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História da Alimentação

Me. Kleber Eduardo Men


Missão
“Promover a educação de qualidade nas
diferentes áreas do conhecimento, forman-
do profissionais cidadãos que contribuam
para o desenvolvimento de uma sociedade
justa e solidária”

DIREÇÃO UNICESUMAR

Reitor Wilson de Matos Silva, Vice-Reitor Wilson de Matos Silva


Filho, Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho, Pró-
Reitor de EAD Willian Victor Kendrick de Matos Silva, Presidente
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de da Mantenedora Cláudio Ferdinandi.
Educação a Distância; MEN, Kleber Eduardo.
História da Alimentação. Kleber Eduardo Men. NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Diretoria Executiva de Ensino Janes Fidélis Tomelin Diretoria


Maringá - PR.: Unicesumar, 2022. Operacional de Ensino Kátia Coelho, Diretoria de Planejamento
116 p.
de Ensino Fabrício Lazilha, Direção de Operações Chrystiano
“Graduação - EaD”. Mincoff, Direção de Polos Próprios James Prestes, Direção de
1. História. 2. Cultura. 3. EaD. I. Título. Desenvolvimento Dayane Almeida, Direção de Relacionamento
Alessandra Baron, Head de Produção de Conteúdo Celso Luiz
ISBN 978-85-8084-973-8 CDD - 22ª Ed. 640 Braga de Souza Filho, Gerência de Produção de Conteúdos Diogo
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Ribeiro Garcia, Gerência de projetos especiais Daniel Fuverki Hey
Supervisão do Núcleo de Produção de Materiais Nádila de Almeida
Toledo, Supervisão Operacional de Ensino Luiz Arthur Sanglard,
NEAD - Núcleo de Educação a Distância Coordenador de Conteúdo Vinícius Pires Martins, Projeto Gráfico e
Av. Guedner, 1610, Bloco 4 - Jardim Aclimação - Cep 87050- Editoração Jaime de Marchi Junior e José Jhonny Coelho, Designer
900 Maringá - Paraná | unicesumar.edu.br | 0800 600 6360 Educacional Nádila Toledo, Revisão Textual Jaquelina Kutsunugi,
Maria Fernanda C. Vasconcelos, Simone Limonta e Viviane Notari,
Fotos Shutterstock e Istockphoto.
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palavra do reitor
Reitor
Wilson de Matos Silva

Em um mundo global e dinâmico, nós trabalhamos IGC 4 em 7 anos consecutivos. Estamos entre os 10
com princípios éticos e profissionalismo, não somente maiores grupos educacionais do Brasil.
para oferecer uma educação de qualidade, mas, acima A rapidez do mundo moderno exige dos edu-
de tudo, para gerar uma conversão integral das pes- cadores soluções inteligentes para as necessidades
soas ao conhecimento. Baseamo-nos em 4 pilares: de todos. Para continuar relevante, a instituição de
intelectual, profissional, emocional e espiritual. educação precisa ter pelo menos três virtudes: ino-
Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cursos vação, coragem e compromisso com a qualidade. Por
de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de 100 isso, desenvolvemos, para os cursos de Engenharia,
mil estudantes espalhados em todo o Brasil: nos quatro metodologias ativas, as quais visam reunir o melhor
campi presenciais (Maringá, Curitiba, Ponta Grossa do ensino presencial e a distância.
e Londrina) e em mais de 300 polos EAD no país, Tudo isso para honrarmos a nossa missão que
com dezenas de cursos de graduação e pós-graduação. é promover a educação de qualidade nas diferentes
Produzimos e revisamos 500 livros e distribuímos mais áreas do conhecimento, formando profissionais ci-
de 500 mil exemplares por ano. Somos reconhecidos dadãos que contribuam para o desenvolvimento de
pelo MEC como uma instituição de excelência, com uma sociedade justa e solidária. Vamos juntos!
boas-vindas

Pró-Reitor Executivo de EAD


William V. K. de Matos Silva

Prezado(a) Acadêmico(a), bem-vindo(a) à Comunidade A apropriação dessa nova forma de conhecer


do Conhecimento. transformou-se hoje em um dos principais fatores de
Essa é a característica principal pela qual a agregação de valor, de superação das desigualdades,
Unicesumar tem sido conhecida pelos nossos alunos, propagação de trabalho qualificado e de bem-estar.
professores e pela nossa sociedade. Porém, é impor- Logo, como agente social, convido você a saber
tante destacar aqui que não estamos falando mais cada vez mais, a conhecer, entender, selecionar e usar a
daquele conhecimento estático, repetitivo, local e tecnologia que temos e que está disponível. Da mesma
elitizado, mas de um conhecimento dinâmico, reno- forma que a imprensa de Gutenberg modificou toda uma
vável em minutos, atemporal, global, democratizado, cultura e forma de conhecer, as tecnologias atuais e suas
transformado pelas tecnologias digitais e virtuais. novas ferramentas, equipamentos e aplicações estão
De fato, as tecnologias de informação e comuni- mudando a nossa cultura e transformando a todos nós.
cação têm nos aproximado cada vez mais de pessoas, Priorizar o conhecimento hoje, por meio da
lugares, informações, da educação por meio da conec- Educação a Distância (EAD), significa possibilitar o
tividade via internet, do acesso wireless em diferentes contato com ambientes cativantes, ricos em infor-
lugares e da mobilidade dos celulares. mações e interatividade. É um processo desafiador,
As redes sociais, os sites, blogs e os tablets ace- que ao mesmo tempo abrirá as portas para melhores
leraram a informação e a produção do conhecimen- oportunidades. Como já disse Sócrates, “a vida sem
to, que não reconhece mais fuso horário e atravessa desafios não vale a pena ser vivida”. É isso que a EAD
oceanos em segundos. da Unicesumar se propõe a fazer.
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boas-vindas
Pró-Reitor de Ensino de EAD Diretoria de Design Educacional
Janes Fidélis Tomelin Débora do Nascimento Leite

Diretoria de Graduação e Pós Diretoria de Permanência


Kátia Solange Coelho Leonardo Spaine

Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está conceitos teóricos em situação de realidade, de ma-
iniciando um processo de transformação, pois quando neira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja,
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou pro- estes materiais têm como principal objetivo “provocar
fissional, nos transformamos e, consequentemente, uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta
transformamos também a sociedade na qual estamos forma possibilita o desenvolvimento da autonomia
inseridos. De que forma o fazemos? Criando opor- em busca dos conhecimentos necessários para a sua
tunidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de formação pessoal e profissional.
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
os desafios que surgem no mundo contemporâneo. mento e construção do conhecimento deve ser apenas
O Centro Universitário Cesumar mediante o geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou
durante todo este processo, pois conforme Freire seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual
(1996): “Os homens se educam juntos, na transfor- de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, as-
mação do mundo”. sista às aulas ao vivo e participe das discussões. Além
Os materiais produzidos oferecem linguagem disso, lembre-se que existe uma equipe de professores
dialógica e encontram-se integrados à proposta pe- e tutores que se encontra disponível para sanar suas
dagógica, contribuindo no processo educacional, dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza-
complementando sua formação profissional, desen- gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e
volvendo competências e habilidades, e aplicando segurança sua trajetória acadêmica.
História da Alimentação

Apresentação do Livro

Professor Mestre
Kleber Eduardo Men

Olá, aluno(a)!
Seja bem-vindo(a) ao livro da disciplina de História da Alimentação do
curso de Gastronomia da Unicesumar. É um prazer enorme ter sido convidado
pela instituição para ser autor deste livro e, também, o professor formador
desta disciplina, assim como fui também da disciplina de História e Cultura
do Brasil. Como é de praxe, antes de tudo, gostaria de me apresentar.
Sou o professor Kleber Eduardo Men, sou formado em História, pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM), no ano de 2007. Sou especialista
em Docência no Ensino Superior pela Unicesumar, no ano de 2011, e possuo
mestrado em História das Instituições e das Ideias, pela Universidade Estadual
de Maringá, no ano de 2013. Tenho mais de oito anos de experiência em
docência, incluindo os ensinos fundamental, médio e superior e os cursos
preparatórios.
Além de professor, sou autor de vários livros didáticos destinados à
Educação a Distância, modalidade essa que me dedico bem antes de minha
formação, já que trabalhei como Editor de TV por vários anos. No que diz
respeito a este material, vou apresentar a você o tema central de cada unidade
que aqui será abordada.
Na primeira unidade, vamos abordar a formação da civilização Ocidental.
Analisaremos a partir do Renascimento Cultural, já que foi a partir desse perío-
do que esse modelo de civilização começou a se estruturar e, ao mesmo tempo,
difundir-se pelo mundo. Sendo assim, vamos abordar o Renascimento e algu-
mas das bases que edificaram esse paradigma, que, nesse caso em específico,
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 7

são a concorrência e o consumo; além de fazer uma breve abordagem sobre


o processo de globalização e sua significativa contribuição com a melhora de
vida da população mundial. Em consonância com esse tema, vamos elencar
os pontos de nossa cultura gastronômica, que estão ligados a esse contexto,
criando um campo de compreensão que permitirá a você estabelecer uma
relação entre história cultural e história gastronômica.
Em nossa segunda unidade, vamos tratar de forma bastante descontra-
ída, mas não perdendo o viés científico, a maneira como os usos e costumes
evoluíram ao longo de nossa história. Ainda nesse segundo momento, vamos
demonstrar a você, estimado(a) aluno(a), de que maneira o processo de ci-
vilização foi, antes de qualquer coisa, um processo de moldagem dos usos e
costumes. Para isso, vamos falar da forma de se comportar em público, da
maneira correta como devemos comer, sentar, além dos devidos cuidados
com as nossas necessidades fisiológicas. Tenho a certeza que você vai se
divertir com essa agradável leitura. Esse tema, para um(a) aluno(a) do curso
de gastronomia, é indispensável para a formação como profissional de uma
área que está diretamente ligada a padrões de etiqueta social.
Na terceira e última unidade, vamos entrar de forma mais objetiva na
história da alimentação. Vamos tratar do homem enquanto membro de uma
sociedade e de que forma, ao longo dessa sua adaptação, criou mecanismos
que possibilitaram transformar uma necessidade biológica em arte; não
deixando de destacar, é claro, a importância da cozinha francesa à gastro-
nomia mundial.
História da Alimentação

Como se trata de um livro sobre História da Alimentação, optamos por


fazer uma abordagem bastante diversificada, enfatizando temas que são
comuns ao nosso cotidiano, temas esses que estão dentro de nossas casas,
em nossas instituições religiosas, educacionais, enfim, é um tema rico e que
suscita inúmeros debates. Vale lembrar que a cultura gastronômica, bem
como a formação de nossa cultura em geral, é um assunto de suma impor-
tância para todos os profissionais, não apenas da área de gastronomia, mas
de todos aqueles voltados a trabalhar com pessoas. Por isso, abordamos tais
elementos que, de alguma forma, estão ligados a nossa cultura alimentar e
à cultura geral. Em síntese, cultura, gastronomia, história são assuntos in-
terligados e que despertam bastante curiosidade. Espero que vocês gostem
bastante. Bom estudo!

Prof. Me. Kleber Eduardo Men


SUMÁRIO
UNIDADE 1

História e Cultura da
Civilização Ocidental
15 O Renascimento Cultural e a
Emergência do Paradigma Greco-
Romano em Fins da Idade Média

23 Os “Aplicativos” que Formaram


a Civilização Ocidental

35 A Globalização e a Difusão do
Modelo de Civilização Ocidental
UNIDADE 2

Civilização, Usos e Costumes


51 A Evolução do Conceito de
Civilização: Apontamentos
Preambulares

61 O Comportamento à Mesa

69 O Que é bom e o que é Ruim?


Comentários a respeito
dos hábitos em geral

UNIDADE 3

A Evolução da Gastronomia
83 Da Necessidade Fisiológica à
Arte: A Evolução da Gastronomia

93 Expansão, Globalização
e Gastronomia

101 AClássica
Contribuição da Cozinha
Francesa
Legendas de
Ícones

dica do chef habilidades mão na massa saiba mais

fatos e dados minicaso reflita recapitulando

Dica do Chef: dicas rápidas para complementar um conceito, detalhar procedimentos e proporcionar
sugestões. Habilidades: elo entre as disciplinas do curso. Mão na massa: indicação de atividade
prática. Fatos e Dados: complementação do conteúdo com informações relevantes ou acontecimentos.
Minicaso: aplicação prática do conteúdo. Reflita: informações relevantes que proporcionam a reflexão de
determinado conteúdo. . Recapitulando: síntese de determinado conteúdo, abordando principais conceitos.
Saiba mais: Informações adicionais ao conteúdo.
História e Cultura
da Civilização Ocidental
KLEBER EDUARDO MEN
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

• O Renascimento Cultural e a emergência do paradigma greco-ro-


mano em fins da Idade Média
• Os "aplicativos" que formaram a civilização Ocidental
• A globalização e a difusão do modelo de civilização Ocidental

Objetivos de Aprendizagem
• Estudar como o modelo de homem greco-romano emergiu na Europa
Ocidental em fins da Idade Média.
• Observar como foi a formação da civilização Ocidental.
• Compreender quais foram os elementos que formaram a civilização
Ocidental.
• Entender como o modelo de civilização Ocidental se difundiu pelo
mundo.
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Introdução
Gostaria que você, aluno(a) da Unicesumar, prestasse muita atenção no que será demonstrado
nesta introdução. Se você já passou dos 30 anos de idade, certamente já deve ter assistido à
clássica trilogia, estrelada por Michael J. Fox e Cristopher Lloyd, “De volta para o futuro”. Se
não assistiu, deveria assistir! Porém, qual a razão de estarmos tecendo tal comentário? É fácil!
Em uma das cenas do terceiro filme da série, que se passa quase totalmente em 1955, o perso-
nagem Dr. Emmett L. Brown (Cristopher Lloyd) faz um comentário sobre um transistor que se
quebrou, dizendo que a razão de tal ruína se justificava, pois a peça era “made in Japan”. Marty
McFly (Michael J. Fox), rapidamente, o corrige e diz que, em 1985, ano em que se inicia toda a
história, tudo era fabricado no Japão. Principalmente os aparelhos eletrônicos.
Da mesma maneira, se o(a) distinto aluno(a) tivesse a capacidade de construir uma máquina
do tempo, a utilizasse para voltar ao ano de 1985 e aterrissasse, portando, alguns aparelhos
eletrônicos fabricados na China, o espanto seria o mesmo, pois, há trinta anos, esse país não
era a sombra do que se vê hoje.
Imagine, então, se você pudesse pegar essa mesma máquina do tempo e regressar ao início
do século XVI? Imagine, também, que você entraria em uma taberna e dissesse ao público
presente que daquele continente emergiriam os valores que transformariam toda a sociedade;
que as pessoas daquele continente seriam as responsáveis por descobrir e colonizar um Novo
Mundo; que aquela população iria propagar os valores do cristianismo por todo o globo, bem
como seus usos e costumes!? Também não se assustaria se alguém lhe tentasse queimá-lo vivo,
já que o considerariam louco.
Pois bem! Hoje em dia, parece muito fácil perceber que os valores da civilização Ocidental
estão por toda parte, não apenas do lado Oeste do globo terrestre. Basta observar a quantidade
de pessoas que utilizam calças jeans e bebem Coca-Cola ao redor do mundo, isso apenas para
citar dois exemplos bem simples.
Sendo assim, partindo desse ponto de vista, vamos buscar compreender como se formou
a civilização Ocidental, e, ao longo do livro, apresentar como ela está intimamente ligada à
cultura gastronômica, bem como seus valores, seus usos e costumes, sua identidade, enfim,
tudo aquilo que nos for necessário para entendermos esse que é o mais bem-sucedido modelo
civilizatório já visto.
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 15

O Renascimento Cultural e a
Emergência do Paradigma
Greco-Romano em
Fins da Idade Média

O Renascimento Cultural foi um evento ocorrido em fins da Idade


Média e responsável por debutar o homem moderno (BIGNOT-
TO, 2001), ou seja, apresentar um novo modelo de ser humano,
inspirado no ideal do homem greco-romano. Em outras palavras,
é o retorno de um modelo de homem voltado para os seus pró-
prios prazeres. Segundo Luzuriaga (1978, p. 93):

A Renascença não é apenas re-nascença, renascimento, ressu-


reição do passado, da antiguidade clássica, mas é antes de tudo
criação, geração de algo novo. A Renascença não é apenas um
movimento erudito ou literário, antes é nova forma de vida,
nova concepção do homem e do mundo, baseada na perso-
nalidade humana livre e na realidade presente. A Renascença
rompe com a visão acética e triste da vida, característica da
Idade Média, e dá lugar a uma concepção humana, risonha
e prazenteia da existência.

Conforme foi possível observar na citação acima, o espírito renas-


centista significou o surgimento de algo novo; algo que estava ligado
a uma nova forma de conceber a vida, de interpretar o mundo.
Não foi, ao contrário do que se pode pensar, um abandono das
virtudes do cristianismo, mas sim uma nova forma de entender
o próprio homem, já que esse era a criatura mais perfeita de Deus,
se observado que Esse o criara a sua imagem e semelhança.
História da Alimentação

O
Renascimento foi o responsável por foram sentidas na política, uma área de grande
quebrar o modelo de sociedade do- importância na formação da sociedade moderna.
minada pelos dogmas medievais, em Em suma, o Renascimento mexeu, de forma sig-
que uma vida de contemplação era nificativa, com as estruturas morais europeias.
preferível (muitas vezes obrigado) a uma vida Nesse contexto, a cultura gastronômica
de prazeres. Podemos, então, logo imaginar que também não poderia passar ilesa a essas trans-
o homem se tornou um ser mais risonho, alegre formações, conforme podemos observar:
e feliz, já que a busca pelo prazer começa a guiar As cidades italianas da Renascença ge-
os seus instintos. Entretanto, esse evento está raram a ruptura decisiva dos padrões
ligado a um contexto muito mais amplo, con- gastronômicos medievais. Nessa so-
ciedade urbana, dava-se menos ênfase
forme destacou Cambi (199, p. 222-223):
à ostentação em favor da elaboração
Na origem da civilização Renascentista qualitativa, modelo que se difundia em
estão as grandes transformações políti- todas as cortes europeias. A profusão de
cas, sociais e culturais que, iniciadas no alimentos que caracterizara os banque-
século XIV e até mesmo antes, fazem tes da Idade Média cedia lugar à concep-
sentir seus efeitos nos séculos seguintes. ção mais refinada dos prazeres da mesa
Entre essas, assumem particular relevân- (FRANCO, 2010, p. 151).
cia dois fenômenos estreitamente cone-
xos entre si. O primeiro é representado
pela formação dos Estados nacionais na
Europa e os regionais na Itália. O fim
das duas grandes instituições universa-
listas medievais, o papado e o Império,
favorece o nascimento e a sucessiva afir-
mação de algumas entidades nacionais.
França e Inglaterra sobretudo, com a
O Renascimento foi um momento de nossa
consequente simplificação da geografia
história em que os valores oriundos da
política e o desaparecimento de numero-
cultura Ocidental grega e romana come-
sos potentados feudais locais, nascidos à
çaram a ser resgatados pelos pensadores
sombra da política imperial e da Igreja.
e artistas italianos.

Sendo assim, podemos perceber que essas mu-


danças na forma de conceber o homem também
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 17

Monalisa (Gioconda) de Leonardo da Vinci. Uma das obras que se tornou um ícone do Renascimento.
História da Alimentação

Dando continuidade a nossa discussão, primei- Essas atividades, somadas a uma nova men-
ramente, é preciso deixar claro, estimado(a) alu- talidade urbana que insurgia nesse contexto,
no(a), que antes do advento do Renascimento, a foi também um dos fatores mais importan-
Igreja Católica era a instituição mais bem orga- tes à consolidação do Renascimento. Segundo
nizada na Europa e que sua forma de interpretar Manoel (2011, p. 79):
o mundo foi imposta como um dogma. Nesses No plano da vida material, o fortaleci-
termos, o Renascimento representou um grande mento da burguesia, a descoberta de
abalo ao predomínio mental dessa instituição, novas terras e a ampliação da explo-
ração capitalista, naquele momento
pois a liberdade de pensamento passou a ser
configurada na política mercantilista,
vista como algo inerente ao “novo homem”. iniciaram a demolição da sociedade
Um dos pontos fundamentais desse perí- feudal. No âmbito da crença, a Reforma
Protestante abalou seriamente o mo-
odo foi a emergência de uma classe social que,
nopólio religioso da Igreja Católica,
ao contrário dos aristocratas feudais, tinham a obrigando-a a convocar o Concílio de
sua riqueza oriunda das atividades comerciais. Trento (1545-1563), durante o qual foi
instituída a Contra-Reforma, ficando a
Companhia de Jesus, fundada em 1540,
encarregada de elaborar um método pe-
dagógico para fazer a Contra-Reforma
por meio da educação.

Para que você possa melhor compreender a


citação acima, vamos destacar alguns pontos
essenciais. Primeiramente, do ponto de vista
econômico e social, o período ao qual se en-
caixa o Renascimento assistiu a uma grande
mudança. Aquele modelo de sociedade, baseada
nos privilégios feudais, no direito de posse do
feudo, em que o trabalho era apenas destinado
àqueles seres “inferiores e mal nascidos”, foi
gradativamente substituído por um modelo
embasado no trabalho e na exploração das ati-
vidades mercantis. O trabalho passou a ser visto
como um meio de ascensão social.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 19

Numa sociedade que se preocupa em explicitar as diferenças sociais por toda espécie de meios, o tipo de
alimentação permitia estabelecer uma segregação não só entre as diferentes classes, mas também uma
diferenciação entre cultura rural e cultura urbana. Os documentos literários constituem indicadores parti-
cularmente sensíveis do valor social atribuído aos diversos alimentos e nos permitem apreender o código
social ao qual estes e as refeições eram investidos. Inúmeros textos nos lembram que o consumo diário de
pão branco distinguia os citadinos das populações rurais. Estas revelavam-se mais propensas a consumir
pão feito com uma mistura de cereais (trigo e milhete, por exemplo) ou, mais simplesmente ainda, cozendo
os cereais e consumindo-os sob essa forma bruta. Longe de ser puramente literária, essa distinção é com-
provada também pela existência de discriminações sociais e alimentares nos espaço confinado dos nativos
do século XV, que previam pelo menos duas mesas diferentes. Segundo o relatório de Benedetto Dei aos
Consoli e Signori del Mare de Pisa em 1471, a escala de salários respeitava estritamente a hierarquia dos
homens a bordo, que também se refletia nas diferenças de cardápios. Servia-se pão branco ao proprietário
do navio e aos oficiais, enquanto o resto dos homens devia se contentar com rações de biscoitos secos.

Fonte: GRIECO, Allen J. Alimentação e classes sociais no fim da Idade Média e na Renascença. In: FLANDRIN, Jean-Louis;
MONTANARI, Massino (Org.). História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. (p. 468.)

O Calvinismo foi uma seita cristã, surgida no seio da Reforma Protestante, no século XVI, e que dentre seus
principais valores está uma moral ligada ao trabalho honesto. Com base na teoria da Predestinação, para
Calvino, o homem já nasce predestinado a salvação. Dentre os sinais divinos dessa escolha, está o acúmulo
de riqueza por meio do trabalho. Dessa forma, criou-se uma moral religiosa na qual o trabalho era visto
como uma forma de louvar e agradecer a Deus e que foi fundamental para a proliferação do capitalismo
no mundo.

Acesse: <http://www.alunosonline.com.br/historia/calvinismo-protestantismo-joao-calvino.html>. Acesso em 14 dez. 2014.


História da Alimentação

No campo religioso, conforme foi destacado por Vamos raciocinar da seguinte maneira: segundo
Manoel (2011), a Reforma Protestante acabou a teoria bíblica, o homem foi criado a imagem e
por quebrar o monopólio do cristianismo que semelhança de Deus. Dessa forma, não há nada
a Igreja Católica possuía. Além disso, com o ad- sobre a Terra semelhante ao homem, nem em
vento da religião calvinista, o trabalho passou a espírito, nem com a capacidade de raciocínio.
ser visto como dom divino e como uma maneira Já que somos a mais perfeita obra de Deus e se
de se aproximar de Deus. Sendo assim, essa nova Ele nos deu a capacidade de pensar, agir, racio-
mentalidade, que se difunde com essas trans- cinar, ter prazer, criar, inventar, sorrir, seria um
formações, vai, aos poucos, originando novos desrespeito a Deus caso não usássemos esses
valores, que serão importantes para a formação dons e talentos. Assim, o Humanismo coloca
da mentalidade moderna Ocidental. Outro ele- o homem no centro das ações. Tudo que se faz
mento que vem no bojo do Renascimento é o aqui na Terra, em primeiro lugar, deve se levar
Humanismo, que, segundo o autor, embora não em conta o prazer mundano. Deus, contudo,
negue a existência de Deus, coloca o homem em continuou, como citado anteriormente, sendo
um plano superior da vida mundana. Ou seja, visto como a força criadora do universo. Em
o mundo espiritual pertence a Deus, mas aqui linhas gerais, essa foi a essência do Humanismo.
na Terra o homem foi colocado para ser feliz. Portanto, o Renascimento Cultural, que se
iniciou na Península Itálica no século XIV e se
O Humanismo foi uma violenta reação
ao modo de pensar, de educar, de se ex- difundiu pela Europa nos séculos seguintes, não
primir, e, podemos mesmo afirmar, foi foi apenas um evento do qual emergiram inú-
uma reação à maneira de viver da Idade meros artistas e pensadores. Foi um momento
Média. As novas ideias renascentistas
não se limitaram a recuperar os pensa-
que fez surgir um novo homem, que passou a
dores da Antiguidade, mas chegaram integrar essa sociedade com novos valores, com
a estabelecer uma espécie de tribunal novos pontos de vista acerca da sua própria
epistemológico. Se, antes, o que valia era
existência. Todas essas transformações foram
o saber referente a Deus e à salvação da
alma, as novas realidades concretas e importantes para moldar a sociedade Ocidental,
intelectuais do Renascimento, e da Era criando costumes e práticas culturais que são
Moderna em geral, estabeleceram que o vistas até hoje.
homem era o centro das preocupações do
No contexto de transformações causadas
próprio homem (MANOEL, 2011, p. 79).
pelo Renascimento, as cidades que mais tive-
Eu gostaria que você, aluno(a), refletisse sobre a ram destaque nesse período foram as italia-
citação acima com base no exemplo que lhe darei. nas Gênova e Veneza. Nessa região, em razão
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 21

Mesmo no início da Renascença, os


do desenvolvimento econômico, surgiu uma talheres eram frequentemente dese-
classe abastada que passou a refinar seus modos, nhados para serem levados no bolso,
inclusive, o próprio paladar. Seus costumes pois nem sempre os anfitriões dispu-
nham de talheres para seus convida-
rapidamente se difundiram pela Europa, dos. Somente no final do século XVII,
passando a influenciar outros países. Podemos, surgem faqueiros contendo colheres,
assim, destacar: facas e garfos. Mais tarde, a aristocracia
começaria a acumular talheres de esta-
Ao mesmo tempo, ingredientes e pratos nho, de prata e de ouro. Até o século
de terras distantes começaram a aparecer XVIII estojos de talheres individuais
nas mesas. Em meados do século XVI, constituirão um símbolo de distinção
a variedade e abundância de alimen- e presente muito apreciado (FRANCO,
tos em Paris e nas capitais de provín- 2010, p. 163).
cias francesas causavam admiração aos
estrangeiros.

(...) Em suma, o Renascimento representou uma


mudança mais do ponto de vista da atitude do
No final da Idade Média, numerosas
tavernas e albergues surgiram nos ar- homem frente à vida que ele levava. Os valores
redores de Paris. A partir desse sistema medievais foram, aos poucos, sendo substituí-
hoteleiro incipiente, desenvolveu-se, na dos pelos valores de uma sociedade em que o ser
área urbana, um tipo de estabelecimento
humano era cada vez mais o centro do universo
que oferecia comida e bebida em mesas
postas com toalhas e talheres. O guarda- e tudo isso alterou profundamente a relação dele
napo, utilizado já na antiguidade pelos com a forma de se alimentar.
romanos, só apareceu no século XVI. Sua
função era, até então, preenchida pela
borda da toalha (FRANCO, 2010, 161).

Pode ser observado, na citação acima, que o


Renascimento provocou uma evolução dos cos-
tumes e, também, de uma cultura alimentar
diferente, muito em função do tipo de sociedade
que emergia por toda Europa. Não apenas a cul-
tura alimentar fora modificada, mas os próprios
usos e costumes com relação aos instrumentos
para se alimentar.
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 23

Os “Aplicativos”que Formaram a
Civilização Ocidental

Prezado(a) aluno(a), atualmente, a palavra “aplicativo” tem se


tornado muito comum, em razão das novas tecnologias que foram
criadas nos últimos anos. Essa palavra, hoje, tornou-se uma expres-
são que nos remete à ideia de algo que foi criado para solucionar
um determinado problema, melhorar um determinado produto,
acelerar uma função, enfim, basta aparecer uma nova moda e já
nos vem a ideia de “baixar” o aplicativo. Foi baseando-se nesses
pressupostos que o historiador britânico Niall Ferguson (2012)
desenvolveu a ideia de que o Ocidente conseguiu se sobressair
como modelo de civilização ideal, em razão de sua capacidade de
ter criado “aplicativos” que foram mais baixados pelas pessoas ao
redor do globo terrestre. O termo aplicativo, para denominar tais
transformações, inclusive, fora cunhado por esse autor.
História da Alimentação

Lembra-se da introdução desta unidade,


quando mencionamos que, se você tivesse a ca-
pacidade de criar uma máquina do tempo e retor-
nar à Europa do século XV, seria difícil acreditar
“Não há nada de importante na vida,
que o mais bem-sucedido modelo de civilização exceto a sua competência no seu traba-
emergiu daquele lugar? Você iria se deparar com lho. Nada. Só isso. Tudo o mais que você
for vem disso. É a única medida do valor
a potência do Império Turco Otomano, que já
humano. (...). O código da competência é
havia dominado, praticamente, toda a Europa o único sistema moral baseado no padrão
Oriental, além de se impressionar com o es- ouro” (AYN RAND. A Revolta da Atlas).

plendor do Império Chinês. Entretanto, cabem


as perguntas: o que fez o Ocidente se tornar
tudo isso em tão pouco tempo? Quais fatores
contribuíram para a ocidentalização do mundo?
Segundo o historiador Niall Ferguson (2012), o Primeiramente, gostaria de mostrar a você a
que colocou o paradigma civilizatório Ocidental importância da competição. Você já pensou a
na dianteira do mundo na Era Moderna foram razão pela qual está fazendo um curso supe-
os aplicativos criados pelos ocidentais. Isso rior? Sabemos que muitas pessoas já possuem
mesmo que você leu! Para esse historiador, se alguma formação profissional, seja de âmbito
Ásia, Europa e África fossem um tablet, os aplica- técnico ou mesmo universitário. Embora sai-
tivos criados pelos europeus teriam sido os mais bamos que muitos dos alunos que decidiram
“baixados” e isso fez toda a diferença. cursar Gastronomia na modalidade a distân-
Niall Ferguson (2012) enumera seis “apli- cia já possuem uma graduação, é importante
cativos”, que são: a competição, a ciência, a pro- considerar que grande parcela de nossos alunos
priedade, a medicina, o consumo e o trabalho. estão entrando pela primeira vez no mundo
Não será o nosso objetivo principal detalhar universitário. Sendo assim, a pergunta será
cada um desses aplicativos, entretanto, em refeita: qual a razão de você ter optado por
linhas gerais, buscaremos apresentar a você, um curso superior? A resposta é bem simples,
aluno(a) de gastronomia da Unicesumar, dois porém necessita de uma reflexão importante.
pontos que acreditamos ser essenciais à nossa A razão pela qual você optou por cursar uma
formação, que são a competição e o consumo, faculdade é que, com essa graduação, melhores e
pois, queira ou não, eles estão presentes em maiores oportunidades de trabalho, bem como
nosso dia a dia. de sucesso profissional irão aparecer.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 25

As palavras inveja e cobiça, quando as ouvi- de todos. Ninguém entra em campo para perder.
mos, quase sempre nos causam ojeriza, indepen- Você gostará de ser reconhecido como aquele que
dente do contexto em que elas estão inseridas. faz o melhor molho, o melhor tempero, enfim,
Entretanto, quando elas são colocadas na prática tudo isso fará com que você se dedique ainda
no mundo comercial, elas podem ser o grande mais e que se aperfeiçoe para que seu desem-
motor do desenvolvimento das sociedades. Em penho atraia uma clientela bastante qualificada.
suma, inveja e cobiça são os motores da compe- Contudo, infelizmente, muitas pessoas interpre-
tição. Quando você estiver trabalhando, desem- tam que, para ser melhor do que o outro, não é
penhando as suas funções como profissional da preciso melhorar, mas sim sabotar o concorrente.
gastronomia, certamente objetivará ser o melhor Nada mais ruim do que isso!

Adam Smith (1723- à “ganância” do comerciante que,


1790), o pai do libe- para obter mais lucros, buscará
ralismo econômico. oferecer os melhores produtos,
com o melhor custo benefício.
Ninguém melhor do que o filó- Adam Smith (1999) uti-
sofo Adam Smith (1723-1790) lizou um exemplo muito per-
soube entender perfeitamente a tinente para ilustrar como a
cobiça como motor da competição. competição é necessária e benéfica
Em sua obra mais famosa, a Riqueza às pessoas. Ele afirmou que o seu jantar
das Nações, publicada originalmente em 1776, somente seria possível pelo interesse pessoal
mostrou como a competição, motivada pelos in- do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro, não
teresses pessoais, seria capaz de fornecer a todas pela benevolência deles. Ou seja, nas próprias
as pessoas produtos de excelente qualidade e por palavras de Smith, se alguém deseja acordar de
bons preços. Faça um teste! Caminhe pela sua manhã e comer um pão bem fresquinho, com
cidade e observe como nosso comércio é variado. uma casquinha bem crocante, basta ir direto à
Vamos observar a quantidade de produtos que padaria mais próxima de casa. Contudo, precisa-
existem e por preços variados. Tudo isso devido mos compreender que a razão pela qual homens e
História da Alimentação

O Yangtze era parte de um vasto com-


mulheres passaram a noite trabalhando para esse plexo de canais que ligava Nanquim a
desejo ser atendido não está relacionada apenas a Pequim, mais de 800 quilômetros para
uma questão sentimental, mas sim com o desejo o norte, e a Hancheu, ao sul. No centro
desse sistema, estava o Grande Canal,
que eles possuem de que aquela pessoa se torne que, em sua máxima extensão, tinha
um cliente fiel, consumindo os produtos dessa mais de 1000 quilômetros. Datando do
padaria com bastante frequência, o que possibili- século VII a.C., com comportas intro-
duzidas no século X d.C. e belíssimas
ta a esse estabelecimento crescimento comercial,
pontes como a Baodai, cheia de arcos, o
qualitativo e, sobretudo, financeiro. Sabemos Canal foi significativamente restaurado
que muitas pessoas trabalham por paixão e de- e aprimorado durante o reinado do im-
senvolvem produtos maravilhosos pelo simples perador Yongle (1402-24), da dinastia
Ming. Quando o engenheiro responsável,
prazer do trabalho, mas, em regra, o que ocorre
Bai Ying, terminou de represar e desviar
no mercado é uma intensa competição. o fluxo do rio Amarelo, foi possível trans-
E se, por acaso, abrisse outro estabelecimen- portar cerca de 12 mil carregamentos de
grãos pelo Canal a cada ano.
to como esse, com um pão muito melhor e com
preço mais acessível? Podemos destacar, nesse Vamos observar a comparação feita pelo autor
caso hipotético, duas opções: ou o primeiro es- com o rio Tâmisa:
tabelecimento fecha as portas, encerrando suas Em comparação ao Yangtze, o Tâmisa,
atividades, ou usaria a competição para aprimo- no início do século XV era um verda-
rar seus produtos, fidelizando ainda mais seus deiro fim de mundo. Londres era um
porto movimentado, é verdade; o prin-
clientes. E foi isso que, segundo Niall Ferguson
cipal centro de comércio inglês com o
(2012), fez com que o Ocidente se sobressaísse continente. O mais famoso prefeito da
ao Oriente. cidade, Richard Whittington, era um
importante comerciante de seda que
Tanto China quanto o Império Otomano,
fizera fortuna com a exploração de lã,
no século XV, atingiram seu apogeu. Entretanto, em notável crescimento na Inglaterra.
em razão da dimensão territorial desses impé- E a indústria de construção naval da
rios, a capacidade de se sentirem ameaçados capital inglesa era impulsionada pela
necessidade de transportar homens e
diminuiu. Dessa forma, eles passaram por um
suprimentos para as recorrentes campa-
período de acomodação, não percebendo a ne- nhas da Inglaterra contra a França. Em
cessidade de inovarem suas tecnologias. Para Shadwell e Ratcliffe, os navios podiam
ser rebocados em ancoradouros para ser
justificar essa afirmação, com relação a China,
reabastecidos. E havia, é claro, a Torre de
Ferguson (2012, p. 47) compara dois rios, o Londres, mais sinistra do que proibida
Yangtze, na China, e o Tâmisa, na Inglaterra: (FERGUSON, 2012, p. 48).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 27

no início da dinastia Ming estava sendo


Como foi possível perceber, eram situações bas- afrouxada com o florescimento do co-
tante distintas. De um lado, um esplendoroso mércio interno. Quem visita Suzhou
império Chinês que transportava centenas de hoje em dia ainda pode ver os frutos
arquitetônicos daquela prosperidade
toneladas de grãos por ano e, do outro, um país nos canais arborizados e nas calçadas
em que sua maior preocupação era transportar elegantes do velho centro da cidade
homens para uma batalha que, naquele contex- (FERGUSON, 2012, p. 49).

to, parecia sem fim contra a rival França.


Esses exemplos, prezado(a) aluno(a), foram
para ilustrar como a acomodação de alguém –
nesse caso, de um país – pode o levar à ruína.
A Europa era um emaranhado de reinos que,
pouco a pouco, foi conquistando sua soberania.
Em razão dos limites territoriais reduzidos, eles
tiveram de ser extremamente eficientes naquilo
A Guerra dos 100 Anos (1337-1453), que
envolveu França e Inglaterra na Baixa que se propuseram a fazer, já que qualquer des-
Idade Média, foi um evento que retardou lize poderia significar a perda de uma posição
o processo de unificação política desses
para o país vizinho.
Estados. Houve um prejuízo humano muito
grande, além de ter enfraquecido finan- Foi justamente essa competição que fez um
ceiramente esses países, que acabaram pequeno reino, situado a Oeste do continente
demorando muito para se expandir, em Europeu, denominado Portugal, lançar-se no
comparação a Portugal e Espanha.
desconhecido Oceano Atlântico em busca da
Para conhecer mais sobre esse assunto acesse:
tão cobiçada rota de especiarias indianas, fato
<http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-
-que-foi-a-guerra-dos-cem-anos>. Acesso em: esse que alterou profundamente a história da
14 dez. 2014. humanidade. Portugal queria ser o primeiro e
realmente foi. Outros países, para não ficarem
para trás, resolveram se lançar nessa disputa e
as consequências foram inúmeras. A principal
delas foi que os países europeus fizeram desse
Em suma, prossegue o autor: continente um local onde a competitividade

Para os padrões do século XV, a China era estava mais avançada e, em decorrência disso,
um lugar relativamente agradável de se acabaram tomando a dianteira das transforma-
viver. A rígida ordem feudal estabelecida ções e inovações tecnológicas. Essa explicação
História da Alimentação

está na própria geografia da região: nem comida. Entretanto, tudo isso pode ser reme-

Podemos encontrar a resposta obser- tido à ideia do consumo, que é o outro “aplicativo”
vando os mapas da Europa medieval, que caracteriza a sociedade Ocidental, conforme
que mostram literalmente centenas de já destacamos. Entretanto, como tudo na vida,
Estados concorrentes, dos reinos da
sempre há dois pontos de vista.
costa Ocidental às muitas cidades-esta-
dos situadas entre o Báltico e o Adriático, A competição, bem como a necessidade de
de Lübeck a Veneza. Havia aproximada- as empresas maximizarem os lucros, do ponto
mente mil cidades na Europa do século
de vista da cultura alimentar, foi o que criou um
XIV; e ainda cerca de 500 unidades mais
ou menos independentes 200 anos mais formato de alimentação, o qual, praticamente,
tarde (FERGUNSON, 2012, p. 63). foi a marca principal do século XX: a empresa
McDonalds. Segundo Franco (2010, p. 243),
Essa fragmentação fez com que essas cidades- no afã de maximizar o lucro, a
-estados competissem entre si. Conforme já McDonaldização dissimula um dos
foi dito, a competição foi a mola propulsora seus artifícios mais eficazes: substituir a
maior parte possível do trabalho assala-
que impulsionou o Ocidente para a dianteira
riado pelo trabalho da própria clientela.
do mundo. Em suma, podemos concluir com as Para tanto, as empresas devem conven-
palavras de Ferguson (2012, p. 65) que: cer os clientes de que tudo é feito para
oferecer-lhes serviços mais eficientes.
A fragmentação política que caracterizou Na verdade, à medida que a sociedade
a Europa impossibilitou a criação de qual- se McDonaldiza, todos gastamos mais
quer coisa que lembrasse remotamente tempo fazendo fila e executando tarefas
o império Chinês. Também incentivou não remuneradas para um número cres-
os europeus a procurar oportunidades cente de empresas.
– econômicas, geopolíticas e religio-
sas – em terras distantes. Você poderia
dizer que se tratou de dividir e governar
Isso, segundo o autor, está em todos os ramos
– exceto que, paradoxalmente, foi divi-
dindo a si mesmos que os europeus con- da vida civil, pois o termo McDonaldização já se
seguiram governar o mundo. Na Europa, tornou um paradigma de produção e maximização
o pequeno era belo porque significava dos lucros, pois vemos isso em bancos, em call cen-
competição – e competição não só entre
ters e vários outros estabelecimentos comerciais.
Estados, mas também no interior destes.
Assim como Taylor, Ford e Toyota, o Mcdonald’s
Como você já percebeu, a competição é a mola pro- também poderá ser elevado à categoria como
pulsora do capitalismo. Sem a competição, não te- modelo produtivo a ser seguido. Entretanto, esse
ríamos roupas, calçados, telefones, computadores, é um outro debate!
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 29

Parece que o exercício da viagem no tempo é


um meio bastante didático de pensar a história.
Da mesma maneira, se viajarmos uns 150 anos
no tempo passado, observando qual o tipo de
roupa que as pessoas vestiam nos diferentes
continentes, bem como os utensílios utilizados
por elas, perceberíamos o quão diferente eram
as populações em seus usos e costumes. É jus-
tamente essa impressão que ficou no álbum
de fotografias que Albert Kahn resolveu criar.

Em 1909, inspirado por uma visita ao


Japão, o banqueiro e filantropo fran-
co-judeu Albert Kahn resolveu criar
um álbum de fotografias coloridas de
pessoas de todas as partes do mundo.
O objetivo, segundo Kahn, era “fazer
uma espécie de inventário fotográfico da
superfície do globo habitada e desenvol-
vida pelo homem no início do século XX”.
Criadas com o recém-inventado processo
de autocromo, as 72 mil fotografias e
100 horas de filmagem nos “arquivos
do planeta” de Kahn mostram uma va-
riedade impressionante de trajes e cos-
tumes de mais de 50 países diferentes:
camponeses miseráveis no Gaeltacht,
recrutas desgrenhados na Bulgária, líde-
res hostis na Arábia, guerreiros comple-
tamente nus em Daomé, marajás cheios
de adornos na Índia, sacerdotisas sedu-
toras na Indochina e caubóis de aparên-
cia estranhamente impassível no Velho
Oeste americano. Naquele tempo, o que
parece espantoso atualmente, éramos
o que vestíamos (FERGUSON, 2012,
p. 235-236).
História da Alimentação

Pois bem, prezado(a) aluno(a), imagine você restaurante de fast food, uma pessoa usando
saindo agora de sua residência com destino a tênis, telefonando com seu celular, divertindo-
dar uma volta ao mundo. A possibilidade de -se com seus smartphones, ou, simplesmente,
você ficar espantado com a forma das pessoas deslocando-se de um lado para o outro com um
se vestirem em locais muito distantes ainda é automóvel. Isso é um fenômeno recente e que
grande, mas, certamente, a quantidade de locais merece muita discussão e questionamentos para
que lhe proporcionará tal espanto foi bastante entender a razão de tudo isso.
reduzida, em comparação ao período em que O que há em nossas roupas que parece
Kanh fez o seu inventário imagético. Se, por ser irresistível aos outros povos? Vestir-se
acaso, for visitar as mesmas regiões onde esse como nós significa querer ser como nós?
Claramente, não se trata só de roupas.
banqueiro esteve, as chances de você se deparar
Trata-se de abraçar toda uma cultura
com as mesmas situações são remotas. A que se popular que passa pela música e pelo
deve isso? A evolução da ciência e da tecnologia? cinema, sem falar dos refrigerantes e da
fast food. Essa cultura popular contém
Sim, são dois fatores importantes, mas todos
uma mensagem sutil. Diz respeito a li-
eles devem ser colocados a serviço do consu- berdade – o direito de se vestir ou beber
mo, pois foi esse um dos principais fatores da ou comer como você quiser (mesmo que
ocidentalização do mundo. isso signifique ser como todos os demais).
Diz respeito à democracia – porque só
Em linhas gerais, podemos afirmar que,
os produtos de consumo que realmen-
em qualquer canto do mundo que visitar, di- te agradam as pessoas são produzidos
ficilmente não encontrará uma calça jeans, um (FERGUSON, 2012, p. 237).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 31

Embora percebemos que muitas dessas transformações ocorreram na segunda metade do


século XX, isso é fruto de um modelo de sociedade denominado american way of life. O
estilo de vida americano, conhecido como american way of life, surgiu no início do século
XX e teve seu auge nos anos de 1920, nos Estados Unidos. A intensa transformação eco-
nômica e tecnológica que esse país vinha sofrendo desde o fim da Guerra de Secessão
(1861-1865) proporcionou o desenvolvimento econômico e, como consequência, a vida
das pessoas melhorou muito. Com uma indústria voltada aos trabalhos domésticos e ao
entretenimento, logo os EUA se tornou um modelo ideal de sociedade. Os imigrantes
que chegavam aos Estados Unidos não tinham outra escolha a não ser se adaptar a
esse estilo de vida. Em linhas gerais, a liberdade adquirida pelas mulheres, os padrões
sociais mais flexíveis do que os da Europa, a maneira de se vestir, de se comportar, as
mais diversas formas de se divertir, comer, beber, etc. tudo isso ficou conhecido como
american way of life.

Trocando em miúdos, o modelo de vida assim o desejam. Dessa forma, prevalece o velho
Ocidental, intimamente ligado ao vestuário, foi brocardo: “o cliente sempre tem razão”.
o meio mais democrático, no que diz respeito a O consumismo é um fenômeno que veio
atender aos anseios da população, já que nin- para ficar. Nem as sociedades anticapitalistas,
guém vai até sua casa com uma calça jeans e o principalmente aquelas oriundas da doutrina
obriga a vestir. Da mesma maneira que ninguém marxista, foram capaz de resistir a esse modo
vai até você e lhe força a utilizar um tênis. Nós de vida. O consumo é eficiente porque ele é
utilizamos essas vestimentas porque elas são sedutor, não é preciso impor nada a força, basta
mais confortáveis e simples. O tênis, bem como fazer com que as pessoas sintam vontade em
a calça jeans – só para utilizar dois exemplos bá- consumir determinado produto e pronto.
sicos – somente são produzidos em larga escala, Não é necessária qualquer ação violenta. Ao
em diferentes tonalidades de cores e tamanhos, mesmo tempo em que a sociedade de consumo
além de preço, porque os próprios consumidores se propôs democrática, pois visava fornecer às
História da Alimentação

pessoas uma grande variedade daquilo que elas Europa, em função da Primeira Guerra (1914-
queriam consumir, esse modelo acabou por ho- 1918), além dos regimes totalitários de orientação
mogeneizar a forma de se vestir, de comer, ou socialista que dominaram países como Alemanha,
seja, criou um paradoxo (FERGUSON, 2012). Itália e a União Soviética. Tudo isso limitou demais
Foi justamente essa sociedade de consumo, o acesso das pessoas e dos empreendedores ao
bem como a revolução da produtividade do século crédito. Crédito esse que foi, digamos, mais farto
XX, que acabou por diminuir a diferença aparente a partir da década de 1950. Isso afetou profun-
entre ricos e pobres. O paradigma taylorista de damente a economia, já que, com a facilidade de
produtividade proporcionou ao industrial produzir se emprestar dinheiro, as empresas passaram a
mais com menores custos, podendo repassar essa produzir mais e as pessoas, como agora podiam
economia no preço final da mercadoria, fazendo pagar os produtos parcelados, também puderam
com que as pessoas tivessem um acesso cada vez adquirir produtos sem a necessidade de dinheiro
maior a produtos mais baratos. Segundo Silveira, à vista. Isso jamais havia acontecido!
Carvalho e Alexandre (2010, p. 89), “através da Os pais dos baby boomers foram a pri-
Revolução da Produtividade, gerada com base nas meira geração a ter acesso significativo
experiências de Taylor, é que foi possível a mul- ao crédito ao consumidor. Eles compra-
ram sua casa a prazo, seu carro a prazo
tiplicação de bens, riqueza e a melhoria real nas
e seus eletrodomésticos – geladeiras,
condições de vida dos trabalhadores”. aparelhos de TV e máquinas de lavar
A sociedade de consumo é tão forte que até roupa – a prazo. Em 1930, quando veio
a Depressão, mais da metade dos lares
mesmo nos movimentos ditos revolucionários,
norte-americanos tinha eletricidade, um
que levantam bandeiras contra o capitalismo, automóvel e uma geladeira. Em 1960,
é possível ver jovens com seus iPhones, iPads, cerca de 80% dos norte-americanos
tinha não só essas conveniências, como
vestindo roupas de marcas da moda, bem como
também telefone. E a velocidade com
fazendo um lanchinho em alguma rede de fast que os novos bens de consumo duráveis
food famosa. Essa imagem é comum em todos os se difundiam continuou aumentando.
cantos do mundo, não apenas restrita ao mundo A Máquina de lavar foi inventada antes
da Depressão, em 1926. Em 1965, 39
Ocidental. Isso é a prova mais concreta de que o anos mais tarde, metade dos lares tinha
consumo foi um aplicativo que deu certo! uma. O ar condicionado foi inventado
Toda essa cultura do consumismo se tornou em 1945. Passou da marca dos 50%
em 1974, 29 anos depois. A secadora
evidente logo após a Segunda Guerra Mundial
de roupas apareceu em 1949, e 23 anos
(1939-1945). A primeira metade do século XX depois estava em mais da metade dos
foi bastante complicada, principalmente para a lares (FERGUNSON, 2012, p. 278-279).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 33

Isso é apenas para mostrar um pouco das trans- recentemente, e isso pode ser visto principal-
formações que o incentivo ao consumo pro- mente aqui no Brasil.
vocou na sociedade. No que diz respeito aos Sendo assim, a sociedade de consumo, bem
países desenvolvidos, como os Estados Unidos, como a competição, é um dos principais pilares da
Canadá, Japão e outros da Europa, esse fenô- civilização Ocidental. Foram esses aplicativos que
meno do consumismo foi algo experimentado colocaram o Ocidente na condição de vanguarda
logo após a Segunda Guerra, entretanto, nos das inovações e transformações, que mudaram cul-
países emergentes, esse consumismo somente turas, usos, costumes, além de proporcionar muito
fora transformado em um estilo de vida mais desenvolvimento e conforto em nossas vidas.

Frederick Winslow Taylor, conhecido como o pai da organização científica do trabalho,


nasceu na Filadélfia, EUA, em 1856. Pertenceu a uma família de classe média, o que lhe
propiciou uma boa formação escolar. Autor do livro Princípios da Administração Científica,
Taylor conseguiu implantar um processo produtivo que revolucionou a indústria. Por
meio de seus estudos, ele conseguiu fazer com que funcionários tivessem maior pro-
dutividade dentro das empresas, evitando o desperdício e fazendo com que toda essa
economia fosse repassada ao produto final, barateando as mercadorias e permitindo
que mais pessoas tivessem acesso a elas.

Fonte: SILVEIRA, Itamar Flávio; CARVALHO, Suelem Halim Nardo de; ALEXANDRE, Luís Fernando Pessoa. O
Taylorismo e a Questão do trabalho na contemporaneidade. In: SILVA, Moacir José da; SILVEIRA, Itamar Flávio.
História Econômica Moderna e Contemporânea. Maringá: EDUEM, 2010. p. 85-104 (Com adaptações).
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 35

A Globalização
e a Difusão do Modelo de
Civilização Ocidental

Quando, em 1492, Cristóvão Colombo desembarcou aqui na


América, um dos grandes objetivos de sua missão era cristianizar
os povos “das índias”, pois, como sabemos, seu objetivo principal
era o de atingir o Continente Asiático, partindo do Ocidente, rumo
ao Oriente. Embora seu projeto de descobrir uma rota alternativa às
Índias não tenha surtido efeito, a missão de cristianizar os nativos
foi cumprida com êxito. Entretanto, isso não se deve a Colombo,
mas, em grande parte, a atuação dos jesuítas a partir do século XVI.
A expressão globalização é utilizada para definir o processo de in-
teração comercial e cultural que o mundo vem sofrendo nos últimos
séculos, principalmente após o advento das Grandes Navegações,
iniciadas pelos portugueses no século XV (SILVA; ALEXANDRE;
ROCHA, 2010). Vale lembrar que a interação comercial e cultural
entre os povos é bem antiga, pois, desde a antiguidade, os relatos
mostram que essa interação era presente. No entanto, essa globa-
lização na velocidade que conhecemos hoje somente foi possível
com o advento da comunicação em massa. Sendo assim, cabe a
seguinte indagação: o que temos é um processo de globalização
ou de massificação? Embora deixaremos a resposta por sua conta,
vamos expor aqui alguns pontos para refletirmos sobre o assunto.
História da Alimentação

promoveram ainda mais o novo visual


Sem dúvida alguma, um dos instrumen- rústico com o “homem de Marlboro”, o
tos mais eficientes para a divulgação da cultu- caubói que usava jeans e fumava cigarro,
ra Ocidental foram os meios de comunicação concebido pelo executivo de publicida-
de Burnett, em 1954. Marilyn Monroe
de massa. Inclusive, o rádio, a TV, a Internet, também foi uma das primeiras a adotar
além da prensa de Gutemberg, são produtos o jeans (FERGUNSON, 2012, p. 282).
do Ocidente. Nada mais justo utilizá-los para
a difusão de sua cultura. Entretanto, o acesso Como foi possível observar, o cinema e a pu-
a esses meios de comunicação somente se in- blicidade foram as duas grandes ferramentas
tensificou a partir da segunda Guerra Mundial. que estimularam a ocidentalização do mundo.
Prezado(a) aluno(a), qual é o principal Vale lembrar que o estilo de vida transmiti-
objeto que podemos destacar como símbolo do pela mídia, em geral, fazia uma associação
da Ocidentalização do mundo? Certamente que, entre o jeans e a liberdade. Acredito que todos
se você pensou Coca-Cola, a resposta está cor- os alunos que já passaram dos trinta anos de
reta. Mas, para ampliar nossa discussão, qual o idade devem se lembrar da propaganda dos
outro símbolo do Ocidente presente em todos cigarros Marlboro e de como a imagem trans-
os cantos do mundo? Acertou quem pensou na mitida era estimulante. A elevação do jeans
simples e confortável calça jeans. Esse ícone do como um ícone da cultura Ocidental foi as-
mundo Ocidental tem uma presença global em cendente. Hoje, ele está presente na vida de
razão de dois elementos essenciais do século XX: todas as classes sociais, sem exceção. Segundo
o cinema e a publicidade. Ferguson (2012, 182-183):

Começou nos traseiros de peões e presidi-


Começou quando o jovem John Wayne
ários; foi obrigatório para os trabalhadores
trocou as elaboradas chaparreiras de
da defesa civil durante a guerra; passou
couro com franja dos primeiros filmes
aos grupos de ciclistas nos anos pós-guer-
de caubói pelo jeans comum que usou
ra; foi adotado pelos estudantes de West
em "No tempo das diligências" (1939).
Coast e então da Ivy League; graduou-se
Então vieram o jeans e a jaqueta de couro
para “conquistar” escritores, cantores de
de Marlon Brando em "O selvagem"
música folk e grupos pop nos anos 1960; e
(1953), seguidos dos traje vermelho
acabou sendo usado em público por todos
(jaqueta), azul (jeans) e branco (cami-
os presidentes depois de Richard Nixon.
seta) de James Dean em "Juventude
transviada" (1955) e do jeans negro
de Elvis Presley em "O prisioneiro do Sem dúvida alguma, o jeans, assim como a Coca-
rock and roll" (1957). Os publicitários Cola, são as principais marcas que atestam a
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 37

presença do modelo de vida desenvolvido no


Ocidente por todo mundo. Esse modelo de glo-
balização, conforme já destacamos, é algo muito
antigo. Sendo assim, é importante destacar o
que defende Silva, Alexandre e Rocha (2010,
p. 105):

Desde os tempos em que as nações eu-


ropeias promoveram as expansões ma-
rítimas, especialmente a partir do século
XV, a tendência verificada nas atividades Os meios de comunicação foram indis-
econômicas foi a de um alargamento de pensáveis para evolução da humanidade.
horizontes geográficos, culturais, políti- A prensa de Gutemberg, desenvolvida no
cos e sociais. Corolário disso foi um, por renascimento, representou um grande
assim dizer, processo de “arredondamen- salto no que diz respeito à comunicação.
to” do mundo, vez que naqueles idos era Com o Iluminismo, a difusão de ideias
concebido que a terra tinha a forma do por meio dos livros impressos também
tabernáculo e que sua pedra fundamen- foi de grande importância, principalmente
tal fora lançada pelos portugueses; esse em razão do movimento enciclopedista,
processo alcançou uma tal complexidade que tinha como objetivo aglutinar todo
de relações que até mesmo nos dias de conhecimento humano, para que fossem
hoje seus efeitos se fazem sentir, não passados para novas gerações. No século
apenas em regiões longínquas e retira- XIX, tivemos a invenção do telégrafo, do
das, mas por toda a ordem social. telefone, mais tarde, tivemos o rádio, a
televisão, até que pudéssemos chegar a
Era da comunicação via Internet.
Conforme destacaram os autores, como você Confira, também, alguns equipamentos desen-
pode perceber, esse processo “encurtou” as dis- volvidos para a Guerra e que fazem parte de
nosso cotidiano: <http://www.tecmundo.com.
tâncias. Não é preciso ser italiano para se deliciar br/tecnologia-militar/34671-8-tecnologias-in-
com a culinária típica desse país, tampouco será ventadas-para-a-guerra-que-fazem-parte-do-
-nosso-cotidiano.htm>. Acesso em: 14 dez. 2014.
necessário ir até a Alemanha para degustar sua
culinária ou os seus costumes. Enfim, quando
se fala em cultura, com o avanço da globalização
causado pela evolução dos meios de comunica-
ção, o modo de vida do Ocidente conseguiu se
sobressair aos demais.
História da Alimentação

Roberta era uma garota que adorava dançar. Devido ao seu talento nato, entrou para um grupo
de danças típicas alemãs, pois, na cidade onde havia nascido, Rolândia, no norte do Paraná, a
cultura germânica era muito forte. Ela sempre participava das apresentações com o seu grupo
e isso chamava a atenção de muitas pessoas, inclusive de estrangeiros, que prestigiavam a
apresentação do grupo em festas tradicionais.
Certo dia, o grupo do qual Roberta fazia parte foi convidado a fazer uma apresentação em uma
cidade na Alemanha. Diante disso, Roberta se indagou: qual a razão de nós irmos nos apresen-
tar na Alemanha, será que eles não conhecem essas danças por lá? Sua curiosidade a levou a
descobrir que, na verdade, em razão da globalização, muito da cultura tradicional alemã acabou
sendo esquecida. Ficando apenas registrada na memória e no folclore dos descendentes de
alemães que ainda estão vivos.
A necessidade de preservar a cultura fora do território germânico foi tão grande que, atual-
mente, muitas danças típicas de regiões da Alemanha somente são conhecidas no Brasil. Por
isso, a importância da apresentação do grupo de Roberta na Alemanha, pois iriam mostrar aos
germânicos um pouco da própria cultura que eles haviam esquecido.

Fonte: história fictícia, criada pelo autor, para ilustrar como a manutenção da cultura é importante a um
grupo social.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 39

Prezado(a) aluno(a), cabe aqui uma importante lideradas pelos EUA tinham como maior ob-
observação. Durante os anos da Guerra Fria, jetivo o foco na satisfação das pessoas. Como
o embate entre capitalismo e socialismo foi a toda economia de mercado, o foco principal
tônica desse período. URSS e EUA disputavam está no cliente, nos consumidores. Afinal,
palmo a palmo a hegemonia do mundo. No são eles que irão destinar os seus ganhos à
final das contas, o capitalismo se sobressaiu aquisição de uma determinada mercadoria.
ao comunismo. Qual a razão de tudo isso? Essa disputa por uma fatia maior do mercado
Inúmeras explicações poderiam ser ditas, en- fez com que a qualidade de vida dos países
tretanto, podemos destacar apenas um ponto. capitalistas, bem como o índice de desenvol-
Enquanto o esforço dos países comunistas, vimento humano fossem bem superiores aos
liderados pela URSS era de fortalecer o Estado, países comunistas. Para ilustrar mais uma vez
fazendo com que todo esforço fosse em dire- a nossa afirmação, destacaremos novamente
ção a torná-lo potente, as nações capitalistas a calça jeans:

Assim como os jovens do mundo inteiro, os adolescentes da União Soviética e seus satélites na
Europa Oriental estavam clamando por jeans. Portanto, é realmente estranho que o principal
rival dos Estados Unidos no mundo pós-guerra não tenha sido capaz de copiar essa peça de
roupa tão óbvia. Talvez se tenha pensado que a loucura ocidental por jeans havia tornado a vida
mais fácil para os soviéticos. Afinal, supostamente a União Soviética era o paraíso proletário, e
os jeans são muito mais fáceis de fazer que as calças Sta-Prest, por exemplo (outra invenção de
Levi Strauss, introduzida em 1964). Mas, de alguma forma, o bloco comunista foi incapaz de
entender o poder de sedução de uma peça de indumentária que poderia ter simbolizado com igual
eficácia as virtudes do dedicado trabalhador soviético. Em vez disso, o jeans azul, e a música pop
com a qual logo esteve intimamente associado, tornaram-se símbolos perfeitos da superioridade
ocidental. E, ao contrário das ogivas nucleares, o jeans foi de fato lançado contra os soviéticos:
houve exposições da Levi’s em Moscou em 1959 e em 1967 (FERGUSON, 2012, p. 284-285).

Para se ter uma ideia, prezado(a) aluno(a), sempre arranjavam uma maneira de conseguir
Niall Ferguson destaca, também, que havia algumas peças dessa vestimenta. Era, por assim
na Alemanha Oriental o chamado “crime do dizer, um dos produtos mais contrabandeados
jeans”, pois os jovens da Alemanha Oriental do lado Oriental.
que possuíam algum parente do lado Ocidental
História da Alimentação

A
globalização do modo de vida O nome é "Adeus Lênin" e mostra a experiência
Ocidental, simbolizada pelo jeans, de uma família da Alemanha Oriental depois
fica explícita, principalmente, nos que o muro de Berlim caiu. O que aconteceu
movimentos revolucionários que se após a queda foi, literalmente, uma inunda-
proliferaram a partir dos anos 1960. O principal ção de produtos capitalistas. Desde comida
“uniforme” de atos antiamericanos era o jeans. a vestimentas. As transformações ocorridas
Ou seja, mais um paradoxo, já que eles protes- foram em uma velocidade extraordinária. O
tavam contra aquilo que vestiam. engraçado é pensar que o tal muro havia sido
Há um filme que retrata muito bem a construído pelos comunistas com a justifica-
forma como o modelo de vida, bem como os tiva de que era para evitar que os moradores
produtos criados pelo mundo Ocidental capi- do lado capitalista não atravessassem para o
talista se sobressaíram ao Oriental capitalista. lado comunista, sobrecarregando o sistema
daquele lado. O que se viu, na prática, foi algo
totalmente inverso.
Portanto, para concluirmos este tópico, é
importante esclarecer mais uma vez que toda
essa globalização somente foi possível devido
ao fato de que o modelo de vida capitalista
Ocidental sempre objetivou atender aos anseios
e necessidades colocados pelas pessoas, pelos
cidadãos comuns. Essas pessoas não queriam
mísseis ou ogivas nucleares, mas sim liquidifi-
cadores, ar-condicionado, televisores em cores,
aparelhos de som, carros e, principalmente, ves-
timentas confortáveis, baratas e agradáveis aos
olhos. Infelizmente, nenhum outro modelo de
civilização conseguiu ser mais eficiente do que
o Ocidental nesse quesito.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 41

considerações finais
Prezado(a) aluno(a)!
Nesta unidade, nosso objetivo foi o de destacar alguns pontos essenciais para que
nossa compreensão da história e da cultura gastronômica sejam mais abrangentes. Não
seria possível, aqui, abarcar toda história da humanidade, aliás, nem foi esse nosso
objetivo, mas é importante ressaltar que o enfoque se deu na cultura Ocidental, pois,
além de ter sido o paradigma civilizatório que obteve mais êxito, nós fazemos parte dela.
Sendo assim, vamos retomar alguns pontos!
Primeiramente, é importante deixar claro que, na transição da Idade Média para a
Modernidade, foi um período crucial na história do Ocidente. O renascimento trouxe
à tona um modelo de vida que ficara esquecido na antiguidade. Esse modelo tinha
o homem como seu principal objeto de preocupação, dessa forma, toda uma cul-
tura foi edificada para consolidar o homem no centro do universo, ou seja, a cultura
antropocêntrica.
Foi também nesse momento que o modelo de vida desenvolvido na Europa Ocidental
começou a tomar a dianteira de outras nações. Para ilustrar melhor essa relação, apre-
sentamos ao distinto aluno os aplicativos que tornaram isso possível. Sendo assim, a
sociedade de consumo e a competição foram os dois pontos abordados por nós, pois
acreditamos ser esses dois a principal base do mundo atualmente. A competição fez e
ainda faz com que inúmeras pessoas se debrucem em estudos para desenvolver me-
canismo em que situações do conforto possam ser criadas. Além disso, essa mesma
competição nos permite ter acesso a diversos produtos de marcas e preços diferentes.
Essa é, por assim dizer, a mola propulsora também da sociedade de consumo que, por
consequência, é também a mola propulsora de nossa sociedade.
Do ponto de vista da globalização do modelo de vida Ocidental, vale lembrar que isso
somente foi possível em razão do objetivo central, que é a satisfação das pessoas. Essas
pessoas, transformadas em potenciais consumidores, tiveram suas vidas revolucionadas
com a maior disponibilidade de bens de consumo, facilitando suas tarefas de trabalho,
além de facilitar, significativamente, a vida doméstica.
Portanto, diante disso, vamos, agora, tratar da intimidade dessa civilização que se
formou a luz de tudo isso que fora exposto até aqui. Vamos entender como as práticas,
usos e costumes que hoje possuímos foram, aos poucos, moldados por um conjunto de
regras que, muitas vezes, foram inerentes à vontade das pessoas.
História da Alimentação

atividades de estudo

1. Diante do contexto apresentado no início desta unidade, explique


quais foram as principais transformações na forma de pensar ocor-
ridas no período do renascimento.

2. Explique de que forma a competição e o consumo foram importantes


para consolidar o modelo de civilização desenvolvido pelo Ocidente.

3. Descreva de que forma a globalização contribuiu à melhora da vida


das pessoas:
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 43

material complementar
Título: Adeus Lênin.
Ano de lançamento: 2002.
Sinopse: Este filme mostra, de forma bem hilária, como a vida de uma família
é profundamente revolucionada com a Queda do Muro de Berlim e o con-
sequente fim do comunismo na Alemanha Oriental. De uma hora pra outra,
eles sentem a invasão de produtos como a Coca-Cola, televisores em cores,
equipamentos eletrônicos em geral, dentre outros. A parte engraçada é que
os jovens buscam esconder da mãe, uma comunista fervorosa e de saúde
debilitada, todas essas transformações.

Sobre o Renascimento, acesse: <http://www.todamateria.com.br/renascimento-cul-


tural/>. Acesso em: 14 dez. 2014.
História da Alimentação

leitura complementar

De Henry Ford
ao Mcdonald’s
A industrialização da alimentação e o surgimento, no nosso século, da distribui-
ção em grande escala constituem fenômenos recentes deste lado do Atlântico.
Datam sobretudo dos anos de 1960. Em compensação, nos Estados Unidos
alguns produtos alimentares industrializados – entre os quais a Coca-Cola
– encontram-se no mercado há cem anos ou mais. Heinz, Nabisco, Kellogg,
Campbell, figuram já entre as maiores empresas americanas na década de
1880 ou 1890, e a indústria agroalimentar revela-se, no final do século XIX,
a primeira do país. A descoberta das bactérias e a obsessão subsequente em
relação aos germes favorecem, paradoxalmente, uma concentração da indústria
de laticínios. No início do século XX impõe-se a obrigação de pasteurizar o
leite e só conseguem sobreviver as empresas capazes de fazer investimen-
tos consideráveis, que, em decorrência de tal operação, se tinham tornado
necessários. Desde os anos 1930 desenvolve-se no país a distribuição em
grande escala. Nesse sentido, a América antecipa tendências surgidas mais
tardiamente em outras partes. Assim, a compreensão dessa realidade ame-
ricana deveria permitir apreender melhor os fenômenos que, em matéria de
alimentação, estão se processando há cerca de trinta anos no Velho Mundo.
(...).
Em duas ou três décadas, uma parte crescente do trabalho culinário, tanto
em casa como no restaurante, deslocou-se da cozinha para a fábrica. Esses
alimentos transformados, “marketados”, divulgados pela publicidade, são
também produtos que incorporam um valor agregado cada vez mais elevado,
já presente no nível da preparação: a indústria toma à sua conta o essencial
do trabalho doméstico; uma vez transformados pela indústria, os alimentos
tornam-se “alimentos-serviço”.
(...).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 45

leitura complementar
As modificações introduzidas nos gêneros alimentícios não correspondem
somente a uma demanda dos consumidores. Nesse aspecto, desde os anos
de 1960, a distribuição desempenha um papel determinante. Com efeito,
ela obedece a diversos imperativos – logísticos, tecnológicos, econômicos.
É também sob a pressão dos distribuidores que se desenvolvem e se gene-
ralizam mercadorias mais fáceis de estocar, transportar, exibir e conser-
var nas prateleiras. A agricultura seleciona produtos por sua aparência e
duração de vida nas lojas. Das frutas aos queijos, os alimentos cotidianos
passam por profundas transformações. Do mesmo modo, é sob a pressão
dos supermercados que, nos anos 1960, aparecem e depois se impõem as
embalagens plásticas, em particular para a água mineral e o óleo. As garrafas
de PVC implantam-se rapidamente porque são mais fáceis de transportar
em paletes, mais leves, menos frágeis, além de serem descartáveis. Somente
muito mais tarde as pessoas se deram conta de seus inconvenientes para o
ambiente. Alguns consumidores começam a se queixar: seu queijo favorito
é, quase sempre, pasteurizado, as maçãs são apenas da variedade insípida
dita Golden delicious, as frutas chegam aos supermercados sem o devido
grau de maturação, o pão já não tem as características gustativas às quais
estavam acostumados. Em contrapartida, os supermercados oferecem
preços vantajosos ao conseguirem consideráveis economias pelas compras
em alta escala.

Fonte: FISCHLER, Claude. De Henry Ford ao McDonalds. (texto adaptado). In: FLANDRIN,
Jean-Louis; MONTANARI, Massino. (Org.). História da Alimentação. São Paulo: Estação
Liberdade, 1998. p. 845-848.
História da Alimentação
Civilização, Usos e Costumes
KLEBER EDUARDO MEN
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

• A evolução do conceito de civilização: apontamentos preambulares


• O comportamento à mesa
• O que é bom e o que é ruim? Comentários a respeito dos hábitos
em geral

Objetivos de Aprendizagem
• Apresentar ao aluno como o comportamento social foi moldado
ao longo dos anos.
• Destacar que o comportamento está diretamente ligado ao tipo
de sociedade que se deseja formar.
• Estudar como as necessidades fisiológicas também foram objeto
de preocupação para a concepção de uma nova sociedade.
• Observar como os hábitos, em geral, foram objeto de preocupa-
ção das civilizações.
49

Introdução
Olá, aluno(a)!
Nesta segunda unidade de nosso livro, vamos fazer uma análise sobre o comportamento e
os usos e costumes que fizeram parte do processo civilizatório. Vamos refletir de que maneira as
nossas práticas comportamentais foram inseridas em nossas vidas, bem como a forma como elas
estão presentes, além de sua importância para a consolidação do modelo de Civilização Ocidental.
Certa vez, ao ficar encantado com a sobremesa de um restaurante, veio-me uma vontade
imensa de lamber o delicioso creme de chocolate com pimenta que havia sobrado no prato. Ao
perceber a minha ideia, minha esposa logo me repreendeu, dizendo que não seria educada tal
atitude. Entretanto, mesmo sabendo que tal ato não seria bem visto pelos frequentadores do
restaurante, fiquei me indagando, quem foi o responsável por criar esses códigos de etiqueta? De
onde veio essa lista de mandamentos do que podemos ou não fazer? Qual diferença tem entre
eu passar o dedo sobre o meu próprio prato e levá-lo à boca ou utilizar uma colher para isso?
Esta unidade terá como objetivo abordar essas questões, lançando luzes sobre esses manuais
de comportamento que surgiram com a finalidade de moldar os costumes.
O que diferencia os homens dos animais é a nossa capacidade de raciocinar. Se você pisar
na pata de seu dócil cão de estimação, certamente, se a pisada for dolorida, ele irá lhe morder
em busca de se defender. Isso, pelo menos em regra, não ocorre com os seres humanos, pois
temos outros meios para solucionar nossos problemas que não a agressão física. Posto isso,
devemos compreender que o processo de civilização do homem passou, antes de tudo, por uma
formatação dos seus usos e costumes. A criação desse conjunto de regras foi uma maneira de
nos separar ainda mais dos animais. Por isso, compreendê-los é, acima de tudo, entender a nossa
própria existência em sociedade.
Para que nosso trabalho obtenha êxito, vamos utilizar como referência principal a obra do
sociólogo Norbert Elias, que, em seu livro “O processo civilizador”, conseguiu nos mostrar onde
se encontra toda a gênese dos costumes que hoje são praticados em todo mundo Ocidental.
Sendo assim, convido você, estimado(a) aluno(a), para fazer uma viagem sobre o nosso com-
portamento social, observando como as práticas que nos cercam são oriundas de uma ampla
experiência civilizatória.
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 51

A Evolução do
Conceito de Civilização:
Apontamentos
Preambulares

Prezado(a) aluno(a), por mais que a qualidade do futebol brasileiro


tenha caído nas últimas décadas, o esporte bretão (nome esse que
é dado em razão da origem do futebol ter sido a Grã Bretanha)
ainda continua como o mais popular aqui no Brasil. Basta ver a
quantidade de canais nas TVs por assinatura que dedicam grande
parte do seu tempo à transmissão de jogos, bem como à cobertura
de eventos relacionados ao futebol. Além, é claro, dos programas
de debates acerca de quem foi o melhor jogador, o gol mais bonito,
a maior polêmica, enfim, a criatividade da imprensa é infinita para
angariar telespectadores.
História da Alimentação

Estádio de Futebol

Entretanto, o nosso futebol não é feito apenas


de pontos positivos, pois há muito que se melho-
rar, principalmente no que diz respeito à relação
entre os torcedores. Em outras palavras, temos
“O homem é um animal político”
a violência nos estádios de futebol como um mal
que precisa ser combatido. Mas por que razão Fonte: Aristóteles

eu iniciaria a unidade de um livro sobre história


da alimentação abordando o futebol brasileiro?
A resposta é simples: toda vez que há cenas de
violência entre as torcidas a primeira expressão de bárbaros aqueles que promovem saques aos
que os narradores e comentaristas utilizam para estádios, depredando o patrimônio alheio e,
denominar tais atos é “barbaridade”. diante disso, é importante esclarecermos que
Não é difícil ver os apresentadores chamando tal expressão tem a ver com o conceito de
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 53

civilização, pois o que não é aceito como algo de uma vida urbana, pois não possuíam casa.
normal na vida em sociedade é taxado como Vestiam-se mal, enfim, a lista é bastante extensa
bárbaro. Deixando as discussões semânticas e mostra uma enorme carga de preconceito que
de lado, é importante destacar que foram os os romanos possuíam.
romanos que empregaram a expressão “bárba- Após a queda do Império Romano, houve a
ros”, para definir aqueles povos que se situavam formação de inúmeros reinos bárbaros. Nesse
além das fronteiras do Império. Ostrogodos, sentido, com a estruturação de religião cristã
visigodos, hunos, germanos, dentre outros, no Ocidente, esses reinos foram, aos poucos,
foram todos taxados de bárbaros, pois, além de sucumbindo diante do poder do cristianismo
não serem súditos romanos, não comungavam e se tornaram peças fundamentais no proces-
dos mesmos usos e costumes, o que deixava os so de consolidação dessa religião. Podemos
romanos horrorizados com o comportamento apontar como ápice dessa interação a coroa-
grosseiro deles. ção de Carlos Magno, no Natal do ano de 800,
A lista de “transgressões” praticadas pelos como Imperador do Sacro Império Romano
bárbaros era enorme. Eles não falavam o latim, Germânico. Em resumo, o cristianismo foi o
não utilizavam o fogo, não temperavam a responsável por civilizar os bárbaros, tornan-
comida, a carne que consumiam era pratica- do seus costumes e práticas mais aceitáveis ao
mente crua e era aquecida entre as coxas dos modelo desejado por essa instituição (ARRUDA;
cavalos durante as marchas. Não desfrutavam PILETTI, 2003).

Os bárbaros era um nome genérico dado a grupos humanos que invadiram os limites do Império
Romano e foram uma das grandes causas da decadência dessa civilização. germanos, ostrogodos,
visigodos, francos e vários outros causavam ojeriza nos romanos, em razão dos seus costumes
rudimentares.

Para conhecer mais a respeito das invasões bárbaras ao Império Romano Ocidental, acesse o link:
<http://www.mundoeducacao.com/historiageral/invasoes-barbaras.htm>. Acesso em: 12 jan. 2015.
História da Alimentação

Nômades ou vivendo em meio às florestas, os bárbaros nada tinham de comum


com o modo de vida dos romanos. Eram povos sem administradores, cobradores
de impostos, juízes ou leis escritas. Recorriam, de forma geral, à assembleia tribal
para tomar decisões importantes, como fazer a guerra ou a paz, julgar conflitos
entre seus membros, nomear um chefe-rei, entre outras coisas. Em suas sociedades
tribais, sem uma unidade política, os bárbaros seguiam leis que não eram escritas,
mas apoiadas nos costumes, a exemplo da lealdade com os parentes, chefes e
companheiros. Eram politeístas como os gregos e os romanos, porém, cada tribo
tinha sua própria crença e seus próprios deuses.

Fonte: VICENTINO, Cláudio. Projeto Radix: História. São Paulo: Scipione, 2009.

Quem foi Carlos Magno? Foi Rei dos Francos da dinastia Carolíngia e coroado
pelo Papa Leão III, no Natal do ano de 800, Imperador do Sacro Império Romano
Germânico. Devido ao seu poder militar, foi considerado como o braço armado da
Igreja Católica na luta contra a incursão dos mouros na Europa. Foi um dos grandes
responsáveis por impedir que o continente europeu sucumbisse diante da expansão
muçulmana. A dinastia a qual pertencia foi a primeira grande aliança entre a Igreja
Católica e um governante de origem bárbara.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 55

O conceito de civilização, o qual iremos empre- A citação acima não pode ser vista sem causar
gar aqui, ganhou contornos mais bem definidos certa estranheza, pois se trata de algumas
na obra de Erasmo de Rotterdam De civilitate observações feitas por Erasmo de Rotterdam
morum puerilium (Da civilidade em crianças), com relação ao comportamento humano. Seu
no século XVI. Em razão da grande aceitação livro, como era de praxe no contexto em que
que essa obra teve em seu contexto, podemos viveu, tinha como objetivo educar alguém,
afirmar que essa discussão era mais do que im- nesse caso em específico, buscava instruir
prescindível, pois havia uma necessidade muito um menino nobre, filho de príncipe, aos bons
grande de moldar um novo tipo de homem, modos (ELIAS, 2011). Assim como Maquiavel
deixando aquele modelo de civilização feudal (2000), procurou no mesmo contexto instruir
cada vez mais como parte do passado. Segundo um príncipe sobre como se colocar a frente de
Elias (2011), o tema desse livro era bem simples, um Estado, Rotterdam visava com a educação
pois tratava do comportamento das pessoas atingir outros objetivos.
em sociedade.

Erasmo fala, por exemplo, da maneira


como as pessoas olham. Embora seus
comentários tenham por intenção ins-
truir, confirmam também a observação
direta e viva de que ele era capaz. “Sint
oculi placidi, verecundi, compositi”, diz
ele, “non torvi, quod est truculentiae...
non vagiac volubiles, quod est insaniae,
non llimi quot est suspiciosorum et in-
sidias meletium...”. É difícil traduzir isto
sem uma grande alteração de tom: o
olhar esbugalhado é sinal de estupidez,
o olhar fixo sinal de inércia; o olhar dos
que têm inclinação para a ira é cortante
demais; é vivo e eloquente o dos im-
pudicos; se seu olhar demonstra uma
mente plácida e afabilidade respeitosa,
isto é melhor. Não é por acaso que os
antigos dizem: os olhos são o espelho
da alma. “Animi sedem esse in oculis”
(ELIAS, 2011, p. 67).
Erasmo de Rotterdam
História da Alimentação

A postura, os gestos, o vestuário, as expres-


Atualmente, é comum vermos profissionais sões faciais – este comportamento “exter-
da área de recursos humanos dando dicas em no” de que cuida o tratado é a manifestação
programas de TV sobre como se comportar do homem interior, inteiro. Erasmo sabe
disso e, vez por outra, o declara explici-
diante de uma entrevista de emprego. Da tamente: “Embora este decoro corporal
mesma forma, sempre quando chega o final externo proceda de uma mente bem-cons-
de ano, esses mesmo especialistas vêm a pú- tituída não obstante descobrimos as vezes
que, por falta de instrução, essa graça falta
blico instruir aqueles que estão empregados
em homens excelentes e cultos”.
a se comportarem de forma satisfatória nas
festas de confraternização da empresa onde Em suma, prossegue o autor:
trabalham. A lista de dicas vai desde o pre- Não deve haver meleca nas narinas, diz
sente que deverá ser entregue ao amigo secre- ele mais adiante. O camponês enxuga o
to até a roupa que deverá ser vestida nessas nariz no boné ou no casaco e o fabricante
de salsichas no braço ou no cotovelo.
ocasiões. Essas observações também foram
Ninguém demonstra decoro usando
feitas por Rotterdam, como bem destacou a mão e, em seguida, enxugando-a na
Elias (2011, p. 67): roupa. É mais decente pegar o catarro
em um pano, preferivelmente se afas-
tando dos circunstantes. Se, quando o
indivíduo se assoa com os dois dedos,
alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la
imediatamente com o pé. O mesmo se
aplica ao escarro (ELIAS, 2011, p. 67).

Observando as citações acima, podemos pensar


que são comportamentos normais; coisas
óbvias. Entretanto, ninguém escreve nada de
forma, digamos, sem intenção. Todo mundo
tem um propósito e o de Rotterdam era moldar
um novo homem. Uma nova forma de com-
portamento. Agora, imagine aquele sujeito que
tinha por hábito escarrar e cuspir no chão, bem
como arrotar em frente aos outros. Esse sujeito,
pouco a pouco, foi sofrendo a coação e tendo de
se adaptar a uma nova realidade social.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 57

uma forma de liberdade. Para os jovens e


adolescentes, uma forma de se rebelar, mas
também servia como uma espécie de ritual de
iniciação, que demonstrava estar ele entrando
na vida adulta.
Desde os primórdios da humanidade, até
a Idade Contemporânea, não havia muita Atualmente, o cigarro é visto como um dos
preocupação com a relação entre higiene maiores males que a sociedade já criou. Em
e proliferação de doenças. Dois pontos são
decorrência disso, o cerco contra as indústrias
importantes para destacar a respeito das
práticas humanas e, principalmente, no que tabagistas vem aumentando, com a proibição
diz respeito à higiene durante o período de propagandas, com a obrigação de que, nos
medieval: maços de cigarros, venham expostas imagens
• Apesar de existirem hábitos de higiene
de doenças e problemas causados pelo cigar-
pessoal, como o costume de frequentar
os banhos públicos, preservados desde ro. A restrição ao tabaco também atingiu os
a época de Roma, só os ricos tinham as fumantes. Já faz tempo que fumar em ônibus
suas próprias latrinas e fossas.
está proibido. Também não se pode fumar em
• A maioria da população jogava seus ex-
crementos em esgotos ou em pilhas de recinto fechado, seja ele público ou privado.
detritos a céu aberto, tornando as vielas Ou seja, o que antes era sinal de status, está se
imundas, o mau cheiro insuportável e tornando cada vez mais sinônimo de transgres-
as águas de abastecimento da cidade
são. Não me assustaria se um dia isso ocorresse
poluídas.
com as bebidas. Polêmicas à parte, o fato é
Fonte: <http://www.historiadigital.org/curiosi-
dades/10-curiosidades-sobre-as-cidades-me- que, para aqueles que são fumantes há muito
dievais/>. Acesso em: 12 jan. 2015. tempo, adaptar-se a essa nova realidade não
é tarefa fácil.
Para que um novo padrão de comporta-
mento seja criado, é necessária uma rede de
coação que obrigue as demais pessoas a se com-
Não precisamos retroceder tanto no tempo ou portarem conforme manda o figurino. Nesse
viajar para outro continente para entendermos sentido, o exemplo mais pertinente e atual
essas questões. Um bom exemplo para ilustrar que podemos citar é o do cigarro, conforme
essa situação é o cigarro. O cigarro já foi sinô- já destacado. Quando educamos uma criança,
nimo de status social. Para os homens, uma precisamos mostrar a ela como deve se com-
forma de interação social. Para as mulheres, portar adequadamente. Entretanto, apenas
História da Alimentação

o fato de apresentarmos a ela o que se deve de que nosso padrão comportamental evoluiu
fazer, muitas vezes, em nada resolve. É preciso de uma forma grosseira de vida. Ou seja, nossa
coagi-las, algumas vezes castigá-las com mais forma de agir, hoje, poderá ser considerada
rigor, a fim de que se crie um comportamento imprópria em anos futuros, pois estamos evo-
adequado, pelo menos aos olhos da sociedade luindo constantemente quanto a isso. Nesse
como um todo. Mas isso serve para nos alertar sentido, podemos destacar:

O comportamento social e a expressão de emoções passaram de uma forma e padrão que não
eram um ponto de partida, que não podiam em sentido absoluto e indiferenciado ser designa-
dos de “incivil”, para o nosso, que denotamos com a palavra “civilizado”. E para compreender
este último temos que recuar no tempo até aquilo de onde emergiu. A “civilização” que estamos
acostumados a considerar como uma posse que aparentemente nos chega pronta e acabada, sem
que perguntemos como viemos a possui-la, é um processo ou parte de um processo em que nós
mesmos estamos envolvidos. Todas as características distintivas que lhe atribuímos – a existência
de maquinarias, descobertas científicas, formas de Estado, ou o que quer que seja – atestam a
existência de uma estrutura particular de relações humanas, de uma estrutura social peculiar, e
de correspondentes formas de comportamento (ELIAS, 2011, p. 70).

Em suma, prezado(a) aluno(a), precisamos com- sociedade. Muitos costumes desaparecem por
preender nosso comportamento social, bem completo, enquanto alguns são readaptados
como todas as nossas práticas domésticas, sob a novas situações. Por exemplo, a prática de
o prisma da evolução. O que o homem medieval atividade fisiológicas não deixou de existir com
fazia, em muitas situações, não era algo “incivi- o tempo, entretanto, ao invés de fazer suas ne-
lizado”, mas apenas uma prática que, naquele cessidades atrás de escadarias ou nos jardins,
contexto, foi aceita. Assim também temos que foi substituído por um modelo mais higiênico
compreender que esse costume apenas foi mar- e mais apropriado a vida moderna, que são os
ginalizado em razão da sua inaptidão ao novo banheiros. Sendo assim, vamos, agora, observar
padrão de sociedade que emergiu. de forma mais íntima como esses comporta-
A história nos mostra que rupturas e con- mentos foram sendo moldados para uma nova
tinuidades fazem parte da evolução de nossa realidade social.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 59
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 61

O Comportamento
à Mesa

Prezado(a) aluno(a), já lhe passou pela cabeça saber o motivo pelo


qual a faca fica posicionada ao lado esquerdo do prato, enquanto o
garfo fica ao lado direito? Ah, sim! É que fica mais fácil comermos
com a mão direita, é claro. Mas e o canhoto, como fazer? Uma
cena que me chamou bastante a atenção em um filme foi aquela
do "Titanic" (1998), em que Jack, interpretado por Leonardo Di
Caprio, senta-se para jantar com a família de Rose (Kate Winslet)
e se assusta com a quantidade de talheres que há para usar. Aquela
cena, de fato, representa muito bem como a etiqueta era e ainda
é bem valorizada. Basta você participar de um jantar um pouco
mais sofisticado que perceberá a quantidade de taças de formatos
e tamanhos diferentes que ali estarão ao seu alcance.
História da Alimentação

As lições de boas maneiras sempre fizeram Diante dos exemplos e comentários citados
parte da alta corte europeia na Idade Moderna. acima, o comportamento à mesa sempre foi
Basta assistir ao seriado britânico Downton muito importante. No poema de Tannhäuser,
Abbey e perceberá toda pompa que reveste citado por Norbert Elias, podemos perceber, de
momentos simples do cotidiano. O simples maneira bem clara, quais eram os comporta-
ato de beber um chá, o que para nós, reles mentos adequados nessa ocasião tão especial:
mortais, pode ser algo banal, para a nobreza 1. Considero homem bem-educado
europeia era semelhante a uma cerimônia de aquele que sempre pratica boas maneiras
casamento, ou uma reunião mais refinada. e nunca se mostra grosseiro.
2. Há muitas formas de boas maneiras
Nota-se, no seriado em destaque, que havia e elas servem a muitos bons fins. O
roupa para tomar chá, para passear no bosque, homem que as adota nunca erra.
para almoçar, jantar, ir à igreja, visitar os do- 25. Quando comes, não esqueça os
pobres. Deus te recompensará se os
entes no hospital, caçar etc. Embora o seria- tratares bondosamente.
do não tenha obrigação alguma em ser um 33. Um homem refinado não deve ar-
documento histórico, faz um retrato muito rotar na colher quando acompanhado.
É assim que se comportam pessoas na
coerente de alguns comportamentos que a corte que praticam má conduta.
sociedade de corte apresentava, mesmo em seu 37. Não é polido beber no prato, embora
momento decadente, pós 1º Guerra Mundial alguns que aprovam esse grosseiro
hábito insolentemente levantem o prato
(1914-1918). e o sorvam como se fossem loucos.
41. Os que caem sobre os pratos como
suínos quando comem, bufando repug-
nantemente e estalando os lábios...
45. Algumas pessoas mordem um pedaço
de pão e, em seguida, mergulham-no
grosseiramente no prato. Pessoas refina-
das rejeitam essas más maneiras.
49. Algumas pessoas roem o osso e reco-
locam-no na travessa. Isto é uma grave
Aprofunde seus conhecimentos e estude falta de educação.
em detalhes sobre etiqueta e montagem 53. Os que gostam de mostarda e sal
de uma mise-en-place de mesa na disci- devem ter o cuidado de evitar o sujo
plina de Etiqueta e Serviço de Sala ainda hábito de neles pôr os dedos.
neste módulo!! 57. O homem que limpa a garganta pigar-
reando quando come e o que se assoa na
toalha da mesa são ambos mal-educados,
isto vos garanto (ELIAS, 2011, p. 91-92).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 63

Observando a citação acima, percebi que o ato Certamente que você, aluno(a) de gastronomia
de minha esposa ter condenado a simples vonta- da Unicesumar, quando era criança, já dever
de que eu tive de lamber o prato com o creme de ter sido repreendido por seus pais ou qualquer
chocolate com pimenta é uma coisa bem antiga. pessoa mais íntima a não falar de boca cheia.
Na verdade, observando detalhadamente o que Beber e sujar a taça de bebida com restos de
fora destacado por Elias, deixa-nos claro que comida é, além de um sinal claro de falta de
havia um processo que visava moldar os mem- educação, um sinal de falta de higiene. Por
bros de uma determinada classe social a como isso, a preocupação em passar uma mensagem
se comportarem de maneira correta perante os que mostre quais são as práticas aceitáveis.
outros e, nesse caso, em um jantar. A lista de

A
exigências nessa ocasião é extensa. credito, prezado(a) aluno(a), que
Norbert Elias (2011) destaca que não era em os fatos narrados acima devem
apenas um material que tais exigências apareciam. ter feito parte da vida de vocês,
Muitos outros autores da época fizeram questão afinal, somos seres humanos, so-
de mencionar quase que ipsis litteris os mesmos ciáveis e o que nos dá a condição de viver em
comentários vistos nessa citação. O que fica evi- sociedade é, justamente, a nossa capacidade
dente era que havia quase que uma obsessão por de se comportar conforme determina a regra
boas maneiras. Continuemos com nossa análise: social dominante. Não adianta querermos

65. O homem que quer falar e comer ao nos comportar como bem entendemos, se a
mesmo tempo, e fala no sono, nunca sociedade como um todo não aceita tais atos
descansará tranquilamente. de nossa parte. É preciso lembrar que existem
69. Não sejas barulhento à mesa, como
axiomas que as pessoas visam proteger e, para
algumas pessoas são. Lembrai-vos, meus
amigos, que coisa alguma é tão grosseira. isso, existe o direito. Por exemplo, nascemos
81. Considero maneiras péssimas alguém nus. Não há nada mais natural do que isso.
com a boca cheia de comida e que bebe ao
Entretanto, há uma regra de convívio social
mesmo tempo, como se fosse um animal.
85. Não deves soprar sua bebida, como que não tolera que as pessoas saiam nuas em
alguns gostam de fazer. Isto é um hábito ambientes públicos, ocasionando até mesmo
grosseiro que deve ser evitado. punições mais severas, previstas em nossa
94. Antes de beber, enxuga a boca para
sociedade no Código Penal. Ou seja, este é um
não sujar a bebida. Este ato de cortesia
deve ser observado em todas as ocasiões exemplo de como uma coisa natural torna-se
(ELIAS, 2011, p. 93). crime perante a sociedade.
História da Alimentação

Thiago era um rapaz criado em um ambiente familiar muito simples. As poucas festividades
que frequentava, quando adolescente, eram churrascos com seus amigos. Ocasiões essas
sem qualquer tipo de cerimônia, pois a única preocupação era se entupir de carne e de
muita bebida. Sendo assim, agia conforme o padrão determinado pelo meio em que habitava.
Ao se formar em uma universidade, teve contato com pessoas de um comportamento
mais refinado. E, em uma das ocasiões, fora convidado para jantar na casa de um de seus
professores. Como aperitivo, foi servido a ele e a seus colegas uma boa porção de amen-
doim, castanha de caju e pistache, esse último Thiago jamais havia visto em sua frente.
Comê-lo foi uma experiência inesquecível, haja vista que os primeiros foram mastigados
com casca e tudo.
Percebendo que havia algo errado e com medo de denunciar sua ignorância, Thiago masti-
gou aquilo algumas vezes e, depois, ficou pensando no que de tão especial havia naquele
negócio tão duro. Foi aí que o filho de um dos seus amigos se aproximou da mesa e jogou
para dentro da boca algumas dessas sementes. Imediatamente o garoto fora surpreendido
pelo seu pai que disse que a maneira correta de comer tal produto era retirando a casca.
Thiago não aguentou e caiu na gargalhada, denunciando sua falta de habilidade, virando
motivo de risos para seus colegas.

Fonte: história real vivenciada pelo autor do livro, mas com nomes fictícios, para preservar o direito
à personalidade das personagens.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 65

Quem morou em cidade pequena, no inte- questão de falta de educação. Se você conhecer
rior, já dever ter percebido que, nos bares mais um canhoto que já ultrapassou a barreira dos
simples, onde frequentam pessoas das classes 60 anos de idade, pergunte a ele como era ter
menos favorecidas, ainda persiste um costume de fazer tudo com a mão esquerda quando era
que a pessoa, ao degustar uma cachaça, joga um garoto? A resposta, certamente, poderá parecer,
pouquinho no chão dizendo que é o tal “gole do a priori, engraçada, mas, na época, era uma espé-
santo”. O que antes era visto como um costume cie de violência psicológica, pois não era correto
normal, atualmente, já é repudiado até mesmo escrever ou fazer qualquer coisa utilizando a
nos estabelecimentos mais modestos. mão “errada”.
Da mesma forma, se você vai degustar uma Uma informação essencial que devemos
comida e está muito quente, qual seria a sua pri- destacar é que esses códigos de conduta são
meira atitude instintiva? Claro, jogar a comida oriundos de uma classe social dominante. Ou
fora. Somente quem teve uma experiência de seja, foi a aristocracia a responsável por estabele-
queimar a boca com comida quente sabe per- cer um conjunto de regras que os diferenciassem
feitamente o quão dolorido isso é. Contudo, a na essência e no comportamento dos demais es-
maneira correta de proceder diante desses im- tamentos. Dessa forma, vale lembrar que todas
previstos foi apresentada por Antoine Courtin, essas mudanças devem ser analisadas sob o
no século XVII, conforme podemos observar: prisma da história das Instituições e das Ideias,

Se tiver a infelicidade de queimar a pois esses eventos ocorrem de maneira espon-


boca, deve suportar isto pacientemen- tânea, dependendo da região e da evolução dos
te, se puder, sem demonstrar, mas se usos e costumes. Nesse sentido, vale destacar o
a queimadura for insuportável, como
que escreveu Tocqueville (1997, p. 63):
as vezes acontece, deve, antes que os
outros notem, pegar seu prato imediata- Tive a oportunidade de estudar as
mente com uma mão e lavá-lo à boca e, instituições políticas da Idade Média
enquanto cobre a boca com a outra mão, na França, Inglaterra e Alemanha, e à
devolver ao prato o que tem na boca e medida que prosseguia este trabalho
rapidamente passá-lo ao lacaio atrás de fiquei espantado pela prodigiosa se-
sua cadeira. A civilidade requer que você melhança de todas estas leis e tentei
seja polido, mas não espera que cometa entender como povos tão diferentes e
suicídio (ELIAS, 2011, p. 99). com poucos contatos puderam chegar
a tamanha identidade. É bem verdade
A citação acima pode ser muito engraçada, en-
que os detalhes variam sem cessar e de
tretanto, essas regras de etiqueta eram levadas uma maneira quase infinita, mas o fundo
muito a sério. Inclusive, ser canhoto era uma é o mesmo por toda parte. Quando
História da Alimentação

descobria na velha legislação germâni-


ca uma instituição política, uma regra, dinheiro compra tudo do dia pra noite, contu-
um poder, sabia de antemão que, procu- do, o padrão de comportamento social de uma
rando cuidadosamente, ia reencontrar classe mais abastada não pode ser adquirido
uma substância absolutamente igual na
França e na Inglaterra, e, realmente, isto
de um dia pro outro, pois, muitas vezes, isso
acontecia. Cada um destes três povos vem de berço. Isso também ocorreu na Europa
ajudava-me a entender melhor os dois Moderna, pois, com a ascensão da burguesia
outros.
como classe economicamente dominante, o que
diferenciava os burgueses dos nobres aristo-
Dessa forma, para compreender o estabeleci- cratas era justamente esse código de conduta.
mento dessas regras de etiqueta, precisamos
ter em mente que isso não ocorreu de maneira
uniforme. Cada região, conforme o nível de evo-
lução da própria sociedade que se desenvolvia
em fins da Idade Média e que se consolidava na
Idade Moderna, observou diferentes modos de
reagir a essas questões.
Não podemos perder a oportunidade de
fazer uma comparação com a situação do Brasil.
Quem já tiver vivido mais de 3 décadas,
A partir da estabilização econômica, ocorrida certamente, se lembra do monstro da in-
nos anos 1990, a classe média passou por uma flação galopante e de como ela arruinava
o poder de consumo dos brasileiros. A
ascensão, tornando-se grande consumidora de
partir dos anos 1990, mais precisamente
produtos. Com a China se tornando o maior com o Plano Real, em 1994, esse proble-
consumidor de nossa matéria-prima, a oferta ma foi sanado. Acesse o link e leia mais

de crédito aumentou, bem como a qualidade sobre esse assunto: <http://educacao.uol.


com.br/disciplinas/historia-brasil/plano-
de vida dos brasileiros, dessa forma, assistimos
-real-fim-da-inflacao-e-conquista-da-es-
ao surgimento de um grupo social que pode tabilidade-economica.htm>. Acesso em:
ser denominado de “novo rico”. Entretanto, 8 fev. 2015.

ter dinheiro não significa ter pedigree. Usar


roupas de grifes famosas, frequentar restau-
rantes caros, ter carros importados, enfim, o
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 67

Para que a convivência entre esses grupos pu- Certamente, eles podem ter dinheiro, mas a
desse ser mais harmônica, essas regras foram “formação” de um comportamento, como já
sendo disseminadas. Dessa forma, destacamos fora citado, não é coisa que se obtém do dia
Elias (2011, p. 106): pra noite.

Há muito material que demonstra como,


nesse período, os costumes, comporta-
mento e modas da corte espraiavam-se
ininterruptamente pelas classes médias
altas, onde eram imitados e mais ou
menos alterados de acordo com as dife-
rentes situações sociais. Perdem assim,
dessa maneira e até certo ponto, seu
caráter como meio de identificação da
classe alta. São, de certa forma, desva-
lorizados. Este fato obriga os que estão
acima a se esmerarem em refinamentos
e aprimoramento de conduta. E é desse
mecanismo o desenvolvimento de cos-
tumes de corte, sua difusão para baixo,
sua leve deformação social, sua desva-
lorização como sinais de distinção – que
o movimento constante nos padrões de
comportamento na classe alta recebe em
parte sua motivação.

Sendo assim, esse sinal de distinção entre a aris-


tocracia e os demais grupos sociais está sendo
cada vez mais vulgarizado, obrigando que os
membros da corte desenvolvam mecanismos
muito mais eficientes para que a segregação
“Costumo dizer que os aeroportos e
social se perpetue. Da mesma maneira como os aviões, além de todos os lugares do
fora visto na Europa, isso se repete por todos mundo, viraram um churrasco na laje. O
futuro do mundo é ser brega”.
os cantos do mundo. O exemplo mais evidente
são os jogadores de futebol, que, em sua maio- (Pondé)

ria, são oriundos de famílias humildes e que o


dinheiro em excesso os torna extravagantes.
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 69

O que é bom e o que é ruim?


Comentários a
respeito dos hábitos
em geral

Prezado(a) aluno(a), inúmeros são os comportamentos tidos como


grosseiros nos dias de hoje. Aqueles que não são considerados
grosseiros são tidos, no mínimo, fora de moda, ou, como ainda
insistem em dizer alguns, são comportamentos bregas. Essa visão,
porém, não é atual. A preocupação com o comportamento é bem
antiga. Desde os primórdios das civilizações, o homem estabelece
rituais, seja no cotidiano ou para ocasiões especiais, como um ca-
samento. O estudo desse tipo de instituição, envolvendo relações
domésticas e religiosas foi feito de forma magistral por Fustel de
Coulanges (1830-1889), em sua obra clássica A Cidade Antiga.
História da Alimentação

Conforme observamos na obra de Norbert Elias, Muitos dos ensinamentos que serão des-
O Processo Civilizador (2011), um dos principais tacados aqui neste livro, prezado(a) aluno(a),
estudiosos do comportamento humano, como fazem parte de livros didáticos que eram utiliza-
já citamos aqui, foi Erasmo de Rotterdam. Esse dos no período em que foram escritos. Percebe-
autor faz inúmeras observações quanto a forma se que a etiqueta social era muito importante
das pessoas se comportarem diante dos outros. para o desenvolvimento das pessoas, conforme
Um dos pontos mais interessantes que podemos podemos observar abaixo:
notar é de que forma as pessoas devem proce- A pessoa bem-educada sempre deve
der para conciliar necessidades fisiológicas e, evitar expor, sem necessidade, as partes
ao mesmo tempo, não ser mal educado. Enfim, às quais a natureza atribuiu pudor. Se
a necessidade a compele, isto deve ser
os hábitos e costumes, de modo geral, foram
feito com decência e reserva, mesmo
transformados, objetivando atender a um novo que ninguém mais esteja presente. Isto
paradigma social. Vamos analisar algumas dessas porque os anjos estão sempre presentes
e nada mais lhe agrada em um menino
observações feitas por Rotterdam, no século XVI,
do que o pudor, o companheiro e guar-
além de outros autores que foram estudados por dião da decência. Se produz vergonha
Norbert Elias e que tiveram grande influência na mostrá-los aos olhos dos demais, ainda
formatação dos usos e costumes. menos devem ser elas expostas pelo
toque (ELIAS, 2011, p. 130).

Como podemos observar na citação acima, a


decência, naquele contexto, passava também
pela ocultação das partes íntimas. Embora esse
termo íntimo seja muito relativo atualmente, não
podemos nos furtar de destacar que, até tempos
atrás, mostrar os ombros eram verdadeiros tabus
às mulheres, assim como mostrar suas pernas
acima das canelas. Foi apenas na década de 1920
que as mulheres começaram a ter mais autono-
mia com relação a vestir o que bem entendiam.

Desde os anos de 1920, as mulheres passaram a ganhar


cada vez mais espaço na sociedade.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 71

É muito mais contrário à decência e


à propriedade tocar ou ver em outra
pessoa, principalmente do sexo oposto,
aquilo que os Céus proíbem tocar ou ver
em outra pessoa, principalmente do sexo
oposto, aquilo que os Céus proíbem que
você olhe em si mesmo. Quando preci-
Fustel de Coulanges foi um dos gran-
sar urinar, deve sempre retirar-se para
des estudiosos das instituições, princi-
um local não frequentado. E é correto
palmente do ambiente doméstico. Para
(mesmo no caso de crianças) cumprir
saber mais sobre esse autor, bem como
outras funções naturais em locais onde
sua importância para o estudo da história não possam ser vistas.
e dos costumes na antiguidade clássica, É muito grosseiro soltar gases do
acesse: <http://www.labeurb.unicamp.br/ corpo quando em companhia de outras
rua/pages/home/lerPagina.rua?id=24>. pessoas, seja por cima seja por baixo,
Acesso em: 12 jan. 2015. mesmo que isto seja feito sem ruído. É
vergonhoso e indecente assim proceder,
de maneira que possa ser escutada por
outras pessoas (ELIAS, 2011, p. 133).

Caro(a) aluno(a) de gastronomia, é impor-


tante que tenhamos em mente que os valo-
Um dos pontos que mais chama a atenção ao res aqui destacados devem ser observados no
pesquisar tal tema é com relação às necessi- contexto das obras que foram analisadas pelo
dades fisiológicas. Uma criança, por exemplo, nosso autor de referência, no caso em especí-
não pode ser cobrada por fazer suas necessida- fico, Norbert Elias. Em cada época, costumes
des fisiológicas a hora que bem entender. Não e práticas foram vistos de forma diferente.
podemos, de forma alguma, imputar a pobre Tudo isso contribuiu significativamente para
criatura qualquer tipo de responsabilidade, já que, hoje, possamos ser considerados civili-
que ela passa por um processo de adaptação zados. Infelizmente, não é com qualquer tipo
social. Entretanto, essas indigências são as que de comportamento, principalmente quando
mais chamam a atenção, pois o cuidado que o nosso foco específico é a gastronomia, que
deveria ser tomado com tais necessidades era podemos nos tornar profissionais de sucesso.
de grande importância, como podemos perceber Há uma necessidade grande de nos comportar-
claramente na citação abaixo: mos como manda o padrão social em questão.
História da Alimentação

Dessa forma, é buscando as raízes no passado estamos vinculados diretamente a um padrão


que vamos compreender, de forma mais clara, de comportamento aceitável por todos.
a razão pela qual muitos comportamentos Um hábito bastante comum e que também
tidos como naturais pelo homem, no que diz foi objeto de preocupação das cortes europeias
respeito ao comportamento social, são vistos há tempos foi o de assoar-se. Limpar as narinas
como indecentes ou um ato de má educação. é algo natural, entretanto, a forma como isso
Principalmente em nossa sociedade, existe uma é feito chama a atenção no que diz respeito às
clara divisão social, sobretudo no que diz res- normas comportamentais. Vejamos.
peito ao comportamento das pessoas. Assoar o nariz no chapéu ou na roupa
Nessa sociedade hierarquicamente es- é grosseiro, e fazê-lo com o braço ou o
truturada, todos os atos praticados na cotovelo é coisa de mercador. Tampouco
presença de numerosas pessoas adqui- é muito mais educado usar a mão, se
riam valor de prestígio. Por este motivo, imediatamente limpa a meleca na
o controle das emoções, aquilo que cha- roupa. O correto é limpar as narinas
mamos “polidez”, revestia uma forma com um lenço e fazer isto enquanto
diferente da que adotou mais tarde, se vira, se pessoas mais respeitáveis
época em que as diferenças externas estiverem presentes. Se alguma coisa
em categoria haviam sido parcialmente cai no chão enquanto se assoa o nariz,
niveladas (ELIAS, 2011, p. 138). deve-se imediatamente pisá-la com o
pé (ELIAS, 2011, p. 143).

Polidez, prezado(a) aluno(a), é o que podemos Como foi possível perceber, havia um cuida-
classificar como um tipo de comportamento do especial com esse hábito que, antes desse
adequado a determinadas situações. Isso, é processo mais intenso de moldagem compor-
claro, de forma bastante genérica. Entretanto, tamental, era visto como algo normal. Um
esse comportamento, ao ser visto como o mais ponto que chama a atenção é o forte teor dis-
adequado, passa, também, a ser imitado por criminatório dessa passagem, quando se refere
outras pessoas. Assim, temos o livre arbítrio que o fato de que assoar o nariz no braço ou
para compartilharmos dos mesmos comporta- no cotovelo era coisa de mercador. Ou seja,
mentos que acreditamos estar corretos. Dessa como já citamos anteriormente, há uma clara
forma, relegamos àquele que se comporta di- distinção social baseada nos comportamentos.
ferente o defeito de mal educado. Em suma, Contudo, essas observações não param por
ao mesmo tempo em que temos liberdade, ai. Vejamos:
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 73

É muito indelicado esgaravatar as na-


rinas com os dedos e ainda mais in- podado e tornando esse hábito, pelo menos em
suportável pôr na boca o que se tirou algumas situações, reprovável.
do nariz. É vil limpar o nariz com a
mão nua ou assoar-se na manga ou Vire-se quando escarrar, para que o es-
nas roupas. É inteiramente contrário carro não caia sobre alguém. Se alguma
ao decoro assoar o nariz com os dois coisa purulenta cai no chão, deve ser
dedos e, em seguida, lançar a sujeira pisada para que não provoque repug-
no chão e enxugar os dedos na roupa. nância em alguém. Se não tens condi-
É bem sabido como é feio ver tal sujeira ções de fazer isso, pegue o esputo em um
nas roupas, que devem estar sempre pequeno pedaço de pano. É indelicado
limpas, por mais pobre que seja a engolir a saliva, como também aqueles
pessoa (ELIAS, 2011, p. 145). que vemos escarrando a cada três pa-
lavras, não por necessidade, mas por
hábito (ELIAS, 2011, p. 151).
Como pode ser percebido, a lista de advertên-
cias é grande. O autor lembra que o hábito de Para encerrar nossa discussão com relação aos
assoar o nariz da forma como bem entendesse hábitos, não podemos nos furtar em mencionar
era algo medieval. Até hoje, de forma bastan- algo com relação ao comportamento íntimo,
te preconceituosa e por ignorância, as pessoas nesse caso, aquele entre quatro paredes. Mais
tratam os costumes medievais como se fossem do que a relação sexual, o comportamento geral
algo de pura reprovação e sinal de incivilidade. dentro do quarto era de grande importância. O
Na verdade, o que havia eram costumes adapta- exemplo abaixo foi extraído por Norbert Elias
dos à realidade que eles viviam. Não podíamos de um livro inglês intitulado De Stans puer in
cobrar comportamentos diferentes naquele mensam, do século XV.
tipo de sociedade. Vale lembrar que todas essas
E se assim acontecer, à noite ou em
advertências quanto ao comportamento está qualquer tempo, de teres que te deitar
intimamente ligada ao novo tipo de sociedade com qualquer homem que seja superior
que emergia, que era uma sociedade urbana, a ti, reserva-lhe o lado da cama que mais
seja do agrado dele e deita te no outro
diferente do caráter rural do feudalismo.
lado, pois é aquele o teu quinhão. Nem
Outro ponto que, em nossa opinião, é com- vás para a cama primeiro, a menos que
plementar ao hábito de assoar o nariz é o hábito teu superior te convide, pois isso não é
de escarrar. Esse costume já foi visto como uma cortesia (ELIAS, 2011, p. 157).

formalidade. Há registros históricos de que Essa simples observação sobre o lado correto
escarrar e cuspir no chão era visto como algo de se deitar mostra como a sociedade daquela
aceitável. Entretanto, aos poucos, isso foi sendo época, em relação ao homem e à mulher, era
História da Alimentação

com outra pessoa do mesmo sexo em


hierarquizada. O homem possuía uma posição uma viagem, não é correto ficar tão perto
consideravelmente superior, tendo ele o direito dela que a perturbe ou mesmo toque, e
de ficar com o lado mais confortável da cama. ainda menos decente pôr suas pernas
entre as pernas da outra (ELIAS, 2011,
Mas as observações não param por aí. p. 158).
Você não deve, nem se despir nem ir
para a cama na presença de qualquer Como foi possível perceber, a preocupação em
outra pessoa. Acima de tudo, a menos separar os sexos já era grande. Sexos opostos
que seja casado, não deve ir para a cama
dormirem juntos só se fossem crianças. Sendo
na presença de qualquer pessoa do outro
sexo. É ainda menos permissível que as assim, é importante compreendermos que as
pessoas de sexos diferentes durmam na regras foram e ainda continuam sendo de grande
mesma cama, a menos que sejam crian-
importância para o estabelecimento da moral e
ças muito pequenas. Se for forçado por
necessidade inevitável a dividir a cama dos bons costumes em nossa sociedade.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 75

considerações finais
Prezado(a) aluno(a), é importante que você tenha percebido que a formatação
de nossa sociedade foi um processo lento e que fez parte de um contexto
social em que o modelo de sociedade feudal foi substituído gradativamente
por um modelo de sociedade urbano. Entretanto, esse processo está longe
de ter chegado ao fim.
Diariamente, somos compelidos a nos comportarmos de acordo com as
normas de convívio social. Seja por meio de autocensura ou por imposições
estabelecidas pelo poder estatal, obrigando-nos a nos comportarmos de
acordo com as normas aceitas pela sociedade de um modo geral. Por isso a
grande preocupação em manter os alunos na escola, pois é ela o principal
instrumento de que dispõe o governo.
No que diz respeito ao ofício da gastronomia, é de grande importância
a esse profissional que saiba a origem do nosso comportamento como seres
membros de uma sociedade. Já ouviu o ditado de que é o hábito que faz o
monge? Por isso, para que tenhamos êxito em nossa profissão, é de suma im-
portância que saibamos que a interpretação de usos e costumes é indispensável
para que possamos ser profissionais de sucesso. Quando se trata de culinária,
a curiosidade a respeito de temas ligados a ela pode ser o grande diferencial
entre um restaurante normal e um extraordinário. Por isso, esta unidade
teve como principal objetivo apresentar a você, aluno(a), de forma bastante
divertida, como sofremos durante séculos aquilo que podemos chamar de
ditadura dos bons costumes. Dessa forma, para finalizar nosso livro, vamos
enfocar os costumes vinculados diretamente à culinária, compreendendo
como a história dessa, enquanto arte, foi desenvolvida. E esse é o tema de
nossa próxima unidade.
História da Alimentação

atividades de estudo

1. Pesquise em sites da Internet curiosidade sobre o comportamento


humano e faça uma relação com o que fora estudado nesta unidade.

2. Assista a, pelo menos, um capítulo do seriado que será indicado ao


final desta unidade e descreva como a abordagem sobre o compor-
tamento social é feita pelo diretor.

3. Destaque um dos comportamentos mencionados na unidade e rela-


cione com a maneira como é visto hoje.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 77

material complementar
Título: O processo civilizador – Vol. 1 – Uma História dos Costumes.
Autor: Norbert Elias.
Ano da Edição: 2011.
Editora: Zahar.
Sinopse: O livro narra como o comportamento social foi alvo de estudos
em busca de moldar o novo tipo de homem que a sociedade almejava. De
forma bastante divertida, o autor elenca como os usos e costumes foram
transformados, fruto de um processo civilizador que assistimos até hoje.

Título: Downton Abbey


Ano da 1ª temporada: 2010
Sinopse: O drama se passa na fictícia Downton Abbey, mostra a decadência
de um modelo de sociedade em decadência na Inglaterra do início do século
XX e que é acelerado com o fim da 1ª Grande Guerra (1914-1918). Neste
seriado, poderemos perceber como a etiqueta é uma forma de classificar
as pessoas pela sua classe social. Além disso, mostra o coque de valores
entre uma sociedade de aparência e a realidade.
História da Alimentação

Somos todos
leitura complementar

a partir do nascimento de Cristo. Essa data


da Idade Média (25 de dezembro) e o dia de Páscoa (variável)

Hilário Franco Junior também fora estabelecidos pelos homens da


Idade Média.
Pouca gente se dá conta, mas muitos hábitos, con- (...)
ceitos e objetos tão presentes no nosso dia a dia vêm Sentindo fome, a pessoa levanta os olhos e
daquela época. consulta o relógio na parede da sala, imitando
gesto inaugurado pelos medievais. Foram eles
Pensemos num dia comum de uma pessoa que criaram, em fins do século XIII, um meca-
comum. Tudo começa com algumas invenções nismo para medir o passar do tempo, indepen-
medievais: ela põe sua roupa de baixo (que os ro- dentemente da época do ano e das condições
manos conheciam, mas não usavam), veste calças climáticas. Sendo hora do almoço, a pessoa vai
compridas (antes, gregos e romanos usavam para casa ou para o restaurante e senta-se à
túnica, peça inteiriça, longa, que cobria todo o mesa. Eis aí outra novidade medieval! Na anti-
corpo), passa um cinto fechado com fivela (antes guidade, as pessoas comiam recostadas numa
ele era amarrado). A seguir, põe uma camisa e faz espécie de sofá, apoiadas sobre o antebraço. Da
um gesto simples, automático, tocando pequenos mesma forma que os medievais, pegamos os
objetos que também relembram a Idade Média, alimentos com colher (criada aproximadamente
quando foram inventados, por volta de 1204: os em 1285) e garfo (século XI, de uso difundido
botões. Então ela põe os óculos (criados em torno na XIV). Terminada a refeição, a pessoa passa
de 1285, provavelmente na Itália) e vai verificar no banco, que, como atividade laica, nasceu
sua aparência num espelho de vidro (concepção na Idade Média. Depois, para autenticar docu-
do século XII). Por fim, antes de sair olha para mentos, dirige-se ao cartório, instituição que
fora através da janela de vidro (outra invenção desde a alta Idade Média preservara a memó-
medieval, de fins do século XIV) para ver como ria de certos atos jurídicos (“escritura”), fato
está o tempo. importante numa época em que pouca gente
Ao chegar na escola ou no trabalho, ela consulta sabia escrever.
um calendário e verifica quando será, digamos,
a Páscoa este ano: 5 de abril de 2015. Assim
fazendo, ela pratica sem perceber alguns ensi- FRANCO JUNIOR, Hilário. Somos todos da Idade
namentos medievais. Foi um monge de século Média. In: VICENTINO, Cláudio. Projeto Radix:
VI que estabeleceu o sistema de contar os anos História. São Paulo: Scipione, 2009. p. 33-34.
A Evolução da Gastronomia
KLEBER EDUARDO MEN
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

• Da necessidade fisiológica à arte: a evolução da gastronomia


• Expansão, globalização e gastronomia
• A contribuição da cozinha clássica francesa

Objetivos de Aprendizagem
• Apresentar como foi a evolução e a relação do homem com a
forma de se alimentar.
• Estudar como a globalização modificou os hábitos alimentares.
• Destacar como a evolução da sociedade também pode ser perce-
bida pela alimentação.
• Compreender a importância da cozinha francesa.
81

Introdução
Olá, alunos(as)!
O homem, conforme destacamos implícita e explicitamente ao longo deste livro, foi adqui-
rindo novos hábitos, bem como criando novos mecanismos para transformar sua realidade em
outra. Em outras palavras, o homem age em busca de alterar uma situação de desconforto por
uma de melhor comodidade. É aquilo que Ludwig von Mises (1990) denominou de ação humana.
O homem não é apenas homo sapiens, mas sim um homo agens, pois está a todo momento
agindo e interagindo com sua realidade.
Assim, também, precisamos compreender que, no que diz respeito à gastronomia, essa mu-
dança foi extraordinária, haja vista que o homem, movido por inúmeros interesses pessoais, foi
capaz de tornar uma necessidade fisiológica em um objeto de arte. Isso mesmo! O ato de comer,
como já sabemos, é um ato inerente a nossa condição de seres vivos. Para nos manter em pé,
precisamos nos alimentar. Não obstante, esse ato foi elevado a uma categoria artística e que,
atualmente, está cada dia mais em voga, considerando a quantidade de atores que apresentam
programas televisivos em que o tema central é a culinária.
Dessa forma, nesta terceira unidade do livro de História da Alimentação, vamos mostrar a
você, estimado(a) aluno(a), como se deu essa transformação. De que maneira o homem evoluiu
da condição de caçador para os píncaros da profissão de gastrônomo.
Seguindo a linha de raciocínio que fora desenvolvida desde o início deste livro, vamos
mostrar como a civilização Ocidental assistiu às transformações no campo da culinária, bem
como a estruturação da cozinha clássica francesa, que é sinônimo de arte, quando o assunto é
gastronomia.
Sendo assim, convido você para viajar no mundo da arte gastronômica mundial, observando
de que maneira o homem transformou a necessidade de comer em arte, buscando um sentido
mais abrangente nessa profissão tão desejada na atualidade.
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 83

Da Necessidade
Fisiológica à Arte:
A Evolução da
Gastronomia

A evolução do homem, enquanto ser biológico, está intimamente


ligada ao desenvolvimento dos meios disponíveis para lhe fornecer
energia. Em linhas gerais, podemos especular que, ao descobrir o
fogo, o homem pode comer carne cozida, que é muito mais fácil
de ser digerida pelo organismo do que a carne crua. Dessa forma,
o seu organismo passou a economizar energia com a digestão dos
alimentos e essa passou a ser empregada no desenvolvimento de
outras áreas do seu corpo. Em suma, a cada nova fonte de energia
disponibilizada para o homem, mais o seu corpo pode evoluir, até
atingirmos o patamar que temos hoje e que, segundo especialistas,
está longe de ter fim.
Outro salto importante na relação entre homem e alimento está na
Revolução Agrícola, também conhecida como Revolução Neolítica
(período pré-histórico), que marcou a passagem do homem da
condição de nômade a de sedentário. Isso possibilitou a ele do-
mesticar plantas e animais, criando núcleos de povoamentos e
que deram origem às primeiras civilizações urbanizadas. Essas
experiências, segundo registros arqueológicos, foram feitas na
região denominada Crescente Fértil, situada no Oriente Médio
(ARRUDA; PILETTI, 2003).
História da Alimentação

Rio Nilo, Egito, um dos mais importantes rios para a História do homem em sociedade.

E
ntretanto, vale lembrar que os hábitos alimentares não são oriundos apenas de
uma questão biológica. O que diferencia o homem dos animais é a sua capacida-
de de sociabilização, ou seja, a capacidade de viver em sociedade. O homem é,
em regra, fruto do meio onde vive, mas com capacidade suficiente para influir
nessas decisões. No que diz respeito ao gosto, ao prazer de ingerir determinado alimento,
esse vínculo com o meio fica mais evidente:

O gosto é, portanto, moldado culturalmente e socialmente controlado. O homem


nasce em estado semifetal e necessita de um longo período de aprendizado, antes
de integrar-se às estruturas sociais. Tal processo compreende a formação do gosto
e dos hábitos alimentares. Assim, os alimentos habituais tornam-se objeto de
predileção, os mais saboreados. Por isso, também apreciam-se tanto os pratos da
região em que se cresceu e, no terreno alimentar, predominam o chauvinismo e
o conservantismo. A humanidade é mais conservadora em matéria de cozinha do
que em qualquer outro campo da cultura. Assim, a exaltação de alguns pratos da
culinária materna, ou do país de origem, mesmo quando medíocres, pode durar a
vida inteira e a sua degustação gera, às vezes, associações mentais surpreendentes
(FRANCO, 2010, p. 25).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 85

A citação acima, prezado(a) aluno(a), esclarece-nos bem como o nosso corpo se


adapta a determinadas condições que são inerentes a nossa vontade. Nesse caso,
em específico, o sabor dos alimentos. O açúcar, por exemplo, é um dos produtos
mais importantes para dar gosto aos alimentos, entretanto, somente nos é apre-
sentado quando já atingimos uma certa idade. Não nascemos consumindo o açúcar
tradicional que usamos em casa. O leite materno, que é o principal alimento de
um recém-nascido, é consumido puro, uma vez que não contém o açúcar comum
que utilizamos no dia a dia. Mas e depois que a criança cresce e conhece o açúcar?
Realmente, tanto para crianças quanto para os adultos adaptarem-se a um paladar
de gosto inferior é muito mais difícil do que de um gosto melhor. Em suma, adapta-
mos sempre uma situação desconfortável por uma de melhor conforto. Retroceder
sempre é mais difícil.

Denomina-se Crescente Fértil a região que possuía formato de lua crescente, banha-
da por vários rios, dentre eles, o Tigre, Eufrates e o Nilo, que durante o período das
cheias, suas margens eram inundadas, fazendo que se depositassem vários materiais
orgânicos, o que tornava o solo bastante fértil, permitindo que a agricultura forne-
cesse subsistência à população que habitava as suas margens. Foi nessa região que,
segundo os pesquisadores, houve a organização dos primeiros centros populacionais
que se tem registro.
História da Alimentação

Chauvinismo: Patriotismo exagerado, excesso de ufanismo, demonstrado de maneira agressiva e fanática.


Ufanismo nacionalista ou euforia em excesso pelo que é nacional. Sensação de desprezo demonstrada por
tudo que é estrangeiro. Atenção obstinada e exclusivista por um tema, um princípio, um comportamento,
uma causa etc.
Conservantismo: Estado de espírito, tendência daqueles que são hostis às inovações políticas e sociais;
tradicionalismo.

Fonte: <http://www.dicio.com.br/>. Acesso em: 08 fev. 2015.

Joaquim era um rapaz que possuía alguns costumes. Vivia pesquisando na internet opções de restaurantes
para comer, quando sobrava algum dinheiro no seu orçamento. Pesquisava sobre a gastronomia italiana,
chinesa, japonesa, francesa, enfim, conhecia muita coisa na teoria, mas, na hora de colocar em prática, ele
não conseguia.
Toda vez que ia a um restaurante, pedia o mesmo prato. Ou, pior ainda, sempre que desejava conhecer um
restaurante novo, em razão de suas poucas oportunidades para sair, acabava optando pelos de costume,
só para não ter decepção com a comida.
Na verdade, desde criança, Joaquim foi criado praticando os mesmos hábitos alimentares. Filho de uma
família de italianos tradicionais, aos domingos, a macarronada era servida de forma religiosa. Não havia
domingo que ele não fosse à Missa no período da manhã e, depois, almoçava com a família a boa velha
macarronada. Isso, de certa forma, acabou por moldar o seu gosto culinário, ficando avesso a mudanças
mais radicais.
Essa situação pode parecer engraçada, mas existem muitas pessoas iguais ao Joaquim que, na dúvida,
acabam se comportando da mesma maneira, evitando que tenham surpresas desagradáveis.

Fonte: Caso fictício criado pelo autor.


GASTRONOMIA • UNICESUMAR 87

Já deixamos claro, na introdução desta unida- É de grande importância que o aluno perceba
de, que o homem é um agente de sua própria que a seletividade é algo natural ao ser humano.
história, de sua própria vida. Dessa forma, ele Não podemos tentar impor a ele um padrão
se adapta com uma facilidade muito maior do único de alimentação. Experiências como essas
que outros mamíferos. Basta observar o seu foram feitas em países comunistas e o resultado
comportamento diante da rejeição a alguns ali- foi miséria e catástrofe, com a morte de milhares
mentos, bem como a aceitação deles em casos de pessoas em decorrência da fome.
de extrema necessidade. Dando continuidade a nossa discussão,

A rejeição de determinados alimentos se caro(a) aluno(a), partindo da condição do


manifesta de várias maneiras. Em casos homem pré-histórico e das primeiras experi-
extremos, toma a forma de repugnância. ências humanas com os alimentos, vamos tratar
A rejeição é, usualmente, mais do que
um pouco do ato de comer na antiguidade clás-
reação individual ou fruto de experiên-
cias traumáticas. Assim como o gosto sica, em especial, Grécia e Roma.
por certos alimentos, ela é, via de regra, Os documentos mais antigos para o estudo
transmitida culturalmente (FRANCO,
dos primórdios da História da Grécia, a Ilíada
2010, p. 27).
e a Odisseia, do poeta Homero, nos traz uma
Conforme foi possível perceber, o homem tem referência com relação ao preparo dos alimentos
o livre arbítrio para gostar ou não de algo. Essa e de como esse era importante para fomentar
é a essência do ser humano e da natureza como as atividades sociais.
um todo. A diversidade é uma importante fer-
Inicialmente, na Grécia não havia cozi-
ramenta para que o equilíbrio seja mantido, nheiro. Escravas moíam os grãos e pre-
ou imagine se todas das pessoas do mundo paravam a comida. A leitura da Ilíada
desejassem comer a mesma coisa no mesmo e da Odisseia revela que no tempo de
Homero – século IX a.C. – os próprios
dia e na mesma hora? Não haveria capacidade
anfitriões, por mais ricos que fossem,
produtiva para saciar tal necessidade. Em suma, preparavam as refeições com a ajuda de
prossegue o autor: amigos, quando recebiam convidados
especiais. Só depois apareceu o mageiros,
Em situações de escassez, a seletividade
isto é, o padeiro. Com o tempo, o ma-
decresce e alimentos normalmente re-
jeitados ou considerados repulsivos são geiros, além de fornear, passou também
comidos. Quando há penúria e fome, a cozinhar, evoluindo para a posição de
provam-se coisas novas. Em casos ex- archimageiros ou chefe de cozinha, com
tremos, até a antropofagia pode ser pra- uma equipe sob seu comando (FRANCO,
ticada (FRANCO, 2010, p. 27). 2010, p. 39).
História da Alimentação

A
ssistimos, então, na Grécia, a evo-
lução daquele que hoje é visto com
uma das peças fundamentais da
vida em sociedade, o cozinheiro.
Esse sujeito, que passou gradativamente a co-
mandar uma equipe para cozinhar as refeições,
aos poucos, foi ganhando notoriedade. Vale lem-
brar que o trabalho braçal na Grécia Antiga era
realizado pelos escravos e esse ponto crucial não
poderia passar em branco, conforme destacou
Franco (2010, p. 39):

No século IV a.C., conforme se depre-


ende de algumas peças de teatro, os
cozinheiros em Atenas eram escravos.
Simultaneamente ao crescimento do
apreço pela boa mesa, os cozinheiros
ganharam importância e ascendência
sobre todos os escravos da casa. Após
anos de dedicação e de experiência,
podiam até chegar à posição de mes-
tres na sua arte.

Assim como na Grécia, Roma é outra civili-


zação que nos chama muito a atenção, já que
essas duas consistem nas principais bases para
a formação da civilização Ocidental. Devido a
sua expansão e conquista a partir do período
republicano (séc. VI a.C.), Roma sofreu influên-
cia de várias regiões sob seu domínio, inclusive
da própria Grécia, conquistada no século II a.C.

Homero, um dos primeiros a abordar a importância


dos cozinheiros na história Grega.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 89

A relação entre trabalho braçal e escravidão, em bem semelhantes a que temos hoje. Em razão
Roma, era semelhante à da Grécia, sendo que a dos romanos não comerem sentados à mesa
profissão de cozinheiro era atividade realizada (conforme texto complementar da unidade an-
pelos escravos comuns, entretanto, com a as- terior), a refeição deles também foi adaptada a
censão dos banquetes como elemento do status essa situação.
quo romano, esses cozinheiros começaram a A posição reclinada ao comer condiciona-
ganhar importância cada vez maior, sendo que va a predileção por alimentos moídos ou
essa profissão passou a ser vista como um meio de pequenos pedaços. Criou-se, assim,
uma grande variedade de pratos à base
de ascender socialmente (FRANCO, 2010).
de carne, frango, peixe, camarão, lagos-
Acredito que você, caro(a) aluno(a) da ta, moídos e servidos sob a forma de
Unicesumar, já deve ter visto, ao menos, um bolinhos, croquetes e quenelles. Essas
preparações, semelhantes a algumas ser-
filme que retrata o período de esplendor do
vidas atualmente em coquetéis, eram
Império Romano. Também deve ter percebido chamadas esicia (FRANCO, 2010, p. 46).
que os banquetes eram um elemento de osten-
tação das camadas mais privilegiadas, que, no Dessa forma, é importante perceber que cada
caso, eram os patrícios. Ao aprofundar o estudo, forma de se comportar perante a mesa deter-
percebemos que esses banquetes eram muito minou que as refeições fossem adaptadas. Isso
semelhantes com os jantares mais formais que é um claro sinal da evolução da gastronomia.
vemos hoje. Observe a citação abaixo: Pratos mais elaborados e de uma complexidade

Um banquete se compunha de três maior para se degustar foram evoluindo confor-


etapas. Primeiramente, era servido o me os próprios usos e costumes.
gustativo, composto de saladas e peque-
nos pratos equivalentes aos anti-pasti
de hoje. Em seguida, servia-se mensae
primae, etapa principal composta dos
pratos mais consistentes. Por último,
servia-se mensae secundae: doces, bolos,
frutas secas e vinho misturado com água
(FRANCO, 2010, p. 46).
“Ser cozinheiro era uma forma de ascender
O ato de dividir a refeição (entrada, prato prin- socialmente”
cipal e sobremesa), como vemos hoje, tem sua
origem, como percebemos acima, na Roma
antiga. Inclusive as demais formalidades são
História da Alimentação

entre o Ocidente e o Oriente. Como consequ-


ência disso, produtos de vários lugares eram
disponibilizados à população local. Vejamos
alguns dos costumes alimentares dessa
civilização:
“Quenelle: formato dado a pastas, mou-
sselines ou recheios com o uso de duas Os bizantinos não tomavam cerveja,
colheres úmidas. No processo, o recheio é considerada bebida bárbara. O vinho era
“passado” de uma colher a outra, resultan- sempre diluído com água. A adição de
do assim num formato elíptico. O tamanho resina de pinheiro ao vinho, como conser-
final da quenelle depende do tamanho da vante, conferia-lhe sabor característico e é
colher utilizada” exemplo de como uma técnica de conser-
vação pode criar sabores que se tornam
KOVESI, Betty et al. 400 Gramas Técnicas
apreciados (FRANCO, 2010, p. 61).
de Cozinha. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2007.

Um ponto que nos chama a atenção na citação


acima é com relação à diluição do vinho. Isso
não era sinal de mesquinharia, mas sim de
prudência, haja vista que o teor alcoólico dessa
Avançando mais no tempo, assistimos também bebida era muito alto, aproximadamente 15%.
à evolução da gastronomia na Idade Média (séc. A sua diluição evitava que os convidados dos
V a XV). Um dos pontos que merece destaque é banquetes se embriagassem muito rápido e
a importância de Bizâncio, conhecida também proporcionassem verdadeiros vexames. Além
como Constantinopla, capital do Império da bebida, vejamos, também, a relação com
Romano Oriental, onde hoje se situa a capital os temperos:
turca, Istambul.
Cebola, alho e alho-poró temperavam os
Bizâncio foi a responsável por preservar alimentos, segundo a tradição romana.
a cultura romana após a Queda do Império As carnes eram assadas no espeto e os
Ocidental, no ano de 476. Em razão de sua peixes, fritos. Comia-se carne de porco e
de cordeiro. A carne bovina só era consu-
localidade estratégica, não deixou, também, mida muito excepcionalmente. Os bois
de receber influência de vários povos, já que eram poupados para os labores agrícolas
essa cidade consistia no principal elo comercial (FRANCO, 2010, p. 62).
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 91

O desenvolvimento da jardinagem, fa-


vorecido pela vida monástica, trouxe
legumes e frutas de volta às mesas.
É importante frisar para o aluno que um dos Possuidores de ampla informação sobre
a fabricação de laticínios, os monges ti-
fatos que tornaram a carne de boi menos veram ainda uma função importante no
consumida era a conservação dela. Para matar refinamento de vários queijos rústicos
um animal desse porte, era necessário que ele tradicionais. Alguns deles conservam
nomes que identificam as abadias onde
fosse consumido por muitas pessoas. Mesmo
se originaram: Cluny, Maroilles, Cîteaux,
assim, não impedia que houvesse desperdício. Igny (FRANCO, 2010, p. 65).
Isso influenciou na opção por animais de
pequeno porte, que eram consumidos e Posto isso, prezado(a) aluno(a), vamos prosse-
conservados mais facilmente. guir nossa discussão a respeito das influências
Já na Idade Média Ocidental, temos a que a cozinha sofreu ao longo dos anos. Vamos
importância dos mosteiros. Uma das gran- observar como a configuração da gastronomia
des contribuições dos monges foi o cultivo foi influenciada por vários fatores que ocor-
de legumes e frutas, além da produção de reram na Era Moderna e culminaram como o
laticínios. modelo de gastronomia que temos hoje.
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 93

Expansão,
Globalização e
Gastronomia

Não é novidade alguma que a Era Moderna representa para a civi-


lização Ocidental o momento em que os valores dessa civilização
começaram a ser espalhados pelo mundo. Ao mesmo tempo em
que ocorre essa ocidentalização, temos, também, a assimilação de
outras culturas por parte dos europeus. Em resumo, houve uma
expansão das instituições Ocidentais, principalmente no que diz
respeito a valores, mas, ao mesmo tempo, a assistimos uma apro-
priação de elementos de outras culturas. Podemos perceber isso
com maior facilidade na culinária, que é uma das áreas em que
mais observamos a interação cultural.
História da Alimentação

O século XV foi o momento em que os países Os ibéricos, e em especial os portugueses, foram


europeus buscavam, de alguma forma, livrarem- uma espécie de polinizadores culturais, se é que
-se do monopólio estabelecido pelas cidades de me permitem a analogia. Eles internalizavam
Gênova e Veneza no comércio de especiarias. uma cultura alimentar e a difundiam por onde
O valor dessas mercadorias ficaria ainda mais passavam. Foi assim que ocorreu com a inte-
caro com a tomada de Constantinopla pelos ração entre portugueses, espanhóis e nativos
Turcos Otomanos, em 1453. Por exemplo, 100 na América.
quilos de Pimenta do Reino eram vendidos em Quando os conquistadores chegaram
Veneza ao preço de 80 ducados, enquanto que, em território americano, certas culturas
em Calicute, na Índia, a mesma quantidade saia indígenas utilizavam técnicas agrícolas
muito mais avançadas que as da Europa.
por apenas 3 ducados.
Por conseguinte, os ameríndios também
Conforme já citamos, Portugal foi o país se alimentavam de maneira muito mais
pioneiro nesse processo e, no final do século variada que a maioria dos europeus
(FRANCO, 2010, p. 117).
XV, Vasco da Gama atinge a Índia, em uma
travessia que muitos acreditavam que jamais
poderia ser feita. Além do fator comercial e Dentre essas variedades, prossegue o autor:
econômico, essa nova rota possibilitou uma Além de haverem aperfeiçoado o cultivo
maior quantidade de especiarias disponível do milho, os maias, os astecas e os incas
aos europeus, incrementando muito mais o cultivavam a batata, várias espécies de
feijão, abóboras e muitos outros pro-
seu cardápio.
dutos desconhecidos na Europa, tais
Foram os portugueses os principais respon- como: tomate, amendoim, pimentão,
sáveis por levar até os asiáticos alguns produ- cacau, baunilha, goiaba, abacate e aba-
caxi (FRANCO, 2010, p. 117).
tos alimentares que só eram conhecidos pelos
ocidentais.
Todos esses produtos acima representaram
Em seus entrepostos introduziram ali- uma grande evolução no paladar europeu. O
mentos, como o milho e a batata-doce,
que tiveram grande aceitação em muitas
uso desses produtos pelos nativos impressio-
regiões asiáticas. Outros produtos leva- nou muito os que tiverem a chance de visitar
dos para a Ásia foram tomate, mandioca, o território americano nos séculos logo após a
agrião, alface, repolho, quiabo, pimen-
conquista.
tão, abacaxi, goiaba, mamão e tabaco. A
este último, atribuíam-se propriedade Um dos alimentos mais comuns atualmente
medicinais (FRANCO, 2010, p. 115). é a batata, um produto originário também da
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 95

América. Fonte de carboidrato, esse tubérculo é O milho também foi um dos produtos
de fácil adaptação e, depois de ter conquistado que a globalização provocada pelas Grandes
espaço por praticamente toda América pré-co- Navegações europeias difundiu pelo mundo.
lombiana, ganhou apreço na Europa e passou a Cultivado principalmente pelos nativos ame-
integrar a alimentação de vários países. ricanos da região da América Central, o milho

Fácil de cultivar, adaptável a quase todo logo se espalhou pelo mundo, alterando signifi-
tipo de solo e clima, tolerando longa cativamente a dieta das populações, sobretudo,
armazenagem, a batata seria a melhor no norte da Itália, onde a polenta tornou-se um
garantia contra a fome que, nos séculos
dos pratos mais admirados pelos habitantes do
anteriores, havia dizimado populações
na Europa. Outras virtudes da batata país da bota (FRANCO, 2010).
são sua excepcional produtividade e Na modesta opinião desse autor, uma das
rápida maturação. Considera-se que a
maiores delícias já produzidas pelo homem
Revolução Industrial só foi possível e que
a Europa só escapou das fomes cíclicas também se originou do descobrimento da
graças à propagação das plantações de América. Esse produto é o chocolate.
batata (FRANCO, 2010, p. 120).
Os incas, a milhares de quilômetros de
distância dos astecas, produziam cacau
A batata se popularizou tanto que se tornou em quantidade suficiente para uso de
toda a população. Entre os maias e as-
uma das principais guarnições utilizadas em
tecas, porém, só a nobreza podia dar-se
vários pratos. O tradicional bife de chorizzo, os ao luxo do uso habitual do chocolate.
hambúrgueres, além de outros pratos, parecem Houve tempo em que as sementes do
cacau, símbolo de riqueza, eram usadas
ser incompletos sem as deliciosas batatas-fritas.
como dinheiro (FRANCO, 2010, p. 123).
A batata pode ser comida cozida, assada, frita,
pura, acompanhada, em conserva, recheada. E, Não é difícil percebermos que o chocolate caiu
se fôssemos destacar os pratos em que podem rapidamente no gosto dos europeus e demais
ser utilizadas as batatas, ficaríamos como o per- regiões. O chocolate é um produto que pode ser
sonagem Buba, do filme Forest Gump (1994), consumido em qualquer época e em qualquer
naquela cena hilária em que descreve os pratos situação. São vários os motivos que levaram
em que são utilizados camarões. Enfim, a batata os europeus a se apaixonarem pelo chocolate,
possui, para muitos, aquilo que a mandioca re- principalmente seu efeito estimulante, além do
presenta para os brasileiros. sabor, é claro.
História da Alimentação

Durante a Segunda Guerra Mundial, os inimigos não contavam com uma arma secreta,
infalível e “irresistível” dos Aliados: o chocolate. Quer dizer, nem tão irresistível assim.
Para que os soldados não atacassem todo o estoque de barras de emergência, uma
companhia norte-americana fabricante de chocolate foi incumbida de desenvolver
uma ração rica em nutrientes que alimentasse os combatentes em situação de
urgência, que não derretesse com o calor, mas que fosse pouco atrativa ao paladar.
Baseada numa fórmula inventada pelo capitão Paul P. Logan, uma mistura de cho-
colate, açúcar, leite em pó desnatado, manteiga de cacau, vanilina, aveia e vitamina
B1, a fábrica do industrial Milton Hershey produziu com sucesso a “Ração D”, um
tablete resistente, calórico, nutritivo e tão saboroso “quanto uma batata cozida”.
Ao longo da guerra, produziu-se na América meio milhão de tabletes da ração-D por
dia. A invenção tornou-se uma arma crucial nos campos de batalha. Cada tablete
fornecia 600 calorias, energia suficiente para manter em alerta um soldado em
condições extremas.
Ainda hoje produz-se a ração-D para o exército, marinha e aeronáutica norte-ameri-
canos. Inclusive as tais barras de chocolate, numa versão um pouco mais apetitosa,
alimentam os astronautas da Nasa em missões espaciais.

Fonte: COSTA, Alexandre Tadeu. O Cacau é Show. São Paulo: IPSIS, 2008. p. 189.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 97

C
Várias sobremesas ibéricas seriam divul-
om a descoberta da América, o açúcar, gadas nas colônias americanas graças,
até então um produto muito raro na em grande parte, a religiosas para quem
Europa, passou a ser produzido em a venda de doces se tornaria uma fonte
de renda comunitária. Muitas receitas
larga escala. O Brasil, durante os sé- tomariam cores novas com a assimilação
culos XVI e XVII, era um dos grandes produtores de ingredientes locais como, por exem-
mundial de açúcar. Esse produto passou a se plo, o coco (FRANCO, 2010, p. 125-126).

tornar popular em razão de inúmeros fatores,


o principal deles é a quantidade de terras dis- É importante destacar, ainda, que, com a inten-
ponibilizadas para sua produção. Com isso, o sificação das Grandes Navegações, o Oriente
mundo passou a se valer desse produto para também exerceu o seu papel de destaque no
adoçar suas receitas. campo da culinária. Na China, em especial, há
A grande influência da produção em larga uma cultura culinária milenar, em que seus
escala do açúcar na cultura alimentar europeia usos e costumes gastronômicos foram regis-
foi possibilitar o hábito frequente de consumir trados em livros de receitas. Segundo Franco
sobremesas. Outros pontos também são de (2010), a China foi o único país do mundo em
grande importância para esse produto. que pensadores de diversas ordens dedicaram
História da Alimentação

seu tempo a confeccionar tratados sobre a que Portugal se lançou ao mar no século XV, em
alimentação. busca das tão cobiçadas especiarias. Produtos
Sendo assim, percebemos claramente que a esses que abrilhantavam e davam um sabor mais
composição de sua culinária tem um fundo filo- do que especial aos alimentos. Esse país também
sófico, pois a combinação dos alimentos obedece não ficou à margem da influência da China, no
a uma lógica que muito se assemelha às con- que diz respeito às suas práticas alimentares,
cepções universais, aos temas ligados a própria embora tenha mantido uma cultura alimentar
existência terrena, como podemos observar: bastante autônoma.

A ideia de contraste (doce-salgado, frio- As regiões banhadas pelos oceanos Índico e


-quente, macio-crocante) é permanente. Pacífico sofreram grande influência da culinária
Contraste, ou equilíbrio dinâmico, é um chinesa, as quais podemos destacar:
conceito ao qual os chineses se referem
com frequência. Representa um reflexo Da influência chinesa, vem o respeito
da concepção dualista do universo, que pela matéria-prima, e da afinidade com
tanto marcou algumas culturas orien- a cozinha indiana, a maneira de combinar
tais. Em todas as coisas há sempre duas sabores e aromas, por meio da utilização
partes opostas trabalhando em sentido de uma grande variedade de ingredientes.
contrário e ao mesmo tempo buscando No Sudeste Asiático, mistura-se carne,
coexistência harmoniosa (FRANCO, peixe e crustáceos como só os romanos
2010, p. 130). o fizeram (FRANCO, 2010, p. 133).

Gostaria que você, prezado(a) aluno(a), prestas- Enfim, poderíamos destacar inúmeras outras
se bastante atenção nessa passagem acima, pois influências que a interação Ocidente e Oriente
mostra claramente o conceito de refeição oriun- proporcionou. Árabes, Nórdicos, Japoneses,
do dos chineses, em que não se come apenas enfim, a lista é grande e sortida. Entretanto,
pelo prazer, mas também se utiliza do alimento para o nosso propósito neste livro, acreditamos
como uma forma de maturação do espírito, ou que foi possível mostrar a você, estimado(a) alu-
seja, de refletir sobre as várias faces do universo. no(a), boa parte da cultura e da história geral que
Em suma, comer para os chineses possui uma influenciaram, de forma direta e indireta, a arte
característica mística. da culinária. Não obstante, um livro sobre tal as-
A Índia, como já se destacou inúmeras sunto não estaria completo sem mencionarmos a
vezes, possui uma ligação muito estreita com importância da culinária francesa, pois foi nesse
a história do mundo em geral, uma vez que foi país que essa profissão ganhou glamour. Sendo
em busca de uma rota alternativa para esse país assim, convido você para nosso próximo tópico.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 99
História da Alimentação
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 101

A Contribuição da
Cozinha Clássica
Francesa

A França foi o primeiro país onde a sociedade de corte se ma-


terializou de forma mais intensa. Foi também nesse país que o
absolutismo atingiu seu ápice, bem como toda pompa que envolve
a nobreza real. O chamado Antigo Regime, modelo de sociedade
baseado em uma rígida divisão social e de um controle excessivo
do Estado sobre todas as funções da vida civil, também existiu na
França de uma forma bastante específica.
Em linhas gerais, podemos definir o Antigo Regime como uma
forma de governo em que a autoridade máxima era o rei e este
estava acima de tudo ou de todos. Não havia qualquer tipo de lei
que pudesse limitar os poderes do monarca, que era soberano no
sentido literal da palavra. Inclusive, foi um rei francês, Luís XIV,
o autor da célebre frase que se tornaria a síntese do absolutismo:
“O Estado sou eu”.
História da Alimentação

O primeiro autor a reivindicar uma


Em uma sociedade em que a nobreza, verdadeira ruptura com as práticas do
o clero e a realeza se divertiam às custas do passado e a qualificar sua culinária como
Terceiro Estado, não poderia faltar cerimoniais moderna foi Vincent La Chapelle. Tendo
trabalhado em Londres, esse autor co-
ou diversos protocolos que tinham por objetivo meçou a publicar suas obras em inglês,
glamourizar essas relações. Em consequência em três volumes, em 1733; e depois, em
disso e de toda evolução histórica ocorrida, 1735, em quatro volumes, em francês.
Com o título de Le Cuisinier moderne,
a França se tornou o berço do que podemos
ela foi considerada a antecessora de uma
chamar de gastronomia moderna e podemos série de livros de cozinha; suas ilustra-
utilizar como marco os eventos ocorridos a ções eram de tal forma sofisticadas que
partir do século XVIII. seria possível considerar esses volumes
livros de arte (HYMAN, 1998, p. 634).
Generaliza-se na França o interesse pela
boa mesa. Para os membros da nobreza
e do novo mundo das finanças ter um Esses livros não trazem apenas receitas, mas são
cozinheiro significava poder oferecer a
verdadeiros tratados de como organizar uma
seus convivas pratos que eles nunca ti-
vessem provado. Nota-se, desde então, a refeição de qualidade em seu sentido lato. A
distinção entre a cozinha de cozinheira, preocupação com os utensílios, com a forma
feita de conhecimentos práticos e de tra-
de preparo, as vestimentas, enfim. Eram previs-
dição familiar, e a cozinha de cozinheiro,
com ênfase na invenção e na reflexão tos nesses manuais uma série de informações
(FRANCO, 2010, p. 204). quanto à forma e o conteúdo das refeições.
A Revolução Francesa não apenas deu aos
Percebe-se, prezado(a) aluno(a), que a distin- franceses e ao resto do mundo um modelo de
ção entre a cozinha tradicional e a cozinha arte governo em que a igualdade, a liberdade e a fra-
originou-se na França, país símbolo do Antigo ternidade fossem possíveis. Ela também deixou
Regime. Foi nesse período que os livros sobre como herança, do ponto de vista gastronômico,
culinária ganharam notoriedade. Vários volu- um maior acesso às pessoas que tivessem con-
mes foram publicados a partir do século XVIII. dições de frequentar os restaurantes. Antes da
Esses livros foram, também, responsáveis revolução, havia espaços destinados apenas à
por reivindicar uma ruptura com as tradições nobreza, ficando os demais estamentos apar-
culinárias do passado. Isso representou uma tados desses locais. Dessa forma, os chefs que
grande evolução no que diz respeito aos usos e antes eram empregados apenas pelas famílias
costumes, conforme podemos observar: nobres, abastadas, agora, também exerceriam
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 103

sua profissão nos demais estabelecimentos que


iam aos poucos surgindo. A respeito do termo
“restaurant”, Franco (2010, p. 209) assinala:

O termo restaurant consta ter sido


criado em 1765 por Boulanger, proprie-
tário de um estaminet da rua Poulies,
atual rua do Louvre, em Paris. Boulanger,
também conhecido como Champ d’Oi-
seaux, servia sopas quentes anunciadas
como restaurants, ou seja, restaurativos.
Acrescentava com humor, ao lado do
anúncio de seus bouillons restaurants:
“Venite ad me amnes qui stomacho labo-
ratis et ego restaurabo vos” (Vinde a mim
os que têm estômago e restaurá-los-ei)
(Tradução nossa).

Pode até parecer engraçado, mas a palavra res-


taurante, como você bem percebeu acima, vem
de restaurar. Ou seja, foram as sopas revitaliza-
doras servidas nesse estabelecimento que deram
origem a essa palavra, que hoje é o principal
sinônimo de alimentação.
Uma das figuras mais importantes para a culi-
nária francesa foi Marc-Antoine Carême. Foi esse
mestre da gastronomia o responsável por simplifi-
car essa profissão. Ele era um dos responsáveis por
decidir, juntamente com Talleyrand (Ministros Na disciplina “Cozinha Clássica”, estudare-
dos Negócios Estrangeiros de Napoleão), os pratos mos ainda mais sobre a história e evolução
da Cozinha Francesa e sua importância
que seriam servidos nos jantares do Imperador
para o mundo gastronômico!
Francês, visto que Napoleão sabia perfeitamente
a importância que eventos regados a uma boa
comida tinham para a diplomacia.
História da Alimentação

Marc-Antoine Carême nasceu em 1754. Filho de pais paupérrimos, foi por eles
abandonado. Começou sua carreira com o pâtissier Bailly, experiência que marcou
profundamente seu gosto e sua vida profissional. Passou muito tempo estudando
e copiando gravuras de arquitetura clássica a fim de reproduzi-las na cozinha por
meio de suas elaboradas pièces montées.
Carême gozou sempre de enorme prestígio. Serviu ao czar Alexandre I, o barão de
Rothschild, Jorge IV da Inglaterra e Luís XVIII. Recebia altos salários e era exigente
a respeito das condições em que teria de exercer seu talento. Só trabalhava em
casas particulares. Permaneceu muito tempo no castelo do Barão Rothschild e lá
passou os últimos anos de sua vida ativa.
A cozinha de Marc-Antoine Carême, apesar de seus aspectos complicados, repre-
senta contribuição no sentido da simplificação. Ele propõe a busca de combinações
ideais de sabores, em vez de sua mera justaposição, característica da cozinha da
Antiguidade e da Idade Média. Divulgou o conceito de que sabores e odores não
podem ser julgados isoladamente, mas, sim por seu inter-relacionamento, e fez um
trabalho de codificação sem precedentes na história da grande cuisine.
Carême substituiu os complicados coulis do século XVIII por três molhos básicos:
espagnole, velouté e bechamel. Além dos molhos à base de ovo (mayonnaise,
hollandaise e béasnaise), a partir dos três molhos básicos preparava dezenas de
molhos compostos.

Fonte: FRANCO, Ariovaldo. De caçador a Gourmet. São Paulo: SENAC, 2010, p. 213-214.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 105

Dessa forma, podemos destacar a você, aluno(a)


da Unicesumar, que a grande contribuição da
França à gastronomia foi em razão não apenas
da escolha dos produtos, mas também devido à
toda formalidade que passou a envolver a arte
culinária. Segundo Flandrin (1998, p. 641):

Na França, a modernidade do gosto ma-


nifestou-se tanto no plano da escolha
dos alimentos como no plano da prepa-
ração dos mesmos. Com toda a certeza,
seria possível não se dar conta disso,
uma vez que a alimentação dominante
nas mesas abastadas é sempre à base de
carne, enquanto, nas mesas populares,
são os alimentos vegetais – a começar
pelo pão e pelas sopas. Mas por trás
dessa aparente estabilidade produzi-
ram-se transformações importantes e
complexas.

É impossível descrever em poucas linhas a


importância que a cozinha francesa teve para
toda história da gastronomia. Mais difícil ainda
é destacar quais os países que sofreram essa
influência, haja vista que a interação entre as
nações é algo muito antigo, mais antigo até do
que o próprio conceito de nação. Sendo assim,
espero que você, estimado(a) aluno(a), tenha
compreendido, em linhas gerais, os principais
fatores culturais e históricos que permearam a
evolução da gastronomia francesa.
História da Alimentação

considerações finais

Estimado(a) aluno(a) de Gastronomia da Unicesumar, espero que, ao final


desta unidade, você tenha compreendido os elementos essenciais para que
possa se aprofundar nos temas aqui destacados. É sempre importante ressaltar
que nenhum livro deve ter como finalidade dar receitas prontas de determina-
dos temas, mas sim incentivar a reflexão sobre os temas abordados. Por isso,
espero que tudo o que por nós foi discutido desperte em você a vontade de ir
além, buscando verificar as informações aqui presentes, bem como aumentar
ainda mais o seu conhecimento.
Acredito que, no que diz respeito à história da gastronomia, foi possível
compreender como a evolução humana está diretamente ligada à história de
sua própria alimentação. Dessa forma, a necessidade fisiológica que a nós é
inerente foi se tornando uma necessidade de expressão artística. Por isso, a im-
portância de se compreender a história e a evolução do homem em sociedade.
Também destacamos a importância do aluno ter compreendido de que
maneira a expansão comercial ocasionada pelas Grandes Navegações da Idade
Moderna transformou radicalmente os gostos, usos e costumes em uma escala
mundial, já que observamos que, ao mesmo tempo em que temos uma ex-
pansão do modelo de civilização europeu, eles também souberam internalizar
aquilo que era importante e válido de outras culturas.
Assim, para encerrar, é importante que você, estimado(a) aluno(a), com-
preenda, em linhas gerais, de que forma a França teve sua grande parcela
de contribuição para o estabelecimento da cozinha artística, bem como que
esse modelo culinário foi fruto de uma sociedade enraizada nos estamentos
do Antigo Regime.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 107

atividades de estudo
1. Descreva brevemente de que forma a evolução do homem, enquanto membro
de uma civilização, está ligada à história da gastronomia.

2. Com base no contexto das transformações sociais e políticas na passagem da


Idade Média à Idade Moderna, explique como a globalização influenciou a cul-
tura alimentar mundial.

3. Explique qual foi a importância de Marc-Antoine Carême à história da


gastronomia.
História da Alimentação

material complementar

Com relação à importância do cozimento dos alimentos à evolução humana, leia essa
importante matéria no link: <http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/um_cere-
bro_maior_gracas_ao_cozimento_dos_alimentos.html>. Acesso em: 08 fev. 2015.

De Caçador a Gourmet: uma história da gastronomia.


Ariovaldo Franco

Editora: SENAC

Sinopse: com uma abordagem bem simples e, ao mesmo tempo,


profunda, o autor faz um panorama geral da história do homem e
da importância da alimentação em sua vida. Dessa forma, ele cria
uma ligação entre a evolução do homem enquanto membro de uma
civilização, enfatizando de que forma esse soube transformar os
alimentos a ponto de transformar algo ligado a sobrevivência em
uma espécie de arte.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 109

leitura complementar
A Modernidade a Domicílio:
Microondas e Congelado

No decorrer dos últimos 10 anos o forno de micro-ondas e os congeladores


impuseram-se de forma maciça. Assim, no que diz respeito à França, uma
pesquisa permanente do CREDOC (Centre de Recherce et d’Études sur les
Conditions de Vie) mostrava que, ne primavera de 1989, 19,9% das pessoas
interrogadas declaravam dispor de um desses aparelhos; na primavera de
1990, já eram 24,9%. Segundo uma estimativa do final de 1990, cerca de um
terço das famílias francesas possuíam tal equipamento. Em 1995, a mesma
fonte indicava-nos que a proporção era de 50,31%
Ainda na França, a expansão do micro-ondas entre as famílias foi acom-
panhada pela adoção cada vez mais nítida e sem reticências do congelado,
que ,daí em diante, seria utilizado por 95% das famílias, pelo menos uma
vez por ano, segundo as pesquisas do setor industrial. No início dos aos
1970, os críticos gastronômicos Gault e Millau revistavam as latas de lixo
dos restaurantes, denunciando aqueles cujo lixo continha embalagens de
congelados. Depois de ter encarnado o derradeiro artifício, a abominação da
desolação industrial, o congelado tornou-se cada vez mais, na percepção dos
consumidores franceses, uma forma superlativa do fresco, em suma, mais
fresco do que o fresco. Outras tecnologias deram origem a novos mercados,
tais como as saladas pré-lavadas, os legumes pré-cozidos, etc.
Além do preço, três dimensões essenciais dos prodtos oferecidos aos
consumidores permitem predizer seu sucesso: em primeiro lugar, é claro, o
sabor e as qualidades organolépticas (valor de prazer); mas também o valor
saúde e comodidade de utilização.
História da Alimentação

leitura complementar

Os dois primeiros fatores estão sujeitos a fortes variações culturais. A


noção de saúde assume uma acepção diferente na Inglaterra e na França.
Enquanto uma grande parte dos ingleses pensam que o queijo está carregado
de gorduras saturadas que ameaçam suas artérias, a maioria dos franceses
consideram o queijo e os laticínios alimentos ricos em cálcio e indispensá-
veis ao equilíbrio alimentar. Nossas pesquisas mostram que, no conjunto,
os conhecimentos nutricionais são bem inferiores aos dos americanos ou
escandinavos. No entanto, os estudos epidemiológicos confirmam que os
franceses são menos atingidos pela obesidade e que seu índice de mortalidade
em decorrência de doenças coronárias é o mais baixo entre todos os países
desenvolvidos, com exceção do Japão.
A comodidade da utilização desempenha um papel determinante. Assim,
no que diz respeito aos legumes frescos e frutas, observa-se este paradoxo
aparente: de maneira quase unânime, na maioria dos países desenvolvidos –
mas, particularmente, na França – são atribuídas aos legumes virtudes nutri-
cionais consideráveis. Todavia, continua a cair o consumo de legumes frescos.
Em compensação, desenvolvem-se as versões prontas a serem utilizadas.

Fonte: FISCHLER, Claude. A “McDonaldização” dos Costumes. In. FLANDRIN,


Jean-Louis; MONTANARI, Massino (Org.). História da Alimentação. São
Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 849-850.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 111

CONCLUSÃO

Estimado(a) aluno(a) do curso de gastronomia da Unicesumar, ao final deste livro, gos-


taria de destacar alguns pontos que deverão ser levados em conta para que você possa
ter uma carreira de sucesso na profissão que escolheu. É importante ressaltar que um
bom profissional não é apenas aquele que domina perfeitamente a sua área, mas que,
além disso, está ligado a todas as transformações que o cercam. Para isso, um alto nível
de dedicação à leitura de temas que envolvem a cultura geral, bem como de temas de
cunho regional, são indispensáveis.
Primeiramente, é importante reiterar que o Ocidente é o modelo de civilização mais
bem-sucedido de toda história mundial. De transporte à saúde, da alimentação à diversão,
tudo que temos de bom e de melhor ao nosso redor é oriundo do modelo de civilização
que emergiu na Europa e que hoje é destaque, inclusive, em alguns países do Oriente,
como Israel e Japão, por exemplo. Dessa forma, como vamos trabalhar em um mercado
muito competitivo, necessitamos conhecer as bases de nossa civilização, que, conforme
destacamos aqui, estão diretamente ligadas ao consumo e à competição. Entender esse
mecanismo é um diferencial. Embora possa lhe parecer simples, o que fica demonstrado
no dia a dia é que poucos têm a real consciência do que isso realmente significa.
Já com relação aos nossos usos e costumes, é importante que saibamos que esse
é um processo que ainda está em construção. O que antes era visto como um símbolo
de status social, hoje pode ser entendido como uma falta de educação. Isso demonstra
como a sociedade valoriza as regras sociais e morais. As regras de etiquetas são ainda
mais valorizadas, quando se trata da gastronomia. Observar essas mudanças, procurar
compreender os sinais ao nosso redor, significa conhecer a essência do ser humano. É
esse o principal ponto de destaque da história, pois é com essa que nos tornamos sábios
e capazes de identificar os valores que nos são essenciais.
História da Alimentação

No que diz respeito à história da gastronomia, é importante que saibamos que o ato
de comer é, antes de mais nada, uma necessidade fisiológica. Come-se para dar prazer,
mas, antes de tudo, para sobreviver. Sendo assim, o homem trilhou um longo caminho
até que essa necessidade biológica pudesse se tornar algo digno de arte, de valor sen-
timental. Assim, podemos afirmar, de forma simplificada, que surgiu a gastronomia e
a França, país do Ocidente, foi uma das grandes responsáveis por todo esse processo.
Espero que o objetivo deste livro tenha sido alcançado. Embora, conforme já destaca-
mos anteriormente, ele esteja longe de significar um ponto final, pois visa, primeiramente,
despertar no(a) aluno(a) a necessidade de se aprofundar ainda mais nesses temas e, quem
sabe, em um futuro não muito distante, poderá ser autor(a) de seu próprio material.
GASTRONOMIA • UNICESUMAR 113

referências
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História da Alimentação

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GASTRONOMIA • UNICESUMAR 115

UNIDADE I possuíam um papel social muito importante,

gabarito
embora sempre estivessem submissas à vonta-
1. Orientação de resposta: Precisamos compreender
de dos homens. Cada família, cada classe social,
que o Renascimento foi um período de retorno
possuía seu papel bem definido. É importante
dos valores da cultura greco-romana. Esse para-
observar o choque de valores em decorrência do
digma cultural passou a valorizar o ser humano,
novo modelo de sociedade que surge naquele
colocando-o como centro do universo. O mundo,
contexto.
naquele contexto, foi entendido como o lugar
onde o homem deveria viver e ter prazer pela 3. Orientação de resposta: Resposta livre, basta
sua vida. Isso fez que toda uma estrutura artística que o(a) aluno(a) faça essa observação tomando
e cultural fosse desenvolvida para esse “novo cuidado com a metodologia, sem levar em conta
homem” que emergiu. preconceitos ou coisas do gênero.

2. Orientação de resposta: Esses dois aplicativos,


conforme destacou Ferguson (2012), propor- UNIDADE III
cionou muito conforto às pessoas, já que, em
1. Orientação de resposta: Em linhas gerais, o(a)
razão da competição e do consumo, as em-
aluno(a) precisa notar que, conforme o homem
presas desenvolveram métodos de produção
vai evoluindo, a necessidade por coisas novas,
mais eficientes, que acabaram barateando seus
por mais conforto, também segue o mesmo
produtos, fazendo que esses chegassem a uma
padrão. Sendo assim, a gastronomia está
maior quantidade de consumidores, proporcio-
ligada à própria necessidade do homem em
nando prazer e satisfação. Além de melhorar
sempre querer melhorar seu desempenho,
muito a qualidade de vida das pessoas.
tendo em vista que somos “homo habilis”, ou
3. Orientação de resposta: A globalização foi res- seja, dotados de habilidades e que precisam
ponsável por levar e trazer produtos mais baratos ser aperfeiçoadas.
e mais eficientes para todo o globo terrestre.
Alguns países se aperfeiçoaram em uma área, 2. Orientação de resposta: Com a globalização, co-

enquanto outros se especializavam em outras. zinheiros e alimentos passaram a interagir com

As trocas feitas por esses produtores possibilitou várias partes do mundo. A Europa recebia do

que mais pessoas tivessem acesso a produtos Oriente as especiarias, enquanto os europeus
que antes era de uso exclusivo apenas daqueles difundiam seu uso por onde passavam. Dessa
que conseguiam produzi-los. forma, houve um incremento muito grande na
gastronomia, em razão das trocas culturais pro-
porcionadas pela globalização.
UNIDADE II
3. Orientação de resposta: Conforme o próprio texto
1. Orientação de resposta: É importante que o(a)
destacou, foi ele quem criou as bases gastro-
aluno(a) observe como os usos e costumes,
nômicas, possibilitando a divisão dos molhos e
bem como o conceito de civilização, mudaram
toda uma estrutura que facilitou e organizou o
ao longo dos anos.
trabalho na cozinha. Seria muito importante o(a)
2. Orientação de resposta: Observe que há situa- aluno(a) pesquisar mais sobre esse importante
ções e situações. Cada qual com seu nível de exi- personagem da gastronomia.
gência. As mulheres, ao contrário do que dizem,

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