruído pelas escolhas livres dos participantes e da
sua interação uns com os outros e com o ambiente que os rodeia. Nesta interação entre
participantes e interatividade com os elementos do jogo é fundamental a autonomia
individual de cada um na construção do seu próprio trajeto. Fortuna (2000) soma ao

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conceito de jogo as ideias de desafio, mistério e surpresa em conjunto com o prazer da
descoberta do desconhecido e do novo.

Acima de tudo, jogar e brincar constituem-se como momentos para aprender e crescer,
testando limites, interagindo com a realidade e os outros de forma segura e controlada
através da implementação de regras, adquirindo e confirmando conhecimentos e
capacidades, estimulando pensamento criativo e crítico e ampliando o mundo interior.

3. BRINCAR E ENSINAR

Utilizar estratégias e mecânicas associadas a jogos e brincadeiras em ambiente letivo


não é algo novo. O jogo e a brincadeira podem e têm sido utilizados no contexto educativo
com o objetivo de abordar conteúdos de forma mais interativa e dinâmica, potenciando o
envolvimento e a motivação dos alunos nas atividades (Lopes & Tavares, 2019). Recente,
surgiu uma nova metodologia, gamificação, que tem como foco a implementação em sala
de aula de atividades baseadas na lógica de jogos online, em inglês games.

Um jogo online, visto enquanto método pedagógico, pode trazer dinamismo,


interatividade e motivação ao ambiente de sala de aula, uma vez que os jogos online estão
estruturados com o objetivo de manter o utilizador conectado e motivado o maior tempo
possível. (Carvalho, 2018). Contudo, ficar-se somente pela inclusão do jogo na sala de aula
ou por atividades com um sistema de pontos, recompensas e prémios, é reduzir a
gamificação ao uso de mecânicas associadas ao jogo. É uma ilusão que pouco ou nada
melhora a aprendizagem. Essencial é desenvolver atividades lúdico-pedagógicas com
patamares progressivamente mais complexos, que articulem diferentes variáveis e
estimulem uma postura dedutiva e exploratória, incentivada pela colaboração e cooperação
entre alunos (Schlemmer, 2016). Uma atividade lúdico-pedagógica não é aquela que ensina
conteúdos com jogos, mas aquela em que as características inerentes à brincadeira e ao
jogo estão presentes, deixando as rédeas nas mãos do aluno. Está implícito que o professor
reconheça o valor do aluno enquanto sujeito operante no processo de ensino e
aprendizagem, construindo o seu próprio percurso (Martins, 2010).

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Do ponto de vista do aluno, uma atividade lúdico-pedagógica não deve ser vista como
tendo um objetivo sério, sobretudo com para os mais novos. Os elementos lúdicos do jogo
devem surgir naturalmente na atividade e sobretudo como motivações extrínsecas que
acompanhem o processo de aprendizagem. (Foerstnow & Miquett, 2018).

Do lado do professor, é fundamental que uma atividade lúdico-pedagógica se insira


numa planificação bem estruturada, com uma intencionalidade clara, sem perder as
caraterísticas inerentes ao jogo da liberdade e espontaneidade (Fortuna, 2000). Devem ser
consideradas não só a finalidade que se espera alcançar, mas também o nível de
desenvolvimento e faixa etária dos alunos e o tempo necessário para a duração da atividade
(Souza, 2021). Nunca deixa de ser uma aposta, mas o professor não deve manipular o
resultado ou o percurso da atividade. A sua função é propor, negociar, assistir e intervir
quando solicitado (Araújo, 2004).

O erro e o fracasso são parte integral dos jogos e brincadeiras. A qualquer momento,
todo o processo recomeça e surge uma nova oportunidade de atingir a meta esperada. Nas
formas tradicionais de aprendizagem, o fracasso e o erro são motivos de várias emoções
negativas. Nem sempre há o feedback necessário para compreender os motivos do erro,
nem das estratégias para o corrigir. Uma atividade lúdico-pedagógica deve prever e criar
espaço para o fracasso, sem qualquer tipo de pressão emocional ou psicológica,
antecipando estratégias que facilitem a identificação e correção dos erros (Mattar, 2012).

Usar a brincadeira e o jogo como recursos metodológicos é compreender que os


processos de ensino e aprendizagem se constroem em diálogo entre aluno e professor, com
desafios e etapas, feeback e retorno, conquistas e derrotas. Estudar a possibilidade de
constituir um currículo como um sistema aberto, em diálogo e comunicação, que se vai
progressivamente construindo ao encontro dos interesses e necessidades que emergem
nas situações de aprendizagem (Conceição, 2004).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A sala de aula é um lugar de brincar se o professor consegue conciliar os objetivos


pedagógicos com os desejos do aluno” (Fortuna, 2000). A brincadeira dentro da sala de aula

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e dos espaços escolares não é e não pode ser vista como uma perda de tempo ou algo
extrínseco aos processos de ensino e aprendizagem. É imperativo entender e respeitar o
jogo e a brincadeira como parte integrante do desenvolvimento e crescimento de um
indivíduo, salvaguardando tempos espaços para que ocorram natural e organicamente
entre as crianças, mas também recrutando as suas potencialidades enquanto método
pedagógica capaz de incentivar e motivar os alunos nas suas aprendizagens. É imperativo
terminar com a instrumentalização do tempo dos alunos exclusivamente para fins
formativos e criar pontes entre o recreio e a sala de aula.

É fulcral encontrar o espaço para a brincadeira espontânea dentro do currículo escolar e


valorizar o jogo enquanto ferramenta pedagógica multifacetada. O brincar e o jogar
desenvolvem naturalmente capacidades associadas à colaboração e trabalho em grupo, à
partilha e seleção de informação, à aceitação e superação do erro e do fracasso, à tomada
de iniciativa, à estimulação da criatividade e do sentido crítico. Estas capacidades são
fundamentais na sociedade contemporânea, mas dificilmente ensinadas pelas escolas e
seus currículos focados em aprendizagens formais.

Existem já áreas curriculares onde o jogo encontrou um espaço regular com método
interativo, mas outras continuam reticentes à integração de dinâmicos de jogo e de
gamificação na ação letiva. São muitas as reticências. Introduzir uma atividade lúdica vai
despoletar emoções ou sentimentos negativos nos alunos quando perderem, ou alimentar
inseguranças associadas com o erro, ou estimular uma lógica de competitividade
excessiva, ou a compreensão e domínio das regras não é imediato... Riscos iminentes se a
atividade não for implementada e estruturada tendo como foco a cooperação e colaboração
dos alunos e for somente uma ilusão cosmética aplicada a formas tradicionais de avaliar a
capacidade de memória ou se o fracasso e o erro não são entendidos como parte orgânica
e natural nos processos de ensino e aprendizagem.

Defender a brincadeira na escola não implica anarquia, desrespeito por regras ou


descontrolo. Também não implica menosprezar o ensino e a aprendizagem. Pelo contrário,
é fundamental permitir que o brincar tenha o seu lugar dentro do currículo, com espaços e
tempos próprios e com metodologias lúdicas que motivem os alunos e melhorem a eficácia
da aprendizagem. Olhar a brincadeira e o jogo não como tempo perdido, excluindo a
oposição entre brincar e trabalhar. As crianças precisam e merecem este tipo atividades.

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É necessário pensar o currículo em articulação com o brincar e o jogar, garantindo o
direito da criança a ser criança, com tempos e espaços apropriadas para expressar e
desenvolvimento as suas brincadeiras e jogos, tirando vantagem do desenvolvimento de
atividades lúdico-pedagógicas que possam incorporar as características do jogo e da
brincadeira nos processos de ensino e aprendizagem.

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Foerstnow, C. H. B. & Miquett, L. G. (2018). Gamificação aplicada ao ensino fundamental:


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