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SISTEMAS DE SAÚDE

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Sumário
SISTEMAS DE SAUDE E SUAS POLÍTICAS DE FUNCIONAMENTO
............................................................................ Erro! Indicador não definido.

NOSSA HISTÓRIA ................................... Erro! Indicador não definido.

1. INTRODUÇÃO ............................................................................ 4
1.1- METODOLOGIA ...................................................................... 5
2- EVOLUÇÃO HISTÓRICA ............................................................ 6
3- CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E SURGIMENTO DOS
SISTEMAS DE PROTEÇÃO SOCIAL............................................................. 9
4- UM POUCO DE HISTÓRIA DOS GRANDES PROTAGONISTAS
DO ATUAL SISTEMA DE SAÚDE ................................................................ 16
5- UM POUCO DE HISTÓRIA DOS GRANDES PROTAGONISTAS
DO ATUAL SISTEMA DE SAÚDE ................................................................ 21
6- TIPOS IDEAIS DE PROTEÇÃO SOCIAL .................................. 25
6.1- O MODELO DE ASSISTÊNCIA SÓCIAL ............................... 27
6.2- O MODELO DE SEGURO SOCIAL ....................................... 28
6.3- O MODELO DE SEGURIDADE SOCIAL ............................... 29
7. O MODELO, SEUS PRESSUPOSTOS E SUAS DIMENSÕES DE
ANÁLISE 32
8. O CONCEITO DE POLÍTICA SOCIAL ...................................... 43
9. A POLÍTICA DE SAÚDE COMO AÇÃO DE PROTEÇÃO SOCIAL:
ASPECTOS DA DINÂMICA DE CONSTRUÇÃO E GESTÃO DA POLÍTICA
SOCIAL 44
10. A DEFINIÇÃO DE OBJETIVOS (FINALIDADES) DA POLÍTICA
46
11. A CONSTRUÇÃO E O EMPREGO DE ESTRATÉGIAS, PLANOS,
INSTRUMENTOS E TÉCNICAS ................................................................... 49
12. ARENAS, CANAIS E ROTINAS DO PROCESSO DECISÓRIO DA
POLÍTICA DE SAÚDE .................................................................................. 52
13. A ASSIMILAÇÃO, CONTRAPOSIÇÃO E/OU
COMPATIBILIZAÇÃO DE DIFERENTES PROJETOS SOCIAIS ................. 56
14. O DESENVOLVIMENTO, A REPRODUÇÃO E A
TRANSFORMAÇÃO DE MARCOS INSTITUCIONAIS ................................. 60

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14.1- A FORMAÇÃO DE REFERENCIAIS ÉTICOS E VALORATIVOS
DA VIDA SOCIAL ......................................................................................... 63
15. A SITUAÇÃO DE SAÚDE NO BRASIL ..................................... 67
16. O QUE FICOU DEFINIDO NA LEGISLAÇÃO ........................... 80
17. REFERÊNCIAS ....................................................................... 101
ASSIS; Sonia Fleury. OUVERNEY; Mafort. Política de saúde: uma
política social. Acessado em: 29 de julho de 2020. Disponível em:<
http://www.escoladesaude.pr.gov.br/arquivos/File/TEXTO_1_POLITICA_DE_S
AUDE_POLITICA_SOCIAL.pdf>. ................................................................... 101

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de


empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de
Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como
entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais,
científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o
saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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1. INTRODUÇÃO
Um sistema de saúde é composto pela relação que o conjunto de
instituições prestadoras de serviços de saúde mantém entre si. Enquanto
sistema, tal como postulado pela teoria geral dos sistemas, refere-se a uma inter-
relação entre seus elementos componentes onde o todo ou o sistema em si não
pode ser reduzido a análise separada de seus componentes. Não há um
consenso sobre o modelo ideal de organização ou mesmo sobre quais os seus
componentes e responsabilidades quanto à saúde da população, essa
diversidade de interpretações vem da própria dificuldade de definir saúde bem
como das distintas proposições políticas e teóricas sobre a concepção de saúde
pública também compreendida como saúde comunitária medicina preventiva e
social. Observe-se ainda, na perspectiva da teoria de organização dos sistemas
que um conjunto de instituições de saúde desarticuladas entre si não compõem
um sistema de saúde ou como ensinam os especialistas em planejamento de
saúde coletiva tão possuem a eficiência e eficácia que poderiam ter ao realizar
suas ações de saúde.

O texto da lei que criou o sistema nacional de saúde no Brasil, como


resultado de um processo de luta debates político que data pelo menos ao início
do século XX denominado reforma sanitária e simultaneamente a evolução das
concepções de saúde pública no panorama internacional, define um sistema de
saúde como…o complexo de serviços do setor público e do setor privado
voltados para ações de interesse da saúde, abrangendo atividades que visem a
promoção, proteção, e recuperação da saúde. Esse sistema particularmente
evoluiu para criação do Sistema Único de Saúde SUS mas refere-se ao
complexo de serviços e atividades que aqui analisamos como componente dos
sistemas de saúde.

Essencialmente pode-se se dizer que um sistema de saúde se constitui


por estabelecimentos de saúde ou local onde são prestados os serviços de
saúde que ao longo da história da medicina possuem várias denominações
desde os templos e balneários da antiguidade
ao hospital (manicônios Nosocômios etc.) Laboratórios, e
serviços ambulatoriais dispensário, postos de saúde aonde se incluem os
domicílios do paciente e do médico nas diversas modalidades ou modelos

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assistenciais bem como os profissionais ou trabalhadores que executam as
ações de saúde e naturalmente as instituições que regulamentam sua formação
e controlam suas atividades.

Contudo como observa Mario Testa os serviços de saúde são uma das
formas de resposta da sociedade aos problemas apresentados pelo estado de
saúde e situação epidemiológica isto é às causas e suas manifestações ou
efeitos. Observe-se numa concepção mais ampla de saúde podemos incluir
entre os fatores determinantes e condicionantes de saúde deve-se incluir a pior
das violências (na concepção de Gandhi) que é a pobreza, os problemas
decorrentes da fome, do abastecimento de água e da falta de saneamento básico
que em última análise refletem a própria política e organização do estado e
relações internacionais.

1.1- METODOLOGIA

Para a construção deste material, foi utilizada a metodologia utilizada de


pesquisa bibliográfica e descritiva, com o intuito de proporcionar um
levantamento de maior conteúdo teórico a respeito dos assuntos abordados.

Segundo Gil, a pesquisa bibliográfica consiste em um levantamento de informações e


conhecimentos acerca de um tema a partir de diferentes materiais bibliográficos já publicados,
colocando em diálogo diferentes autores e dados.

Entende-se por pesquisa bibliográfica, a revisão da literatura sobre as


principais teorias que norteiam o trabalho científico. Essa revisão é o que
chamamos de levantamento bibliográfico ou revisão bibliográfica, a qual pode
ser realizada em livros, periódicos, artigo de jornais, sites da Internet entre outras
fontes. Outro método utilizado foi à metodologia de ensino Waldorf, esta
metodologia é uma abordagem desenvolvida pelo filósofo Rudolf Steiner.

Ele acreditava que a educação deve permitir o desenvolvimento


harmônico do aluno, estimulando nele a clareza do raciocínio, equilíbrio
emocional e a proatividade. O ensino deve contemplar aspectos físicos,
emocionais e intelectuais do estudante.

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A pesquisa é descritiva, de campo e histórica, apoiada em técnicas de
análise documental sobre a legislação e os planos de ensino obtidos,
bibliográfica (MALHOTRA, 2006; COOPER; SCHINDLER, 2003; VERGARA,
2003; LUNA, 2002), e de análise de conteúdo (BARDIN, 2004). O planejamento
e a revisão da literatura ocorreram durante o segundo semestre de 2007; a coleta
dos dados, a análise e a apresentação dos resultados ocorreu durante 2008.

Ainda para a construção deste, foi utilizado a etnometodologia, pela


fenomenologia e pelo legado de Wittgenstein, além de alguns elementos
marxistas e outros pensamentos mais contemporâneos, como os desenvolvidos
por Pierre Bourdieu e Anthony Giddens.

Segundo Nicolini, Gherardi e Yanow (2003) a noção de prática, na sua


essência filosófica, está baseada em quatro grandes áreas do saber - na tradição
marxista, na fenomenologia, no interacionismo simbólico e no legado de
Wittgenstein, das quais podem ser citados fenômenos como: conhecimento,
significado, atividade humana, poder, linguagem, organizações, transformações
históricas e tecnológicas, que assumem lugar e são componentes do campo das
práticas para aqueles que delas compartilham.

Com tudo, o intuito deste modelo é possibilitar os estudos e contribuir para


a aprendizagem de forma eficaz, clara e objetiva.

2- EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Os serviços de saúde emergiram no Brasil, ainda no século XIX, com uma
organização precária. As questões de saúde eram de responsabilidade
estritamente individual, cabendo ao indivíduo garantir sua saúde através do "bom
comportamento", enquanto às políticas públicas de saúde cabiam o controle das
doenças epidêmicas, do espaço urbano e do padrão de higiene das classes
populares (SOARES, MOTTA, 1997).

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A primeira iniciativa do Estado brasileiro na construção do que poderia se
aproximar da noção de proteção social data de 1923, com a edição da Lei Eloi
Chaves e a criação das Caixas de Pensão e Aposentadoria, que também
garantiam a assistência médica aos contribuintes (KHON, s.d.). Depois vieram
os institutos e, finalmente, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)
(CARVALHO, 2013).

No que concerne à saúde preventiva, o Brasil enfrentou diversas


dificuldades institucionais e administrativas, decorrentes do limitado
desenvolvimento científico, tecnológico e industrial, bem como pela expansão da
assistência médica, atrelada à lógica do mercado. Mas, também, principalmente,
pelo lento processo de formação de uma consciência dos direitos de cidadania
(FUNASA, s.d.).

Da década de 1920 até o final de 1980, o que pode ser reconhecido como
sistema de saúde se pautava majoritariamente pela noção de seguro social
(garantia de acesso apenas a quem contribui) e se caracterizava por uma
miríade de instituições públicas e algumas privadas, sem nenhuma articulação
entre si. Nesse período, a assistência médica se vinculava à Previdência Social,
e as ações coletivas de saúde eram de responsabilidade do Ministério da Saúde
(KHON, s.d.).

Entre os anos 1930 e 1950 houve ascendência e hegemonia do Estado


populista. No período foram criados os institutos de seguridade social - Institutos
de Aposentadorias e Pensões (IAPs), organizados por categorias profissionais,
favorecendo as camadas de trabalhadores urbanos, mais aguerridas em seus
sindicatos e mais fundamentais para a economia agroexportadora até então
dominante (LUZ, 1988).

A partir da década de 1940, foram instituídas as primeiras modalidades


de assistência médica suplementar, inicialmente dirigidas aos funcionários
públicos da União e de alguns estados. Este arremedo de sistema imperou no
Brasil durante 65 anos, voltado à população urbana, mais especificamente, para
os trabalhadores formais e parcelas do funcionalismo público federal e de alguns
estados, como São Paulo.

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Suas bases de financiamento eram as contribuições compulsórias sobre
as folhas de salário. Aos demais brasileiros, a maior parte da população, estava
reservada a assistência médica privada, por meio das santas casas, ou a estatal,
oferecida pelas poucas instituições públicas de saúde existentes, geralmente
vinculadas ao governo federal e aos estados e municípios mais ricos (KHON,
s.d.).

Dos anos 1950 a 1960, tentou-se implantar um projeto nacional de


desenvolvimento econômico 'moderno', integrado à ordem capitalista industrial.
As políticas de saúde da época exprimiam essa dupla realidade (LUZ,1988).
Foram nos anos 1950 que o sistema de saúde privada começou a se organizar
no país (KHON, s.d.).

Nos anos 1960, a III Conferência Nacional de Saúde, realizada no final de


1963, levantou duas bandeiras: um sistema de saúde para todos (saúde direito
de todos os cidadãos), e organizado descentralizadamente (protagonismo do
município). No entanto, a ditadura militar, iniciada em março de 1964, sepultou
a proposta poucos meses depois (CARVALHO, 2013).

A partir do movimento pela redemocratização do país, cresceram os


ideais pela reforma da sociedade brasileira, com o envolvimento de diversos
atores sociais, sujeitos coletivos e pessoas de destaque. Sanitaristas ocuparam
postos importantes no aparelho de Estado. A democratização na saúde
fortaleceu-se no movimento pela Reforma Sanitária, avançando e organizando
suas propostas na VIII Conferência Nacional de Saúde, de 1986, que conferiu
as bases para a criação do Sistema Único de Saúde. Naquele evento, os
participantes denunciavam os desmandos na saúde e clamavam por ações de
garantia dos direitos da população (FUNASA, s.d.).

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O movimento social reorganizou-se na última Constituinte, com intensa
luta travada pela afirmação dos direitos sociais. Em 1988, nova ordem jurídica,
assentada na Constituição, define o Brasil como um Estado Democrático de
Direito, proclama que a saúde é direito de todos e dever do Estado,
estabelecendo canais e mecanismos de controle e participação social para
efetivar os princípios constitucionais que garantem o direito individual e social
(FUNASA, s.d.). A Constituição também legitima a atuação do setor privado de
saúde que se arregimenta no sistema supletivo de assistência médica (KHON,
s.d.).

Não é a existência de um segmento público e outro privado no sistema de


saúde, mas sim o tipo de relação estabelecida entre eles, que se constitui em
enorme empecilho para a efetivação de um sistema universal de saúde no
cotidiano da população, tal como preconizado pela Constituição (KHON, s.d.). É
preciso, também, reconhecer que a proteção e a promoção à saúde são de
responsabilidade pública, ou seja, de competência de todos os cidadãos do país,
o que implica participação e controle social permanentes (FUNASA, s.d.).

3- CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E SURGIMENTO DOS


SISTEMAS DE PROTEÇÃO SOCIAL
A cidadania pressupõe a existência de uma comunidade política nacional,
na qual os indivíduos são incluídos, compartilhando um sistema de crenças com
relação aos poderes públicos, à própria sociedade e ao conjunto de direitos e
deveres que se atribuem aos cidadãos. O pertencimento à comunidade política

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pressupõe também, além de crenças e sentimentos, um vínculo jurídico e
político, o que requer a participação ativa dos indivíduos na coisa pública.

A cultura cívica é a base da cidadania, uma construção política que deve


ser recriada a cada momento da história de uma sociedade. A cidadania é a
dimensão pública dos indivíduos, vistos como autônomos, isolados e
competitivos na dimensão privada, mas integrados e cooperativos na
comunidade política. Neste sentido, a cidadania pressupõe um modelo de
integração e sociabilidade, que surge como resposta social às transformações
socioeconômicas e políticas ocorridas com o advento da Revolução Industrial e
os correspondentes processos históricos de desagregação dos vínculos
tradicionais de solidariedade da sociedade feudal. Conceitos como liberdade,
igualdade e solidariedade estão na raiz da evolução da cidadania, embora muitas
vezes de forma conflituosa.

A cidadania consiste em um status concedido a todos os membros


integrantes de uma comunidade política, tal como definido no estudo clássico de
Thomas Humphrey Marshall (1967), Cidadania, Classe Social e Status O
surgimento da cidadania como possibilidade se desenvolveu como parte da
construção dos Estados nacionais e da instauração do capitalismo, que
desagregou os fundamentos da ordem feudal.

Contudo, sua concretização como condição real e status efetivo não se


realiza apenas pela presença de um ente que tem em seu aparato a
materialização do poder centralizado e que, fazendo uso deste, contribuiu para
fomentar os vínculos entre indivíduos e a construção da nação. O próprio
surgimento e a manutenção do Estado moderno como poder centralizado que
possui o monopólio da força, e, portanto, encontra-se de alguma maneira
distanciado das divisões econômicas da sociedade, dependem da sua
capacidade de atender às demandas dos cidadãos e legitimar-se como poder
que se exerce em nome do povo.

A separação entre Estado e Sociedade, Economia e Política é constitutiva


do Estado moderno e da sociedade capitalista, fundada na igualdade entre os
indivíduos que se encontram nas trocas realizadas no mercado. Por isso,
podemos dizer que Estado e cidadania são contrafaces da mesma moeda, um

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não existindo sem o outro. A relação de poder entre os indivíduos e o Estado
representou uma grande transformação na estrutura social da modernidade.

De um lado, um Estado que atua por procedimentos racionais e legais e


que funda seu poder nos indivíduos constituídos como cidadãos. A existência de
uma burocracia de carreira, que não deve favores ao soberano é condição
imprescindível para que todos os indivíduos sejam tratados da mesma maneira
diante do poder político, da lei, ou seja, é a garantia da existência da cidadania.

De outro lado, só os cidadãos podem garantir e assegurar a legitimidade


do exercício do poder político. A democracia e a competição eleitoral tornam-se
instrumentos intrínsecos a este arranjo político, necessário ao exercício do
poder, que resultou de transformações socioeconômicas ocorridas entre os
séculos XVI e XVIII, que instauraram a sociedade capitalista baseada em
princípios que promovem estruturalmente a desigualdade como condição de sua
reprodução.

A desigualdade e a exploração na esfera econômica, partes intrínsecas


da organização da produção capitalista, entram constantemente em contradição
com a igualdade necessária a esta construção política e econômica do Estado
moderno, qual seja, a existência de indivíduos iguais e livres que estabelecem
voluntariamente relações de troca e que se encontram protegidos por um poder
político que se exerce em nome de todos, sem distinção, e que é legitimado pelos
cidadãos.

A cidadania, inicialmente, surge apenas como uma possibilidade no


processo de construção da dominação burguesa, uma vez que o mercado requer
a presença do status jurídico de igualdade para o pleno desenvolvimento das
relações de troca. Cada sociedade, em suas lutas históricas, é capaz de
transformar esta hipótese em uma realidade concreta, construindo suas
modalidades de proteção social e sua condição concreta e singular de cidadania.

Weber (1991) interpreta as transformações socioeconômicas e políticas


ocorridas na Europa durante os séculos XVI a XVIII como a passagem de um
padrão de autoridade tradicional para um individualista.

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Segundo Bendix (1964), o principal aspecto desta passagem residiu nos
impactos gerados pela ampliação da comunidade política, com a criação dos
Estados nacionais, sobre os vínculos de identificação e solidariedade entre os
indivíduos e sobre o papel dos centros de poder em relação à coesão do tecido
social.

As relações de poder se estruturavam no interior da comunidade política


medieval e emergiam de um espaço configurado por linhas de forças
representadas por jurisdições de relativa autonomia (feudos e estamentos),
configurando um sistema com certa organicidade, dada pelas rígidas normas de
funcionamento e de relações entre os componentes desse sistema.

A coesão social era resultado, em primeiro lugar, do caráter restrito da


comunidade política, que impedia a relação direta do soberano com os
integrantes dos diversos feudos que compunham o reino, exigindo, assim, a
delegação de funções aos estamentos superiores (a nobreza), o que resultava
em uma coalizão de interesses de poder. Esta relação de mediação exercida
pelos estamentos superiores se completava nos vínculos com os demais
estamentos por meio de um sistema de direitos e obrigações fundamentados na
tradição hereditária.

Segundo Bendix, este sistema de reciprocidade de direitos e obrigações


entre nobres e camponeses, mesmo legitimando uma condição desigual,
proporcionava o caráter de integração social ao estabelecer a responsabilidade
de proteção e ajuda. Assim, mesmo diante da desigualdade, a integração da
comunidade se fazia presente mediante vínculos de solidariedade entre os
estamentos, fundamentados na reciprocidade de direitos e obrigações,
configurando uma relação de proteção e dependência:

Por mais caprichosos e evasivos que fossem os senhores, é


razoável supor que durante algum tempo seu sentido de
responsabilidade aristocrática, que os incumbia de ações práticas em
relação a seus inferiores, manteve-se em um nível relativamente alto, e
que a lealdade e obediência de seus subordinados era autêntica.
(Bendix, 1964: 62)

O novo padrão de relações de autoridade que surgiu com a revolução


burguesa supunha novos vínculos entre as classes, bastante diferentes

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daqueles estabelecidos entre os estamentos. As motivações provenientes das
concepções liberais pressupunham uma organização social com base no
princípio da igualdade, enquanto as relações estamentais eram baseadas nas
diferenças naturais entre os indivíduos.

Como conseqüência, a partir da segunda metade do século XVIII, a noção


de responsabilidade dos ricos para com os desprovidos de condições materiais
de sobrevivência passou a ser rejeitada explicitamente e a ser vista pelos
intelectuais formadores de opinião, como escritores, cientistas sociais e filósofos,
como uma ‘mentira piedosa’. O novo posicionamento em relação aos excluídos,
que desprovia as relações sociais de solidariedade, teve origem, na verdade,
nos próprios fundamentos de mercado e de estabelecimento de Estados
nacionais que postulavam a existência de uma igualdade abstrata, como
observou Tocqueville (1945: 311):

Como em épocas de igualdade nenhum homem é compelido a


prestar assistência a seus semelhantes, e ninguém tem direito a esperar
muito apoio deles, todos são ao mesmo tempo independentes e
impotentes. Essas duas condições, que nunca devem ser consideradas
de forma separada nem sobrepostas, inspiram, ao cidadão de um país
democrático, inclinações bastante opostas.

Sua independência o enche de segurança em relação a si mesmo e de


orgulho entre seus iguais; sua debilidade o faz sentir, de tempos em tempos, o
desejo de ajuda que não pode esperar de nenhum deles, sendo a causa de sua
impotência e indiferença em relação aos demais. A postulação da igualdade
abstrata que inicia a era das relações contratuais, na qual os indivíduos estão no
mesmo plano, possibilitou a emergência da ação política das camadas excluídas
pela sociedade industrial.

Porém, da simples composição abstrata de igualdade perante uma


comunidade nacional ao compartilhamento de padrões de inclusão há um
grande espaço, que requereu a mobilização em torno da institucionalização de
direitos universais inseridos na ação do Estado por meio de políticas públicas,
capazes de concretizar o status de cidadania. Os efeitos da industrialização
sobre as condições socioeconômicas de existência e de inserção na recém-
formada nação, e o contraste destes com as reflexões propiciadas pela ampla

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difusão das idéias igualitárias geraram contradições de amplitude suficiente para
a emergência de movimentos sociais, de origem operária e sindical, em busca
da efetivação de uma condição de cidadania que lhes era negada na prática.

Assim, a ampliação da comunidade política com o surgimento dos


Estados nacionais gerou a possibilidade de luta pela exigência de ações
coletivas e concretas na garantia de direitos capazes de inserir os excluídos
nesta comunidade nacional. O primeiro passo nesse processo ocorreu com o
próprio reconhecimento político de que a pobreza e a precariedade das
condições materiais de existência das camadas de trabalhadores urbanos
tornavamse, com a emergência da sociedade capitalista, um problema a ser
enfrentado coletivamente, ou seja, emerge uma questão social que requer
resposta social e institucional, sob pena de rompimento das estruturas sociais.

O surgimento da necessidade de algum tipo de proteção social, legal ou


assistencial, para regular as condições de trabalho e minorar os sofrimentos
decorrentes da situação de miséria, isto é, a emergência da pobreza como
problema social está associada ao fenômeno da industrialização e ao
conseqüente rompimento das relações tradicionais do feudalismo. Instaura-se,
nesse momento, a necessidade de desenvolver tanto formas compensatórias de
integração e coesão social quanto mecanismos e instrumentos de reprodução
eficaz da força de trabalho necessária à expansão da produção capitalista.

Assim, os movimentos sociais que emergiram durante o século XIX,


indignados com as precárias condições de sobrevivência a que estavam
submetidos, que expressavam a contradição entre uma comunidade igual
abstrata e uma condição real de exclusão, foram fundamentais para a
consolidação da cidadania por meio das lutas que levaram ao desenvolvimento
dos sistemas de proteção social. Somente por meio desses movimentos de
protesto, lutas e mobilização política intensa, ocorridos na segunda metade do
século XIX, foi possível avançar em direção ao estabelecimento de direitos e
obrigações na construção de um processo de integração social (Polanyi, 1980).

As transformações de natureza estrutural provocadas pelas revoluções


Francesa e Industrial desmantelaram o sistema de jurisdição política feudal e as
relações subjacentes de direitos e obrigações recíprocas entre estamentos,

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substituindo-os por uma comunidade nacional em que o poder está centralizado
e materializado em um Estado (que concentra funções administrativas, judiciais
e fiscais), bem como por um sistema de classes acompanhado por um padrão
de relações individualistas de autoridade.

Para muitos autores, as políticas de proteção social foram uma resposta


ao processo de desenvolvimento das sociedades capitalistas industrializadas e
suas conseqüências – incluindo, entre elas, o aumento da divisão do trabalho, a
expansão dos mercados e a perda das funções de seguridade das organizações
tradicionais como a família – em busca de uma nova estabilidade e segurança,
gerando um novo tipo de solidariedade em um contexto de alta mobilização
social.

A proteção social, como atividade coletiva e orientada para esses


objetivos, desenvolveu-se juridicamente na forma dos direitos garantidores da
condição ou status de cidadania e institucionalmente na formação de complexos
de proteção social estabelecidos nacionalmente. A conquista dos direitos civis,
políticos e sociais foi responsável pela transformação do Estado, ampliando,
concomitantemente, as instituições e políticas públicas relativas ao
funcionamento da Justiça, do sistema eleitoral e da provisão dos benefícios
sociais.

A proteção social se institucionalizou pelo desenvolvimento de amplos


sistemas de provisão de bens e serviços de saúde, educação e assistência,
visando a ampliar o bem-estar da população. Surgiram, assim, os Estados de
Bem-Estar Social ou Welfare States.

OS Welfare States – como foram designados os amplos sistemas de


proteção social – são produto de uma situação histórica concreta, vivida na
Europa, que deu origem ao Estado nacional, à democracia de massas e ao
capitalismo industrial. Pode-se identificar uma sucessão de elementos históricos
que explicam a expansão da proteção social. São eles:

 A industrialização; a grande mudança populacional na direção


campo/ cidade;
 A ruptura dos laços e redes tradicionais de solidariedade e
integração;

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 O surgimento de grandes unidades produtivas e a criação de grupos
relativamente homogêneos de trabalhadores;
 A mobilização e organização da nova classe trabalhadora por
melhores condições de trabalho;
 A evolução da democracia de massas com a criação de partidos
operários e/ou socialistas;
 O aumento da produtividade do trabalho e da riqueza acumulada;
 A consolidação de um corpo burocrático estatal e domínio das
técnicas administrativas;
 O aumento da intervenção do Estado e criação de mecanismos re-
distributivos por meio de políticas sociais;
 A institucionalização do conflito industrial e re-distributivo, mediante
o desenvolvimento de organizações como partidos e associações
de representação de interesses, capazes de dialogar e estabelecer
acordos sobre assuntos de interesses mútuos (Flora &
Heidenheimer, 1981).

O surgimento dos sistemas de proteção social ao final do século XIX na


Europa ocorreu em sociedades nacionais diferentes, e como seu objetivo foi
introduzir arranjos mais igualitários, a forma tomada por esses sistemas guarda
estreita correspondência com a estrutura e a dinâmica social de cada uma. Há,
assim, com o desenvolvimento histórico subseqüente e a difusão dos sistemas
de proteção social, os diversos arranjos nacionais de acordo com cada realidade
histórica específica. Apesar das diferenças nacionais, é possível distinguir três
tipos ideais de sistemas de proteção social.

4- UM POUCO DE HISTÓRIA DOS GRANDES


PROTAGONISTAS DO ATUAL SISTEMA DE SAÚDE

A história dos cuidados com saúde do brasileiro passa, necessariamente,


pela filantropia. Mais ainda pelo cunho filantrópico religioso, a caridade. As
pessoas eram atendidas pelas instituições e médicos filantropos. Paralelamente
a isso, o Estado fazia algumas ações de saúde diante de epidemias, como ações

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de vacinação e/ou de saneamento básico. Assim ocorreu no final do século XIX
e início do XX com o saneamento do Rio de Janeiro e a grande campanha de
vacinação contra varíola.

O Estado cuidava também da intervenção em algumas doenças


negligenciadas como a doença mental, a hanseníase, a tuberculose e outras. Só
mais tarde começa o atendimento às emergências e às internações gerais. A
partir de 1923, com a Lei Elói Chaves, a saúde dos trabalhadores atrelada à
previdência passa a ser componente de um sistema para os trabalhadores. De
início, as caixas de pensão, depois, os institutos e, finalmente, o grande instituto
congregador de todos: o INPS.

A história mais recente nos aponta alguns caminhos. O primeiro deles


refere-se a um esforço de guerra na extração da borracha e do manganês. Foi
criado um sistema de saúde para atender as populações envolvidas. Teve
inspiração e financiamento dos Estados Unidos que iniciaram o projeto através
de um programa de ajuda. Eram denominados como Serviços Especiais de
Saúde Pública (Sesp), mais tarde transformado em Fundação Sesp. Foi o
programa mais completo de atenção à saúde associada ao saneamento da
história do país.

A proposta era ousada. Foi, em quase todos os locais onde se implantou,


o único recurso de saúde existente, principalmente nas regiões Norte e Nordeste.
A inovação não era só na proposta de intervenção, mas também na gestão de
pessoas. Já se trabalhava com uma equipe multidisciplinar dentro da
disponibilidade da época. Organizava-se a partir de unidades denominadas
mistas onde se fazia o atendimento básico, primeiro atendimento, urgência-
emergência e internações hospitalares.

O outro marco foi a 3a Conferência Nacional de Saúde no final de 1963


que coroava vários estudos para a criação de um sistema de saúde. Duas
bandeiras dessa conferência: um sistema de saúde para todos (saúde direito de
todos os cidadãos) e organizado descentralizadamente (protagonismo do
município).

A ditadura militar iniciada em março de 1964 sepultou a proposta poucos


meses depois.

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Durante a ditadura, alguns projetos privatizantes como o do Vale Consulta
e para as regiões mais pobres uma reedição da Fundação Sesp denominado
Programa de Interiorização de Ações e Serviços de Saúde (Piass). O Piass não
se implantou por falta de vontade política dos governos à época. Tinha mais
virtudes que defeitos. Faltou interesse público para levá-lo à frente.

Nos porões da ditadura gestava-se um sistema de saúde que tinha como


objetivo colocar a saúde como direito de todos os cidadãos e um dever
consequente do Estado. Essa organização em defesa de um sistema público de
saúde com integralidade e universalidade acontecia em pleno regime autoritário,
mas sempre na perspectiva de sua superação.

Como conseguir implantar um sistema universal de fazer saúde como os


países da Europa iniciaram no pós-guerra dentro da política denominada welfare
state? Como conseguir que o Estado brasileiro se responsabilizasse e garantisse
esse direito de forma universal?

Entre os vários protagonistas envolvidos nesta luta destacavam-se


alguns.

• Movimentos populares – Em primeiro lugar, o cidadão politizado de


bairros periféricos, principalmente de São Paulo, e que nenhuma cobertura tinha
à saúde e vivia as consequências de ser indigente. Destacam-se nessa luta
social do cidadão três grandes protagonistas: os movimentos populares, as
associações de bairros e vilas e a Igreja Católica que sofria um choque de povo
com a dita preferência pelos mais pobres. Nasciam na Igreja as Comunidades
Eclesiais de Base, que também voltadas para o terreno de combate às
iniquidades sociais traziam lutas pela justiça, sendo uma das bandeiras o direito
à saúde. Essa efervescência começa a buscar por propostas concretas. Algo
que não ficasse apenas no discurso ou na simples reivindicação.

• Universidades – Outro protagonista veio das faculdades de medicina


com dois momentos inovadores. O primeiro, a necessidade de colocar os
estudantes em contato com a realidade local, saindo do apenas ambiente
hospitalar. Desenvolveu projetos de integração docente assistencial. O segundo,
a transformação dos antigos departamentos de higiene em departamentos de
medicina social, mais engajados com a realidade. Esses dois meios começam a

18
gerar profissionais com uma nova visão do Brasil e seu momento. Profissionais
comprometidos com o social. Passamos a ter assim um outro protagonista dessa
história, os médicos dedicados ao social, muitos deles especializados em saúde
pública.

• Partidos políticos progressistas – Na década de 1970 estava o Brasil


colocado dentro dos limites do bipartidarismo estrito. De um lado, a Arena, que
era considerada o partido dos conservadores guiado pelos militares da ditadura.
De outro lado, o MDB histórico, representando a resistência à ditadura,
abrigando progressistas ditos de esquerda. O MDB abrigava em suas fileiras
todos os militantes da esquerda que eram impossibilitados de se constituírem
como partidos. Todas as correntes ditas comunistas lá estavam. Os vários
grupos se juntaram numa única sigla. O MDB buscava o trabalho junto com a
comunidade na periferia dos grandes centros urbanos e em algumas prefeituras.
De início conseguiram emplacar alguns deputados, e na segunda investida, no
ano 1976, expandiram-se assumindo prefeituras importantes de cidades médias.
A grande bandeira: "não seremos prefeituras apenas tocadoras de obras, mas
prefeituras voltadas para o social". Nesse social estava a saúde do cidadão que
nenhuma cobertura tinha além dos planos de saúde para as empresas de maior
porte e o Inamps para cuidar da saúde do trabalhador registrado e de empresas
menores que não aderiram a planos de saúde. Depois do MDB, foi a vez de os
partidos progressistas se libertarem da sigla emprestada. Além de grupos que
aproveitaram siglas anteriores, houve grupos novos que fundaram partidos,
como o PT, de corte do coletivo dos trabalhadores. Esses partidos tinham em
comum a defesa da saúde juntando população e técnicos da saúde

• Prefeituras com bandeiras progressistas – Ao trio faltava um outro


ator. Não acontece isso nem no âmbito federal, nem no estadual, mas no
municipal. Os municípios, por estarem mais perto das necessidades da
população, carregavam o problema e a angústia do que não se fazia em saúde
e prejudicava sua população. Nesse cenário, em 1976, surgiram várias
administrações municipais com a proposta de se comprometer com o social e
não ser apenas prefeituras tocadoras de obras. Assim se definiu e assim surgiu
o que mais tarde se denominou como movimento municipalista de saúde. Sem
nenhum dinheiro novo, com o apoio de algumas raras universidades e com uma

19
turma quixotesca de sanitaristas e simpatizantes com a proposta de fazer saúde
para toda a população, em especial às camadas sociais mais desfavorecidas.
Coincide o tempo com o movimento mundial que culminou na reunião de Alma-
Ata e sua declaração com ênfase na atenção primária à saúde. Nascem nos
municípios, imitando o que acontecia no mundo, as equipes de atenção primária
construída por três profissionais, principalmente: o médico, o enfermeiro e a nova
categoria denominada agentes de saúde.

O debate continuava e as experiências e modelos práticos acontecendo


Brasil afora. A crise da previdência na década de 1980 provocou que se levasse
a cabo uma associação mais forte entre o Inamps e os serviços públicos de
saúde. Nasce aí o que se denominou Ações Integradas de Saúde (AIS). O cerne:
parceria da previdência com a saúde pública municipal e estadual; prestação de
cuidados, principalmente primários ambulatoriais; transferência de recursos da
previdência para que fossem realizadas essas ações pelos Estados e
municípios. A partir de 1987, as AIS foram aprimoradas com o que se denominou
Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (Suds), que durou até 1991
quando se implantou o Sistema Único de Saúde (SUS).

A discussão de uma proposta inovadora e universal com a comunidade e


os técnicos resultou naquilo que se denominou Projeto da Reforma Sanitária. Foi
emprestada a Tancredo Neves e apropriada como Proposta de Saúde da Nova
República. O movimento foi crescendo e culminou com uma grande assembleia
em 1986, que foi a VIII Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, com cerca
de cinco mil pessoas do Brasil inteiro que referendaram a proposta da Reforma
Sanitária. Essa presença maciça dos cidadãos usuários foi possível pois as AIS
introduziram Conselhos de Saúde, com participação comunitária, em cada
município como condição de adesão à proposta.

A proposta da reforma sanitária, referendada pela população, por técnicos


gestores foi entregue aos constituintes que absorveram grande parte das teses
ao definir a Ordem Social e, dentro dela, a Seguridade Social.

20
5- UM POUCO DE HISTÓRIA DOS GRANDES
PROTAGONISTAS DO ATUAL SISTEMA DE SAÚDE
A história dos cuidados com saúde do brasileiro passa, necessariamente,
pela filantropia. Mais ainda pelo cunho filantrópico religioso, a caridade. As
pessoas eram atendidas pelas instituições e médicos filantropos. Paralelamente
a isso, o Estado fazia algumas ações de saúde diante de epidemias, como ações
de vacinação e/ou de saneamento básico. Assim ocorreu no final do século XIX
e início do XX com o saneamento do Rio de Janeiro e a grande campanha de
vacinação contra varíola.

O Estado cuidava também da intervenção em algumas doenças


negligenciadas como a doença mental, a hanseníase, a tuberculose e outras. Só
mais tarde começa o atendimento às emergências e às internações gerais. A
partir de 1923, com a Lei Elói Chaves, a saúde dos trabalhadores atrelada à
previdência passa a ser componente de um sistema para os trabalhadores. De
início, as caixas de pensão, depois, os institutos e, finalmente, o grande instituto
congregador de todos: o INPS.

A história mais recente nos aponta alguns caminhos. O primeiro deles


refere-se a um esforço de guerra na extração da borracha e do manganês. Foi
criado um sistema de saúde para atender as populações envolvidas. Teve
inspiração e financiamento dos Estados Unidos que iniciaram o projeto através
de um programa de ajuda. Eram denominados como Serviços Especiais de
Saúde Pública (Sesp), mais tarde transformado em Fundação Sesp. Foi o
programa mais completo de atenção à saúde associada ao saneamento da
história do país. A proposta era ousada. Foi, em quase todos os locais onde se
implantou, o único recurso de saúde existente, principalmente nas regiões Norte
e Nordeste. A inovação não era só na proposta de intervenção, mas também na
gestão de pessoas. Já se trabalhava com uma equipe multidisciplinar dentro da
disponibilidade da época. Organizava-se a partir de unidades denominadas
mistas onde se fazia o atendimento básico, primeiro atendimento, urgência-
emergência e internações hospitalares.

O outro marco foi a 3a Conferência Nacional de Saúde no final de 1963


que coroava vários estudos para a criação de um sistema de saúde. Duas

21
bandeiras dessa conferência: um sistema de saúde para todos (saúde direito de
todos os cidadãos) e organizado descentralizadamente (protagonismo do
município).

A ditadura militar iniciada em março de 1964 sepultou a proposta poucos


meses depois.

Durante a ditadura, alguns projetos privatizantes como o do Vale Consulta


e para as regiões mais pobres uma reedição da Fundação Sesp denominado
Programa de Interiorização de Ações e Serviços de Saúde (Piass). O Piass não
se implantou por falta de vontade política dos governos à época. Tinha mais
virtudes que defeitos. Faltou interesse público para levá-lo à frente.

Nos porões da ditadura gestava-se um sistema de saúde que tinha como


objetivo colocar a saúde como direito de todos os cidadãos e um dever
consequente do Estado. Essa organização em defesa de um sistema público de
saúde com integralidade e universalidade acontecia em pleno regime autoritário,
mas sempre na perspectiva de sua superação.

Como conseguir implantar um sistema universal de fazer saúde como os


países da Europa iniciaram no pós-guerra dentro da política denominada welfare
state? Como conseguir que o Estado brasileiro se responsabilizasse e garantisse
esse direito de forma universal?

Entre os vários protagonistas envolvidos nesta luta destacavam-se


alguns.

• Movimentos populares – Em primeiro lugar, o cidadão politizado de


bairros periféricos, principalmente de São Paulo, e que nenhuma cobertura tinha
à saúde e vivia as consequências de ser indigente. Destacam-se nessa luta
social do cidadão três grandes protagonistas: os movimentos populares, as
associações de bairros e vilas e a Igreja Católica que sofria um choque de povo
com a dita preferência pelos mais pobres. Nasciam na Igreja as Comunidades
Eclesiais de Base, que também voltadas para o terreno de combate às
iniquidades sociais traziam lutas pela justiça, sendo uma das bandeiras o direito
à saúde. Essa efervescência começa a buscar por propostas concretas. Algo
que não ficasse apenas no discurso ou na simples reivindicação.

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• Universidades – Outro protagonista veio das faculdades de medicina
com dois momentos inovadores. O primeiro, a necessidade de colocar os
estudantes em contato com a realidade local, saindo do apenas ambiente
hospitalar. Desenvolveu projetos de integração docente assistencial. O segundo,
a transformação dos antigos departamentos de higiene em departamentos de
medicina social, mais engajados com a realidade. Esses dois meios começam a
gerar profissionais com uma nova visão do Brasil e seu momento. Profissionais
comprometidos com o social. Passamos a ter assim um outro protagonista dessa
história, os médicos dedicados ao social, muitos deles especializados em saúde
pública.

• Partidos políticos progressistas – Na década de 1970 estava o Brasil


colocado dentro dos limites do bipartidarismo estrito. De um lado, a Arena, que
era considerada o partido dos conservadores guiado pelos militares da ditadura.
De outro lado, o MDB histórico, representando a resistência à ditadura,
abrigando progressistas ditos de esquerda. O MDB abrigava em suas fileiras
todos os militantes da esquerda que eram impossibilitados de se constituírem
como partidos. Todas as correntes ditas comunistas lá estavam. Os vários
grupos se juntaram numa única sigla. O MDB buscava o trabalho junto com a
comunidade na periferia dos grandes centros urbanos e em algumas prefeituras.
De início conseguiram emplacar alguns deputados, e na segunda investida, no
ano 1976, expandiram-se assumindo prefeituras importantes de cidades médias.
A grande bandeira: "não seremos prefeituras apenas tocadoras de obras, mas
prefeituras voltadas para o social". Nesse social estava a saúde do cidadão que
nenhuma cobertura tinha além dos planos de saúde para as empresas de maior
porte e o Inamps para cuidar da saúde do trabalhador registrado e de empresas
menores que não aderiram a planos de saúde. Depois do MDB, foi a vez de os
partidos progressistas se libertarem da sigla emprestada. Além de grupos que
aproveitaram siglas anteriores, houve grupos novos que fundaram partidos,
como o PT, de corte do coletivo dos trabalhadores. Esses partidos tinham em
comum a defesa da saúde juntando população e técnicos da saúde

• Prefeituras com bandeiras progressistas – Ao trio faltava um outro ator.


Não acontece isso nem no âmbito federal, nem no estadual, mas no municipal.
Os municípios, por estarem mais perto das necessidades da população,

23
carregavam o problema e a angústia do que não se fazia em saúde e prejudicava
sua população. Nesse cenário, em 1976, surgiram várias administrações
municipais com a proposta de se comprometer com o social e não ser apenas
prefeituras tocadoras de obras. Assim se definiu e assim surgiu o que mais tarde
se denominou como movimento municipalista de saúde. Sem nenhum dinheiro
novo, com o apoio de algumas raras universidades e com uma turma quixotesca
de sanitaristas e simpatizantes com a proposta de fazer saúde para toda a
população, em especial às camadas sociais mais desfavorecidas. Coincide o
tempo com o movimento mundial que culminou na reunião de Alma-Ata e sua
declaração com ênfase na atenção primária à saúde. Nascem nos municípios,
imitando o que acontecia no mundo, as equipes de atenção primária construída
por três profissionais, principalmente: o médico, o enfermeiro e a nova categoria
denominada agentes de saúde.

O debate continuava e as experiências e modelos práticos acontecendo


Brasil afora. A crise da previdência na década de 1980 provocou que se levasse
a cabo uma associação mais forte entre o Inamps e os serviços públicos de
saúde. Nasce aí o que se denominou Ações Integradas de Saúde (AIS). O cerne:
parceria da previdência com a saúde pública municipal e estadual; prestação de
cuidados, principalmente primários ambulatoriais; transferência de recursos da
previdência para que fossem realizadas essas ações pelos Estados e
municípios. A partir de 1987, as AIS foram aprimoradas com o que se denominou
Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (Suds), que durou até 1991
quando se implantou o Sistema Único de Saúde (SUS).

A discussão de uma proposta inovadora e universal com a comunidade e


os técnicos resultou naquilo que se denominou Projeto da Reforma Sanitária. Foi
emprestada a Tancredo Neves e apropriada como Proposta de Saúde da Nova
República. O movimento foi crescendo e culminou com uma grande assembleia
em 1986, que foi a VIII Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, com cerca
de cinco mil pessoas do Brasil inteiro que referendaram a proposta da Reforma
Sanitária. Essa presença maciça dos cidadãos usuários foi possível pois as AIS
introduziram Conselhos de Saúde, com participação comunitária, em cada
município como condição de adesão à proposta.

24
A proposta da reforma sanitária, referendada pela população, por técnicos
gestores foi entregue aos constituintes que absorveram grande parte das teses
ao definir a Ordem Social e, dentro dela, a Seguridade Social.

6- TIPOS IDEAIS DE PROTEÇÃO SOCIAL

Analisando casos históricos sobre o desenvolvimento dos sistemas de


proteção social em paises considerados industrializados, foi possível construir
uma tipologia das formas de proteção social. A construção de tipos ideais
organiza em grupos as características que, em geral, aparecem em conjunto nos
sistemas de proteção social. Contudo, nem todas as características de cada
grupo se apresentaram em cada caso histórico concreto. Daí utilizarmos a noção
de tipos ideais. O uso desses tipos ideais tem como objetivo identificar distintos
modelos de proteção para a comparação entre países e para a análise de
realidades concretas.

Nesta tipologia, além dos elementos ideológico e valorativo que estão nas
bases dos sistemas de proteção, são apresentados os elementos organizativos
e institucionais que viabilizam a implementação das opções políticas adotadas
em cada caso. Por fim, nesta tipologia, são assinaladas as relações entre os
modelos de proteção social e as condições de cidadania geradas em cada caso.
Vamos observar que os sistemas de proteção social, ainda que possam oferecer
benefícios similares, tendem a projetar efeitos políticos em relação à cidadania
que podem ser altamente diferenciados.

Em outras palavras, cada sociedade responde à necessidade de criar


políticas de proteção social de acordo com os valores compartilhados, com suas
instituições, com a relação de maior ou menor peso do Estado, da sociedade e
da comunidade. Em cada contexto singular, com uma dada relação das forças
sociais, emergirá um modelo de proteção social peculiar àquela sociedade.
Estes modelos podem ser analisados por suas semelhanças e diferenças em
relação aos tipos já estudados. Os diferentes modelos podem ser entendidos a
partir da modalidade de proteção social que provê os critérios de organização
dos sistemas e de incorporação das demandas sociais, por meio de uma

25
institucionalidade específica. Assim, encontramos as seguintes modalidades da
proteção social: a assistência social, o seguro social e a seguridade social. Os
modelos variam no que toca à concepção de políticas sociais e suas instituições.
E o mais importante é que eles vão ter impactos na construção da própria
sociedade.

Esses impactos implicam que cada um dos modelos de proteção social


vai gerar condições distintas no status atribuído de cidadania. Tomando a
expressão jurídica e política da articulação Estado/Sociedade em cada uma das
modalidades, encontramos, respectivamente, as relações de cidadania invertida,
cidadania regulada e cidadania universal. Ao analisar uma política social,
devemos, pois, ter em conta não apenas o benefício adquirido, mas,
fundamentalmente, o status atribuído na concessão desse benefício.

Os traços principais dos três tipos identificados podem ser resumidos no


Quadro 1.

26
6.1- O MODELO DE ASSISTÊNCIA SÓCIAL

A análise da evolução das políticas de saúde no Brasil mostra que houve


migração do modelo curativo para o modelo preventivo. O modelo de
proteção social cujo eixo central reside na assistência social teve lugar em
contextos socioeconômicos que enfatizaram o mercado com sua capacidade de
ser auto-regulável, sendo que o Estado deve ser restrito ao mínimo necessário
para viabilizar a existência do mercado. Nesse caso, as necessidades são
satisfeitas de acordo com os interesses individuais e a capacidade de cada um
de adquirir os bens e serviços de que precisa.

Os valores dominantes são a liberdade, o individualismo e a igualdade de


oportunidades, capazes de gerar condições diferenciadas de competição no
mercado. A ênfase no mercado reserva à ação pública um lugar mínimo e
complementar a este mecanismo básico, assumindo em conseqüência um
caráter compensatório e discriminatório sobre aqueles grupos sociais que
recebem proteção social porque demonstraram sua incapacidade para manter-
se adequadamente no mercado.

Por isso, o modelo é também conhecido como residual, sendo


organizados fundos e doações administrados por organizações voluntárias,
privadas ou públicas, guiadas por uma perspectiva educadora e de caridade para
com os pobres. Outra característica é o caráter temporal das ações assistenciais,
de natureza emergencial e pontual, gerando estruturas fragmentadas e ações
descontínuas de atenção social.

As ações assistenciais devem dirigir-se aos focos de pobreza ou grupos


vulneráveis, sendo necessário apresentar uma prova de inexistência de meios,
que ateste sua incapacidade financeira para tornar-se beneficiário. O fato de
receber um benefício, ainda que tendo um caráter mais permanente, não
transforma o indivíduo em possuidor de um direito. Isto porque a concessão do
benefício sempre dependerá de sua condição de carência e do poder
discricionário de um funcionário que analisará a solicitação.

A assistência social surge como modelo de caráter mais propriamente


preventivo e punitivo que uma garantia dos direitos da cidadania, o que se

27
evidencia nos rituais de desqualificação dos envolvidos nessas práticas – como
no tratamento muitas vezes ainda dado a meninos de rua e prostitutas que
implicam até a perda de outros direitos da cidadania, como o direito de ir e vir.
Fleury (1994) denominou essa relação social como “cidadania invertida”, já que
o indivíduo ou grupo passa a ser objeto da política como conseqüência de seu
próprio fracasso social.

Para superar essa condição, os profissionais do serviço social vêm


travando muitas e importantes lutas para assegurar a assistência como parte dos
direitos da cidadania. Trata- se de inserir a assistência como política pública e
direito dos cidadãos, rompendo a perspectiva de caridade e voluntariado, que
caracterizou o assistencialismo.

6.2- O MODELO DE SEGURO SOCIAL

Implantado por Bismarck, na Alemanha, o seguro social tem como


característica central a cobertura de grupos ocupacionais por meio de uma
relação contratual. Com base nos princípios da solidariedade, que surgiram com
a formação da classe trabalhadora industrial, não deixa de conjugar estes
valores com o princípio do mérito, por meio do qual os indivíduos deverão
receber compensações proporcionais a suas contribuições ao seguro.
Sancionado pelo Estado, o seguro social tem uma forte presença da burocracia,
que reconhece e legitima as diferenças entre os grupos ocupacionais, em busca
da lealdade dos beneficiários.

A assistência é focalizada nos pobres, e o seguro social está voltado para


grupos de trabalhadores do mercado formal, já politicamente organizados. O
esquema financeiro do modelo do seguro social revela uma associação entre
política social e inserção no mercado de trabalho, já que recebe contribuições
obrigatórias de empregadores e empregados, como porcentagem da folha
salarial, às quais vem se juntar a contribuição estatal. Esse modelo tripartite de
financiamento se reproduz também na gestão, que expressa claramente a
natureza corporativa desse mecanismo de organização social da proteção, já
que se dirige a categorias profissionais.

28
Seu objetivo é a manutenção das condições socioeconômicas dos
beneficiários, em situações de risco, como a perda da capacidade de trabalho
por idade, enfermidade ou acidente. Visa a assegurar àquele que já tenha
contribuído durante um determinado período condições de vida semelhantes
àquelas de um trabalhador ativo.

Os recursos das contribuições mensais são aplicados em conjunto para


acumularem e depois serem distribuídos de acordo com as necessidades,
sempre mantido o vínculo entre a contribuição e os benefícios, ou seja, aqueles
que mais contribuírem terão direito a mais benefícios. Esse modelo atuarial de
acumulação é perfeito para o caso das aposentadorias, mas já não se aplica
plenamente no caso da saúde, em que os que menos contribuem, por terem
salários mais baixos, são os que mais necessidades têm. Como o seguro social
é coletivo, e não individual como os atuais seguros privados, há sempre uma
margem para redistribuição entre os participantes de uma dada categoria.

A organização altamente fragmentada das instituições sociais expressa a


concepção dos benefícios como privilégios diferenciados das diferentes
categorias de trabalhadores, na medida em que cada uma delas tem força
política distinta para reivindicar melhorias no seu padrão de benefícios. O
condicionamento dos direitos sociais pela inserção dos indivíduos no mercado
de trabalho foi chamado por Wanderley Guilherme dos Santos (1979) de
cidadania regulada, por referência à regulação exercida pela inserção de cada
beneficiário na estrutura produtiva.

6.3- O MODELO DE SEGURIDADE SOCIAL

No terceiro modelo, a proteção social assume a modalidade de


seguridade social, designando um conjunto de políticas públicas que, inspiradas
em um principio de justiça social, garantem a todos os cidadãos o direito a um
mínimo vital, socialmente estabelecido. Sua referência histórica é o Plano
Beveridge, de 1942, na Inglaterra, onde se estabeleceu, pela primeira vez, um
novo modelo de ordem social baseado na condição de cidadania, segundo a qual
os cidadãos passam a ter seus direitos sociais assegurados pelo Estado.

29
O caráter igualitário do modelo está baseado na garantia de um padrão
mínimo de benefícios, de forma universalizada, independentemente da
existência de contribuições anteriores. O acesso aos benefícios sociais depende
unicamente da necessidade dos indivíduos, ou seja, o acesso à escola porque é
preciso ser educado, o acesso ao sistema de saúde porque há uma demanda
sanitária. Ao desvincular os benefícios das contribuições, é estabelecido um
mecanismo de redistribuição por intermédio das políticas sociais, que têm como
objetivo corrigir as desigualdades geradas no mercado.

Esse modelo foi também chamado institucional porque gerou um sistema


de políticas e instituições públicas capaz de assegurar, de forma integrada e
centralizada, a coordenação da execução dessas políticas. O Estado
desempenha um papel central tanto na administração como no financiamento do
sistema, que destina recursos importantes do orçamento público para a
manutenção das políticas sociais. Os recursos do sistema são repartidos na
medida em que as despesas são cobertas com recursos que são arrecadados
periodicamente.

Nesse sentido, fala-se que a seguridade gera um compromisso entre


gerações, em que os adultos atuais pagam os benefícios da geração de seus
pais e criam uma dívida para a geração de seus filhos. Nesse modelo, podemos
falar de uma cidadania universal, já que os benefícios são assegurados como
direitos sociais, de forma universalizada a todos aqueles que necessitem deles.

Conhecidos os três modelos clássicos de proteção social, algumas


questões ficam para a reflexão:

• Apesar das diferenças entre os três modelos, existem alguns


pressupostos básicos comuns a todos eles, em especial a existência de Estados
nacionais fortes o suficiente para assegurar os direitos de seus cidadãos e a
existência de um padrão de desenvolvimento econômico que absorva a mão-de-
obra e que permita o financiamento da proteção social, seja pela política pública,
seja pelo mercado, seja pelo seguro social. No contexto atual, de globalização
da economia e perda de poder dos Estados nacionais, como serão afetadas as
políticas sociais? Em um modelo econômico no qual a economia cresce sem
absorver a maioria da população, como manter os sistemas de proteção social?

30
• O conceito de cidadania supõe uma igualdade básica dos indivíduos na
esfera política, apesar de todas as diferenças sociais. No entanto, um conceito
de igualdade que se aplique de forma homogênea a setores e grupos sociais em
condições tão distintas é o mais justo? Quando se discutem políticas sociais
baseadas em critérios de discriminação positiva de grupos que foram
prejudicados pelas políticas homogêneas, o que está em questão é a revisão do
conceito de igualdade simples para o de uma igualdade complexa, no qual as
diferenças – como as de gênero, idade, etnia, raça e necessidades físicas
especiais – sejam tratadas como singularidades a serem consideradas pelas
políticas públicas universais.

• Recentemente, houve uma volta ao predomínio da ideologia liberal, o


que gerou críticas fortes ao sistema de proteção social de caráter público. Falou-
se muito do fracasso do Estado de Bem-Estar Social, das dificuldades para
financiá-lo, já que a população idosa vive cada vez mais, a atenção à saúde é
cada vez mais cara e o número de pessoas adultas e jovens vem diminuindo,
proporcionalmente. No entanto, países que mantêm mais de 50% de sua
população trabalhadora – população economicamente ativa (PEA) – no mercado
informal terminam por inviabilizar a proteção social se sua fonte de renda for feita
principalmente com base nas contribuições sobre o salário.

• Sabemos que a adoção de um ou outro modelo de proteção social não


depende basicamente da riqueza do país, mas do predomínio de valores mais
individualistas ou mais solidários. Assim, enquanto os países escandinavos e o
Canadá apresentam sistemas de proteção social muito abrangentes e
generosos, cobrando para isto altos impostos, os Estados Unidos dão mais valor
ao trabalho e ao esforço de cada um para conseguir seu seguro social. O
crescimento dos seguros individuais nos países em desenvolvimento é um fato
marcante, pois esses seguros, diferentemente do seguro social, não permitem
qualquer forma de distribuição social entre os grupos mais ricos e os mais pobres
da população.

• A Constituição Federal de 1988 incluiu a saúde como parte da


seguridade social, avançando em relação às formulações legais anteriores, ao
garantir um conjunto de direitos sociais, expressos no art. 194 (Cap. II, da Ordem
Social), inovando ao consagrar o modelo de seguridade social como “um

31
conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social” (Brasil, 1988). A inclusão da previdência, da saúde e da
assistência como partes da seguridade social introduz a noção de direitos sociais
universais como parte da condição de cidadania, antes restritos à população
beneficiária da previdência. O novo padrão constitucional da política social
caracteriza-se pela universalidade na cobertura, o reconhecimento dos direitos
sociais, a afirmação do dever do Estado, a subordinação das práticas privadas
à regulação em função da relevância pública das ações e serviços nessas áreas,
uma perspectiva ‘publicista’ de co-gestão governo/sociedade, um arranjo
organizacional descentralizado. Esse novo modelo foi expresso nos princípios
organizadores da seguridade social: universalidade da cobertura e do
atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às
populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos
benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios e serviços;
eqüidade na forma de participação do custeio; diversidade da base de
financiamento; gestão quadripartite, democrática e descentralizada, com
participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do
governo em órgãos colegiados. Além disso, introduziu a noção de uma renda de
sobrevivência, de caráter não contributivo, ao assegurar um benefício financeiro
de prestação continuada para idosos e deficientes incapazes de trabalhar.

7. O MODELO, SEUS PRESSUPOSTOS E SUAS DIMENSÕES


DE ANÁLISE

Os modelos analíticos de sistemas de saúde mais conhecidos utilizam as


seguintes categorias: níveis de gerência (administração, planejamento, etc.);
produção de recursos (medicamento, conhecimentos); organizações de recursos
(públicas, privadas, ONGs); financiamento e prestação de serviços (Roemer,
1991). No entanto, eles não se adaptam à nossa idéia de modelo de análise,
porque têm uma preocupação excessiva com a estrutura interna, deixando em

32
segundo plano as relações com o meio, os interesses dos atores envolvidos, as
dinâmicas complexas da população.

Contandriopoulos (1986:7) considera que a análise deve levar em conta


o meio ambiente ou o contexto cultural, social, político, econômico, tecnológico,
além dos valores culturais e ideológicos da sociedade em estudo. Para ele, "a
análise da dinâmica do sistema de saúde e das características específicas dos
serviços de saúde vão nos levar a definir as características que são comuns a
todos os sistemas de saúde, ou seja, as 'rigidezes incontornáveis' que
constituem o esqueleto da organização de todos os sistemas de saúde, assim
como os elementos que levam ao crescimento desses sistemas e os que
permitem controlá-lo".

Para ele, os elementos constitutivos do sistema de saúde são quatro: os


recursos, os serviços, o estado de saúde e os fatores determinantes dos
problemas de saúde. Sua compreensão do funcionamento do sistema se faz a
partir de três fatores:

• identificação dos principais grupos de agentes que intervêm nesse


sistema;

• as relações que existem entre eles;

• apreciação das principais motivações desses agentes.

A grande contribuição desse autor na concepção do modelo se dá na


discussão das particularidades dos serviços de saúde, sendo a mais importante
delas a que diz respeito à intervenção do poder público ser indispensável
(regulação), em virtude das características intrínsecas dos serviços de saúde,
que são a incerteza ligada à ocorrência da doença e ao estado de saúde futuro
de cada indivíduo, ao desequilíbrio da informação que existe entre o indivíduo
doente e o profissional (por causa da indeterminação que existe sobre os efeitos
dos serviços médicos) e a utilização dos serviços para satisfazer necessidades
individuais através de outras pessoas que não o indivíduo ("externalidade").
Nesse caso, a noção abrangente de "externalidade" tem conseqüências
importantes na elaboração de políticas de saúde, ou seja, "quanto mais

33
abrangente for a noção de externalidade, as respostas no plano da necessária
regulação serão mais importantes" (Contandriopoulos, 1986:19).

No que diz respeito às nossas categorias de análise, a contribuição deste


autor é essencial, pois nos estimula a ser criativos, quando apresenta suas idéias
de uma utopia na reforma dos sistemas de saúde (Contandriopoulos, 1994), que,
em resumo, são: manter a universalidade da cobertura e o acesso dos serviços,
graças à um financiamento público do sistema; e descentralizar as decisões para
a organização e o funcionamento do sistema de saúde.

Sicotte et al. (1996), ao desenvolverem uma proposta conceitual


integradora para a análise do desempenho de serviços de saúde, visando tanto
superar a fragmentação existente na variedade de modelos de desempenho
organizacionais quanto incorporar o caráter multidimensional e facilmente
paradoxal do desempenho do serviço, se aproximam da nossa idéia de
integração e multidimensionalidade do sistema de saúde.

Esses autores baseiam-se em Henry Mintzberg (Mintzberg,


1982, apud Sicotte et al., 1996), autor que desenvolveu estudos sobre a estrutura
e dinâmica das organizações em geral. Este autor considera os serviços de
saúde como burocracias profissionais que apresentam duas especificidades
principais. A primeira é a de ser um serviço de natureza pública. Embora seu
papel social seja preservar e promover a saúde da população e dos indivíduos e
seja objeto de um grande consenso social, a definição e a medição de resultados
ainda são complicadas.

A segunda é a de que o meio ambiente político, legal, financeiro que


confronta as organizações de saúde é extremamente complexo e pluralista,
requerendo o desenvolvimento e manutenção de ligações intra e intersistêmicas.
Ao visualizarmos a construção do modelo, admitimos a possibilidade de que ele
funcione de forma ampliada em relação às especificidades descritas acima.

A grande contribuição desses autores está na aceitação e posterior


adaptação do modelo parsoniano de sistema social, considerando que esse
modelo permite explicitar os vários mecanismos que são importantes no
monitoramento do desempenho da organização. Como nossa perspectiva é

34
sistêmica, vislumbramos uma possibilidade de, ao adotar essa abordagem,
estarmos avançando na construção do modelo.

O modelo de Parsons de sistema social (Parsons, 1951, apud Sicotte et


al., 1996) apresenta quatro principais funções - ou exigências - que todo sistema
social (e podemos dizer, o sistema de saúde) deve cumprir para sobreviver: ser
orientado por objetivos; interagir com seu meio ambiente para adquirir os
recursos necessários para a sua transformação; integrar seu processo interno
para garantir a produção e manter os valores e normas que ajudam e obrigam
as três. Nessa perspectiva, o conceito de equilíbrio é central.

Para Sicotte et al. (1996), o que torna o modelo parsoniano interessante


na construção do modelo deles é a sua capacidade de:

a. Englobar os vários modelos dominantes de desempenho organizacional,


respectivamente o modelo de objetivos racionais, o modelo de aquisição
de recursos, o modelo de processo interno de decisão e o modelo de
relações humanas;
b. Apresentar uma forte estrutura integradora, na qual a complementaridade
do desempenho das várias organizações de saúde está bem integrada
enquanto a especificidade de cada uma dessas perspectivas está bem
preservada;
c. Enriquecer o conceito de desempenho da organização de saúde,
tornando visíveis várias dimensões do desempenho que são
freqüentemente negligenciadas.

Embora nossa perspectiva não seja a avaliação de desempenho do


sistema de saúde, admitimos a possibilidade de aproveitar os principais
elementos do modelo parsoniano na construção do modelo, os quais
discutiremos a seguir.

O modelo parsoniano considera que são quatro as funções que se


estruturam na inter-relação entre dois eixos: vertical e horizontal (Figura 1). O
eixo vertical (interno-externo), descreve a relação entre o sistema aberto e seu
meio ambiente, e o eixo horizontal (meios-fins), o equilíbrio entre a entrada de
recursos (material e simbólico), seu processamento até o ponto de ser usado,

35
seu consumo real e os resultados obtidos. Os quatro subsistemas funcionais
estão posicionados de acordo com os dois eixos acima.

A função adaptação (externo/meios) assegura o crescimento e a


sobrevivência institucional através do manuseio criterioso das oportunidades e
ameaças presentes no ambiente. A função alcance dos objetivos (externo/ fins)
capacita a organização a fazer escolhas estratégicas que resultem no alcance
de objetivos de longo prazo. A função produção de serviços (interno/fins) é o
centro da organização (incluindo serviços clínicos e de suporte). A função
manutenção dos valores produz razão, compreensão e coesão entre os
membros da organização. Essa função gera o sistema de valores em que
repousam as outras três funções.

Na medida em que essas funções não são independentes umas das


outras, mas reciprocamente interligadas, Sicotte et al. (1996:18), baseando-se
em Parsons, definem seis formas de intercâmbio que asseguram a coesão e o
equilíbrio do sistema (Figura 1): estratégica (adaptável alcance dos objetivos);

36
Alocável (adaptação  produção de serviços); tática (alcance dos
objetivos  produção de serviços); operacional (manutenção de
valores  produção de serviços); legitimação (manutenção de
valores  alcance dos resultados); e contextura (adaptação  manutenção de
valores).

Procuramos considerar, na construção do modelo, um valor pelo qual


possamos avaliar o sistema, pois toda avaliação pressupõe um ideal a ser
atingido. Sicotte et al. (1996) observaram que os tradicionais modelos de
avaliação dos serviços refletem diferentes concepções de meios, fins, gerências
e estruturas (ou seja, diferentes modelos organizacionais), não podendo haver
um modelo universal. Uma característica universal é aquela que pode dar conta
de otimizar, ao mesmo tempo, todas as funções que acabamos de citar,
demandas e objetivos de uma organização, de maneira unívoca e homogênea.

Partimos, também, da concepção de que a articulação de um sistema


complexo se faz em nove níveis, descritos por Le Moigne (1990):

i. Fenômeno é identificável, o que o diferencia de seu meio ambiente.


ii. Fenômeno é ativo, isto é, ele faz.
iii. Fenômeno é regulado, pois não sabemos modelar o caos.
iv. Fenômeno informa-se sobre seu próprio comportamento, isto é, tudo se
passa como se o sistema produzisse, de maneira endógena, formas
intermediárias, informações, sistemas de símbolos, que asseguram a
intermediação com a regulação.
v. Sistema decide o seu comportamento, ou seja, é capaz de gerar
informação e suas próprias decisões.
vi. Sistema memoriza, pois ao elaborar suas decisões não considera
automaticamente as informações que recebe. Os dois níveis anteriores (4
e 5), juntamente com este, formam o arquétipo operação-informação-
decisão e serão apresentados mais adiante como as principais
dimensões na operacionalização do modelo proposto.
vii. Sistema coordena suas decisões de ação.
viii. Sistema imagina e concebe novas decisões possíveis, ou seja, é capaz
de elaborar novas formas de ação.

37
ix. Sistema é capaz de decidir sobre sua decisão, isto é, de se finalizar.

O arquétipo decisão-operação-informação pode ser caracterizado como


três subsistemas. O nível das decisões permite à organização, em função das
informações que recebe, comparar resultados, compreender as diferenças,
conceber ações alternativas e escolher planos de ação pertinentes. O nível das
operações é aquele onde o sistema age sobre os inputs e os transforma. O nível
das informações permite à organização recolher informações sobre suas
operações, sobre o meio ambiente e sobre ela mesma (Rodrigue, 1990).

A nossa proposta de modelo é feita com base em concepções anteriores,


buscando operacionalizá-las a partir de alguns indicadores de avaliação.

Os fatores e objetivos gerais apresentados serão detalhados de forma


específica e distinta em cada instância institucional (central ou local) e perante a
população usuária. Procuramos não perder de vista a noção do valor norteador
do acesso para cada subsistema de cada instância e a noção da
descentralização como uma condição necessária para melhorar o acesso. É aqui
que reside a complexidade de modelar e avaliar esta dinâmica. A seguir,
apresentamos nossa proposta de construção teórica destas duas categorias.

 Acesso

Procurando pensar o que seria a organização orientada pelo valor


acesso, suas instâncias podem ser vistas da seguinte maneira:

1) Instâncias central e local: é onde se promove e se concretiza a


responsabilidade com as necessidades da população e com os valores sociais.
É onde se avalia a efetividade na produção de resultados na saúde da
população. É onde se dá a devida relevância das escolhas estratégicas com os
processos de adaptação (objetivos pertinentes aos recursos, às necessidades
da população e ao mercado). É onde toma forma a coerência dos serviços com
as necessidades da população. E, finalmente, é onde se dá a adequação das
escolhas de objetivos à demanda dos cuidados.

2) População/usuários: é onde se manifesta a legitimidade e confiança


no sistema de saúde. É onde são revelados os fatores sócio-culturais que
predispõem ou não o uso do sistema de saúde formal e as atitudes que

38
influenciam o comportamento individual, como as crenças sobre os médicos e
os serviços médicos, orientações pessoais sobre a saúde.

Dada essa caracterização, a categoria acesso é operacionalizada


considerando os três principais subsistemas: de decisão, de operação e de
informação.

 Subsistema de decisão

É onde se dá a comparação dos resultados das operações com o projeto


do sistema, a compreensão dos desvios, a concepção de alternativas e as
escolhas de planos de ação. É o nível estratégico, tático e alocável de uma
organização. Neste subsistema, o valor acesso está relacionado ao controle
social, entendido como participação real da população na administração dos
serviços, associada à gestão técnica e interna (indo contra a tendência crescente
de profissionalização e burocracia).

O objetivo a ser atingido por esse controle e essa participação é o de


otimizar a função de interação com o meio (adaptável), e a avaliação se dá pela
existência e condição de operação de mecanismos concretos de participação
popular: conteúdo do processo, mecanismos de participação, finalidade das
experiências.

Segundo Forest (s/d:144), "achar que toda ação pública deveria ser concebida como um
processo aberto, conduzido de maneira a informar, escutar e a levar em conta os cidadãos não
é puramente uma orientação ideológica, mas uma questão de eficácia. O consentimento e a
iniciativa dos cidadãos são condições necessárias ao alcance dos objetivos governamentais e,
por isso, devem ter sua parte na definição e execução das prioridades públicas".

A operacionalização a partir dos níveis do sistema de saúde pode ser vista


na Tabela 1.

39
 Subsistema de operação/produção de serviços

É o nível no qual o sistema age sobre a forma inicial de um conjunto de


fatores (paciente, patologia, estrutura física da própria organização) e os
transforma, no tempo, em uma forma distinta. É onde se dá, também, o
reconhecimento mútuo (encontro do paciente, do terapeuta e da estrutura do
serviço); a identificação da demanda, dos serviços e do projeto; a avaliação do
problema de saúde (diagnóstico, investigação, especialização das estruturas de
tratamento); as intervenções para regular o problema; e a continuidade das
funções anteriores.

O valor acesso neste subsistema avalia a eqüidade (universalidade,


globalidade e acessibilidade regional, social e organizacional); a igualdade nos
serviços calcada em prioridades de áreas, problemas e grupos de população; a
qualidade (continuidade, qualidade técnica, pertinência e satisfação); e a eficácia
(rendimento, disponibilidade) dos serviços. A operacionalização a partir dos
níveis institucionais pode ser vista na Tabela 1.

40
 Subsistema de informação e retroalimentação

É o que permite à organização recolher informações sobre suas


operações, sobre o meio e sobre ela mesma. Visa a receber, selecionar e tratar
as informações recebidas; guardar o traço dos implexos anteriores; passar
informações para os subsistemas de operação e de decisão.

O acesso nessa dimensão é avaliado pela ação retroativa de todo


processo: prestação de contas, democratização de resultados de ensino-
pesquisa-serviços, realização de atividades educacionais, integração do sistema
com outros e entre os seus subníveis, etc.

O que se avalia é a possibilidade de os usuários terem autonomia de


decisão, clareza no tratamento, opções pessoais e a influência dos fatores
predisponentes, pela ampliação da percepção social da utilidade e do valor das
organizações de serviços médicos. Os fatores predisponentes seriam os fatores
sócio-culturais que existem previamente à doença e que propiciam ou não o uso
do sistema de saúde formal; atitudes que influenciam o comportamento
individual, como as crenças sobre os médicos e os serviços médicos;
orientações pessoais sobre a saúde e outras dimensões psicossociais. A
operacionalização a partir dos níveis institucionais pode ser vista na Tabela 1.

 Descentralização

Dentro da mesma lógica utilizada na operacionalização do valor acesso,


sistematizamos as instâncias da descentralização da seguinte maneira:

1) Instância central e local: é onde se define o grau de


descentralização dos recursos, da autoridade e das competências. É
onde fica caracterizada a autonomia dos serviços e a desconcentração
de competências.
2) População/usuários: é onde são incorporados os setores excluídos
ou marginalizados.

A categoria descentralização também é operacionalizada, considerando-


se os três principais subsistemas: de decisão, de operação e de informação.

 Subsistema de decisão

41
Considerando os princípios de autonomia do serviço, desconcentração
de competências e participação nas decisões de interesse geral, essa categoria
é avaliada concretamente pela responsabilidade com os objetivos centrais e
necessidades locais, assim como pela desconcentração das decisões
estratégicas. É também avaliada pela sua capacidade de adquirir recursos, de
decidir de forma autônoma e pelo grau de desconcentração das decisões tático-
operacionais. Para a população, sua participação é avaliada nas decisões de
interesse geral. A operacionalização a partir dos níveis do sistema de saúde
pode ser vista na Tabela 2.

 Subsistema de operação/produção de serviços

Considerando o princípio da desconcentração de competências, são


avaliadas a coerência com o planejamento central, sua integração com outras
partes do sistema, a prestação de contas e, para a população, a criação de
instâncias representativas e acesso à informação. A operacionalização a partir
dos níveis institucionais pode ser vista na Tabela 2.

 Subsistema de informação e retroalimentação

42
Considerando o princípio da participação nas decisões de interesse geral,
são avaliados os critérios e indicadores estratégicos e táticos de
acompanhamento da gestão. Para a população, é avaliado o acompanhamento
da gestão. A operacionalização a partir dos níveis institucionais pode ser vista
na Tabela 2.

8. O CONCEITO DE POLÍTICA SOCIAL

As ações permanentes ou temporárias relacionadas ao desenvolvimento,


à reprodução e à transformação dos sistemas de proteção social consistem no
que chamamos de política social. Esta é a atividade que decorre da própria
dinâmica de atuação dos sistemas de proteção social, ou seja, consiste em sua
forma de expressão externa, concretização, e envolve o desenvolvimento de
estratégias coletivas para reduzir a vulnerabilidade das pessoas aos riscos
sociais.

Assim, a política social, como ação de proteção social, compreende


relações, processos, atividades e instrumentos que visam a desenvolver as
responsabilidades públicas (estatais ou não) na promoção da seguridade social
e do bem-estar. Portanto, a política social apresenta uma dinâmica multifacetada
que inclui ações intervencionistas na forma de distribuição de recursos e
oportunidades, a promoção de igualdade e dos direitos de cidadania e a
afirmação de valores humanos como ideais e a serem tomados como referência
para a organização de nossas sociedades.

Tradicionalmente, as políticas sociais abrangem as áreas da saúde,


previdência e assistência social, que são os campos clássicos do bem-estar
social, além de outros campos como a educação e habitação. Cada uma delas
está voltada para a proteção coletiva contra riscos específicos e, portanto,
possuem aspectos singulares de elaboração, organização e implantação, assim
como diferem em termos de técnicas, estratégias, instrumentos e objetivos
específicos almejados. Esses aspectos da dinâmica de cada uma das áreas da
política social são complexos e de extrema importância no desenvolvimento dos

43
sistemas de proteção social, uma vez que são nesses aspectos que os sistemas
adquirem forma concreta e agem diretamente sobre a realidade social.

Assim, quando se fala em política social como ação concreta de proteção


social, uma nova questão se coloca: compreender como os sistemas de proteção
social são geridos e, principalmente, como eles agem concreta e diretamente
sobre a realidade social. Logo, quando passamos dos sistemas à política social,
posicionamo-nos diante de um novo desafio, que é avançar além dos aspectos
mais estáticos e históricos dos sistemas de proteção social (como a classificação
em tipos ideais), para nos envolvermos em seus aspectos mais concretos e
atuais.

Na segunda parte deste capítulo, vamos abordar a dinâmica de


construção e gestão da política social, ou seja, vamos entender como os
sistemas de proteção social são geridos e por meio de que estratégias,
instrumentos e processos eles agem diretamente sobre a realidade social.
Tomaremos a política de saúde como exemplo da dinâmica de gestão dos
sistemas de proteção social, uma vez que o objetivo deste capítulo é apresentar
a política de saúde como uma política social. Ao apresentar como a política de
saúde, em especial a política de saúde no Brasil, se constrói e age
cotidianamente, buscamos compreender como a política social, em meio a ações
técnicas, estratégias políticas e organizacionais, disputas por recursos e idéias,
cumpre seu papel maior de proteger as coletividades.

9. A POLÍTICA DE SAÚDE COMO AÇÃO DE PROTEÇÃO


SOCIAL: ASPECTOS DA DINÂMICA DE CONSTRUÇÃO E
GESTÃO DA POLÍTICA SOCIAL
A construção da política de saúde como política social envolve diversos
aspectos políticos, sociais, econômicos, institucionais, estratégicos, ideológicos,
teóricos, técnicos, culturais, dentre outros, tornando-se muito difícil isolar a
participação de cada um deles em um momento definido.

Como atividade de proteção social, a política de saúde se coloca na


fronteira de diversas formas de relação social, como a relação entre gestores e
atores políticos de unidades governamentais e empresas, entre indivíduos e
grupos sociais (famílias, grupos ocupacionais, religiosos, entre outros), entre

44
cidadãos e os poderes públicos, entre consumidores e provedores de bens e
serviços etc. A ação da política de saúde sobre essas formas de relação é
diferente em cada caso e envolve estratégias, planos, instrumentos e processos
mediados por instituições e significados culturais.

Portanto, a política de saúde se encontra na interface entre Estado,


sociedade e mercado. Por exemplo, a sociedade financia com seus impostos e
contribuições, tem atitudes e preserva valores em relação ao corpo e ao bem-
estar, comporta-se de formas que afetam a saúde, coletivamente e/ou
individualmente (poluição, sedentarismo, consumo de drogas).

O Estado, por exemplo, define normas e obrigações (regulação dos


seguros, vacinação), recolhe os recursos e os aloca em programas e ações, cria
estímulos para produção de bens e serviços, cria serviços de atenção, define leis
que sancionam o acesso, desenvolve tecnologias e forma recursos humanos. O
mercado produz insumos, oferece serviços de seguro e participa da oferta de
serviços e da formação de recursos humanos. Por critério de relevância,
selecionamos sete aspectos considerados essenciais na construção e na
dinâmica de gestão da política de saúde. Esses aspectos são:

1) A definição de objetivos (finalidades) da política – a política de


saúde se constrói buscando atingir objetivos projetados e
acordados como garantidores de padrões de proteção mínimos
contra riscos sociais e a promoção do bem-estar (redução e
eliminação de enfermidades, distribuição de benefícios para
manter nível de renda em patamares aceitáveis, regulação de
relações sociais como familiares e empresariais);
2) A construção e o emprego de estratégias, planos, instrumentos
e técnicas capazes tanto de analisar e monitorar as condições
sociais de existência da população quanto de desenhar
estratégias, metas e planos detalhados de ação;
3) O desempenho simultâneo de papéis políticos e econômicos
diferentes – a política de saúde produz efeitos em diversas
relações sociais ao mesmo tempo (promoção da igualdade,
legitimação política de grupos governamentais, manutenção da
dinâmica econômica);

45
4) A construção oficial de arenas, canais e rotinas para orientar os
processos decisórios que definem as estratégias e os planos de
ação da política;
5) A assimilação, contraposição e/ou compatibilização de
diferentes projetos sociais provenientes dos mais diversos
atores presentes na cena política de um país;
6) O desenvolvimento, a reprodução e a transformação de marcos
institucionais que representam o resultado de referenciais
valorativos, políticos, organizacionais e econômicos, que
permeiam, sustentam a política e a interligam ativamente ao
sistema de proteção social;
7) A formação de referenciais éticos e valorativos da vida social –
a afirmação e a difusão de valores éticos, de justiça e igualdade,
de referenciais sobre a natureza humana fundada em evidências
cientificamente legitimadas, de ideais de organização política e
social, de elementos culturais e comportamentais.

Todos esses elementos são centrais na construção da política de saúde


e estão presentes no cotidiano da ação dos sistemas de proteção social sobre a
realidade. A seguir, passaremos a abordar cada um deles ao discutirmos como
se fazem presentes na construção concreta da política de saúde.

10. A DEFINIÇÃO DE OBJETIVOS (FINALIDADES) DA POLÍTICA

O conceito mais difundido de política de saúde, e internacionalmente


adotado, enfatiza seu caráter de estratégia oficial organizada em ações setoriais
a serem desempenhadas de acordo com normas legalmente construídas, tendo
por objetivo maior a qualidade de vida da população. Esta forma de
entendimento sobre a natureza da política de saúde está presente na definição
da Organização Mundial de Saúde (OMS), que afirma que aquela consiste em:

Um posicionamento ou procedimento estabelecido por instituições oficiais


competentes, notadamente governamentais, que definem as prioridades e os
parâmetros de ação em resposta às necessidades de saúde, aos recursos

46
disponíveis e a outras pressões políticas. A política de saúde é freqüentemente
estabelecida por meio de leis e outras formas de normatização que definem as
regras e incentivos que orientam a provisão de serviços e programas de saúde,
assim como o acesso a esses. (…). Como a maioria das políticas públicas, as
políticas de saúde emergem a partir de um processo de construção de suporte
às ações de saúde que se sustentam sobre as evidências disponíveis, integradas
e articuladas com as preferências da comunidade, as realidades políticas e os
recursos disponíveis. (WHO, 1998: 10 – grifo nosso)

O estabelecimento de objetivos, orientados por valores maiores que são


referenciais, consiste em um dos principais componentes da construção de uma
política, uma vez que é a busca pelos objetivos que determinará a forma de
alocação de recursos e o tipo de estratégia adotada.

As definições mais difundidas da política de saúde podem ser


caracterizadas pela ênfase principal dada pelo dever ser ou pelas finalidades
que a política de saúde deveria cumprir. Por exemplo: é um esforço sistemático
para reduzir as desigualdades entre os homens.

Essa é uma concepção que apresenta os aspectos externos da política


de saúde, ou seja, aqueles que estão mais próximos do senso comum, pois
colocam à disposição da população o propósito dos governantes sobre os
problemas de saúde:

Entende-se por política [de saúde] as decisões de caráter geral,


destinadas a tornar públicas as intenções de atuação do governo e a orientar o
planejamento (..). As políticas visam tornar transparente a ação do governo,
reduzindo os efeitos da descontinuidade administrativa e potencializando os
recursos disponíveis. O cerne de uma política é constituído pelo seu propósito,
diretrizes e definição de responsabilidades das esferas de governo e dos
órgãos envolvidos, nas esferas municipal, estadual e federal. (Brasil, 1998: 7 –
grifo nosso)

Assim, quando elaboramos uma política, precisamos definir quais são


seus objetivos e que tipo de valores estão orientando essa política. Isso possui
ainda dois efeitos importantes. O primeiro consiste na visibilidade política que
essa forma de se apresentar comporta, permitindo que chefes de governo

47
divulguem com mais facilidade suas realizações, indo ao encontro aos anseios
da população. O segundo deve-se a que o conceito permite que se tenha uma
visão totalizante da política, possibilitando avaliar seus rumos.

A principal vantagem consiste em chamar atenção para o conteúdo


valorativo da política de saúde, considerando que estas, mais que simples
medidas técnicas de equacionamento de problemas sociais, estão baseadas em
um conjunto de valores que orientam as definições e estratégias. Vejamos, a
seguir, alguns exemplos colhidos de políticas específicas do Ministério da Saúde
no Brasil (Quadro 2).

Essas definições de política de saúde estão em sintonia com uma situação


ideal projetada para cada setor da população abordado e oferecem um marco
ideal expresso em seus valores finais como guias de condução das atividades
governamentais. Mas essa ênfase nos ideais pode representar um problema. A
principal limitação em se ater somente aos objetivos da política reside em sua
incapacidade de fornecer um instrumental para análise das realidades concretas
das políticas de saúde.

Assim, quando não estão cumprindo com as finalidades enunciadas, tais


como reduzir as desigualdades, melhorar as condições de vida, outorgar bem-
estar à sociedade, significaria que ‘não existe’ política de saúde em um dado
país? Ao negar a existência de políticas concretas porque não estão cumprindo

48
com as finalidades que consideramos ser aquelas da política de saúde,
estaríamos perdendo a possibilidade de compreender a realidade e, por
conseguinte, interferir em seu curso.

Portanto, o conhecimento das realidades setoriais concretas, e não


apenas o projeto de uma situação ideal, é um aspecto essencial para
compreender como as políticas de saúde interagem com a realidade, que efeitos
causam e como essas realidades afetam a elaboração da política.

11. A CONSTRUÇÃO E O EMPREGO DE ESTRATÉGIAS,


PLANOS, INSTRUMENTOS E TÉCNICAS

Apenas definir objetivos não é suficiente para construir políticas efetivas,


é necessário também compreender os problemas setoriais e desenvolver
ferramentas concretas de ação. Enfatizando esse aspecto, surge uma outra
forma, também tradicional, de definir as políticas de saúde que a tomam como
uma estratégia concreta, organizada e especificamente orientada por meio de
recortes das ações e programas que se situam em diferentes setores,
reconhecidos como de saúde.

Nesse caso, definem-se as políticas de saúde como as decisões,


estratégias, instrumentos e ações (programas e projetos) que se orientam para
o cumprimento de determinadas metas delimitadas para cada campo de atuação
das políticas citadas como, por exemplo, política nacional de saúde no campo,
da mulher, da população negra, de saúde no trabalho etc. Quando enfatizamos
esse aspecto mais instrumental da política de saúde, podemos visualizar
concretamente a estratégia de política adotada, os seus princípios e núcleos
temáticos, as ações que serão realizadas, os resultados almejados, os
responsáveis pela sua execução, o volume de recursos disponíveis, a origem
deles, os indicadores que serão utilizados para avaliar sua execução e outros
aspectos de natureza mais prática.

Vejamos um exemplo da política de saúde no Brasil. A análise do Plano


Estratégico do Programa Nacional de DST e Aids 2004-2007, que sintetiza a

49
política nacional apresentada pelo Ministério da Saúde relativa à Aids e a outras
doenças sexualmente transmissíveis, permite visualizar como a política de
saúde se apresenta sob esta forma (Quadro 3).

No plano estratégico apresentado anteriormente, podemos visualizar três


elementos fundamentais na construção concreta de uma política: o diagnóstico
da realidade (qual a situação atual), os objetivos pretendidos (que situação futura

50
almejamos) e a estratégia a ser adotada (como iremos atingir o que
pretendemos). Note-se que deve haver uma coerência entre as três partes do
plano, pois não é possível almejar uma situação muito perfeita em relação ao
que temos, dadas as restrições do curto prazo, nem adotar uma estratégia que
não seja compatível com o que se pretende.

Por exemplo, quando se observa por meio de informações colhidas que a


Aids está avançando para as regiões do interior, torna-se um objetivo coerente
da política aproximar a ação do governo federal com a dos estados e municípios,
mediante uma estratégia de descentralização da gestão do Programa Nacional
de DST e Aids. Como podemos ver, quando percebemos a política de saúde por
sua dimensão estratégica ou instrumental, enfatizamos seu caráter deatividade
legítima e organizada em torno de um programa de ações que busca o alcance
de determinados objetivos estabelecidos como prioritários pela sociedade.

A ênfase está nos aspectos da estratégia institucional, operacional,


gerencial, e, mesmo, financeira, o que permite estabelecer de forma mais realista
os potenciais e as debilidades da política de saúde, tornando possível gerar
elementos que ajudem a compreender o porquê de os resultados obtidos não
serem os esperados, caso isso ocorra. Quando apenas enfatizamos as
finalidades da política, conseguimos somente dizer se a política de saúde está
cumprindo seu propósito ou não, mas não o porquê desse comportamento, nem
o que fazer de concreto para mudar a situação.

A vantagem principal, neste caso, consiste em delimitar o campo social a


partir dos setores institucionalizados das políticas públicas, ou seja, elaboramos
uma política não apenas olhando o que queremos e o que definimos como ideal,
mas, fundamentalmente, procurando compreender tanto o comportamento da
realidade sobre a qual queremos agir, quanto de que forma agiremos sobre ela.

No entanto, quando pensamos nos objetivos almejados para desenhar


uma política, ou nas realidades setoriais e nas estratégias e instrumentos para
modificá-las, precisamos lembrar que as políticas podem afetar e ser afetadas
por outras áreas e por outras relações, como as relações econômicas, políticas
ou culturais.

51
Ainda que nos ajudem a recortar uma realidade concreta, por meio de
uma definição de seus limites, pensar a dinâmica de uma política por seus
objetivos e realidades tende a ser arbitrário e desconhece a complexidade dos
problemas sociais. Cada vez mais, busca-se superar as limitações arbitrárias
entre as políticas econômicas e sociais, ao introduzir, por exemplo, a noção de
investimento em saúde como investimento produtivo, e não somente gasto
social, e reconhecer a capacidade econômica destes na produção de empregos
e consumo de bens industriais.

Portanto, podemos entender que as políticas de saúde, suas estratégias,


instrumentos e planos produzem uma ação que não se limita ao campo da
saúde, uma vez que, podendo influir em diversos outros aspectos da dinâmica
social (econômica, política, cultural), também podem, igualmente, cumprir vários
outros papéis, ou funções, além de seu objetivo básico de resolver problemas de
saúde.

12. ARENAS, CANAIS E ROTINAS DO PROCESSO DECISÓRIO


DA POLÍTICA DE SAÚDE

Quando pensamos que não há consensos sobre diversos problemas de


política de saúde e que diversos grupos sociais têm percepções diferentes sobre
eles, entendemos que não é fácil produzir uma política qualquer sem que antes
se obtenha uma assimilação mínima dos múltiplos interesses envolvidos. Isso
implica compreender as relações de poder que se estabelecem em torno da
política de saúde e que afetam o processo decisório que define os planos,
programas, estratégias e os processos de alocação de recursos. Como essas
relações de poder se organizam no interior das políticas e sistemas de saúde?
Esse é outro aspecto fundamental que precisamos ter em mente quando
queremos saber como as políticas agem na prática.

Essa reflexão nos leva aos instrumentos, mecanismos, arenas e rotinas


utilizadas para organizar a ação política dirigida a determinados fins. Nesse
momento, percebemos que a política de saúde é também um processo composto

52
por uma seqüência de tomada de decisões com relação a como enfrentar um
problema identificado como prioritário na agenda pública:

Entende-se como política de saúde a resposta social (ação ou omissão) de uma


organização (como o Estado) diante das condições de saúde dos indivíduos e das populações e
seus determinantes, bem como em relação à produção, distribuição, gestão e regulação de bens
e serviços que afetam a saúde humana e o ambiente. Políticas de saúde abrangem questões
relativas ao poder em saúde (politics), bem como as que se referem ao estabelecimento de
diretrizes, planos e programas de saúde (policy). (...) enquanto disciplina acadêmica, a política
de saúde abrange o estudo das relações de poder na conformação da agenda, na formulação,
na condução, na implementação e na avaliação de políticas. (Paim & Teixeira, 2006: 74 – grifos
nossos)

Ao chamar a atenção para a dimensão política e organizacional das


políticas sociais, procuramos dar uma materialidade à política de saúde, para
além dos aspectos valorativos, instrumentais e funcionais anteriormente
abordados. Aqui, as políticas de saúde são vistas como processos decisórios
envolvendo atores e interesses sociais, que ocorrem em ambientes institucionais
e organizacionais por meio dos quais se definem prioridades e estratégias que
relacionam os meios aos fins propostos.

Quando produzimos uma determinada política de saúde, precisamos,


então, compreender que sua elaboração abrange um ciclo composto por etapas
de elaboração, implantação e execução, do qual participam diversos atores,
compondo um círculo de relações de poder que moldam o formato geral da
política. Essas relações se expressam em espaços específicos, chamados
‘arenas’, por meio de regras determinadas e processos previamente
estabelecidos.

É fundamental conhecer cada um desses aspectos porque são decisivos


em cada momento de construção e desenvolvimento de uma política. Faz muita
diferença saber em que ponto se decide cada aspecto da política, quem, como,
quais e quantas são as etapas de decisão, quais são os limites do poder dos
gestores, onde entra a sociedade civil etc.

Podemos tomar como exemplos a estrutura e o processo decisório básico


da política de saúde no Brasil, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), em
que o processo decisório é caracterizado por uma ampla quantidade de arenas

53
e instâncias de pactuação que visam a garantir o caráter democrático e
participativo das decisões. Uma vez que a política de saúde no interior do SUS
é descentralizada e estruturada a partir da divisão e do compartilhamentode
competências entre as três esferas da federação (União, estados e municípios),
mas, ao mesmo tempo, é unificada nacionalmente, torna-se necessário articular
não só os processos de elaboração das estratégias da política, como também
os atores, inclusive a sociedade civil, em suas atividades de aplicação de
recursos e implementação de planos e programas.

A estrutura decisória da política de saúde no Brasil é fundamentada nos


seguintes instrumentos, processos e arenas:

• mecanismos de participação e controle social – representados pelos


conselhos de Saúde, existentes em cada uma das esferas governamentais, com
representação paritária de 50% de representantes do Estado e 50% da
sociedade civil. Os conselhos, para além de instrumentos de controle social,
externos ao aparelho de Estado, devem ser entendidos como “componentes do
aparelho estatal, onde funcionam como engrenagens institucionais com vigência
e efeitos sobre os sistemas de filtros, capazes de operar alterações nos padrões
de seletividade das demandas” (Carvalho, 1997: 99);

• mecanismos de formação da vontade política – as conferências de


Saúde, realizadas periodicamente, em todos os níveis do sistema, que, em uma
interação comunicativa e deliberativa, colocam todos os atores sociais em
interação em uma esfera pública e comunicacional, periodicamente convocada.
Além de mecanismos de aprendizagem e reconhecimento social, esta instância
fortalece a sociedade organizada que participa do processo de construção dos
lineamentos políticos mais amplos do sistema, embora sem caráter vinculativo.
São os espaços de formação das estratégias que orientarão as políticas de
saúde nos anos seguintes e delas participam gestores e atores organizados da
sociedade civil. São interligadas nas três esferas, sendo que as municipais
influenciam as estaduais e estas, a nacional;

• mecanismos de negociação e pactuação entre os entes governamentais


envolvidos em um sistema descentralizado de saúde – a suposição de interesses
distintos e de câmaras institucionais de negociação dessas diferenças e de

54
geração de pactos de gestão é uma das grandes inovações deste modelo
federativo inovador que assume a diferenciação como realidade e a igualdade
como princípio político e meta institucional. As arenas principais de negociação
são os consórcios de saúde (entre gestores municipais, onde houver), as
comissões intergestores bipartite (uma em cada estado onde negociam
municípios e o gestor estadual) e a comissão intergestora tripartite (participam o
gestor nacional erepresentantes dos gestores estaduais e municipais).

Nessas instâncias, a sociedade civil não possui capacidade decisória,


apenas nos conselhos e conferências de Saúde. Este modelo pode ser
sintetizado como no Quadro 4.

Como podemos perceber, há arenas específicas para cada tipo de


decisão, há atores que podem participar de algumas formas, mas não de outras,
há canais de mediação de conflito e estabelecimento de consensos, e processos
determinados que servem de orientação à ação política dos atores na construção
da política de saúde.

Vale lembrar que, se o formato da estrutura decisória fosse outro, como o


é em outros países, a forma de conduzir as decisões e o comportamento
estratégico dos atores seria diferente. Entretanto, o processo político que
envolve a política de saúde não se prende aos limites do sistema de saúde e,

55
portanto, não deve ficar restrito a uma visão da política como processo
institucional – em geral identificado como governamental – no qual tem lugar à
tomada de decisões racionais, baseadas em um forte conteúdo técnico.

Desse modo, deixa-se de lado o processo político mais geral, que passa
a ser visto como externo à instituição, ou, no máximo, considera-se que os
grupos de pressão da sociedade geram insumos para a tomada de decisões
institucionais. A separação entre o contexto político e o contexto institucional é
fictícia e gera grande dificuldade para a compreensão das reais articulações
entre Estado e sociedade.

Da mesma maneira, podemos questionar a visão do processo decisório e


de implementação de políticas como, fundamentalmente, processos técnico-
burocráticos. Precisamos levar em conta que a prática de construção cotidiana
da política de saúde envolve muito mais do que os embates políticos que se
expressam em suas arenas oficiais. Vamos aprofundar um pouco mais esse
aspecto.

13. A ASSIMILAÇÃO, CONTRAPOSIÇÃO E/OU


COMPATIBILIZAÇÃO DE DIFERENTES PROJETOS SOCIAIS

Se olharmos para além dos limites das arenas institucionais,


perceberemos que a política de saúde se depara constantemente com uma
intensa e múltipla dinâmica de relações de poder, na qual diferentes atores
sociais são constituídos, interpelam-se, enfrentam-se e assim redefinem suas
identidades e estratégias, em processos constantes:

Qualquer que seja a categoria de análise utilizada, deve ficar claro que a
política de saúde consiste no resultado de diferentes projetos que, por sua vez,
emergem de diferentes atores sociais, grupos, classes ou frações de classe.
Cada projeto ou proposta de política de saúde não representa em nenhuma
situação concreta algo terminado, mas sujeito à luta política, mesmo quando tem
origem na classe dominante. É, de forma definitiva, o resultado de projetos em

56
conflito e de forças que os representam em um dado momento. (Eibenschutz,
1992: 55-6 – grifos nossos)

A ênfase está nas relações que, historicamente, estabelecem-se entre os


diferentes atores sociais na disputa pela redefinição das relações de poder, com
conseqüência na distribuição dos recursos produzidos em uma sociedade. Por
um lado, o Estado, representado pelos agentes e instituições governamentais, é
tomado como um ator privilegiado, mas, por outro, também como uma arena em
que se enfrentam os interesses constituídos e organizados.

Nesse caso, na construção da política de saúde, depara-se com algo que


é maior do que propostas setoriais de ganho econômico ou político imediato,
com algo que transcende particularidades por representar projetos de classe
definidos e estruturados, abrangendo questões mais amplas como modelos
políticos, econômicos e de organização social.

Aqui, ao elaborar uma política de saúde, deve-se ter em conta que seu
formato interage com macroprocessos sociais, que irão delimitar o campo de
expansão dessa política, normalmente reforçando-a ou restringindo-a. Contudo,
ao definir uma política de saúde, estamos definindo um padrão civilizatório e um
modelo de sociedade que desejamos construir. Tomemos como exemplo o caso
das políticas e sistemas de saúde fundamentados no direito universal de acesso
aos cidadãos. Esse formato de política se insere em um projeto solidário de
nação, para o qual o direito à saúde é um direito de cidadania. A efetividade da
ação de uma política de saúde dessa natureza será maior ou menor dependendo
do projeto social que prevalecer na relação geral de forças sociais.

Assim, uma coalizão política nacional que favoreça a noção da saúde


como um bem que deva ser oferecido pelo mercado e apropriado
individualmente não oferece um ambiente fértil para a expansão da política
universal. Coalizões desse tipo irão restringir os recursos governamentais para
o financiamento dos gastos públicos em saúde e irão tentar reduzir os serviços
oferecidos pelo Estado a um mínimo possível, bem como tentar restringir o
acesso a esses serviços a uma determinada parcela da população.

Deve-se estar sempre atento ao fato de que o campo das políticas de


saúde é atravessado pelas lutas e enfrentamentos de diferentes forças sociais,

57
no processo de constituição, manutenção e contestação dos projetos de direção
hegemônica de cada sociedade. Trata-se da busca de atribuição de significados,
conteúdos, valores e orientações normativas que definem o âmbito do campo
social, assim como as possibilidades e limites das estratégias de diferentes
atores. Concepções sobre a vida, o bem-estar, a saúde, a cidadania, a cultura,
a educação e os bens públicos, em geral, são constantemente redefinidos e
ganham novos significados a partir de sua articulação aos diferentes projetos de
poder.

Esse processo de luta ideológica – que não exclui o conteúdo técnico


envolvido nessas disputas – é também um processo de constituição de sujeitos
sociais. Da mesma maneira que se diz que não há cidadãos antes do exercício
da cidadania, também não existem sujeitos prévios ao enfrentamento de seus
projetos, o que quer dizer que os sujeitos sociais se constituem na relação que
estabelecem nas disputas pelo poder. Esses projetos antagônicos se enfrentam
em diversas situações ideológicas. Por exemplo, no caso brasileiro, podemos
observar que existe um consenso nacional em relação à necessidade de existir
um sistema de atenção à saúde.

No entanto, se aprofundarmos o debate, aparecerão muitos pontos de


conflito. Devemos dar prioridade à prevenção e promoção da saúde ou às
práticas curativas? O sistema de saúde deve ser público, privado ou um misto
de organizações públicas e privadas. Neste último caso, qual o papel do Estado
e qual o papel das instituições privadaslucrativas? Ou ainda, se for um sistema
público, ele deve ser centralizado ou descentralizado? Obviamente, essas
opções não são uma simples questão de escolha, como se o resultado fosse o
mesmo em cada uma delas, mas representam pontos de conflito entre projetos
diferentes de política de saúde que expressam interesses políticos e econômicos
de vários grupos sociais

Esses projetos representam diferentes formas de concepção do direito à


saúde e, conseqüentemente, preconizam diferentes formas de acesso e
utilização dos serviços de saúde. Nos projetos que representam interesses
econômicos de grupos que compõem o setor produtivo da saúde como de
equipamentos, tecnologia, seguros privados e clínicas especializadas, a função
do Estado normalmente aparece, na maioria das vezes, somente na provisão de

58
serviços de atenção básica e preventiva, sendo que os serviços de média a alta
complexidade (diagnóstico especializado, procedimentos cirúrgicos, tratamento
especializado de base tecnológica etc.) ficariam a cargo do mercado, em que o
acesso é regulado pelo poder de compra individual e a oferta pela flutuação de
lucros.

Nesse projeto, a socialização dos custos dos serviços de elevada


complexidade tecnológica requer dispêndios elevados do Estado,
sobrecarregando suas finanças. Movimentos sociais que lutam pelo direito à
saúde afirmam que esse é um valor social maior inerente à condição de
cidadania e, portanto, um elemento fundamental na constituição de bases de
desenvolvimento socioeconômico e coesão social. Entretanto, esse processo de
lutas, conflitos e contraposição de projetos se desenvolve tendo no Estado o
espaço legítimo de exercício do poder político, e a política de saúde, como
produto da constante confrontação desses diversos projetos, expressão desse
exercício que se materializa por meio de instituições e estratégias
organizacionais.

Portanto, as disputas entre projetos de política de saúde não ocorrem em


um vazio, mas se desenvolvem a partir de padrões institucionalizados de
relações que estabelecem previamente a posição dos atores e a distribuição de
poder e orientam a ação dos grupos. As ações e estratégias que emergem da
dinâmica de contraposição dos projetos alternativos de política de saúde tanto
podem reforçar quanto buscar a transformação desses padrões
institucionalizados, de acordo com a coalizão de forças de cada momento.

Assim, a política de saúde possui uma ação institucionalizante que


transcende seu caráter de espaço de lutas e a coloca como motor de construção
do tecido social. Isso quer dizer que é extremamente importante, na construção
da política de saúde, compreender a dinâmica das instituições maiores que a
sustentam, como as normas legais que regulam direitos (leis, decretos etc.), a
estrutura organizacional geral do sistema de saúde, o formato da relação entre
os entes da federação, dentre outras.

59
14. O DESENVOLVIMENTO, A REPRODUÇÃO E A
TRANSFORMAÇÃO DE MARCOS INSTITUCIONAIS

Essas instituições maiores são chamadas de marcos institucionais ou


reguladores da política de saúde porque tanto representam os sustentáculos
para as ações e programas quanto regulam ou delimitam a ação dos atores. Por
exemplo, a Lei Orgânica da Saúde, norma que dispõe sobre a organização do
SUS, ao mesmo tempo que habilita o Ministro da Saúde a exercer poder sobre
empresas, limita sua ação caso ele deseje restringir o acesso à saúde a alguns
grupos populacionais, uma vez que o direito à saúde no Brasil é universal. Assim,
as estratégias, planos e programas se orientam a partir do desenvolvimento, da
reprodução e da transformação de marcos reguladores que representam
sustentáculos compostos por referenciais valorativos, políticos, organizacionais,
econômicos, os quais, por sua vez, permeiam e sustentam a política de saúde e
a interligam ativamente ao sistema de proteção social como um todo. Esse
processo é de extrema importância porque fixa os futuros referenciais para a
organização da política de saúde, assim como para a ação dos atores e para a
disposição da estrutura de provisão de bens e serviços, como pode ser visto,
como já dissemos, no exemplo das Leis Orgânicas da Saúde.

60
Claramente, trata-se de um sistema de bases públicas, em que a iniciativa
privada atua de forma complementar, fixa marcos institucionais (leis, processos
decisórios, critérios de acesso, formas de distribuição e utilização de recursos,
composição de atores etc.) muito diferentes de um sistema de base de mercado,
implicando distintas distribuições de oportunidades e restrições. Em um sistema
de mercado, como nos Estados Unidos, o acesso depende exclusivamente do
poder de compra das pessoas, uma vez que a saúde não é considerada como
um direito de cidadania.

Nessa linha, Belmartino nos apresenta a proposta de conceituação da


política de saúde como um campo de forças no qual atores estabelecem
processos políticos que tanto são circundados e direcionados por marcos
institucionais quanto provocam o desenvolvimento de instituições e a sua
transformação: Propomos analisar a política de saúde com uma estrutura de
delimitação de atores.

Essa abordagem supõe pensar as relações de poder que se estabelecem


no interior do campo como produto da interação entre agentes dotados de
interesses e capacidades específicas (médicos, funcionários, sindicalistas,
profissionais de saúde, empresas). Cada um desses agentes atua em uma rede
de alianças, conflitos, pressões, negociações e debates que se desenvolvem em
um marco legal e institucional tomado lógica e analiticamente como prévio à sua
interação, e ao mesmo tempo como ordenador da mesma, mas não como algo
imutável.

As leis que ordenam o campo de conflito são o resultado de lutas


anteriores e podem ser modificadas a partir de uma transformação na atual

61
relação de forças. (Belmartino, 1992: 146 – grifos nossos) Os interesses dos
grupos sociais devem ser incluídos na arena da política pública, na medida em
que o Estado tem um papel fundamental na formulação das políticas e na
garantia dos direitos, como no papel de provedor, regulador e financiador dos
serviços.

Nesse sentido, a arena central das disputas no campo das políticas


sociais é o próprio governo, como o conjunto de órgãos e corpos profissionais
envolvidos no campo social. Isso nos induz a pensar que realizar transformações
na política de saúde exige fortes movimentos de ação e articulação política em
diversas arenas e com vários atores, inclusive com aqueles não relacionados
diretamente à política de saúde. Certamente, a representação parlamentar é
fundamental no processo de traduzir os interesses dos diferentes grupos da
sociedade em leis e projetos que regulamentam a ação no campo social.
Conseqüentemente, o Poder Judiciário passa a ser parte importante ao garantir
o exercício dos direitos sociais.

No entanto, o ponto de convergência dos interesses continua sendo o


aparato governamental executivo, por meio do qual se formulam e implementam
as políticas, se executam e se avaliam os programas. É por intermédio do
processo decisório de formulação e desenho das políticas sociais e dos
mecanismos gerados para sua implementação combinados aos recursos a elas
destinados que os interesses sociais se materializam em práticas concretas de
regulação, provisão, financiamento, organização e avaliação, criando as
condições reais de inclusão e exclusão.

Contudo, o próprio aparato estatal é a concretização, em cada etapa


histórica, dessa correlação de forças que se apresenta no campo social. Em
outros termos, as demandas sociais que se transformam nas políticas públicas
são institucionalizadas e dão forma e organicidade ao aparato estatal na medida
em que se materializam em instituições, leis, práticas e procedimentos. Atuam,
em cada momento, como mecanismos que possibilitam tanto a aprendizagem
com relação aos processos, como também a seletividade e hierarquização das
demandas.

62
Mas ainda, são fatores que não podem ser desconsiderados nos
processos de reforma social, porque determinam as suas reais possibilidades e
viabilidades. Uma proposta de reforma do setor saúde tem de levar em
consideração não apenas nossos desejos, mas as reais condições materiais
existentes, tais como a rede de serviços, os equipamentos, os recursos
humanos, dentre outros fatores.

Portanto, a materialização das políticas de saúde por meio de instituições


e organizações concretas é também um fator que deve ser levado em conta na
análise da determinação das políticas de saúde. Sua tradução em estruturas
organizacionais, culturas institucionais, capacidades humanas e técnicas
instaladas, recursos financeiros disponíveis, dentre outros, é também
responsável pela configuração do campo social e das políticas sociais.
Finalmente, é necessário entender que, para além dos processos políticos e
institucionais da arena da saúde, há questões maiores que estão relacionadas
intrinsecamente a qualquer política, seja ela social ou econômica, ambiental.

Será que uma política de saúde interfere apenas em questões de saúde


(organização, gestão, relações institucionais e políticas)? Ou há outros impactos
sociais mais amplos não perceptíveis à primeira vista? A implantação de uma
determinada política de saúde envolve a difusão de informações sobre a
natureza biológica das pessoas, de valores que vão guiar as relações sociais, de
comportamentos e hábitos culturais, de referenciais de organização política,
dentre outros elementos.

Essas mensagens que estão implícitas ou explícitas nas políticas de


saúde são referenciais que possuem um forte poder sobre a ação das pessoas
na construção de suas relações sociais na família, no emprego, nos espaços
coletivos, além de influenciar a forma como as pessoas se percebem. Vejamos
outras informações sobre esses aspectos para finalizar o capítulo.

14.1- A FORMAÇÃO DE REFERENCIAIS ÉTICOS


E VALORATIVOS DA VIDA SOCIAL
Os processos de construção e reconstrução institucional, na medida em
que são motivados por concepções valorativas sobre a relação do indivíduo com
a sociedade, imprimem à política de saúde um impulso de “resignificação” das

63
relações sociais. Isso porque as práticas de uma política de saúde, ao serem
fundamentadas em concepções valorativas, somente se afirmam como tal
legitimando seus valores junto aos indivíduos, impulsionando a redefinição de
suas relações sociais e, conseqüentemente, dos padrões sociais e culturais
vigentes.

Logo, quando estivermos construindo ou analisando uma determinada


política de saúde, é essencial termos em mente que ela impulsiona um processo
de apropriação, redefinição e produção de significados sociais, na medida em
que ela tanto assimila, emprega e redefine significados sociais quanto gera
novos conceitos e formas de percepção socioculturais que produzem impactos
reais na estrutura social.

Essa ação dinâmica e multidirecionada da política de saúde pode ser


observada em diversos aspectos da vida social: • na construção e difusão de
valores cívicos – quando uma política de saúde desenvolve referenciais de
fortalecimento da esfera pública mediante a valorização de uma cidadania
universal, da ampliação da consciência de direitos sociais, de relações sociais
de solidariedade, da relevância da ação política etc.;

• na definição de referenciais culturais que afetam o padrão das relações


sociais básicas – quando uma política de saúde muda a fronteira entre o normal
e o patológico, como verificado em áreas como a psiquiatria; quando busca
valorizar determinados padrões de expressão da sexualidade, influenciando as
relações de gênero; quando afirma e valoriza determinadas diferenças étnicas
em políticas setoriais, transformando relações inter-raciais, por exemplo. Este
caso pode ser constatado na recente estratégia de políticas direcionadas à
população negra, nas quais se afirma o imperativo de estratégias específicas
porque há necessidades especiais. A ação da política de saúde nesse sentido
difunde noções que transformam a maneira de percepção mútua inter-racial.
Podem ser afetadas também outras relações sociais como as intrafamiliares, de
comportamento no trabalho etc;

• no estabelecimento da fronteira que delimita o espaço público e o


privado – uma vez que o conceito de saúde é amplo e, como direito de cidadania,
requer a ação do Estado em sua garantia, quais são os limites de intervenção do

64
Estado para assegurar parâmetros mínimos de saúde em domínios particulares
como família, empresas, grupos religiosos? A política de saúde interfere, aqui,
na determinação de espaços jurídicos e políticos que confrontam ideais de
liberdade;

• na produção e divulgação de informações científicas básicas sobre


saúde – dado o caráter de legitimidade que as informações científicas assumem
em nosso tempo, a divulgação oficial de informação sobre a natureza biológica
– física e mental – do ser humano assume status de verdade incontestável e fixa
noções sobre os potenciais e as limitações deste. Na vida cotidiana, isso pode
interferir em relações de trabalho, em práticas médicas profissionais, em
relacionamentos afetivos e familiares;

• na construção de ideais estéticos – quando uma política de saúde


valoriza e incentiva determinados estilos de vida como saudáveis. Ao fixar um
ideal a ser alcançado, produz impacto tanto sobre critérios de inclusão e
exclusão relacional quanto sobre o processo de construção de padrões de
consumo. Assim, tomamos conhecimento de casos de pessoas que têm
problemas de se integrar por não apresentarem um padrão estético valorizado,
ao mesmo tempo que verificamos o montante de renda que se gasta com o
consumo de medicamentos, cosméticos, procedimentos cirúrgicos em busca do
corpo ‘ideal’;

• na fixação de critérios valorativos de distribuição de recursos financeiros


coletivos – os gastos com saúde – públicos ou individuais – estão em função dos
parâmetros da importância dessa para uma dada sociedade, tanto o volume do
gasto como sua composição. Assim, valores sociais são empregados e
reforçados sempre que houver necessidade de se optar por investir em uma
política setorial em detrimento de outra. Como exemplo, podemos olhar os
dilemas da política de DST/Aids, em que, devido ao elevado custo dos
medicamentos retrovirais, alguns setores da sociedade questionam sua
continuidade, afirmando que não é justo socializar os custos de um problema
social que decorre de comportamentos individuais de risco, e que se os recursos
fossem empregados em outras políticas setoriais, poderiam salvar uma
quantidade maior de vidas. Obviamente, uma decisão de prioridades na política

65
de saúde não se fundamenta somente em critérios de custo/efetividade, sendo
muito mais ampla e complexa;

• na valorização de ideais de organização social e política – as formas de


organização do processo decisório da política de saúde, bem como seus critérios
de acesso aos bens e serviços correspondentes, fundamentados em uma dada
concepção de cidadania, são difusores de uma cultura que fomenta ideais de
organização política de um país. Isso porque o formato da política de saúde
indica, no primeiro aspecto, uma relação entre Estado e sociedade e, no
segundo, uma relação do indivíduo com a comunidade política em que está
inserido. Este processo pode ser percebido de forma mais clara quando
analisamos as bases da política de saúde no SUS.

A afirmação do acesso universal à saúde e da gestão descentralizada nos


três níveis de governo, permeada pela participação deliberativa da sociedade
civil em conferências e conselhos de saúde, não traduz apenas uma busca por
um sistema eficiente e efetivo: O projeto da Reforma Sanitária portava um
modelo de democracia cujas bases eram, fundamentalmente: a formulação de
uma utopia igualitária; a garantia da saúde como direito individual e a construção
de um poder local fortalecido pela gestão social democrática.

Ao traduzir a noção de equidade como o acesso universal e igualitário ao


sistema de saúde, abolindo qualquer tipo de discriminação positiva ou negativa,
a Reforma Sanitária assume a igualdade como valor e princípio normativo,
formulando um modelo de ética e de justiça social fundado na solidariedade, em
uma comunidade politicamente inclusiva. (Fleury, 1997: 33)

Essa percepção do poder ideológico das políticas governamentais nos


remete a duas questões que estão no centro do debate sobre as relações entre
o Estado e a Sociedade. A primeira é composta pelo debate da natureza ética
da ação estatal e dos gestores públicos. Acima dos objetivos da política e dos
projetos de sociedade, estão os referenciais éticos que necessariamente devem
orientar as decisões, as relações com os atores sociais, o processo político, a
distribuição e a alocação de investimentos, a definição de prioridades, e todas
as demais ações que envolvem a presença do Estado.

66
A segunda questão consiste na idéia de que as políticas públicas, vistas
como ação coletiva movida pelo interesse público, devem ser portadoras de um
ideal e um projeto civilizatório, no sentido de que elas não são motivadas apenas
pela necessidade de resolver problemas sociais, mas fundamentalmente pela
vontade de construir uma nação. Obviamente, as duas questões estão
relacionadas, pois um projeto civilizatório não pode prescindir do zelo pela ética.

15. A SITUAÇÃO DE SAÚDE NO BRASIL


Os sistemas de atenção à saúde são respostas sociais deliberadas às
necessidades de saúde da população. Assim, ao se discutir uma proposta de
organização do Sistema Único de Saúde (SUS), deve-se começar por analisar
que necessidades de saúde se expressam na população brasileira. A situação
de saúde dos brasileiros é analisada nos seus aspectos demográficos e
epidemiológicos.

Do ponto de vista demográfico, o Brasil vive uma transição demográfica


acelerada. A população brasileira, apesar de baixas taxas de fecundidade, vai
continuar crescendo nas próximas décadas, como resultado dos padrões de
fecundidade anteriores. O percentual de pessoas idosas maiores de 65 anos,
que era de 2,7% em 1960, passou para 5,4% em 2000 e alcançará 19% em
2050, superando o número de jovens1.

Uma população em processo rápido de envelhecimento significa um


crescente incremento relativo das condições crônicas por que essas condições
de saúde afetam mais os segmentos de maior idade. Os dados da Pesquisa
Nacional de Amostra Domiciliar do IBGE de 2008 mostram que 79,1% dos
brasileiros de mais de 65 anos de idade relataram ser portadores de, pelo menos,
uma das doze doenças crônicas selecionadas2.

Por outro lado, na perspectiva epidemiológica, o país vivencia uma forma


de transição singular, diferente da transição clássica dos países desenvolvidos.
Para a análise epidemiológica, vai se considerar o conceito de condições de
saúde, agudas e crônicas, que difere da tipologia mais usual que é doenças
transmissíveis e doenças e agravos não transmissíveis. Essa tipologia
convencional tem sido muito útil nos estudos epidemiológicos, mas observa-se

67
que ela não se presta para referenciar a estruturação dos sistemas de atenção
à saúde. Para organizar os sistemas de atenção à saúde, o mais conveniente é
separar as condições agudas, em geral de curso curto e que podem ser
respondidas por um sistema reativo e com respostas episódicas, das condições
crônicas, que têm curso mais ou menos longo e que exigem um sistema que
responda a elas de forma proativa, contínua e integrada. Por isso, as condições
crônicas envolvem todas as doenças crônicas, mais as doenças transmissíveis
de curso longo (tuberculose, hanseníase, HIV/aids e outras), as condições
maternas e infantis, os acompanhamentos por ciclos de vida (puericultura,
herbicultura e seguimento das pessoas idosas), as deficiências físicas e
estruturais contínuas (amputações, cegueiras e deficiências motoras
persistentes) e os distúrbios mentais de longo prazo3,4.

Uma análise da mortalidade no Brasil indica que, em 1930, as doenças


infecciosas respondiam por 46% das mortes, mas que este valor decresceu para
um valor próximo a 5% em 2000; ao mesmo tempo, as doenças
cardiovasculares, que representavam em torno de 12% das mortes em 1930,
responderam, em 2000, por quase 30% de todos os óbitos 5. Em relação à
morbidade, medida pela morbidade hospitalar, no ano de 2005, das primeiras
quinze causas de internações pelo SUS, nove foram por condições crônicas 6.

A análise da carga de doenças, medida em anos de vida perdidos


ajustados por incapacidade, demonstra que 14,7% dessa carga são por doenças
infecciosas, parasitárias e desnutrição; 10,2%, por causas externas; 8,8%, por
condições maternas e perinatais e 66,3%, por doenças crônicas7. O somatório
das duas últimas, ambas condições crônicas, indica que 75% da carga de
doenças no país são determinados por condições crônicas, o que, ainda, exclui
o percentual de doenças transmissíveis de curso longo.

A situação epidemiológica brasileira distancia-se da transição


epidemiológica clássica omramiana 8, observada nos países desenvolvidos, e
tem sido definida, recentemente, como tripla carga de doenças por que envolve,
ao mesmo tempo, uma agenda não concluída de infecções, desnutrição e
problemas de saúde reprodutiva; o desafio das doenças crônicas e de seus
fatores de riscos, como o tabagismo, o sobrepeso, a obesidade, a inatividade

68
física, o estresse e a alimentação inadequada; e o forte crescimento das causas
externas9.

O problema fundamental dos sistemas de atenção à saúde


contemporâneos

A crise contemporânea dos sistemas de atenção à saúde que se


manifesta, em maior ou menor grau, em todos os países mundo, decorre de uma
incoerência entre uma situação de saúde de transição demográfica e de
transição epidemiológica completa nos países desenvolvidos e de dupla ou tripla
carga de doenças nos países em desenvolvimento e o modo como se estruturam
as respostas sociais deliberadas às necessidades das populações.

A situação de saúde de forte predomínio relativo das condições crônicas


não pode ser respondida, com eficiência, efetividade e qualidade, por sistemas
de saúde voltados, prioritariamente, para as condições agudas e para as
agudizações de condições crônicas, e organizados de forma fragmentada.

Essa crise decorre da incongruência entre uma situação de saúde do


século XXI, convivendo com um sistema de atenção à saúde do século XX. Isso
não deu certo nos países desenvolvidos e isso não está dando certo no Brasil,
nem no setor público, nem no setor privado.

Ham10 faz um diagnóstico dessa crise a partir de uma análise histórica dos
sistemas de atenção à saúde, mostrando que, até a primeira metade do século
XX, eles se voltaram para as doenças infecciosas e, na segunda metade daquele
século, para as condições agudas e para as agudizações das doenças crônicas.
E ressalta: O paradigma predominante da condição aguda é um
anacronismo. Ele foi formatado pela noção do século XIX da doença como
ruptura de um estado normal determinada por um agente externo ou por
um trauma. Sob esse modelo a atenção, a condição aguda é o que
representa, diretamente, a ameaça. Mas a epidemiologia moderna mostra
que os problemas de saúde prevalecentes hoje, definidos em termos de
impactos sanitários e econômicos, giram em torno das condições
crônicas. Na mesma linha, a Organização Mundial da Saúde 4 adverte de forma

69
incisiva: Os sistemas de saúde predominantes em todo mundo estão
falhando, pois não estão conseguindo acompanhar a tendência de declínio
dos problemas agudos e de ascensão das condições crônicas. Quando os
problemas de saúde são crônicos, o modelo de tratamento agudo não
funciona.

Uma explicação para essa crise é feita por Bengoa 11,quando assinala que
os sistemas de atenção à saúde movem-se numa relação dialética entre fatores
contextuais como envelhecimento da população, transição epidemiológica e
inovação tecnológica e fatores internos como cultura organizacional, recursos
institucionais, sistemas de incentivo, estrutura organizacional e estilos de
liderança e gestão. Os fatores contextuais, externos aos sistemas de atenção à
saúde, mudam em ritmos mais rápidos que os fatores internos, os que estão sob
a governabilidade setorial. Isso faz com que os sistemas de atenção à saúde não
tenham a capacidade de adaptar-se, oportunamente, às mudanças contextuais.
Nisso reside a crise universal dos sistemas de atenção à saúde que foram
concebidos e desenvolvidos com uma presunção de continuidade de uma
atuação voltada para as condições e eventos agudos, desconsiderando a
epidemia moderna das condições crônicas.

A transição da situação de saúde, juntamente com outros fatores como o


desenvolvimento científico, tecnológico e econômico, determina a transição da
atenção à saúde. Por essa razão, em qualquer tempo e em qualquer sociedade,
deve haver uma coerência entre a situação de saúde e o sistema de atenção à
saúde. Quando essa coerência se rompe, como ocorre, neste momento, em
escala global e no Brasil, instala-se uma crise nos sistemas de atenção à saúde.

Os sistemas fragmentados de atenção à saúde

Uma análise dos sistemas de atenção à saúde, feita numa perspectiva


internacional, mostra que eles são dominados pelos sistemas fragmentados,
voltados para atenção às condições agudas e às agudizações de condições
crônicas.

Conceitualmente, os sistemas fragmentados de atenção à saúde são


aqueles que se organizam através de um conjunto de pontos de atenção à saúde
isolados e incomunicados uns dos outros e que, por consequência, são

70
incapazes de prestar uma atenção contínua à população. Em geral, não há uma
população adscrita de responsabilização, o que impossibilita a gestão baseada
na população. Neles, a atenção primária à saúde não se comunica fluidamente
com a atenção secundária à saúde e esses dois níveis também não se
comunicam com a atenção terciária à saúde, nem com os sistemas de apoio.
Nesses sistemas, a atenção primária à saúde não pode exercitar seu papel de
centro de comunicação, coordenando o cuidado.

Os sistemas fragmentados caracterizam-se pela forma de organização


hierárquica; a inexistência da continuidade da atenção; o foco nas condições
agudas através de unidades de pronto-atendimento, ambulatorial e hospitalar; a
passividade da pessoa usuária; a ação reativa à demanda; a ênfase relativa nas
intervenções curativas e reabilitadoras; o modelo de atenção à saúde,
fragmentado e sem estratificação dos riscos; a atenção centrada no cuidado
profissional, especialmente no médico; e o financiamento por procedimentos 12.

Os sistemas fragmentados têm sido um desastre sanitário e econômico


em todo o mundo.

Tome-se o exemplo brasileiro. Pesquisa da Fiocruz da Bahia e da Unifesp,


medindo a hemoglobina glicada de 6.700 portadores de diabetes em 22 centros
clínicos brasileiros, evidenciou que o nível glicêmico só estava controlado (valor
igual ou inferior a 7%) em 10% dos portadores de diabetes tipo 1 e em 25% dos
portadores de diabetes tipo 2. Além disso, verificou que 45% dos examinados
apresentavam sinais de retinopatias, 44%, de neuropatias e 16%, de alterações
renais13.

Os resultados do controle do diabetes não são muito melhores nos


Estados Unidos. Nesse país, havia oito milhões de portadores de diabetes e um
outro tanto sem diagnósticos. Dos diagnosticados, 30% não estavam
controlados, 35% desenvolveram nefropatias, 58%, doenças cardiovasculares,
30 a 70%, neuropatias, pouco mais de 50% realizaram o exame oftalmológico
de rotina e a carga econômica da doença foi de noventa bilhões de dólares
anuais14.

Chama a atenção que, em dois países muito diferentes, os resultados dos


desfechos clínicos do diabetes são muito negativos, sendo que o Brasil tem um

71
gasto per capita anual de US$ 427,00 e os Estados Unidos, de US $ 6.719,00,
o que sinaliza que o problema do manejo das condições crônicas não está no
volume de recursos despendidos, mas na forma como se organizam os sistemas
de atenção à saúde6.

Recompondo a coerência entre uma situação de saúde de tripla


carga de doenças e o sistema de atenção à saúde: as redes de atenção à
saúde

A solução do problema fundamental do SUS consiste em restabelecer a


coerência entre a situação de saúde de tripla carga de doenças, com
predominância relativa forte de condições crônicas, e o sistema de atenção à
saúde. Isso vai exigir mudanças profundas que permitam superar o sistema
fragmentado vigente através da implantação de redes de atenção à saúde.

O conceito de redes de atenção à saúde

As redes de atenção à saúde são organizações poliárquicas de conjuntos


de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos
comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar
uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela
atenção primária à saúde prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo
certo, com a qualidade certa e de forma humanizada -, e com responsabilidades
sanitárias e econômicas por esta população 6.

Dessa definição, emergem os conteúdos básicos das redes de atenção à


saúde: apresentam missão e objetivos comuns; operam de forma cooperativa e
interdependente; intercambiam constantemente seus recursos; são
estabelecidas sem hierarquia entre os diferentes componentes, organizando-se
de forma poliárquica, em que todos os pontos de atenção à saúde são
igualmente importantes e se relacionam horizontalmente; implicam um contínuo
de atenção nos níveis primário, secundário e terciário; convocam uma atenção
integral com intervenções promocionais, preventivas, curativas, cuidadoras,
reabilitadoras e paliativas; funcionam sob coordenação da atenção primária à
saúde; prestam atenção oportuna, em tempos e lugares certos, de forma

72
eficiente e ofertando serviços seguros e efetivos, em consonância com as
evidências disponíveis; focam-se no ciclo completo de atenção a uma condição
de saúde; têm responsabilidades sanitárias e econômicas inequívocas por sua
população; e geram valor para a sua população.

Da definição operacional de redes adotada, fica claro que ela se aproxima,


conceitualmente, da estrutura em redes que implica missão única, objetivos
comuns e planejamento conjunto e que se distancia da concepção
de networking que conota interações informais fortemente impulsionadas pelas
tecnologias de informação.

Os elementos constitutivos das redes de atenção à saúde

As redes de atenção à saúde constituem-se de três elementos: a


população, a estrutura operacional e o modelo de atenção à saúde.

A população

O primeiro elemento das redes de atenção à saúde e sua razão de ser é


uma população, colocada sob sua responsabilidade sanitária e econômica. É
isso que marca a atenção à saúde baseada na população, uma característica
essencial das redes de atenção à saúde.

A atenção à saúde baseada na população é a habilidade de um sistema


em estabelecer as necessidades de saúde de uma população específica, sob
sua responsabilidade, segundo os riscos, de implementar e avaliar as
intervenções sanitárias relativas a essa população e de prover o cuidado para
as pessoas no contexto de sua cultura e de suas preferências15.

A população de responsabilidade das redes de atenção à saúde vive em


territórios sanitários singulares, organiza-se socialmente em famílias e é
cadastrada e registrada em subpopulações por riscos sociossanitários. Assim, a
população total de responsabilidade de uma rede de atenção à saúde deve ser
plenamente conhecida e registrada em sistemas de informação potentes. Mas
não basta o conhecimento da população total: ela deve ser segmentada,
subdividida em subpopulações por fatores de riscos e estratificada por riscos em
relação às condições de saúde estabelecidas. O conhecimento da população de
uma rede de atenção à saúde envolve um processo complexo, estruturado em

73
vários momentos, sob a responsabilidade fundamental da atenção primária: o
processo de territorialização; o cadastramento das famílias; a classificação das
famílias por riscos sociossanitários; a vinculação das famílias à unidade de
atenção primária à saúde/equipe do Programa de Saúde da Família; a
identificação de subpopulações com fatores de riscos; a identificação das
subpopulações com condições de saúde estabelecidas por graus de riscos; e a
identificação de subpopulações com condições de saúde muito complexas.

A estrutura operacional

O segundo elemento constitutivo das redes de atenção à saúde é a


estrutura operacional, constituída pelos nós das redes e pelas ligações materiais
e imateriais que comunicam esses diferentes nós.

A estrutura operacional das redes de atenção à saúde compõe-se de


cinco componentes: o centro de comunicação, a atenção primária à saúde; os
pontos de atenção secundários e terciários; os sistemas de apoio; os sistemas
logísticos; e o sistema de governança da rede de atenção à saúde. Os três
primeiros correspondem aos nós das redes e o quarto, às ligações que
comunicam os diferentes nós. E o quinto, o componente que governa as relações
entre os quatro primeiros.

O centro de comunicação das redes de atenção à saúde é o nó


intercambiador no qual se coordenam os fluxos e contrafluxos do sistema de
atenção à saúde e é constituído pela atenção primária à saúde (unidade de
atenção primária à saúde ou equipe do Programa de Saúde da Família).

Há evidências de que os sistemas de atenção à saúde baseados numa


forte orientação para a atenção primária à saúde, contrastados com os sistemas
de baixa orientação para a atenção primária à saúde, são mais adequados por
que se organizam a partir das necessidades de saúde da população; mais
efetivos porque são a única forma de enfrentar consequentemente a situação
epidemiológica de hegemonia das condições crônicas e por impactar
significativamente os níveis de saúde da população; mais eficientes por que
apresentam menores custos e reduzem procedimentos mais caros; mais
equitativos por que discriminam positivamente grupos e regiões mais pobres e
diminuem o gasto do bolso das pessoas e famílias; e de maior qualidade por que

74
colocam ênfase na promoção da saúde e na prevenção das doenças e ofertam
tecnologias mais seguras para os usuários e profissionais de saúde 16-20.

Contudo, para que a atenção primária à saúde possa resultar em todos


esses benefícios, deve ser reformulada para cumprir três papéis essenciais nas
redes de atenção à saúde: a resolução, a capacidade para solucionar mais de
85% dos problemas de saúde de sua população; a coordenação, a capacidade
de orientar os fluxos e contrafluxos de pessoas, informações e produtos entre os
componentes das redes; e a responsabilização, a capacidade de acolher e
responsabilizar-se, sanitária e economicamente, por sua população.

O segundo componente das redes de atenção à saúde são os pontos de


atenção secundários e terciários, os nós das redes onde se ofertam
determinados serviços especializados, gerados através de uma função de
produção singular. Eles se diferenciam por suas respectivas densidades
tecnológicas, sendo os pontos de atenção terciários mais densos
tecnologicamente que os pontos de atenção secundários e, por essa razão,
tendem a ser mais concentrados espacialmente.

Contudo, na perspectiva das redes poliárquicas, não há, entre eles,


relações de principalidade ou subordinação, características das relações
hierárquicas, já que todos são igualmente importantes para se atingirem os
objetivos comuns das redes de atenção à saúde.

O terceiro componente das redes de atenção à saúde são os sistemas de


apoio. Os sistemas de apoio são os lugares institucionais das redes onde se
prestam serviços comuns a todos os pontos de atenção à saúde, nos campos do
apoio diagnóstico e terapêutico, da assistência farmacêutica e dos sistemas de
informação em saúde.

O sistema de apoio diagnóstico e terapêutico envolve os serviços de


diagnóstico por imagem, os serviços de medicina nuclear diagnóstica e
terapêutica, a eletrofisiologia diagnóstica e terapêutica, as endoscopias, a
hemodinâmica e a patologia clínica (anatomia patológica, genética, bioquímica,
hematologia, imunologia e microbiologia e parasitologia).

75
O sistema de assistência farmacêutica envolve uma organização
complexa, exercitada por um grupo de atividades relacionadas com os
medicamentos, destinadas a apoiar as ações de saúde demandadas por uma
população, englobando intervenções logísticas relativas à seleção dos
medicamentos, à programação de medicamentos, à aquisição de
medicamentos, ao armazenamento dos medicamentos, à distribuição dos
medicamentos, bem como ações assistenciais da farmácia clínica, como o
formulário terapêutico, a dispensação, a adesão ao tratamento, a conciliação de
medicamentos e a farmacovigilância.

A construção social das redes de atenção à saúde, para ser consequente,


tem de ser suportada por informações de qualidade, ofertadas por bons sistemas
de informação em saúde. Os sistemas de informação em saúde compreendem
os determinantes sociais da saúde e os ambientes contextuais e legais nos quais
os sistemas de atenção à saúde operam; os insumos dos sistemas de atenção
à saúde e os processos relacionados a eles, incluindo a política e a organização,
a infraestrutura sanitária, os recursos humanos e os recursos financeiros;
a performance dos sistemas de atenção à saúde; os resultados produzidos em
termos de mortalidade, morbidade, carga de doenças, bem-estar e estado de
saúde; e a equidade em saúde.

O quarto componente das redes de atenção à saúde são os sistemas


logísticos. Os sistemas logísticos são soluções tecnológicas, fortemente
ancoradas nas tecnologias de informação, que garantem uma organização
racional dos fluxos e contrafluxos de informações, produtos e pessoas nas redes
de atenção à saúde, permitindo um sistema eficaz de referência e
contrarreferência das pessoas e trocas eficientes de produtos e informações, ao
longo dos pontos de atenção à saúde e dos sistemas de apoio, nas redes de
atenção à saúde. Os principais sistemas logísticos das redes de atenção à saúde
são o cartão de identificação das pessoas usuárias, o prontuário clínico, os
sistemas de acesso regulado à atenção à saúde e os sistemas de transporte em
saúde.

O quinto componente das redes de atenção à saúde são os sistemas de


governança. A governança das redes de atenção à saúde é o arranjo
organizativo que permite a gestão de todos os componentes das redes de

76
atenção à saúde, de forma a gerar um excedente cooperativo entre os atores
sociais em situação, aumentar a interdependência entre eles e obter resultados
sanitários e econômicos para a população adscrita. A governança objetiva criar
uma missão e uma visão nas organizações; definir objetivos e metas que devem
ser alcançados no curto, médio e longo prazos para cumprir com a missão e a
com visão; articular as políticas institucionais para o cumprimento dos objetivos
e metas; e desenvolver a capacidade de gestão necessária para planejar,
monitorar e avaliar o desempenho dos gerentes e da organização. A governança
das redes de atenção à saúde, no SUS, deve ser feita por meio de arranjos
interfederativos, coerentes com o federalismo cooperativo que se pratica no
Brasil. São as comissões intergestores que se materializam: no plano nacional,
na comissão intergestores tripartite; nos estados, nas comissões intergestores
bipartite; e nas regiões de saúde, nas comissões intergestores bipartite
regionais.

O modelo de atenção à saúde

O terceiro elemento constitutivo das redes de atenção à saúde são os


modelos de atenção à saúde.

Os modelos de atenção à saúde são sistemas lógicos que organizam o


funcionamento das redes de atenção à saúde, articulando, de forma singular, as
relações entre a população e suas subpopulações estratificadas por riscos, os
focos das intervenções do sistema de atenção à saúde e os diferentes tipos de
intervenções sanitárias, definidos em função da visão prevalecente da saúde,
das situações demográfica e epidemiológica e dos determinantes sociais da
saúde, vigentes em determinado tempo e em determinada sociedade. A
necessidade de se mudarem os sistemas de atenção à saúde para que possam
responder com efetividade, eficiência e segurança a situações de saúde
dominadas pelas condições crônicas levou ao desenvolvimento dos modelos de
atenção à saúde. Há modelos de atenção à saúde para as condições agudas e
crônicas.

As condições agudas e os eventos agudos decorrentes de condições


crônicas agudizadas exigem, para o seu manejo adequado, a implantação de
modelos de atenção à saúde que, em geral, expressam-se num tipo de

77
classificação de riscos. Isso se deve a que, nas condições agudas, a variável-
chave para a organização das redes de atenção às urgências e às emergências
é o tempo-resposta em relação ao risco. Os modelos de triagem nas urgências
e emergências mais avançados e que foram construídos numa concepção
sistêmica são o modelo australiano, o modelo pioneiro que usa tempos de espera
de acordo com a gravidade; o modelo canadense, semelhante, mas mais
complexo que o australiano; o modelo americano, que opera com um único
algoritmo e que se foca mais na necessidade de recursos para o atendimento; o
modelo de Andorra, que se articula em sintomas, discriminantes e algoritmos,
mas muito complexo e demorado; e o sistema de triagem de Manchester, que
opera com algoritmos e determinantes, associado a tempos de espera
simbolizados por cinco cores e que tem sido usado em vários países 21.

Por outro lado, os modelos de atenção à saúde, destinados à orientação


dos sistemas de atenção à saúde, voltados para as condições crônicas, são
construídos a partir de um modelo seminal, o modelo de atenção crônica, o
MAC22. Dele, derivam várias adaptações aplicadas em diferentes partes do
mundo, tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento.
Ele tem sido adotado, com modificações adjetivas, no Canadá, Reino Unido,
Alemanha, Rússia, Espanha, Austrália, Dinamarca, Holanda e em alguns países
em desenvolvimento4,23-27. No Brasil, Mendes6 propôs, também com base no MAC,
um modelo de atenção às condições crônicas para utilização no SUS.

O MAC compõe-se de seis elementos, subdivididos em dois grandes


campos: o sistema de atenção à saúde e a comunidade. No sistema de atenção
à saúde, as mudanças devem ser feitas na organização da atenção à saúde, no
desenho do sistema de prestação de serviços, no apoio às decisões, nos
sistemas de informação clínica e no autocuidado apoiado. Na comunidade, as
mudanças estão centradas na articulação dos serviços de saúde com os
recursos da comunidade. Esses seis elementos apresentam interrelações que
permitem desenvolver usuários informados e ativos e equipe de saúde
preparada e proativa para produzir melhores resultados sanitários e funcionais
para a população.

Há evidências abundantes e robustas, na literatura internacional, sobre os


efeitos positivos do MAC, seja na sua avaliação conjunta, seja na avaliação de

78
seus elementos separadamente. O estudo avaliativo clássico desse modelo foi
realizado pela Rand Corporation e pela Universidade de Berkeley28 e teve dois
objetivos: avaliar as mudanças ocorridas nas organizações de saúde para
implementar o MAC e estabelecer o grau em que a adoção deste modelo
melhora os processos e os resultados em relação às condições crônicas. Esta
avaliação durou quatro anos e envolveu aproximadamente quatro mil portadores
de diabetes, insuficiência cardíaca, asma e depressão, em 51 organizações de
saúde e gerou uma grande quantidade de publicações que mostram que o
modelo funciona. Vários outros trabalhos de avaliação do MAC estão disponíveis
na literatura. Alguns são de avaliação geral da aplicação do modelo10,29,30, mas há
trabalhos que avaliam a melhoria da qualidade dos serviços de atenção às
condições crônicas31; condições crônicas particulares32; aspectos
organizacionais33 e avaliação econômica34.

As evidências sobre as redes de atenção à saúde

Há, na literatura internacional, provinda de vários países, evidências de


boa qualidade de que as redes de atenção à saúde podem melhorar a qualidade
clínica, os resultados sanitários, a satisfação dos usuários e reduzir os custos
dos sistemas de atenção à saúde.

Esses resultados foram positivos em várias situações: na atenção às


pessoas idosas35,36; na saúde mental37-39; no controle do diabetes40-42; no aumento
da satisfação dos usuários43,44; no controle de doenças cardiovasculares 45; no
controle de doenças respiratórias crônicas 46 e na redução da utilização de
serviços especializados29.

Uma avaliação de 72 sistemas que utilizaram alguma forma de integração


concluiu que os programas que integravam a atenção primária à saúde com os
outros níveis e que tinham uma população adscrita foram mais efetivos e que
seus usuários estavam mais satisfeitos43. Um ensaio randomizado verificou que
a integração entre a atenção primária e especializada à saúde permitiu a
identificação de pessoas com alto risco de hospitalização e reduziu o uso de
serviços especializados44. Uma análise de catorze revisões sistemáticas e 29
ensaios randomizados encontrou evidências de que as redes de atenção à

79
saúde melhoraram o uso dos recursos e alguns resultados clínicos selecionados
e reduziram os custos da atenção29. Na Espanha, concluiu-se que existem
evidências sólidas de que os enfoques e intervenções dos sistemas integrados
mostraram resultados positivos em vários âmbitos e patologias 25,47. Há evidências
de que a integração de gestores e prestadores de serviços melhorou a
cooperação entre eles, deu uma maior atenção à gestão de caso, incentivou a
utilização de tecnologia de informação e teve algum impacto sobre os custos da
atenção à saúde48.

No Brasil, o tema das redes de atenção à saúde é recente e não há


experiências em escala, nem avaliações robustas. Contudo, estudos de casos
de experiências de redes de atenção à saúde indicam que elas, à semelhança
do que ocorre em países desenvolvidos, podem ter impacto significativo nos
níveis de saúde, com custos suportáveis pelo SUS

16. O QUE FICOU DEFINIDO NA LEGISLAÇÃO

Ainda que nem tudo fosse absorvido pelos constituintes, os pontos


principais assim o foram. Faltou principalmente uma melhor definição da
proposta de financiamento do Sistema. A discussão continuou, pois nem todas
as questões eram prontamente absorvidas pelos constituintes. O Sistema Único
de Saúde nasce num grande acordo entre conservadores e progressistas.

Para entender exatamente o que representa o SUS, analiso a seguir suas


definições básicas como saúde direito, seus objetivos, suas funções e seus
princípios e diretrizes técnico-assistenciais e gerenciais. A base desta análise é
exclusivamente a CF art.193-200 e as Leis 8.080 e 8.142.

SUS como direito do cidadão e dever do Estado

Como já visto, o Sistema Público de Saúde resultou de décadas de luta


de um movimento que se denominou Movimento da Reforma Sanitária
(Fortalecer os processos de regionalização cooperativa e solidária, na perspectiva da ampliação
do acesso com equidade e considerar a diversidade cultural e a desigualdade socioeconômica
presente no território nacional). Foi instituído pela Constituição Federal (CF) de 1988

80
e consolidado pelas Leis 8.080 e 8.142. Esse Sistema foi denominado Sistema
Único de Saúde (SUS).

Algumas características desse sistema de saúde, começando pelo mais


essencial, dizem respeito à colocação constitucional de que Saúde é Direito do
Cidadão e Dever do Estado.

A relevância pública dada à saúde declarada na CF tem o significado do


destaque e proeminência da saúde entre tantas outras áreas e setores.
Destaque-se que foram consideradas como de relevância pública tanto a saúde
pública como a privada. Os juristas entendem nessa relevância pública uma
limitação ao simples entendimento de que a saúde seja apenas, pura e
simplesmente, um bem de mercado. Os serviços privados de saúde, além de
serem de relevância pública, estão subordinados à Regulamentação,
Fiscalização e CONTROLE DO SUS. Aí se incluem tanto o sistema privado
lucrativo exercido por pessoas físicas ou jurídicas individuais ou coletivas,
prestadoras ou proprietárias de planos, seguros, cooperativas e autogestão,
quanto o sistema privado não lucrativo, filantrópico ou não. Incluem-se: hospitais,
clínicas, consultórios, laboratórios bioquímicos, de imagem e outros, de todas as
profissões de saúde e com todas as ações de saúde.

Objetivos do Sistema Único de Saúde

Lamentavelmente, todas as vezes em que falamos dos objetivos da saúde


pensamos em Tratar das Pessoas Doentes. Isso no público e no privado.
Esquecemos que o maior objetivo da saúde é impedir que as pessoas adoeçam.

Conseguimos incluir na CF e na Lei 8.080 outra visão desses objetivos.

Na CF art.196 consta: "saúde é direito de todos e dever do Estado


garantido mediante... o acesso igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação".

CF art.198: "atendimento integral com prioridade para as atividades


preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais".

CF art.200: "ao SUS compete, além de outras atribuições no termo da lei...


(a listagem de várias ações do SUS)".

81
A lei que regulamentou a CF foi a 8.080,5 que definiu, bem claramente,
os objetivos do SUS: identificar e divulgar os condicionantes e determinantes da
saúde; formular a política de saúde para promover os campos econômico e
social, para diminuir o risco de agravos à saúde; fazer ações de saúde de
promoção, proteção e recuperação integrando ações assistenciais e preventivas.

A saúde deve fazer estudos epidemiológicos sobre os condicionantes e


determinantes da saúde; trabalho, salário, comida, casa, meio ambiente,
saneamento, educação, lazer, acesso aos bens e serviços essenciais e divulgá-
los. Ao não identificar e divulgar as causas das doenças e seus condicionantes
e determinantes, passa-se a atribuir à área de saúde a responsabilidade única
pela falta de saúde.

Formular a política de saúde de modo a promover, nos campos econômico


e social, "o dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e
execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de
doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem
acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção
e recuperação" (Lei 8.080,2,1). Aqui se identifica o poder dos dirigentes do SUS
de atuar na política de saúde, interferindo no campo econômico e social.

Finalmente, o SUS tem que se dedicar às ações de assistência às


pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da
saúde.

Promoção da Saúde, segundo o Glossário do Ministério da Saúde, é "o


processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua
qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste
processo… indivíduos e grupos devem saber identificar aspirações, satisfazer
necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente". Mais comumente,
dizemos que promover a saúde é trabalhar nas causas do adoecer, com
participação efetiva das pessoas como sujeitos e atores de sua própria vida e
saúde.

Proteção à saúde é o campo da saúde que trabalha com os riscos de


adoe- cer. As medidas diretas como as vacinas, os exames preventivos, o uso
do flúor na água ou associado à escovação etc.

82
Recuperação da saúde é cuidar daqueles que já estejam doentes ou
tenham sido submetidos a todo e qualquer agravo à saúde. É a ação mais
evidente dos serviços de saúde. Somos, infelizmente, tendentes a reduzir a ação
do setor saúde a essa área. Costumo dizer que quando temos que tratar de
doentes ou de acidentados, tenho uma sensação de fracasso dos serviços de
saúde e da sociedade por não ter nem conseguido evitá-los.

Funções do SUS: regular, fiscalizar, controlar e executar

• Função de regulação

Regular alguma coisa é estabelecer as regras para que exista, funcione,


consiga os resultados etc. As regras da saúde, na verdade, começam na CF,
que estabelece o direito à saúde e as linhas gerais desse direito. Depois vêm as
Leis 8.080 e 8.142 que regulamentam melhor esse direito. A partir daí, vão
surgindo as regulamentações menores. Na saúde, além de ser necessária
regular a organização do sistema hibrido (público e privado), também se
regulamentam as ações e serviços de saúde. Regulação do SUS, de um lado, é
estabelecer como devem funcionar os hospitais públicos e privados, as unidades
de saúde, os consultórios privados, quem pode exercer a função de médico,
dentista etc., quais são os dados essenciais que devem ser gerados pelos
serviços; de outro lado, como serão tratadas determinadas doenças de interesse
público, quais os medicamentos, quais as dosagens, como será feita a vacinação
de adultos, crianças etc., como as pessoas devem entrar no sistema de saúde
público para serem atendidas corretamente. Tudo isso e muito mais coisas
fazem parte da função de Regulação.

• Função de fiscalização e controle

Esses dois termos, previstos na CF e na Lei 8.080, se misturam e se


completam com outro que é a auditoria. Digo que os termos: Fiscalizar, Controlar
e Auditar têm em sua gênese a mesma ferramenta e processo, que é Avaliar.
Todos os três termos usam da avaliação que é feita do comparar duas coisas ou
duas realidades e emitir um juízo de valor. Avaliar é comparar o que se observa
com o que se quer como bom e certo, com um paradigma, um ótimo, uma
situação ideal e emitir o juízo de valor se aquilo está do jeito que deveria estar,
ou se mais longe ou mais perto do ótimo. Os três termos Fiscalizar, Controlar e

83
Auditar são baseados em avaliação de conformidade. Essa é a grande igualdade
entre eles. Entretanto, começam a ser feitas separações entre eles tentando
estabelecer diferenças para caracterizar que são processos diferentes. As
diferenças podem ser estabelecidas pelo ponto de vista de quem avalia: se de
dentro, é controle, se de fora, é fiscalização-auditoria. Não é o de fora da
instituição é o de fora do cenário onde acontece, da responsabilidade pelo fazer
acontecer. Aí dizem: quem faz deve controlar, e depois nós de fora (de outro
departamento, de outro nível, de fora do setor ou da instituição) vamos fiscalizar-
auditar. Outros querem separar pelo corte que controle é de processo e que
fiscalização-auditoria é de sistema. Aí se misturam e digladiam definidos e
definidores. Prefiro ver imensa igualdade entre uma e outra coisa. Apenas
vislumbro uma nuance do controle ligado a quem tem a incumbência de garantir
que as coisas devam acontecer, e fiscalização-auditoria seja de alguém mais
externo e que pode olhar com outro olhar de quem só vai fiscalizar e não tem a
incumbência de fazer acontecer.

A fiscalização e controle no SUS pode ser dentro do próprio público ou do


privado (contratado-conveniado ou não): da ação de saúde, do serviço, da
instituição, dos profissionais, dos contratos-convênios, dos planos e seguros de
saúde etc.

Podemos ainda falar em controle público que é a especificidade de se


controlar o público e que se divide em controle público institucional e social. O
controle público institucional é aquele exercido pela própria instituição pública,
sobre o público. O controle público social é aquele exercido pela sociedade,
pelos cidadãos sobre a instituição pública.

• Função de execução no SUS

O SUS tem que executar, fazer as ações de saúde. É a incumbência do


SUS precípua, explicitada em outros locais da CF e da Lei 8.080 e que vamos
comentar logo a seguir. Essa execução das ações deve ser feita diretamente ou
através de terceiros e também por pessoa física ou jurídica de direito privado. O
SUS tem que ter serviços próprios para executar diretamente e tem a
possibilidade de contratar terceiros para completar os serviços que não der conta

84
de executar por si próprio. Além disso, a execução de serviços de saúde é
livremente permitida ao privado, pessoa física ou jurídica.

Que ações o SUS executa? É interessante, pois o SUS é reconhecido


como o Sistema Público de Saúde. Deve, portanto, exercer ações públicas.
Antigamente, quando se falava em ações públicas de saúde se pensava na
concepção antiga da saúde pública: ações mais coletivas e de promoção e
proteção à saúde e para as doenças de maior interesse coletivo e com pouco
apelo comercial, como tuberculose, hanseníase, malária, febre amarela, doença
mental etc. Hoje, a concepção e o campo da saúde pública, enquanto SUS, é
abrangente, incluindo o individual e o coletivo, com ações de promoção, proteção
e recuperação da saúde em todos os campos e fazendo todos os campos como
vigilância sanitária, epidemiológica, saúde do trabalhador, alimentação e
nutrição, saúde da pessoa portadora de deficiência e todos os procedimentos:
consultas, exames, urgências, internações, cirurgias, transplantes, UTI etc.

Diretrizes e princípios fundamentais do SUS

As Diretrizes e princípios do Sistema Único de Saúde têm seu fundamento


na CF e na Lei 8.080.

Didaticamente, costumo tomar essas diretrizes e princípios unificados e


separá-los quanto aos aspectos técnico assistenciais e os técnicos gerenciais
que dizem respeito à organização administrativa do sistema.

As diretrizes e princípios tecnoassistenciais da CF e Lei 8.080 são:


universalidade, igualdade, equidade, integralidade, intersetorialidade, direito à
informação, autonomia das pessoas, resolutividade e base epidemiológica.

Universalidade – O direito à saúde, bem-estar, felicidade é de todos:


pobres, ricos; empregados, desempregados; quem tem plano e quem não tem
plano... O SUS não pode discriminar quem tem direito: nem discriminação
positiva, nem negativa. Universalidade significa o Para Todos.

Igualdade – Não discriminar a prioridade e a qualidade da atenção. Todos


os cidadãos têm igualdade de acesso às ações e serviços de saúde. Sem
discriminação positivo-negativa, com acesso nem tratamento diferenciados para
problemas iguais. Essa igualdade, ao não ser praticada, pode virar desigualdade

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e iniquidade, movida por dois grandes parceiros: o financeiro e o tráfico de
influência. O tráfico de influência é um causador da desigualdade de acesso.
Muitas vezes queremos reduzir o tráfico de influência, aquele praticado por
políticos (vereadores, prefeitos, deputados etc.), mas a maioria dos atos de
tráfico de influência é feita diariamente nos serviços de saúde públicos pelos
próprios funcionários. É uma quebra da igualdade, quando pessoas têm
privilégios por laços de parentesco, favores de autoridades, funcionários etc.
Além disso, temos hoje o desafio de criticar a quebra da igualdade da dupla porta
de entrada em serviços públicos de saúde que usam de seu poder de influência
e da impunidade para fazer uma porta de entrada para os usuários do SUS e
outra melhorada e diferenciada para atender os pacientes privados e de planos
e seguros de saúde. Os serviços públicos de saúde devem tratar todos de
maneira igual sem diferenças odiosas e discriminadoras.

Equidade – Aqui vale comentar sobre a equidade que é a qualificação da


igualdade. O princípio da equidade é muitas vezes invocado, mas ele não existe
na legislação federal a não ser em algumas legislações, como a do Estado de
São Paulo. Equidade é a igualdade adjetivada pela justiça. Pela equidade
buscamos tratar diferentemente os diferentes (equidade vertical) e igualmente
os iguais (equidade horizontal). No SUS, só se pode fazer equidade e tratar
diferentemente a partir das necessidades de saúde. Priorizar atenção e
tratamentos só se por carências de saúde. Muitas pessoas imaginam que o SUS
possa fazer diferenças a partir do estado de pobreza das pessoas. Pensam que
o SUS além de ser dos pobres pode priorizar tratamentos e medicamentos para
os chamados carentes. Esse raciocínio é incorreto. Diferenças no SUS só por
necessidades de saúde.

Integralidade – A integralidade também pode ser vista sob dois prismas.


A integralidade vertical que lembra a necessidade de se ver o ser humano como
um todo e não apenas como um somatório de órgãos e aparelhos. O segundo
prisma é o da integralidade horizontal onde se entende que a ação deva
abranger seus três enfoques: promoção, proteção e recuperação da saúde. Ver
como um todo e agir nesse todo, integralmente.

Intersetorialidade – Não pensar saúde só como área de recuperação da


saúde: consulta, remédio, especialista, exame, internação... Pensar saúde

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garantida por políticas econômicas e sociais que diminuam o risco de as pessoas
ficarem doentes ou piorarem. Levar em consideração a determinação econômica
e social da saúde. Os fatores determinantes e condicionantes da saúde devem
sempre ser levados em consideração: "alimentação, moradia, saneamento, meio
ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer, acesso a bens e serviços
essenciais; saúde expressando a organização social e econômica do Brasil" (Lei
8.080,3).

Direito à informação – Todas as pessoas assistidas têm direito a todas


as informações sobre seu estado de saúde-doença. Todas as informações sobre
os pacientes: exames, prontuários etc. são de propriedade e direito do paciente.
O segredo médico é um segredo consequente do direito primeiro ao segredo que
é do paciente. Além disso, a população tem direito a "informações quanto ao
potencial dos serviços de saúde e de sua utilização pelo usuário".

Autonomia das pessoas – As pessoas – os cidadãos usuários – devem


ter preservada sua autonomia na defesa de sua integralidade física e mental.
Trata-se da preservação – dentro dos serviços de saúde – da liberdade de
decisão dos pacientes. Aqui se completa a autonomia associada ao direito de
informação. A verdadeira autonomia é condicionada pelo direito de acesso à
informação, o princípio discutido acima. Só bem informado o cidadão poderá
usufruir da verdadeira autonomia.

Resolutividade – As ações e serviços de saúde devem atender também


ao princípio de ter capacidade de resolução em todos os níveis de assistência.
Os serviços de saúde devem buscar resolver os problemas das pessoas da
melhor maneira possível e ao menor custo. Essa é uma questão que cada vez
fica mais complexa pela incorporação tecnológica cada vez maior e onde o
sistema de encaminhamentos acaba por bloquear a capacidade de ser
resolutivo. Cada vez mais se resolvem menos problemas que, mesmo os menos
complexos, são encaminhados quase que em cadeias. Princípio do SUS:
capacidade de resolver problema.

Epidemiologia como base – A epidemiologia é uma das ciências da


saúde que têm como objetivo conhecer aquilo que ocorre com a população: as
condições ambientais em que vive a população, as condições gerais de saúde,

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a oferta de ações e serviços de saúde. O objetivo mais importante da
epidemiologia é o estudo da morte e de doenças que ocorrem em determinada
população, em determinado lugar. A epidemiologia define o perfil demográfico e
o perfil de morbimortalidade em relação às doenças agudas e
cronicodegenerativas (hipertensão, diabetes, câncer etc.); os agravos dos
acidentes de trabalho, de trânsito, de tóxicos, dos homicídios; as doenças
evitáveis; as doenças tratáveis precocemente.

As diretrizes e princípios tecnogerenciais da CF e Lei 8.080 são:


descentralização, regionalização, hierarquização, gestor único em cada esfera
de governo, conjugação de recursos das três esferas de governo, organização
dos serviços para evitar duplicidade, complementariedade e suplementariedade
do privado, financiamento tripartite e participação da comunidade.

Descentralização – A descentralização no sistema de saúde brasileiro é


uma diretriz-princípio. Consta como diretriz na CF e como princípio na Lei 8.080.
Descentralização, segundo o Glossário do MS do Projeto de Terminologia da
Saúde, é "redistribuição de recursos e responsabilidades entre os entes
federados, com base no entendimento de que o nível central, a união, só deve
executar aquilo que o nível local, municípios e estados, não podem ou não
conseguem. A gestão do SUS passa a ser responsabilidade da União, dos
Estados e dos Municípios, agora entendidos como os gestores do SUS". Quem
fazia não tem mais a competência de fazer e precisa passar a outra esfera de
governo o que fazia e como fazia (se souber ). A descentralização que
defendemos é aquela com ênfase na municipalização, com regionalização
ascendente e gestor único por esfera de governo. Regiões organizadas pelos
municípios com a cooperação técnica dos Estados e do MS. É colocar nas mãos
do município a decisão do quê e do como fazer saúde e os meios, principalmente
o financeiro, para poder fazer. Poder perto da necessidade do povo é mais fácil
de o cidadão controlar. Existem entraves a essa descentralização colocados pelo
gestor descentralizador. Uns assumem posição favorável com argumentos como
descentralizar para desresponsabilizar e colocar menos dinheiro para a saúde
deixando para Estados e municípios o ônus. São feitas constantemente
acusações de desvio e mau uso dos recursos descentralizados a Estados e
municípios. Interpretações restritivas de leis criando controle distorcidos pelos

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próprios organismos federais, como Tribunal de Contas da União (TCU),
Controlaria Geral da União (GCU), Tribunais de Contas dos Estados (TCE) e
Sistema Nacional de Auditora (SNA). Desfinanciamento desencadeando
desestímulo de se conseguir implantar e implementar o SUS. Muitos servidores
descentralizados têm restrições à descentralização (implicitamente sempre
temendo maior controle de trabalho, horário e quase nada de ideológico).
Existem entraves também por parte dos gestores descentralizados que não
querem muitas vezes assumir seu papel e, comodamente, deixam suas
competências constitucionais e legais nas mãos dos outros gestores. Outras
vezes são limitações por falta de profissionais da área administrativa e técnica,
como vigilância epidemiológica, sanitária e ambiental.

Direção única – O SUS é de responsabilidade constitucional das três


esferas de governo, não podendo nenhuma delas se eximir dessa obrigação. O
comando legal é de que, em cada esfera de governo, só possa ser gestor uma
das esferas de governo. No município comanda o prefeito e o secretário
municipal de Saúde. No Estado, o governador e seu secretário de Saúde; e na
União, o presidente e o ministro da Saúde. A direção única em cada esfera de
governo é um complemento da descentralização. Hoje existe uma questão
falaciosa sendo discutida. Discute-se que a gestão única é apenas por esfera de
governo e não por território. Equivaleria a dizer que na esfera municipal só
poderia ter um gestor, não poderiam ser várias secretárias e secretários
cuidando da saúde. Apenas um. Entretanto, no território municipal poderia ter
um único gestor municipal concomitante a um único gestor estadual ou um único
gestor federal. Isso é controverso, e ainda que defendido pelas secretarias
estaduais de Saúde, não é reconhecido pelas secretarias municipais de Saúde.

Regionalização – As ações e serviços de saúde devem ser organizados


de forma regionalizada. Seria impossível que os 5.600 municípios brasileiros
fossem, cada um deles, suficientes e capazes de atender a toda sua demanda
em todos os níveis de atenção. A regionalização é fundamental à organização
do SUS, mas só dará certo quando for uma regionalização funcional,
ascendente, e nunca uma regionalização burocrático-administrativa e
descendente. "A proposta de regionalização, sem investimentos para cobrir os
'vazios regionais de infraestrutura', sem redefinir a relação público-privado

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(especialmente diante dos planos de saúde) e sem mudança nos modelos de
atenção, seria mais uma proposta tecnocrática que não daria conta dos desafios
atuais do SUS. Sob o pretexto da regionalização, poderia estar havendo um
movimento de recentralização de decisões junto ao poder estadual" (Prof. Dr.
Jairnilson da Silva Paim – ISC – UFBA.) No mundo inteiro, no público e no
privado, sabe-se que ações e serviços de saúde precisam ser organizados de
forma regionalizada e hierarquizada. Quer dizer que não se podem alocar todos
os serviços em todos os lugares, independentemente de seu tamanho, território
e disponibilidade de equipamentos e pessoal. Os serviços de saúde devem se
complementar numa associação permanente entre os mais simples e os mais
complexos, se referenciando e contrarreferenciando.

Hierarquização – Começa pela atenção ao indivíduo, à família e à


comunidade por meio dos Agentes Comunitários de Saúde, do Programa de
Saúde da Família, das Unidades Básicas de Saúde com seus procedimentos de
menor complexidade tecnológica (equipamentos e aparelhos) e da mais alta
complexidade de saber e prática humanos. Da atenção primária se vai à
secundária (especialistas, exames mais complexos, internações em clínicas
básicas, como pediatria, clínica e cirurgia gerais, ginecologia e obstetrícia). Da
secundária à terciária com profissionais e hospitais em áreas mais
especializadas. Na quaternária se encontram os profissionais e hospitais
superespecializados em uma única área, como os de cardiologia, neurologia,
cirurgia plástica etc.

Complementariedade do privado – O art.199 da CF coloca claramente


que a saúde está livre à iniciativa privada. Além de ser possível o livre exercício
das profissões de saúde e dos serviços privados de saúde, esses poderão
também ser utilizados pelo SUS todas as vezes que sua capacidade de
atendimento for insuficiente para dar conta da demanda. A complementaridade
poderá se dar com o privado através de contrato de direito público ou convênio.
Nessa chamada de complementação dos serviços públicos a preferência será
dada às entidades filantrópicas e às sem fins lucrativos. Todas as vezes que o
próprio estatal não for suficiente para atender a demanda é constitucional
recorrer-se complementarmente ao privado. Atenção, que não se trata de
entregar o público ao privado (terceirização pelas Organizações Sociais,

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Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público Social (Oscips),
Cooperativas, Associações), mas de recorrer ao privado para complementar o
público. Não para substituir o público. Ordem de preferência: público estatal,
universitário público, universitário filantrópico, filantrópico, privado lucrativo.

Suplementariedade do privado – Na área de saúde, no Brasil, é livre a


iniciativa privada que pode ser exercida e utilizada de maneira totalmente liberal,
nos consultórios e nas clínicas contra pagamento direto. Pode também ser
organizada em forma de operadoras de planos e seguros de saúde, individuais,
familiares ou coletivos, conforme faculta a legislação. Entre as operadoras de
saúde temos, de um lado, os seguros de saúde, que são seguradoras e não
podem ter serviços de saúde; de outro, têm-se as empresas de Medicina de
Grupo, o Sistema de Autogestão patrocinado por empresas ou trabalhadores e
as Cooperativas Médicas e Odontológicas.

A política federal de saúde dos últimos 10 anos – 1993-2012

A decepção é sempre diretamente proporcional ao tamanho da


expectativa positiva que se tem. Assim, depois de oito anos de mandato de FHC,
as pessoas progressistas estavam prenhes de esperança de que o país
mudasse e a saúde pública tomasse os rumos legais.

Muitas foram as discussões e os debates sobre programa de governo para


a saúde quando Lula se pôs em caminho. Não foram iluminados que fizeram o
programa de governo do Lula, mas centenas de mãos, as mais diversas que
tinham um objetivo comum: a construção do SUS constitucional.

Separei alguns desses fatos que podem servir de análise sobre esperança
e decepção com o governo Lula e Dilma na área social da saúde.

O PT e sua guinada à direita neoliberal

Nem sei se à direita neoliberal, pois os conceitos de esquerda e direita


perderam muito de seu sentido. Liberal ou neoliberal é um conceito vivo e já
perenizando pelo seu conceito ideológico explícito.

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Tenho feito um comentário que recebe críticas acerbas dos petistas
inveterados e convictos. Na área de saúde, pois não ouso extrapolar minhas
conclusões para outras áreas de que pouco entendo, nenhuma diferença
fundamental há entre a proposta dos partidos progressistas com o partido
conservador que o precedeu. A mesma lógica mercadológica de usar todos os
meios para impor marcas de governo. É o mesmo pensamento neoliberal que
glorifica meios e eficiência no atingimento de objetivos. Estão as saídas de
gestão pública, induzidas a boca pequena, para serem implementadas na
administração de Upas e Samu.

Pensava ser esse um pensamento audacioso e provocador de iras. Foi


quando encontrei uma análise do cientista político e professor Luiz Werneck
Vianna na revista POLI (n.25, set.-dez. 2012, p.13-15), porta-voz de instituição
do Ministério da Saúde: "Impossível dissociar, em laboratório, as políticas do PT
e do PSDB. PT e PSDB são duas colorações da mesma social democracia. São
duas faces da mesma identidade política. Não há uma destinação de classe
explícita: o PT é o partido dos trabalhadores, dos operários, dos camponeses e
o PSDB é o partido dos capitalistas, empresários, dos economicamente
privilegiados. Isso não é verdade".

A proposta de Lula e Dilma e a negligência com a saúde

Uma primeira constatação é em relação à priorização da saúde. Como


sempre um discurso de priorização e uma prática pífia. Lula teria confessado em
recente bate-papo informal que, infelizmente, pouco tenha feito para a saúde.
Lula teve nesses oito anos de governo quatro ministros da Saúde. O primeiro de
sua escolha direta, um prócere do partido, mas sem prática de gestão, nem
grande conhecedor do SUS. Um segundo, com reconhecido conhecimento de
SUS, mas escolhido para um mandato curto e membro de um outro partido da
base aliada ao governo. O terceiro, um mandato tampão de um servidor de
carreira na saúde, com larga experiência e compromisso com a saúde pública.
A interinidade impediu que assumisse a revolução do legal. Depois um
sanitarista histórico com vasta experiência, mas que não fez a sua equipe,
trabalhando com um ministério composto por "vários ministérios" dentro dele,
cada um seguindo solo as orientações de seu grupo de indicação e apoio. Sua

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própria indicação não foi reconhecida como de um partido aliado, ficando na cota
do presidente.

Dilma, no primeiro mandato, tem como ministro da Saúde um orgânico do


partido, ex-ministro de Lula na área de relações institucionais e que abraçou a
saúde com grande entusiasmo e baixo conhecimento de SUS. Um político nato
que, segundo veiculado na mídia, está se cacifando para concorrer ao governo
de seu Estado. Cercou-se de técnicos de primeira linha, advindos da gestão
municipal, mas que, até o momento, não conseguiram levar à frente uma
proposta coesa e consistente de política de saúde consolidando o mesmo
modelo de prática ilegal. Continuam fazendo o mesmo do mesmo com discurso
da eficiência em contraponto com o de falta de recursos. Já transcorreu metade
do governo e não se vê nenhuma luz animadora no fim do túnel.

Essa história maniqueísta de contraposição entre financiamento e eficiên-


cia se repete a cada novo governo. De um lado, o discurso de necessidade de
buscar a eficiência que fará render melhor os recursos atuais. De outro, um
discurso de busca de mais financiamento que dizem ser uma proposta
descabida, pois mais dinheiro, sem eficiência, levará a mais perda de recursos.

Minha avaliação sobre esses dois polos da discussão é de que as duas


questões são fundamentais, indissociáveis nessa área de Saúde Pública. Tenho
evidências, de um lado, que me levam a ter certeza de que o financiamento é
insuficiente para a saúde pública e, de outro, existe ineficiência. Essa é a pior
associação: insuficiência e ineficiência que se potencializam.

O império das portarias inconstitucionais e ilegais

Dentro da hierarquia da legislação temos, no âmbito federal, a sequência


decrescente em peso da legislação. Em primeiro lugar, a preponderância, como
lei maior, a Constituição Federal de 1988 alterada por algumas dezenas de
emendas constitucionais acontecidas nesses 25 anos. Em seguida, as leis com
predominância das Leis Complementares sobre as Leis Ordinárias. Depois, os
Decretos Federais. Depois, ainda, as várias portarias provindas dos ministros e
das secretarias dos ministérios com predominância daquelas sobre estas. Nada
pode ser feito fora dessa hierarquia. Leis, decretos, portarias só podem mandar
fazer aquilo que está na Constituição Federal. E assim por diante. As portarias,

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portanto, hierarquicamente as derradeiras, jamais podem ditar regras que
contrariem CF, Leis e Decretos.

Vã expectativa. O que mais ocorre é exatamente o contrário: portarias


contrariando frontalmente as leis. São centenas e milhares de portarias ao ano
só do Ministro da Saúde e existem ainda outras de seus secretários e o
equivalente das agências reguladoras. A grande maioria delas ilegal e/ou
inconstitucional. Assim acontece no pós-constitucional como rotina de todos os
governos que por lá passaram de qualquer matiz ideológico. O único matiz
existente é a prepotência de descumprir a lei, pois o Ministério da Saúde acha
que é dono do dinheiro que arrecada (única esfera que pode arrecadar) e que
se "prejudicará" se cumprir a legislação.

Havia uma esperança explícita de que com o novo governo comandado


por Lula a legislação fosse cumprida. O que não ocorreu nestes dez anos: oito
de Lula e dois de Dilma.

As marcas de governo e de ministros da Saúde em detrimento da


marca SUS

Primeiro entender que as ilegalidades, em sua maioria, não são


praticadas pelo presidente ou por outros ministérios do núcleo duro de governo
(Fazenda, Planejamento, Orçamento). É o próprio Ministério da Saúde que cria
suas marcas próprias ligadas a cada um dos ministros que por lá passam e que,
por vezes, conseguem vender ao presidente. Essa não é uma característica só
dos últimos presidentes, mas de quase todos que por lá passaram nas décadas
de redemocratização. Exceção seja feita ao governo Collor e seu ministro Alceni
Guerra, que fez toda uma campanha para difundir e implantar a marca SUS com
normas para fazer e colocar o logotipo em todos os locais de atendimento, em
todos os impressos etc. Até bandeira do SUS existia!

Daí para a frente, um festival de marcas que deixam prefeitos e


secretários desorientados. Brotam de mentes extremamente profícuas com
excesso de retas intenções. Lembrando que todos e cada um dos municípios
têm que ler, estudar, entender, explicar para seu prefeito, vereadores,
conselheiros, profissionais e até à mídia toda essa parafernália de nomenclatura
de vida curtíssima. Para a população, o que importa é a resposta que

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oferecemos a seus problemas ou depois de acontecidos ou com medidas
corretivas antecipatórias. O capricho de cada administração levou a que se
inovasse até na nomenclatura brasileira (contratação agora é contratualização)
ou se invertessem termos constitucionais (regulação não é mais o conjunto de
leis e normas sobre determinado tema, mas a gerência/gestão da oferta de
cuidados de saúde). Assim se multiplicam. Entre as marcas de governo que
esconderam a marca SUS podemos citar: Nobs, Noas, pacto e seus blocos;
redes e entre elas a Rede "Cegonha", nome criticado veementemente pelos
movimentos populares da área; farmácia popular e ênfase na faixa de calçada:
"Aqui tem farmácia popular" depois desdobrado em "Saúde não tem preço".

Para cada marqueteiro assessorando autoridades há um técnico cheio de


saber e de retas intenções, instrumentalizando e ajudando a concretizar o sonho
da marca de governo. A ideia mestra hoje no Ministério da Saúde é definir e
escolher o legado (marcas) que deixarão para a posteridade!

O imbróglio do financiamento federal para a saúde

Antes de discussão dos embates do financiamento quero fundamentar a


assertiva de que o governo federal vem subfinanciando a saúde e que o Brasil
gasta recursos insuficientes. A demonstração através de evidência facilitará o
entendimento dos equívocos cometidos pelo governo federal nestes últimos dez
anos.

Faço o demonstrativo de três evidências a partir de dados concretos


mostrando o constante desfinanciamento federal.

1a Evidência: o gasto federal per capita caiu entre 1997 e 2008 e só


aumentou depois diante da ameaça da gripe suína. Em 1997 eram R$ 294 per
capita. Em 2003, primeiro ano do governo Lula, R$ 234, e em 2008, R$ 289.

2a Evidência: entre 1995 e 2011 caiu o gasto percentual em relação à


Receita Federal. Em 1995 o Ministério da Saúde teve disponível para suas
atividades 11,72% da receita corrente bruta da União. Em 2011, esse percentual
caiu para 7,3%.

3a Evidência: a participação federal no financiamento da saúde pelas três


esferas de governo veio caindo e aumentando a participação de estados e

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municípios. Em 1980 a participação federal era de 75%, a estadual, 18%, e a
municipal, de 7%. Em 1991, 73% da União, 15% dos Estados e 12% dos
municípios. Em 2001 a União continua diminuindo seu gasto agora
representando 56%, os Estados, 21%, e os municípios, 23%. Já em 2011, a
União apenas contribuiu com 47%, os Estados, com 26%, e os municípios, com
28%.

Outro argumento que sempre mostro em meus estudos é sobre o baixo


volume de recursos para a saúde pública das três esferas de governo. Faço
algumas comparações que acabam sendo evidências do baixo gasto com saúde.
Os dados brasileiros são de 2010 e os de outros países, de 2009, obtidos no
anuário Estatístico da OMS – Organização Mundial de Saúde.

1a Evidência: podemos comprar os recursos gastos com saúde pública e


os gastos per capita dos planos de saúde com seus beneficiários. Os planos de
saúde gastariam R$ 298 bi para atender a toda população brasileira usando o
mesmo per capita e sem oferecer todas as ações oferecidas pelo SUS, como as
de vigilância, vacinação etc. Se o SUS em 2010 gastou R$ 138 bi, estariam
faltando R$ 160 bi.

2a Evidência: o gasto médio público como percentual do PIB dos países


da OMS foi de 5,5%. O Brasil tem um gasto de apenas 3,7%. Se fôssemos usar
o mesmo percentual seriam necessários R$ 210 bi, ou seja, mais R$ 72 bi dos
atuais R$ 138 gastos.

3a Evidência: se usarmos como ponto de comparação os gastos per


capita dos países mais ricos do mundo, o Brasil teria necessidade de R$ 910 bi,
ou seja, o sonho inatingível de serem necessários R$ 772 bi a mais de recursos.

4a Evidência: se usarmos o per capita de países da Europa precisaríamos


de R$ 543 bi, ou seja, R$ 405 bi a mais que os R$ 138 bi atuais.

5a Evidência: se usarmos o per capita médio das Américas precisaríamos


de R$ 538 bi, ou seja, R$ 400 bi a mais que os atuais R$ 138 bi.

Impossível não destacar que o ano de 2003, primeiro do governo Lula, foi
aquele em que menos recursos federais foram gastos em saúde, trabalhando-
se com um valor per capita. Acima, isso está definitivamente demonstrado: em

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1997 eram R$ 294 por habitante. Em 2003, primeiro ano do governo Lula, caiu
ao mínimo patamar, chegando a R$ 234, e em 2008, a R$ 289.

A busca de mais recursos federais para a saúde começa já em 2003 –


Projeto de Lei Complementar 01/2003 –, puxada por um deputado médico,
histórico do PT, que apresentou uma proposta de regulamentação da EC-29
determinada pela própria EC. Foi um dos projetos mais discutidos e teve um
excelente relator, o deputado médico do PT Menezes. Isso se arrastou até 2007.

Em 2007 – primeiro ano do segundo mandato de Lula, deveria ser votada


a prorrogação da CPMF. Passou pela Câmara e foi ao Senado. O Senado
endureceu, principalmente por ter maioria oposicionista. Fez uma exigência a
Lula de que só aprovaria se todos os recursos da CPMF fossem destinados à
saúde (cerca de R$ 40 bi à época). Lula não cedeu por achar que conseguiria a
maioria necessária dos votos. Depois de praticamente perdida as chances de
aprovação, Lula manda ao Senado um ofício dizendo que os recursos todos
seriam aplicados em saúde. A oposição tripudiou depois de tardiamente o
presidente ter se colocado de joelhos e votou contra a prorrogação da CPMF.
Perdemos todos, pois o projeto de Roberto Gouveia já havia sido votado na
Câmara e contando com a permanência da CPMF. Diante disso este projeto
enviado ao Senado morreu.

O Senado, também em 2007, apreciou um projeto do senador Tião Viana,


médico do PT, destinando 10% da Receita Corrente Bruta para a saúde. Foi
aprovado por unanimidade pelos senadores de oposição e situação. Foi
encaminhado à votação da Câmara. O governo, mais que depressa, colocou um
relator médico petista, alinhado com o palácio, que apresentou um substitutivo
ao do senado. Voltou-se à redação anterior da Câmara e foram retirados os 10%
da Receita Corrente Bruta e criando-se a CPMF (agora CSS) com alíquota
menor e destinada só à saúde. No final a Câmara aprovou o substitutivo e
derrubou a CPMF (agora CSS). Como houve modificação substantiva na
Câmara, o projeto voltou ao Senado. Grande expectativa. No Senado o projeto
dele com 10% da RCB foi aprovado por unanimidade e o da Câmara, exatamente
o contrário, e mantendo tudo como antes constante da EC-29. Por ordem
expressa da presidente Dilma, o Senado, agora favorável ao governo, votou pelo

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projeto da Câmara. São momentos que demonstram a distância entre o discurso
de privilegiar a saúde e o de asfixiá-la pelo subfinanciamento.

Planos e seguros de saúde subsidiados pelo público

A última novidade trazida pela mídia são os planos de saúde para os


pobres com subsídios do governo, o que equivale a renúncia fiscal. O governo
nega oficiosamente, mas o que vaza de notícia é a confirmação de que essa
discussão esteja ocorrendo.

As mensagens explícitas (estudos e reuniões desde o final de dezembro


e início de 2013):

• Dilma pessoalmente negocia com seguradoras e administradoras de


planos de saúde;

• Pacote: medidas de estímulo financeiro ao setor em troca de melhoras


de atendimento;

• Do lado do governo: redução de impostos; linha de financiamento para


infraestrutura hospitalar; solução para dívida das Santas Casas;

• Do lado dos planos de saúde: redução de preços para facilitar acesso


de pessoas aos planos privados; elevar o padrão de atendimento.

Alguns números interessantes para avaliação da dimensão do Sistema


Suplementar de Saúde. Os dados de 2012 consolidados só serão publicados no
final de março. Hoje trabalhamos com dados de setembro de 2012. As
operadoras de planos médico-odontológicos de saúde somam 1.245. A clientela,
a 47,6 milhões. O faturamento global em 2011 foi de 85,5 bi. Estima-se que nos
dados consolidados de 2012 chegue perto de 100 bi.

De outro lado, precisamos conhecer os números de gastos tributários


(renúncia fiscal) da União com Saúde. Em relação ao imposto de renda, R$ 13,3
bi (pessoas físicas R$ 9,9 bi e pessoas jurídicas R$ 3,4 bi); para medicamentos
e produtos químicos e farmacêuticos, R$ 4,2 bi; e para as filantrópicas, R$ 2,6
bi. Dois outros programas para oncologia e deficientes têm uma desoneração
esperada de mais R$ 0,8 bi. Para 2013, são da ordem de R$ 20,9 bi, segundo
dados da Receita Federal.

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A renúncia fiscal do imposto de renda está intimamente ligada à
desoneração dos planos que pela lógica contábil é cofinanciado por todos os
cidadãos. Também a renúncia de medicamentos está estendida a planos e
seguros, bem como a das filantrópicas que são beneficiadas pela renúncia e
muitas delas oferecem instalações para atendimento de seus próprios planos de
saúde como de outros.

A proposta do governo para seguradoras e operadoras oferecerem planos


de saúde para os mais pobres tem duas iniquidades intrínsecas. Para os planos,
desoneração. Para os pobres, uma sobretaxa, pois além de pagarem ao SUS,
obrigatoriamente, pagarão mensalidades onerando sempre as famílias mais
numerosas com menor renda per capita.

O governo, abandonando seu papel constitucional de oferecer e garantir


um sistema de saúde para todos os cidadãos, faz a maldade completa. Desonera
os planos e onera mais os cidadãos.

Pior. Todos sabemos que a história se repetirá: os planos de saúde


acolherão preferencialmente os mais jovens (os sem doenças) e rejeitarão os
mais velhos (os com doenças). Mais. Como acontece já hoje: farão
procedimentos mais simples e baratos e deixarão ao SUS (direito de todos os
cidadãos) a execução de procedimentos mais complexos e caros. E se a lei
determina ressarcimento continuarão usando de todos os recursos legais para
não pagá-lo. É a facilidade da opção esperta de ter lucro sem matéria: recebe
por tudo e só oferece parte.

Uma série de questionamentos se impõe:

Dilma se assessorou de alguém que entenda a Constituição Brasileira e


as leis de saúde com a obrigatoriedade de garantia de saúde pública para todos
os cidadãos: o tudo para todos (integralidade com universalidade)?

Para melhorar a qualidade do atendimento contratual às pessoas o


governo tem que oferecer compensações financeiras?

A questão das Santas Casas e seu déficit crônico na maioria delas,


principalmente as de pequeno e médio porte, tem alguma coisa a ver com a
renúncia fiscal dos planos ou misturaram-se os canais para gerar compaixão?

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Grandes e essenciais diferenças: as Santas Casas são parceiras do público e
mal remuneradas em preços e prazos. Planos e Seguros estabelecem uma
relação comercial lucrativa (lícita pela CF) baseada entre outras na lei do direito
do consumidor.

Não existe milagre na saúde. A proposta dos governos progressistas dos


últimos anos nada mais é que reforçar a proposta neoliberal, usando exatamente
o discurso contrário, ao invés de garantir cada vez mais recursos e eficiência ao
setor público. Trabalha-se em sentido contrário. A meta é diminuir a
universalidade da clientela. Levar as pessoas a cada vez mais se utilizarem de
planos privados de saúde pagando sobre o que já pagam. Enfiando a mão no
bolso para suprir o que lhes falta e que já está garantido por impostos e
contribuições.

Lembrando que depois da liberação de lei sobre planos da época de FHC


que autoriza a entrada de capital estrangeiro aconteceu no governo Dilma a
primeira transação sem nenhuma tentativa de dificultar o negócio.

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17. REFERÊNCIAS

ASSIS; Sonia Fleury. OUVERNEY; Mafort. Política de saúde: uma


política social. Acessado em: 29 de julho de 2020. Disponível em:<
http://www.escoladesaude.pr.gov.br/arquivos/File/TEXTO_1_POLITICA_DE_S
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av. vol.27 no.78 São Paulo 2013. Saúde pública. Acessado em: 29 de julho de
2020. Disponível em:<https://www.scielo.br/scielo.php?script
=sci_arttext&pid=S0103-40142013000200002>.

HORTALE; Virginia Alonso. PEDROZA; Manoela. ROSA; Maria Luiza


Garcia. Operacionalizando as categorias acesso e descentralização na análise
de sistemas de saúde. Cad. Saúde Pública vol.16 n.1 Rio de
Janeiro Jan./Mar. 2000. Acessado em: 29 de julho de 2020. Disponível
em:<https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X2000000100024%094&
script =sci_arttext>.

MATTA; Gustavo Correa. PONTES; Ana Lúcia de Moura. Políticas de


saúde: organização e operacionalização do sistema único de saúde. Rio de
Janeiro: EPSJV / Fiocruz, 2007. Acessado em: 29 de julho de 2020. Disponível
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a%C3%A7%C3%A3oInstitucional.pdf>.

MENDES; Eugênio Vilaça. As redes de atenção à saúde. Secretaria de


Estado de Saúde de Minas Gerais. Acessado em: 29 de julho de 2020.
Disponível em:<https://www.scielosp.org/article/csc/2010.v15n5/2297-2305>.

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