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Crítica | Os Rejeitados (2023)


- Plano Crítico
Luiz Santiago

6–8 minutos

Não há armadilhas em Os Rejeitados. Por mais que


saibamos como o cinema de Alexander Payne e esse tipo
de filme escrito por David Hemingson tendem a trilhar
caminhos mais rasos — exageradamente banais, quero
dizer — quando se fala em explorar personagens ao
largo de uma história humana, tocante e realista,
chegamos neste longa de 2023 com um tratamento que
é, em praticamente tudo, elegante e interessante,
começando de forma bastante trivial, bem similar à
problemática estereotipação, mas rapidamente se
afastando dessa base desgastada para pousar em um
terreno maduro, não apenas transformando os
protagonistas, mas criando, na tela, um processo
extremamente coeso sobre como tudo isso aconteceu.
Seguindo-se ao mediano Pequena Grande Vida (2017),
The Holdovers mostra um Alexander Payne interessado
em fazer com que a história seja sentida e compreendida
pelo público, uma dualidade que só é conseguida com
sucesso porque a direção usa a câmera para mostrar,
através de diferentes estratégias visuais, como os
personagens centrais mudam de verdadeiros
antagonistas para cúmplices de uma situação que gera
uma segunda chance para ambos; mas não da maneira
como se poderia imaginar. Paul Giamatti cria um
professor inconveniente, estranho, odiável e até
repulsivo, mas sem fazer disso uma caricatura plena.
Notem que ainda no início do filme ele está nesse
território — de forma estratégica, claro –, todavia, neste
mesmo bloco, alguns acontecimentos empurram o
personagem para um caminho inesperado que, ao fim de
um certo período, fará com que veja as pessoas, o
mundo e a si mesmo de outra forma.

Muitíssimo bem acompanhado de Dominic Sessa, que


interpreta o jovem Angus, Paul Giamatti dá o tom de
seriedade, birra e amargura da película (de certa forma,
um tom completado pela personagem de Da’Vine Joy
Randolph, mas numa perspectiva completamente
diferente de existência), status de comportamento e
emoções que se altera porque os indivíduos por trás
dessas máscaras são descortinados através de símbolos
cênicos (como as refeições em conjunto, as festas de
final de ano, o braço quebrado, a citação/contexto/
visualização de arte antiga, o globo de neve com o Papai
Noel) que nos levam a estágios imensamente diferentes
do drama. E em cada novo estágio, uma peça importante
do quebra-cabeça da alma de Paul e Angus é colocado no
devido lugar, a ponto de, no ato final, termos dois seres
humanos expressos em suas falhas, erros, uma vida
inteira de traumas, sentimentos interiorizados e
sofrimento progressivo. Diferente de Mary Lamb, que
exterioriza suas dores e claramente se encaminha para
um processo de cura, os dois homens (em diferentes
idades) sustentam o tormento e transmutam-no em mau
comportamento, cada um a seu modo.

Apesar de o Natal ser uma parte importante na


construção alegórica do enredo, as canções com corais
natalinos ultrapassam um o limite de uso a ponto de
atrapalhar parte da atmosfera de algumas cenas,
principalmente no terço final da fita. Vejam que quando
há uma mudança na escolha das canções (como na festa
noturna ou no passeio até Boston, por exemplo) a obra
ganha um tom que abraça melhor as metamorfoses
apontadas pelo próprio roteiro. Payne consegue fazer
um pequeno milagre em não descaracterizar, de fato, o
trabalho de aprofundamento dos personagens,
mudando “apenas” o tom de algumas cenas e/ou
transições que funcionariam muito melhor sem corais
natalinos — e vale aqui citar que a edição de Kevin Tent
(parceiro do diretor desde Ruth em Questão, de 1996) é
muitíssimo acertada no encadeamento, tipo de transição
escolhida e principalmente na mudança de sentimento
geral da narrativa, mesmo quando há alteração de
espaço ou tempo. Nas mãos de um editor menos
competente, essa passagem dos dias ou das fases de
adequação poderiam parecer uma sucessão de curtas-
metragens pouco instigantes sobre essas pessoas.

Quando eu disse que não há armadilhas em Os


Rejeitados, é porque o diretor não usa a temática como
um manipulador barato de emoções do público, com
belas cenas bem fotografadas na neve e afagos
inesperados vindos de um lugar onde nunca houve
sequer a possibilidade de carinho, respeito ou mesmo
consideração. Os corações feridos, aqui, conseguem sair
do lamaçal, mas não há doçuras exageradas à vista. Há
um sacrifício e um “insatisfatório” vida que segue, como
acontece na vida. E digo “insatisfatório” porque, apesar
de o clímax ser pago com uma entrega marcante de
eventos, há uma “deixa“, uma “falta” que abre espaço
para incertezas, fazendo com que toda a jornada ganhe
tons agridoces. E aí é que está a maturidade e a
honestidade do projeto. Na vida, mesmo após um
grande choque, um sacrifício, um aprendizado, nunca há
a certeza do que uma escolha pode gerar. Até porque,
nunca paramos de fazer escolhas. E mesmo diante dessa
amargura escondida, o texto insere tons de esperança
com o “até logo” e o diretor mostra na tela que o certo a
ser feito, no momento, está concretizado: cada um segue
o seu caminho com um novo olhar para o mundo e com
novos sentimentos no peito. O que vem a partir daí é
apenas a vida um degrau acima de qualquer nova
experiência e conquista…

Os Rejeitados (The Holdovers) — EUA, 2023


Direção: Alexander Payne
Roteiro: David Hemingson
Elenco: Paul Giamatti, Dominic Sessa, Da’Vine Joy
Randolph, Carrie Preston, Brady Hepner, Ian Dolley,
Jim Kaplan, Michael Provost, Andrew Garman, Naheem
Garcia, Stephen Thorne, Gillian Vigman, Tate Donovan,
Darby Lee-Stack, Bill Mootos, Dustin Tucker, Juanita
Pearl, Alexander Cook, Liz Bishop, Cole Tristan Murphy,
Will Sussbauer, Carter Shimp
Duração: 133 min.

Luiz Santiago

Após ser escolhido para a Corvinal e virar portador do


Incal, fugi com a ajuda de Hari Seldon e me escondi em
Astro City, onde me tornei Historiador e Crítico de
Cinema. Presenciei, no futuro, os horrores de Cthulhu.
Hoje, com a ajuda da minha TARDIS, traduzo línguas
alienígenas para Torchwood e presto serviços para a
Agência Alfa. Minha partida para Edena é iminente. De
lá, o Dr. Manhattan arranjará o meu encontro definitivo
com a Presença. E então o Universo tremerá.

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