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Capitulo 1

Sumário

Capítulo 01 – Solares.........................................................................................................................2
Capítulo 02 - Encontros e Despedidas...............................................................................................5
Capítulo 03 - Breve Passeio...............................................................................................................9
Capítulo 04 - Precisamos Conversar................................................................................................13
Capítulo 05 - O Verdadeiro Inimigo.................................................................................................17
Capítulo 06 - Insegurança................................................................................................................20
Capítulo 07 - Mudança de Planos....................................................................................................24
Capítulo 08 - Quando A Noite Cair...................................................................................................28
Capítulo 09 - Trilha de Sangue.........................................................................................................32
Capítulo 10 - Caminhos Cruzados....................................................................................................36
Capítulo 11 - Laços do Passado........................................................................................................40
Capítulo 12 - Vida Nova...................................................................................................................43
Capítulo 13 - Segredos.....................................................................................................................47
Capítulo 14 - Fazendo Um Passeio...................................................................................................51
Capítulo 15 - Más Notícias...............................................................................................................54
Capítulo 16 - Por Um Fio..................................................................................................................57
Capítulo 17 – Esperando Um Sinal...................................................................................................60

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Capitulo 1

Capítulo 01 – Solares

HALEY

Não posso acreditar que ele foi roubado. Se ainda estiver nessa porcaria de província
sei que ele não deve estar longe. A Província de Saturno é a menor das oito. E para minha
sorte, há apenas um lugar onde ele teria utilidade para alguém aqui.

Meus cabelos se acomodam no capacete, e se não fosse pela jaqueta que uso, o vento
frio congelaria minha pele. Passo ao lado do Rio Frades, a água preta está coberta por lixo,
seu fedor chega ao meu nariz como um lembrete azedo da vida aqui. Fomos abandonados
para morrer.

O céu assume uma coloração alaranjada, embora tenha chovido o dia inteiro e o frio
continue. Paro em frente à loja de velharias, coloco meu capacete no guidom, desço da moto,
que eu carinhosamente batizei de Dalila e ponho minhas mãos nos bolsos. Há sujeira por toda
parte, ratos brigam por pedaços de comida que não consigo identificar.

Abro a porta e dou de cara com livros empoeirados, luminárias velhas e uma bela
vitrola sobre um criado mudo. O ambiente mal iluminado é estranhamente acolhedor.

Atrás do balcão olhando para mim, está Lewis, o dono da velha loja, que para minha
sorte, é ninguém menos que meu avô. As sobrancelhas são grisalhas e estão despenteadas
assim como o cabelo, que dão a ele uma aparência meio louca. O que de certa forma, ele é.
—Estava esperando por você, Haley.
— Então isso significa que o senhor já sabe o que eu quero. — Respondo com um sorriso
aliviado no rosto.
— Pensei que tinha vindo visitar seu velho vô. — Ele põe a mão no peito em uma tristeza
fingida. Lewis é minha pessoa favorita.

Ele se vira para pôr um livro caindo aos pedaços na estante atrás dele, que
provavelmente lia antes de eu chegar. Há décadas, todo conhecimento é documentado
digitalmente, e obviamente pessoas como eu não tem acesso. E sinceramente, a maioria
cansou de se importar. Mas meu avô se importa. Então o que nos resta são alguns livros
amarelados. De costas para mim, Lewis avalia o estado do exemplar ainda em mãos.

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— Então o desgraçado veio mesmo direto para cá! — Digo colocando as mãos no balcão. —
O que você fez com ele? — Pergunto e Lewis sabe a quem me refiro. Ele olha para mim e
seus olhos brilham.
— Agora que ele tem uns dedos a menos, acho que nunca mais vai roubar ninguém. — A
velha loucura do meu avô dá as caras.
— Bem, talvez ele pare apenas de roubar anéis. — Digo e ele ri enquanto coça a cabeça.

Ao fundo vejo a silhueta alta e forte de um homem. É Ryan. Ele faz trabalhos para
Lewis. Independente da natureza. Sempre houve uma tensão entre nós, mas nenhum de nós
deu o primeiro passo. Não faz diferença para mim. Ryan é uma pessoa de poucas palavras,
então ele não fala nada quando me vê, ao invés disso ele acena com a cabeça. Aceno de volta.

Lewis abre uma gaveta e tira um pequeno pano vermelho dobrado, e quando desdobra
descobre um pingente. É uma esfera dourada, com três anéis em volta. Meu pequeno tesouro
roubado.
— Sei o quanto ele é importante para você, Haley. — Ele diz enquanto suspende o pingente
na frente do rosto. O sorriso agora dando espaço a um olhar triste.
— Não tenho mais nada dela, quer dizer, nada que ela mesma tenha me dado. — Respondo.
Depois de tantos anos, ainda dói como se fosse ontem. A memória do pingente
ensanguentado me vem à mente. Ryan parece intrigado ao ver o pingente, depois finge estar
ocupado, tentando nos dar privacidade. Fito o pingente assim como Lewis. "Não é só o
símbolo da Cidade Solar" as palavras da minha mãe ecoam na minha cabeça.

— Você parece muito com ela, sabe? Com exceção desses cabelos curtíssimos. Mas os
seus olhos são castanhos como os dela, e estas maçãs do rosto... Aliás, não é só isso. Digo,
Maeve sempre teve essa força de vontade, e não deixava nada no caminho dela. Antes de
tudo o que aconteceu. — Meu avô não é um cara sensível, mas a morte da minha mãe é uma
ferida que nunca sarou para ele. Não tenho resposta, e não sei se conseguiria dá-la se tivesse.
As lágrimas ameaçam cair e o silêncio paira sobre nós. Minutos se passam e descido que é
hora de ir embora.
— Se você tiver mais entregas para amanhã, é só separar. Que horas quer que eu esteja aqui?
— Esteja às oito.
— Então estarei às oito e quinze.
— Vou descontar do seu salário! — Ele grita se recompondo.
— Você não faria isso com a sua neta preferida. — Rio com a audácia e saio pela porta.

Tenho trabalhado com entregas para ele desde que fui morar sozinha. Não há muita
demanda de entregas, a maioria das vendas é feita direto na loja. Não ganho muito, mas

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também não tenho muitas despesas. Gosto de ter meu próprio espaço, embora eu passe a
maior parte do tempo na estrada.

Estou com o pingente de novo, mas a conversa me deixou com os nervos à flor da
pele. Percebo que a chuva já passou agora. Me dirijo ao beco ao lado da loja, e acendo um
cigarro para voltar aos eixos. Embora eu tente descontrair, o que houve com a minha mãe é
um assunto que ainda me tira o sono.

Depois de tudo que aconteceu, meu pai me entregou para Lewis e nunca mais voltou.
A dor que isso me trouxe é completamente diferente da morte da minha mãe. Está carregada
de ressentimento.

Jogo a bituca no chão, viro para ir embora e me assusto. É Ryan de novo. Seus
cabelos pretos na altura do ombro, sempre soltos, hoje estão presos. Ele tem olhos de cores
diferentes, um castanho e um verde. Sempre achei que essa característica o deixa mais bonito.
Nos encaramos em um silêncio estranho. Por que diabos ele está aqui? Ele levanta um saco
preto. Lixo, entendi, estou bloqueando a passagem para o lixeiro. Passo por ele e subo na
moto. Enquanto ponho o capacete, olho uma última vez para ele, que agora está com uma das
mãos na nuca. Parece nervoso.

***

Chego ao meu apartamento, e sou recebida pelo familiar cheiro de mofo. O papel de
parede descascando, para combinar com o piso marrom escuro, que não tenho certeza se
deveria ter essa cor. O tempo fez um belo trabalho.

Minha cama ainda desfeita, está um pouco iluminada pela luz que vem da janela atrás
dela. Penduro minha jaqueta atrás da porta e tomo um banho frio. Visto a primeira peça que
encontro: uma pequena camisola que tenho há anos, que mal serve em mim. Encosto uma
cadeira na maçaneta da porta, agora que sei como a segurança do apartamento é ruim. Não
quero acordar e perceber que levaram todos os meus móveis. Volto para a cama e demoro a
pegar no sono.

***

Acordo horas depois com batidas apressadas na porta. O relógio de parede me informa
que são quatro da manhã. Por quê tem alguém me chamando a essa hora? Me levanto e na

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pressa acabo não usando nada para cobrir melhor o corpo. Afasto a cadeira e abro a porta
apenas o suficiente para ver quem é.

— Ryan? — Abro mais a porta e percebo meu erro no mesmo instante. Ryan passa os
olhos por mim. Me encolho, com o constrangimento, e puxo um sobretudo de trás da porta
para vestir. Ele pigarreia, e não transparece o que pensa quando diz:
— Lewis quer que você me acompanhe.
— Está tudo bem com ele? Começo a me desesperar.
— Está, mas seu pai está esperando na casa dele.

Como eu disse, diálogos não são o forte de Ryan. A casualidade com que ele fala isso
faz parecer que eu vi meu pai ontem, e não há mais de doze anos. Não quero vê-lo. Ainda
assim me preparo para sair, com um mau pressentimento do que me aguarda. Como se
refletisse meus sentimentos, a chuva lá fora volta a cair.

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Capítulo 02 - Encontros e Despedidas

ASHLEY

Saio do banho, com as energias renovadas. Aliviada por tirar todo aquele suor do meu
corpo. Minha aula de esgrima hoje foi mais intensa que o normal. Meu ataque tem melhorado
muito, fruto de toda minha determinação e esforço.

Me preparo para sair com Simon, meu melhor amigo. Nos conhecemos desde os oito
anos. Ele estava acanhado por estar numa escola nova, mas ainda assim sentou comigo no
almoço. No dia seguinte também. E foi assim até a nossa formatura. Hoje estamos indo a um
jantar, ele quer que eu conheça uma pessoa especial. Depois de muita insistência, eu acabei
cedendo.

Faço uma maquiagem simples, prendo meu cabelo em um coque, mas desfaço e o
deixo semi preso. Depois de vestir o vestido azul claro que vai até meus joelhos, calço meus
saltos, que apertam meus dedos, mas combinam com a bolsa. Não gosto disso, mas ser
diferente das pessoas por aqui atrai muito mais atenção.

Saio do quarto, desço as escadas e encontro Simon no sofá da sala, com a elegância de
sempre e um sorriso no rosto. O suéter de gola alta o veste perfeitamente bem, mas esse não é
o único motivo para usá-lo. Ele tem os números 0070 gravados na nuca. Uma tatuagem que
ele fez escondido meses atrás e agora é um segredo nosso. Ironicamente a Cidade do Sol, é
fria o ano inteiro, então ninguém nunca suspeitou.

Minha irmã mais velha, Suzan, faz companhia a ele. Ela acabou de se formar em
medicina. Somos o completo oposto uma da outra. Meus cabelos são ondulados e castanhos
cobre, os dela são lisos e pretos. Minha pele é bronzeada, a dela completamente pálida. Meus
olhos são redondos, e os dela são amendoados. Me pareço com nosso pai, ela com a nossa
mãe. Temos sido só nós duas há bastante tempo.

— Espero que Emily não se sinta intimidada, Ash. Você está linda, como sempre. —
Apesar das brincadeiras, Simon é sempre educado.
— Emily? Sério, Simon? Depois de meses saindo juntos, descubro o nome dela por que você
falou sem querer? — Digo em um tom descontraído.
— Meses? Como um tagarela como você conseguiu manter a boca fechada por tanto tempo?
Ou, o que é mais intrigante ainda, como não foi dispensado no primeiro encontro? — Suzan

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não mede as palavras, mas nós três sabemos que ela está apenas brincando. Ele ri, e responde:
— O que posso fazer? Sou um homem de muitos mistérios. — Ele finge olhar para o nada,
como se isso provasse suas palavras.
— Se apresse, Houdini. Não quero causar uma má impressão em Emily. — Digo puxando-o
para fora.

Saímos e avistamos nossa esfera se aproximar, ela é completamente branca. Simon


aproxima a pulseira da esfera e uma abertura surge. Damos tchau para Suzan e entramos.
Diferente dos carros antigos, uma esfera não precisa de motorista e como quase tudo na
capital, é movido a energia solar. Seu interior é limpo e confortável, e toca uma música
suave. Simon marca nosso destino no minimapa, e então estamos em movimento. Ao meu
lado, Simon parece ficar tenso.
— Algum problema? — Pergunto preocupada.
— Não, mas espero que vocês se deem bem. Não quero ver vocês brigando pela minha
atenção. — Reviro os olhos e ele sorri.

Sei que ele está nervoso, e não quero forçar. Emily deve ser mais importante do que
ele deixou transparecer. Isso explica a insistência para que eu o acompanhasse hoje. Ele me
conhece bem e sabe que não sou muito boa em conhecer pessoas novas.

A vista da Cidade Solar é linda. O Rio Espelhado, a corta de uma extremidade a outra
e sua água é tão limpa, que se eu estivesse perto conseguiria ver a areia branca no fundo. Mas
dessa distância, o que consigo ver é o reflexo dos prédios altos com os formatos ousados
cobertos por vegetação. Esferas vem e vão.

Chegamos ao destino, nosso prédio não é tão alto. Olho para cima, e avisto algumas
pessoas em cima do prédio, suas cabeças cobertas por capuzes. Elas me veem e se afastam do
parapeito. Estranho.

Simon e eu pegamos o elevador para a cobertura, e entramos no restaurante onde


esperamos por Emily.
— Por que não estava na esgrima hoje? — Pergunto, pois isso não é algo comum. Estamos
sentados, em uma mesa ao lado da janela de vidro, que nos dá uma visão do Rio Espelhado e
dos prédios iluminados da cidade.
— Meu pai pediu ajuda com assuntos da família. — O pai de Simon não é um homem
simpático, então eu sei que "pediu" significa que ele mandou. Simon é uma pessoa muito
justa, a natureza contrária do pai é algo que sempre o incomodou.

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Joseph é, na verdade, padrasto dele, mas ele ainda o respeita como pai, embora saiba
que o padrasto não merece. Não sei exatamente no que ele trabalha, assim como todos os
cargos políticos, sua função no prédio executivo é um segredo. Mas ele tem influência, disso
eu sei. Todos que trabalham no Edifício Alvorada tem.

Simon sorri, mas sei que o assunto não é algo que ele deseja explorar. Para alívio de
nós dois, uma moça sorridente se aproxima, seus cabelos louros presos em um coque idêntico
ao que eu dispensei. O vestido preto que é justo até a cintura, e se abre em uma saia com
camadas de tule vermelho me lembra uma rosa de ponta-cabeça. Sua roupa é espalhafatosa, e
ela parece muito bem com isso. Sinto uma pontada de inveja, que tento reprimir. Ela está
deslumbrante, e pelo brilho nos olhos de Simon, ele pensa o mesmo. Só pode ser Emily.

Depois dos cumprimentos, ela se senta conosco. O garçom vem e fazemos nossos
pedidos. Há uma fina cicatriz no queixo, que Emily parece exibir com orgulho. Ela me
encara.

— Simon me fala muito sobre você, Ashley, principalmente sobre suas habilidades
em esgrima. — Emily tenta puxar assunto.
— Eu tenho melhorado bastante. — Respondo com um sorriso torto.
— Simon falou que você é tão boa quanto ele. — Ela insiste.
— Ele estava sendo gentil. — Olho para ele, desesperada para que ele tire o foca da conversa
de mim.
— Na verdade você está sendo modesta, Ash. — Começo a ficar sem graça. Não gosto da
atenção. E ela nota meu desconforto.

O garçom se aproxima com nosso jantar. Respiro aliviada por não precisar continuar
com o assunto. Olho para o conteúdo do prato, o verde complementando o laranja: carpaccio.
De peixe, não de carne. Esta é sempre a entrada que Suzan pede, e agora é a minha também.

— Você sabe por que eu precisava conhecê-la, não sabe, Ashley? — Que tipo de
pergunta é essa?
— Bem, as coisas parecem ter evoluído no relacionamento entre vocês dois. Simon e eu
somos como família. Então... — Paro de falar por que ela começa a rir. Olho para Simon,
mas, de repente a vista do Rio é importante demais para que seus olhos encontrem os meus.
Percebo que algo não está certo.

No pulso de Emily a tela de sua pulseira acende. Uma mensagem. Ela verifica ainda
rindo, seu sorriso se desfaz e em seguida ela troca um olhar nervoso com Simon. Não entendo

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o que está acontecendo.


— A gente vai precisar sair um pouco, mas voltamos logo. Espere aqui, ok? — Emily está
tensa.
— Aonde vocês vão? — O que está havendo?
— Sinto muito, Ash, voltamos logo. — Preocupado como eu nunca vi, Simon sai no encalço
de Emily. Os dois somem na escada que leva para o terraço.

Minutos depois algo pesado e grande cai de cima do prédio, passando pela minha
janela. Me levanto assustada e Emily surge ao meu lado, me puxando para a saída. Seu rosto
está machucado e seu coque se soltou.
— Onde está Simon? — Pergunto, pois, ele não está com ela.
— Precisamos sair daqui! — Penso em recusar, mas o desespero de suas palavras e as
pessoas que começam a nos olhar me fazem ceder.

Na saída do prédio uma multidão se acumula. Minha intuição grita para que eu me
aproxime também. Emily tenta me segurar, mas me solto e abro caminho em direção ao
centro do tumulto.

Nada no mundo poderia ter me preparado para a aquela cena. NÃO, NÃO, NÃO. Não
consigo mover um só músculo. Aos meus pés, uma enorme poça de sangue se espalha, e
sobre ela, está o corpo sem vida de Simon.

Não posso acreditar no que vejo. Seu rosto deformado pelo impacto está encostado no
chão. Os dentes brancos e perfeitos agora estão cobertos pelo sangue que escorre da sua boca.
Os olhos sem vida encaram os prédios. O desespero toma conta de mim, e me atiro sobre ele.
As lágrimas molham meu vestido, minutos ou horas podem ter passado, e elas continuam a
vir. Contra minha vontade, Emily me leva, e eu paro de lutar. Não há nada que eu possa fazer
agora.

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Capítulo 03 - Breve Passeio

HALEY

TREZE ANOS ANTES

Minhas mãos estão tão geladas que minhas unhas começam a ficar roxas. Com elas
escondidas nos bolsos, abro e fecho os dedos desesperada por um pouco de calor. O expresso
deixou a Província de Saturno há algumas horas, e já consigo ver os arranha-céus da Cidade
Solar, meu coração palpita de ansiedade. Minha mãe dorme no banco ao meu lado. Olheiras
claras se formaram nos seus olhos faz alguns dias. Ela não tem dormido bem. Encosto a
cabeça no seu braço e ela me aninha. Minutos depois estamos descendo na estação.

Minha tia Elisa não sabe que estamos indo visitá-la, então ela não está vindo numa
esfera nos buscar. Pessoas das províncias não tem a pulseira que dá acesso à esfera, e que na
verdade, também dá acesso a quase todo tipo de tecnologia da Cidade Solar. Ao invés disso
uma longa caminhada nos aguarda. Nunca vim aqui antes, e ter mais tempo para andar pela
capital me anima.

Maeve segura minha mão enquanto caminhamos ao lado do Rio Espelhado. Depois de
alguns minutos caminhando, chegamos no centro da Cidade Solar, e estaremos cruzando o rio
logo. Solto sua mão e paro a caminhada, encantada com o que vejo. Há uma plataforma no
meio do rio que abriga uma imensa esfera dourada rodeada por três anéis em movimento. A
luz do sol refletida no monumento, faz a esfera parecer mágica.
— O símbolo da Cidade Solar! — Grito empolgada me aproximando da beirada do rio.
— Solares é mais do que o símbolo da capital. — Ela se junta a mim. Seus olhos carregados
de descontentamento. Ela leva a mão ao pingente pendurado no pescoço. — Este monumento
é um insulto ao que Solares representa. — Não entendo bem o que ela quer dizer. Se ela
repudia Solares, por que carrega consigo o mesmo símbolo? Com minha mãe segurando
minha mão, nós voltamos a andar.

Chegamos na casa de Elisa e tocamos a campainha. Ela aparece segundos depois, a


cópia perfeita da minha mãe, com exceção das roupas. Maeve veste um jeans velho e uma
camiseta cinza. O cabelo castanho, assim como o meu, está preso em um rabo de cavalo. A
aparência cansada não ajuda. Minha tia Elisa veste uma camisa branca, e uma calça preta
folgada. Acessórios estão espalhados pelo corpo, sua pulseira também assumiu um tom
dourado para combinar. Os cabelos castanhos estão presos em um coque, e a pele clara tem

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um brilho saudável. Seus olhos castanhos se arregalam de surpresa e seus dentes se exibem
em um sorriso.

— Maeve! Por que não avisou que estava vindo? — Ela puxa minha mãe para um
abraço.
— Decidimos de última hora. — Minha mãe me contou ontem sobre a nossa vinda. Por que
ela mentiria? Abro a boca para perguntar, mas seus olhos me advertem. Elisa se abaixa para
ficar na minha altura.
— E como está minha menina? — Ela põe carinhosamente uma mecha do meu cabelo atrás
da minha orelha. — Meu deus, Maeve, a coitadinha está tremendo de frio. Entrem logo antes
que ela tenha hipotermia! — Eu não teria uma hipotermia, é claro, mas minha tia é a pessoa
mais protetora que eu conheço e não tenho por que discutir.

Entramos na casa, e o calor me envolve. A sala enorme está ocupada por móveis
modernos, tudo em tons de bege, branco e amadeirado. O porcelanato no chão é tão brilhante
que consigo ver meu reflexo. Elisa pede a um empregado que nos traga um chá. Ela não tem
empregadas mulheres. Uma escolha esperta, afinal foi assim que ela conquistou o status que
tem. Há dois anos ela foi empregada na casa de um casal, e acabou se envolvendo com
Joseph, marido da mulher que pagava seu salário. Agora ela e o filho vivem com todo esse
luxo.

— Onde está Simon? Haley quer brincar com ele. Não quer, Haley? — Balanço a
cabeça concordando. Não o vejo desde que ele veio morar aqui. Sinto falta da companhia.
— Ele está lá em cima, brincando. Primeira porta, Haley. É só subir. Mas não vá correndo,
não quero que se machuque.

Subo as escadas a toda velocidade, ansiosa para revê-lo. Abro a porta e meus
pensamentos voam pela minha boca.
— Simon, você não vai acreditar! Eu trouxe minhas bolinhas de gude, e dessa vez... — Me
interrompo quando vejo o quarto dele, que mais parece um parque de diversões. Não que eu
já tenha visto algum de verdade, mas as revistas do vovô podem ser muito informativas.
— Haley! Quer ver meus brinquedos? — Antes que eu responda, uma menina sai do
banheiro, e fica nervosa quando me vê. Ela também tem a nossa idade. — Ah, essa é a
Ashley, ela, hum... tem medo de pessoas, ela é da minha escola. Ashley essa é a Haley, minha
prima, ela é da província que eu morava. — Ele nos apresenta brevemente.
— Muito prazer, Ashley. — Ela dá um aceno de cabeça. Depois de um tour pelos brinquedos,
Ashley vai embora e eu fico sozinha com Simon. — Acho que ela não gostou muito de mim.
— Digo um pouco chateada e ele olha para mim surpreso.

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Capitulo 1

— Tá brincando? Sabe quanto tempo precisei sentar com ela para receber meu primeiro
aceno de cabeça? Duas semanas inteiras!

Descemos para a cozinha, porque Simon está com fome. Mas percebo que minhas
bolinhas de gude ficaram no quarto, volto para pegá-las. No caminho vozes exaltadas me
chamam a atenção. Me aproximo para poder ver. Minha mãe e Elisa estão de pé perto do
sofá.
— Elisa, você não entende? Essa pode ser a única esperança para nós! — Minha mãe segura
o pingente pendurado no pescoço, hábito que ela tem quando está nervosa.

— Eu não vou expor Simon a um perigo como esse! Ele tem tudo aqui, Maeve!
Estamos seguros! — Elisa está com uma mão na cintura e outra na testa, como se sentasse
conter uma enxaqueca.
— Vejo que seus propósitos agora são outros. — Minha mãe parece profundamente
decepcionada. Elisa não responde. De que propósitos ela está falando?
— Acho para mim já deu, vou procurar Haley. — Seu tom de voz está mais baixo agora, ela
está magoada. Não sei o que essa discussão significa, mas sei que eu não deveria ter ouvido.

Corro para a cozinha o mais rápido que posso. Minhas bolinhas não vão voltar comigo
hoje. Simon começa a comer seu sanduíche quando me vê chegar correndo, com minha mãe
já se aproximando. Meus olhos dizem tudo que ele precisa saber. — Haley, isso tá muito
bom! Prova o seu logo. — Ele fecha os olhos apreciando o lanche e fingindo normalidade.
— A gente já está de saída, Simon. Vai ter que ficar para outro dia. — Minha mãe surge na
porta e pega minha mão.

— Vou preparar para viagem, então. Só um minuto. — Ele sabe que a comida da
província não é nem de longe suficiente. Minha mãe também, então ela não protesta.

Já lá fora, uma esfera se aproxima. Elisa encosta a pulseira e uma porta se abre. Minha
mãe olha para ela.
— Elisa, pense bem no que vai fazer. — Minha tia não tem mais o bom humor de quando nos
recebeu.
— Minha decisão já foi tomada, Maeve. Tenha uma boa viagem.

Entramos na esfera e minha mãe fecha os olhos enquanto coloca as mãos no rosto.
Envolvo ela com meus braços e ela me dá um sorriso triste, seus olhos carregados de
preocupação, e em seguida um beijo na testa. Queria acreditar que tudo vai ficar bem, mas sei

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Capitulo 1

que o que quer que tenha tirado o sono da minha mãe nas últimas noites, não vai passar tão
cedo.

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Capítulo 04 - Precisamos Conversar

ASHLEY

Minha cabeça inteira dói. Meus olhos mal abrem e ainda ardem da noite anterior. A
noite anterior. Os sentimentos voltam como uma enxurrada levando meu juízo embora.
Simon. Me recuso a acreditar que isso aconteceu.

Acordei em uma cama que não é minha. Observo o lugar onde estou agora, pois
estava sonolenta demais para prestar atenção antes. A cama é macia e tem um cheiro gostoso,
algo como... pêssego? O quarto é pequeno, mas está limpo e organizado. Tem uma janela
perto da cama, com cortinas barrando parte da luz. Embora esteja quase escuro, posso ver
uma cômoda pequena. A tela de uma vila perto do mar está inacabada e posicionada num
cavalete de frente para a janela. Há outra tela pendurada na parede sobre a cômoda com
Solares pintado nele. Simon me disse uma vez que o símbolo da Cidade Solar representa
esperança.

Antes que eu desabe novamente ao lembrar de Simon, a porta se abre e Emily aparece
com uma bandeja do que eu acredito ser suco e algum tipo de torta, bolo talvez? Ela parece
surpresa por me ver acordada. Sento na cama, de modo que eu encosto as costas na cabeceira
da cama, com as pernas esticadas. É uma posição menos vulnerável do que ficar deitada, mas
ainda assim sinto uma pontada de desconforto. Estou com medo e com raiva. Perdi meu
melhor amigo e não faço ideia de onde estou ou de quem ela é. Não quero vê-la, não quero
ter que falar com ela.
— Não achei que já estivesse acordada. — Ela diz com gentileza e quando eu não respondo
ela prossegue. — Trouxe um pouco de comida para você. Eu pretendia deixar na mesa, para
quando você acordasse. — Ela diz se explicando. Olho para ela com todo a raiva que consigo
reunir. Ela se aproxima, põe a bandeja sobre a cômoda e se senta na cama em que estou. Eu
encolho minhas pernas, afastando-as dela. — Ashley, sinto muito pelo que houve, mas
precisamos conversar.

Sei que precisamos, mas ainda não consigo fazer isso. Aparentemente ela entende
meu silêncio.
— Vou dar um tempo para você, tudo bem? Se você sair por essa porta, vai encontrar um
banheiro logo na porta ao lado. Pode usar tudo o que precisar das minhas coisas. — Ela faz
um gesto apontando para a cômoda. — Volto depois de algumas horas. E coma o que eu lhe
trouxe, ok? — Depois do monólogo, Emily vai embora me deixando com meus pensamentos.

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Capitulo 1

Não quero sair do quarto, mas também sei que se eu ficar aqui enlouquecerei. Sigo as
instruções de Emily e tomo um banho. Pego uma T-shirt, e uma calça jeans, e tenho certeza
de que ela fica mais folgada em mim do que na dona. Calço um tênis e prendo o cabelo num
rabo de cavalo. Gosto do conforto da roupa, mas Suzan surtaria se me visse assim. Suzan. Ela
deve estar tão preocupada. Preciso dar um jeito de voltar para casa logo.

Não como nada, pois não sinto fome. Reviro as coisas de Emily, não só para matar o
tempo, mas porque se eu tiver que fugir, vou precisar de uma arma. Qualquer coisa que eu
encontrar vai ser melhor do que ir de mãos vazias. Encontro muitas roupas coloridas e depois
de muito esforço, encontro na última gaveta um pedaço cilíndrico de madeira, provavelmente
um extensor para pincel. Não é como se fosse um sabre, como os que eu uso na esgrima, mas
já me serve.
— Então além da esgrima, você também pinta? — Emily está de novo na porta, com um
sorriso de lado. Ela veste uma roupa semelhante a minha, mas sua camisa amarela é
exageradamente estampada. Estava ocupada demais para vê-la chegar. Me viro para ela sem
jeito.
— Eu só estava olhando. — Digo envergonhada por ter sido flagrada. Guardo o sabre
improvisado, com o cuidado para poder ter fácil acesso a ele depois.
— Pode ficar com ele se te fizer sentir segura. — Emily diz se aproximando, puxa um
banquinho e se senta. Sei que eu deveria aceitar, mas de qualquer forma vou poder pegá-lo
depois. — Eu espero que esteja se sentindo melhor agora, tem muitas coisas que você precisa
saber. — Ela me olha séria, e bate na cama para que eu me sente. Ela não parece ser uma má
pessoa, mas não a conheço o suficiente para ter certeza. Ainda não me sinto pronta para
conversar, mas não posso mais empurrar para depois. Receosa me sento como ela pediu.

— Ashley, o que o Simon falou sobre nosso encontro de ontem? — Acho que nunca
mais ouvirei esse nome sem um aperto no coração.
— Apenas que ele queria que nos conhecêssemos. — Tento lembrar dos eventos da noite
passada. Simon estava nervoso, é a única coisa que eu poderia acrescentar, mas disso ela
também já sabe. Ela continua:
— Simon e eu não tínhamos um relacionamento como você acredita. Eu precisava conhecê-la
porque tenho interesse em você. — Ela faz uma pausa para que as palavras se acentem. Ouço
uma agitação que parece vir de todos os lugares. Estou confusa sobre o que ela quer dizer,
mas não questiono e ela volta a falar. — Talvez você tenha se perguntado sobre que lugar é
esse. Bem, aqui é um ponto de partida para um lugar maior. Muitas pessoas vêm aqui porque
desejam mudança para Meridia. A maioria delas só tem força de vontade, tiveram uma vida
de miséria nas suas províncias. Mas Simon veio aqui porque tem um senso de justiça

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Capitulo 1

aguçado. Ele era uma boa pessoa. — Seus olhos estão carregados de lágrimas, e ela passa o
polegar embaixo deles para afastá-las.

Embora não tenham tido um relacionamento romântico, como eu acreditava, eles com
certeza se tornaram amigos. Simon conquistava todos que cruzavam seu caminho.

— Ele confiava muito em você, Ashley. Ele disse que "sua bússola da justiça
apontava para o Norte". — Ela faz um sinal de aspas com os dedos e ri um pouco sem
vontade. Não sei como me sentir em relação a tudo isso, mas tenho medo de onde isso está
me levando. No que Simon nos meteu? De repente lembro das palavras da noite anterior. Sou
um homem de muitos mistérios. Ele estava brincando na hora, mas agora percebo que tinha
um fundo de verdade. — Ele quis desde o começo que você viesse para cá. Mas tivemos que
esperar um pouco. — Ela faz uma pausa avaliando o que vai dizer. — Não queria que tivesse
acontecido assim, Ashley.

São coisas demais para assimilar, e coisas demais que ainda não sei. Reúno coragem
para perguntar:
— O que realmente aconteceu com Simon? Como aquilo aconteceu? — Emily balança a
cabeça olhando para as mãos que repousam no colo.
— Sabe por que esse lugar existe? — Ela não espera que eu responda e continua. — Aqui,
nós aprendemos e desenvolvemos nossas habilidades de combate. Tem pessoas que não
querem as mudanças que nós tanto buscamos. E elas podem ser... perigosas. Elas são
conhecidas como Fúrias, e perseguem pessoas como nós. Duas delas estavam no restaurante
ontem. E durante a luta, uma delas empurrou Simon. Eu consegui pegá-la, mas não fui rápida
o suficiente. — Ela fala com a voz carregada de culpa. Simon sempre foi esperto, não entraria
nisso sem conhecer os riscos. Ele entendia o que estava fazendo, e não acho que ele ia querer
vê-la assim. Ponho a mão no ombro dela.
— Não foi sua culpa. — Falo da maneira mais tranquilizadora que posso. Ela levanta os
olhos para mim, grata.

— Eu sei que você não é a pessoa superficial que você gosta de aparentar, Ashley. —
Ela me diz séria. Eu não gosto de aparentar, mas, que escolha eu tenho? — E eu sei que
diferente das pessoas aqui, você não ganha muito se juntando a nós, mas Simon confiava no
seu julgamento e eu confio também. Fora da Cidade Solar as pessoas morrem aos montes, de
fome, de doenças, de várias maneiras desumanas. Estamos lutando pelo fim de tudo isso, e
você tem muito a acrescentar a nossa causa. É importante para nós tê-la ao nosso lado. A
verdadeira Ashley, a Ashley que Simon queria aqui. — Ela se levanta e vai em direção a
bandeja que continua no lugar em que ela deixou, intocada. — Você pode ir para casa hoje,

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Capitulo 1

vou pedir para alguém levá-la. Mas não conte para ninguém o que sabe, temos medidas para
delatores que você não vai gostar. Você poderá voltar quando quiser, vou providenciar isso
também. Espero que o nosso próximo encontro, seja porque quer ser uma Sombria como eu.
Se não pela nossa, faça pela sua liberdade. — Ela vai embora, e minutos depois um homem
chega, ele parece ter o dobro da minha idade. Acompanho ele. Chegou a hora de ir para casa.

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Capitulo 1

Capítulo 05 - O Verdadeiro Inimigo

HALEY

Não existem muitas pessoas capazes de me enlouquecer, mas Jason Storm com
certeza é uma delas. Paro em frente à loja do meu avô, já encharcada da chuva. Seu
apartamento fica logo em cima. Meu peito remexe com todas as emoções que reprimi durante
todos esses anos. E poucos metros me separam do pivô delas. Tomo coragem e subo o lance
de escadas, com Ryan logo atrás de mim.

O apartamento é relativamente bonito, se comparado ao meu. Seus móveis, ainda em


bom estado tem tons de bege e quase todos são de madeira. Meu avô vive bem, para uma
pessoa da província. A maioria das pessoas mal tem o que comer. Às vezes ainda sinto
saudade de como era viver aqui.

Lewis está sentado na sala, a face contorcida em preocupação. Ele tem medo de como
isso vai acabar, minha aversão ao meu pai nunca foi segredo. No sofá menor, me encarando,
está Jason. Os cabelos pretos salpicados com fios brancos, o queixo com uma leve divisão no
meio, assim como o meu. Não sei o que eu esperava, mas com certeza não era o
arrependimento que vejo em seus olhos agora. Ele está tão tenso quanto eu.

— Por que me chamou aqui? — Pergunto para Jason.


— Precisamos conversar. — Jason responde, sua voz refletindo o que seus olhos já me
diziam. Meu avô olha para Ryan, sei que ele pede privacidade. Ryan também entende, e
segue para o banheiro todo ensopado.
— Haley, estarei no meu quarto se precisar. — Lewis diz e também sai, nos deixando a sós.

— Estou curiosa pra saber o que tem pra dizer que precisou esperar doze anos. —
Tomo a iniciativa de novo e cruzo os braços tentando parecer firme, o barulho estranho do
couro da minha jaqueta molhada estragando minha pose.
— Haley, sei que você está com raiva, eu entendo. Mas eu preciso que me ouça. — Ele diz
enquanto se levanta. Ponho uma mão na cintura e as palavras disparam pela minha boca.
— Não, você não entende! Eu perdi minha mãe e você não esteve comigo pra me apoiar,
Jason, tem ideia de como isso foi para mim? Eu só tinha nove anos! — Mordo o lábio para
conter o tremor. A culpa o atinge e me sinto um pouco melhor com isso.
— Eu fiz muitas coisas das quais eu não me orgulho, Haley. — Ele fez uma pausa enquanto
olha para as mãos. — E não a levar comigo foi a pior delas. — Ele parece estar sendo

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Capitulo 1

sincero, mas isso não alivia minha vontade de esganá-lo.


— E por que não levou? Por que me deixou pra trás como se eu fosse um fardo? — Uma
enxurrada de lembranças ruins me vem à mente, meus olhos ardem e eu tento reprimi-las. Se
eu chorar agora não sei se eu poderia continuar a confrontá-lo.
— Eu não quis você longe de mim, eu amo você, Haley! Eu jamais faria nada que a
machucasse. Ficar comigo não era seguro para você. — Pisco para afastar as lágrimas e ele se
aproxima.
— E ficar aqui não é seguro pra você agora. — Digo, e ele recua. Penso que ele vai embora
agora, depois da minha ameaça velada, mas não poderia estar mais enganada.

— Haley, eu sei quem matou sua mãe. — Meus braços caem ao lado do meu corpo e
minha face exibe uma expressão de confusão. Isso é algo que eu sempre me perguntei.
— Me diga quem foi. — Eu seria capaz de matar o assassino dela com minhas próprias mãos.
— As Fúrias. — Para minha surpresa é Ryan quem responde, com os cabelos ainda molhados
e seu habitual conjunto moletom, dessa vez preto. E seus olhos... Meus pensamentos são
interrompidos por Jason, que me conta tudo que ele sabe. Com Ryan acrescentando detalhes
de vez em quando. Meu avô se aproxima para ouvir também.

O sistema que que rege a Cidade Solar e as Províncias Solares sempre foi opressor. O
brilho da capital é uma fachada parar encobrir a miséria que há pelo resto de Meridia. Há
pouco mais de uma década, uma revolta surgiu em meio a pobreza. Pequenos grupos
independentes se formavam nas províncias maiores. Na tentativa de silenciá-los, as Fúrias,
assassinas cruéis, foram enviadas para estes pontos, matando todos os que carregavam o
símbolo da resistência, a esfera dourada envolta por três anéis.

Interrompo a explicação por que o rumo que ela toma parece óbvio demais. Sei que
minha mãe nunca se deslumbrou com a Cidade Solar, e nunca negou seu desprezo por ela.
Pego o pingente de Solares, que depois do incidente carrego pendurado no meu pescoço.
Levanto ele em direção a Ryan e Jason.

— Esse é o símbolo da resistência. Minha mãe era uma rebelde. — Ryan olha como
se as peças se encaixassem para ele também. Lembro de como ele olhou quando Lewis e eu
observávamos o pingente na loja. Os olhos de Jason começam a marejar quando vê o
pingente. Ele volta a se sentar no sofá e sua voz soa com dificuldade:

— Não sabia que você estava com ele. — E o que você sabe sobre mim? Me preparo
para atirar as palavras para ele enquanto corrijo minha postura. Ao lado de Jason, Lewis
percebe minha agitação e sua expressão me diz que ele tem medo de que eu diga algo que não

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Capitulo 1

deveria. Apesar de tudo que houve entre mim e Jason, sei que ele realmente amava Maeve.
Poupo ele por enquanto e guardo as palavras para mim. Ryan continua a explicação sozinho.

Os assassinatos não cessaram a revolta, pelo contrário, ela continuou a crescer nas
sombras. Mais fortes, mais espertos, os Sombrios estão por toda parte. Todos se identificam
com uma tatuagem na nuca, com os números 0070. Há pequenos grupos aqui ou ali. Mas ao
Norte, há uma fortaleza que reúne centenas de rebeldes, onde eles preparam a ascensão dos
Sombrios.

— E é pra esse lugar que eu vou. — Jason diz se recompondo. — Haley, não pretendo
errar com você de novo, e não vou tentar forçar uma relação agora, mas quero que vá comigo.
— Ele se encolhe enquanto espera o que eu vou dizer.

— Você perdeu o juízo se acha que eu vou a qualquer lugar com você! Toda essa
história de rebeldes então era para isso? — Todos estão em silêncio, e pela surpresa no rosto
de Lewis ele também achou que eu iria. Ryan não diz ou demonstra o que acha de tudo isso.
Mas Jason cria coragem para falar:
— Eu não quero pressioná-la, Haley, mas eu partirei amanhã de manhã. — Mais um dia,
considerando que o sol já está dando as caras. Percebo que a chuva passou. Eu não me
importo com tudo isso, não há nada que ele diga que me faça ir com ele, então não respondo.
Olho para Lewis e digo:
— As entregas de hoje vão ter que esperar até amanhã. Não me procure em casa, porque eu
não vou estar. — Encerro a conversa e deixo a casa do meu avô. Subo na moto e coloco o
capacete.

Não olho para trás. Saio sem rumo esperando que o vento leve embora todos os
pensamentos que me se agitam na minha cabeça.

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Capitulo 1

Capítulo 06 - Insegurança

ASHLEY

Desço da esfera com uma caixinha em mãos e entro em casa, aliviada por estar de
volta. Depois da conversa com Emily fui levada de carro até a estação, onde uma esfera me
aguardava. Houve um tempo em que elas guardavam informações sobre rotas e passageiros,
mas por motivos de privacidade não fazem mais isso. Você solicita, uma delas vai até a sua
localização, te leva ao seu destino e apaga toda informação sobre isso. Simples e eficaz.

Suzan não está em casa. Verifiquei todos os cômodos, e nem sinal dela. Ela já deveria
ter voltado do trabalho a esta hora, daqui a pouco o sol já vai ter desaparecido por trás dos
prédios. Guardo a caixinha no fundo do meu closet. O motorista me entregou, e disse que
cumpria uma ordem de Emily. Passo os dedos sobre a pulseira e a tela acende. Busco por
Suzan nos contatos e deixo uma mensagem.
— Estou esperando em casa, onde você está? — Espero alguns segundos, e quando penso
que ela não vai responder, uma mensagem chega.
— Ah Ashley, que bom! Estava muito preocupada, estou quase chegando. — Com isso desço
para comer alguma coisa, a fome está acabando comigo. Agora penso que talvez eu devesse
ter aceitado o lanche que Emily ofereceu.

A meia parede da cozinha me permite ver a chegada de Suzan na sala. Ela chega
assim que termino meu jantar. Depois de jogar a bolsa na sala ela vem na minha direção me
puxando para um abraço. A familiaridade do ato me umedece os olhos.
— Sinto muito pelo que houve com Simon. Como você está? Por onde você andou? — Ela
diz se afastando e examinando minhas roupas. Ela me olha como se eu fosse quebrar a
qualquer momento.
— Estou péssima. — Digo limpando os olhos. Não posso falar sobre onde estive, então
contorno sua outra pergunta. — Emily ficou comigo.

Volto para meu lugar na mesa. Se Suzan sabe sobre Simon então todo mundo já sabe
também. Mas duvido que saibam de tudo.
— Como você ficou sabendo de... tudo isso, Suzan? — Pergunto hesitando um pouco na
escolha de palavras. Ela abre a geladeira atrás de mim procurando alguma coisa.
— Joseph esteve aqui. Ele estava muito... Nervoso. Parecia abalado com a notícia do suicídio.
Ela responde e se senta ao meu lado com uma porção de iogurte e uma colher. — Isso

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Capitulo 1

confirma minha teoria, ninguém sabe o que houve de verdade. — E queria saber como você
estava.

Duvido que Joseph se importe o suficiente para vir ver como eu estou. Mas o que
mais ele poderia querer? Não entendo, mas estou exausta demais para continuar a conversa.
— Eu acho que vou dormir mais cedo hoje, tudo bem? — Aviso enquanto me levanto para
colocar meu prato na lavadora. Ela segura minha mão.
— Eu vou estar aqui se precisar, Ashley. Sempre. Durma bem. — Ela diz com carinho.
Deixo-a na cozinha e subo para o meu quarto.

Aproveito que estou sozinha para ver o que tem na caixa. É um dispositivo que não
conheço. Ele é cilíndrico, tem um botão no meio e uma das extremidades está protegida por
um vidro. Dentro da caixa tem um papel dobrado, pego ele para ver o que diz. A caligrafia de
Emily é delicada.

Aperte o botão apontando para o céu noturno quando quiser se juntar a nós. Sei que fará o
que é certo, mas espero que seja logo. Pela nossa liberdade.

Adormeço pensando nisso e durante a noite tenho um pesadelo. Não sei onde estou,
mas o lugar é bem simples com casinhas que mais parecem barracos. Estou distribuindo
alimento para algumas crianças, elas estão sujas e parecem famintas. Uma figura de capuz
surge no meio do aglomerado de crianças. Reconheço instantaneamente. Uma Fúria. Começo
a correr, mas não saio do lugar, enquanto isso a fúria se aproxima, ela carrega uma espada na
mão. Olho para trás e agora estou na beirada de um prédio. Sem nada para me defender, vejo
a fúria empurrar a espada no meu peito e eu caio em direção ao asfalto. O vestido azul
ensopado de sangue.

Acordo assustada, e sinto um alívio por estar no meu quarto. Pela janela vejo que já
está amanhecendo. Levanto da cama e me preparo para o treino. Minha cabeça está lotada, e
a familiaridade da esgrima pode me ajudar a pôr as coisas no lugar.

Chego na academia e coloco meu traje. Faço meu aquecimento enquanto me preparo
para entrar na pista. Viro para o lado e vejo que um homem me observa. Ele é alto e bonito,
tem os cabelos grisalhos bem aparados e suas roupas são elegantes. É Joseph. Ele faz um
sinal para que eu me aproxime. Não gosto da ideia de falar com ele, mas não sei o que mais
poderia fazer, então acabo indo.

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Capitulo 1

— Ashley, como está? — ele pergunta com um cuidado fingido.


— Vou ficar bem, em algum momento. E o senhor? — Ele balança a cabeça. Quero me
enterrar para não ter que continuar a conversa.
— Tenho me sentido muito mal, querida. — Não gosto de como ele finge uma intimidade que
não temos. Ele suspira e se dirige para o banco ao lado, fazendo um gesto para que eu sente
também, eu sigo seu exemplo e me sento. — Sei que vocês eram muito próximos, você estava
com ele e a namorada naquela noite, não estava? — Ele pergunta e começo a me questionar
sobre onde ele quer chegar com isso. Confirmo com a cabeça e ele continua. — O que você
viu naquela noite? — Ele desconfia que algo aconteceu. Será que pensa que é minha culpa?
Não posso contar a verdade, todas as evidências apontariam para Emily, e eu não quero
prejudicá-la. Então eu minto.

— Ele disse que precisava de um ar, nós ficamos esperando e... O senhor sabe o que
houve depois. — Ele parece satisfeito com a resposta. Acho que acredita em mim. Ele olha
para um ponto qualquer pela janela de vidro.
— Ele se sentia sozinho desde o desaparecimento da mãe, Elisa era tudo para ele. Imaginei
que isso aconteceria em algum momento. — Ele fica em silêncio por um momento, parece
estar pensando em como prosseguir a conversa. — E, Ashley, talvez você pense que viu mais
alguma coisa. Mas a nossa cabeça pode distorcer as coisas, sabe? Isso foi tudo o que
aconteceu com Simon, e pode acontecer com qualquer um. — Seus olhos se cerram na minha
direção, e eu entendo a ameaça. Meu coração está acelerado e não consigo falar nada. Alguns
esgrimistas passam ao nosso lado e ele levanta se preparando para ir embora.
— Muito bem, tenho assuntos para resolver, já está na hora de ir. — Ele vira para ir embora.
Como ele sabe? Como ele pode saber que não foi um suicídio? E por que está tentando me
calar quando deveria estar procurando o assassino? São perguntas que não tenho respostas.
Joseph se vira para mim de novo. — Tenha um bom dia, querida, não esqueça do que eu
disse.

Subo na pista e posiciono meus pés. Direito na frente, esquerdo atrás. Faço os
movimentos de saudação para a pessoa que está na minha frente. Mão direita para cima,
depois perto do queixo e por último para baixo. E então começo a golpear meu oponente até
que o suor escorra pelo meu corpo, deixando meu traje pegajoso. Minha espada pisca em
vermelho repetidas vezes, sinalizando sempre que o adversário é atingido. O esforço físico
clareando minha mente.

Simon sempre achou que eu poderia fazer mais. Eu sei do que sou capaz, sei da minha
força. Então por que estou aqui como um animal indefeso e enjaulado? Simon merece justiça

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Capitulo 1

e eu não deveria abaixar a cabeça para Joseph. E talvez Emily estivesse certa, isso também é
sobre a minha liberdade.

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Capitulo 1

Capítulo 07 - Mudança de Planos

HALEY

Tinha que fazer tanto frio nessa droga? Dirigi por pelo menos duas horas (numa
estrada terrivelmente esburacada) e meus dentes estão quase batendo de frio. Sempre me senti
melhor dirigindo, a liberdade de poder ir para qualquer lugar me acalma os nervos. Mas
imaginei que hoje não seria suficiente, por isso vim para um lugar especial.

Ainda na moto, mas já parada, acendo um cigarro, enquanto olho a paisagem. Consigo
ver minha província e a província vizinha daqui de cima. A Província de Marte. Mais ao
longe os prédios da Cidade Solar se destacam, o Rio Espelhado serpenteando entre eles. É
uma visão e tanto.

Minha mãe me trouxe aqui uma vez. Viemos até metade do caminho de trem, e depois
fizemos o resto do trajeto a pé. Lembro de estar cansada e pensar que precisava de um
veículo só meu. Comecei a ajudar meu avô em tudo que ele precisava, então pude guardar
uns trocados. Muitos anos depois comprei minha moto, uma Royal Enfield Himalayan.
Minha Dalila. Somos inseparáveis desde então.

Trago meu cigarro e a fumaça dança pelos meus pulmões. Penso na conversa de hoje
cedo. Eu não deixaria Lewis sozinho agora. Embora eu tenha certeza que Ryan cuidaria bem
dele, já que tem sido uma ótima companhia para o meu avô. E os dois se dão realmente bem.

Fico olhando a vista por um tempo, a diferença entre as províncias e a capital é


gritante. Jogo meu cigarro na grama úmida da manhã. Dou partida na moto e me preparo para
voltar a estrada. Passo minha mão sobre o tanque da moto.
— Dalila, nosso passeio ainda não acabou.

***

As ruas da Província de Marte estão piores do que eu lembrava. As casinhas


modestas, que abrigam pessoas simples parecem que vão desabar. A lama causada pela chuva
cobre toda a estrada.

Encontro a casa sem dificuldade, apesar de simples, tem todo tipo de planta

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Capitulo 1

enfeitando sua entrada. Uma cerca baixa com uma pintura branca descascada separa o singelo
jardim da rua. Guardo Dalila no espaço que Helena reservou para ela.

Minha mãe tinha uma única amiga. E sempre me arrastava junto nas suas visitas a ela.
Helena é filha dessa amiga, ela é um pouco mais velha que eu, mas com o tempo acabamos
ficando amigas também. Da última vez que a vi, ela me contou que estava grávida do
segundo filho. Ela e o marido estavam radiantes. Então, na vinda para cá passei no mercado e
comprei algumas coisinhas para o bebê.

Bato na porta e sou recebida por Oliver, o filho mais velho de Helena. O garoto deve
ter por volta de cinco anos, ele parece inquieto.
— Oliver! Como você está? Sua mãe está em casa? — Pergunto ao menino.
— Oi, Haley. Ela está, vou avisar que você está aqui. — Ele entra correndo e em seguida
Helena aparece, ela dá um sorriso triste.
— Haley, que surpresa boa! Venha, entre. — Ela se afasta da porta me dando espaço para
entrar.

A casa é menor que o meu apartamento. Há uma sala que é ao mesmo tempo quarto. E
os outros cômodos são uma cozinha e o que eu acredito que seja um banheiro.

— Eu trouxe algumas coisinhas para o bebê, espero que goste. — Os olhos de Helena
estão tão tristes que não sei como reagir. Então percebo algo que não vi antes, Helena não
tem mais a barriga de grávida. Puxo ela para um abraço e ela desaba em choro. Depois de um
tempo ela se acalma e começa a falar.
— Aconteceu muita coisa desde aquele dia, Haley. — Ela se afasta limpando as lágrimas do
rosto com as mãos. O que poderia ter acontecido para a situação chegar a esse ponto? — Eu
estive doente a pouco menos de dois meses e o vírus acabou afetando o bebê.
— Vocês não conseguiram uma curandeira? — Lembro-me de como ela estava feliz com a
vinda do filho e sinto uma pontada no coração.
— Sim, conseguimos, ela tentou ajudar. Eu repousei e tive o cuidado de sempre beber água,
mas a dieta era um problema. — Ela não consegue olhar para mim enquanto fala, mas
imagino o quanto está sendo doloroso contar tudo isso. Reviver um pesadelo. — Ela disse
que sem o acompanhamento de um médico seria muito difícil que o bebê sobrevivesse. E
ainda que isso fosse possível, talvez ele ainda teria que conviver com as sequelas.
— Sinto muito pela sua perda, Helena.

Sem clima para continuar a conversa, não demoro muito e vou embora. É lamentável

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Capitulo 1

a situação em que as pessoas das províncias vivem. Volto pelo caminho mais longo, porque
sinto que minha cabeça está mais cheia agora do que quando saí da casa do meu avô.

***

As primeiras estrelas aparecem no céu quando chego em casa. Abro a porta e meu
coração quase pula pela boca.
— Esperei a tarde inteira. — Ryan está sentado na minha cama com as costas na cabeceira e
cruza mãos atrás da cabeça. Os cabelos se rebelando com o ato. Pelo menos tirou as botas.
— Que inferno, Ryan! Você quase me matou de susto! — Meu coração volta ao compasso
normal e então me dou conta de que ele não deveria estar aqui.
— Antes que pergunte, eu estou aqui porque não concordo com a sua decisão. — Mas é
muita coragem. Cruzo os braços sobre o peito.
— Não vejo como isso pode ser da sua conta. — Respondo fechando a porta. — E levanta da
minha cama. Tem um sofá bem aqui. — Digo apontando para o sofá. Ele levanta as mãos em
rendição, calça as botas e senta onde eu sugeri.
— Só estou dizendo que não é a escolha certa, Haley. — Ele abre os braços sobre o apoio de
costas do sofá. Não tem jeito.
— Para alguém que não fala nada você está muito tagarela hoje. — Falo enquanto eu sento na
cama. Ainda de braços cruzados.
— Eu falo quando é necessário, por exemplo quando alguém está prestes a fazer uma burrice.
— Não estou acreditando no que estou ouvindo.
— Você não sabe do que está falando. — Respondo perdendo a paciência. Ele balança a
cabeça.
— Haley, você não quer viver a vida inteira nesse buraco. Ninguém quer. — Ele diz e tem
algo nos seus olhos que não consigo identificar.
— E se eu quiser, Ryan? Por que você se importa? — Respondo ficando de pé. Ele não se
levanta, mas se projeta um pouco mais pra frente, tirando os braços do apoio, juntando as
mãos e colocando-as sobre os joelhos. As pernas entreabertas.
— Porque eu também vou. — Por que ele acha que isso muda alguma coisa? Se bem que eu
não estaria mais sozinha com Jason. Mas ainda tem a questão de Lewis.
— Não posso deixar meu avô sozinho. — Ele começa a rir e volta pra posição de antes.
— Haley, Lewis não está sozinho há muito tempo! — Não entendo o que ele quer dizer e ele
interpreta minha expressão de dúvida. — Lewis tem uma namorada. Agora, porque há uns
meses ele tinha duas. Mas ele já se decidiu e agora está tudo certo. — Não estava esperando
por isso. Mas que velho...
— Coisas grandes estão prestes a acontecer, Haley. — Ryan diz interrompendo meus

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Capitulo 1

pensamentos. Ele se levanta e vai em direção a porta. — Você tem a chance de fazer a
diferença. Não a desperdice. — E então ele vai embora.

Penso em tudo que aconteceu hoje, desde a conversa com Jason, saber o que
realmente aconteceu com a minha mãe, como a Cidade Solar vista do alto parecia zombar das
províncias, a minha visita a Helena, e a aleatória visita de Ryan. Eu concordo com ele, e me
odeio por deixar que meus problemas com Jason me cegassem para isso. Não quero viver em
um lugar como esse. E agora eu finalmente tenho a chance de mudar isso.

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Capitulo 1

Capítulo 08 - Quando A Noite Cair

ASHLEY

Vasculho o closet procurando pela caixinha. Meu coração dispara quando não
encontro. Desço as escadas correndo e encontro Suzan no sofá da sala. Minhas mãos gelam, e
quase verifico o pulso para ver se o sangue parou de correr quando noto o que ela tem nas
mãos.

— Está procurando por isso? — Ela levanta a caixinha enquanto pergunta. Droga.
Não sei como eu pretendia contar, mas com certeza não era assim. Não respondo e ela
continua. — Não sou a pessoa mais tecnológica do mundo, mas sei que esse aparelho não é
daqui.
— É um presente. — Preciso acalmá-la, mas sei que não posso mentir para ela. — Emily me
deu.
Ela puxa o papel dobrado. Eu tinha esquecido disso.
— "Aperte o botão apontando para o céu noturno quando quiser se juntar a nós. Sei que fará
o que é certo, mas espero que seja logo. Pela nossa liberdade." Sinceramente, não sei o que
pensar disso, Ashley. — Ela olha para mim com os olhos semicerrados. Ela não parece saber
do que se trata, mas ainda sim está preocupada.
— Juro para você que não é nada ruim. — Me aproximo dela enquanto falo, esperando que
ele não se exalte.
— Se não é ruim por que escondeu isso? — Me dou conta de que ela mexeu nas minhas
coisas. Ela percebe meu descontentamento, mas não diz nada a respeito. Sua expressão é
séria. — Ashley, eu quero uma explicação para isso e eu espero que você seja sincera.

Não sei o que fazer. Eu confio em Suzan, mas contar tudo o que houve não é algo que
eu queira fazer, nem sei se deveria. Por outro lado, não posso simplesmente ir sem falar nada.
Suzan sempre esteve comigo. A casa dos nossos pais não foi um ambiente acolhedor, mas
Suzan sempre deixou tudo mais leve. E quando ela teve idade suficiente para ir embora fez
questão que eu a acompanhasse. Eu só tenho ela. E ela só tem a mim.

— Simon foi assassinado. — Baixo a cabeça incapaz de olhar para ela. — Eu estou
fazendo isso por ele.
— Ashley, isso é coisa para a polícia! Não é função sua! — Ela não duvidou? Ela já sabia?
Olho para ela e vejo que está com uma mão na cintura e a outra na cabeça, os cabelos pretos
sempre perfeitos agora desgrenhados.

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Capitulo 1

— Eles não vão fazer nada! E se eu abrir a boca sobre isso Joseph vai me matar. Eu não
deveria contar isso nem pra você! — Falar em voz alta fez parecer mais real. Suzan está tão
pálida que parece que vai desmaiar, suspeito que o mesmo pode ser dito de mim.
— Caramba, Ashley, como você se envolveu nisso tudo!? — Ela se levanta e fica andando de
um lado para o outro, está prestes a arrancar os cabelos. — Por que diabos Joseph faria isso?
— Simon era um rebelde. — Ela vira para mim. Sua expressão de espanto está misturada a
algo que não reconheço.
— Isso está cada vez pior. — Ela se senta ao meu lado e coloca as mãos no rosto, os
cotovelos sobre as pernas cruzadas em borboleta.

Conto para ela tudo o que aconteceu. Como as coisas deram errado no jantar. Como
eu acordei numa base rebelde e tudo o que Emily me contou. Explico melhor sobre a visita de
Joseph.

— Não quero que aconteça nada com você, Ashley. — Seus olhos estão tão tristes,
que começo a duvidar da minha decisão. Mas, e se Joseph decidir que é mais seguro se eu
estiver morta de uma vez? E se ele machucar Suzan? Eu não deveria tomar essa decisão por
medo, e sim porque é o certo a se fazer. Simon acreditava que eu deveria fazer isso. E eu não
sei o quão ruim é a vida fora da capital. Sempre soube que não era como viver aqui, mas é
ruim o suficiente para começar uma rebelião? De qualquer forma, eu poderia voltar para casa
a qualquer momento, certo? Não acho que Emily me forçaria a ficar.
— Eu vou ficar bem. — Uma promessa que não sei se posso cumprir. Pego a mão de Suzan,
e acaricio seu dorso.
— Sei que vai. — Ela diz com um sorriso triste.

Volto para o quarto e preparo minhas coisas para ir embora. Não sei exatamente o que
levar, mas vou me esforçar para levar apenas o suficiente. Algumas horas depois tenho uma
mochila e três malas grandes prontas. A ansiedade me percorre quando percebo que já
anoiteceu. Pego o aparelho que Emily me deu, seu pequeno botão me convidando a apertá-lo.
Corro para a janela, aponto para o céu e aperto. Um feixe de luz azul sai cortando o céu
nublado. Não sei por quanto tempo deveria apertar, mas paro depois de alguns minutos. Será
que funcionou? E se ninguém tiver visto? Volto para a cama e me reviro a noite inteira.

Acordo com um barulho de pés arrastando. Levanto e pego minha espada ao lado da
cama. Emily está sentada na poltrona olhando para mim.
— Desculpa! Tentei não fazer barulho, mas... Não quis te acordar. — Olho pela janela e noto
que ainda não amanheceu.
— Não, tudo bem. Que horas a gente vai? — Respondo esfregando os olhos e sentando na

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Capitulo 1

cama.
— Quando você estiver pronta. — Ela olha para a quantidade de bagagem e começa a rir. —
Vai ter que tirar algumas coisas dessas suas malas.

Reorganizamos minhas coisas e uma mochila e três malas grandes foram reduzidas a
apenas uma mala pequena. Alguns hábitos são difíceis de perder. Vou ter que me virar com
isso, mas sinto que é uma mudança que vou precisar fazer, de qualquer forma.

Descemos para a cozinha e encontramos Suzan. Emily já sabe que falei com Suzan,
não ficou satisfeita, mas disse apenas que as consequências disso seriam responsabilidade
minha. Seus olhos estão inchados, provavelmente chorou a noite toda. Me parte o coração
deixá-la sozinha.
— A gente já está de saída. — Digo para ela enquanto encosto minha mala na parede. Chego
perto dela que desconta o estresse nos ovos dentro da frigideira.
— Eu não consegui dormir. Estou preparando um café, por que vocês não esperam? — Meus
olhos buscam a aprovação de Emily e ela concorda com a cabeça.

Emily se senta à mesa enquanto eu ajudo Suzan a cozinhar. Não posso deixar de ficar
um pouco triste em saber que há uma possibilidade de essa situação tão comum nas nossas
vidas acabar não acontecendo de novo. Mas não quero que esse seja um momento triste. Se
eu estivesse em um desenho animado uma lâmpada estaria brilhando sobre a minha cabeça.
Passo os dedos na pulseira e procuro pela música favorita de Suzan. Uma música antiga que
ela se julga melhor do que os outros por gostar. Quando as primeiras notas de “Burning” do
Yeah Yeah Yeahs soam, Suzan levanta a cabeça na minha direção. Ela sorri e inclina a
cabeça. Canta a música inteira com a espátula como microfone e eu acompanho quando
posso. Emily acha graça, mas não cantarola ou diz qualquer coisa. Não posso deixar de
pensar em como a música parece ter sido feita para esse momento da minha vida, sobre tudo
o que eu tenho descoberto.

"What they're hiding there


Is broke, broke, broke"

Quando a música acaba, os ovos estão prontos, e comemos com apenas o barulho dos
talheres como trilha sonora. Pensei que a música apaziguaria os ânimos de Suzan, mas ela
prova que não quando questiona Emily.

— O que vocês pretendem fazer? Temos um sistema muito bem estabelecido, não
acho que vocês terão uma missão simples. — Emily não se deixa intimidar por Suzan.

01
Capitulo 1

— Estas informações são confidenciais. Ashley saberá quando for o momento. — Elas se
encaram por um tempo e eu queria não ter esperado pelo café.
— Não pense que eu estou totalmente alheia ao que vocês têm feito. — Olho confusa para
Suzan. Do que ela está falando?
— Nós temos os nossos métodos. Não existe triunfo sem alguns sacrifícios. — Que
sacrifícios? Elas se olham por um instante e a conversa acaba.

— Nos preparamos para sair, e Suzan me dá um abraço.


Ashley, eu sei como você pode ser... Flexível demais. Mas não deixe que ninguém diga a
você o que fazer. Não esqueça da força que tem. — Ela beija minha testa. — E não importa o
que aconteça, você sempre terá um lar esperando por você.

Algumas lágrimas depois, entro na esfera com Emily. Minha decisão foi tomada.
Sinto que coisas grandes estão prestes a acontecer e eu farei parte delas. A música ecoa na
minha cabeça.

"Whatcha gonna do when you get to the water?"

Ao fim do percurso descemos da esfera e começo a entrar em desespero. O carro que


nos espera está vazio. O que houve com o motorista?

***

TRADUÇÃO DOS VERSOS DA MÚSICA

What they're hiding there


Is broke, broke, broke
O que eles estão escondendo lá
Está quebrado, quebrado, quebrado

Whatcha gonna do when you get to the water?


O que você vai fazer quando chegar à água?

01
Capitulo 1

Capítulo 09 - Trilha de Sangue

HALEY

Tenho tudo pronto para a viagem. Minha mochila tem apenas algumas roupas e
comida. Não acho sensato encarar uma viagem de 300km sem nada para comer. Dalila e eu
temos uma longa jornada pela frente.

Chego à casa de Lewis e os três já estão na porta da loja esperando. Ryan e Jason tem
uma mochila nas costas cada. Não falo com Jason. Ryan dá o habitual aceno de cabeça.
Aceno de volta. Meu avô está um pouco desanimado.
— Também vou sentir saudade. — Digo para ele enquanto o abraço.
— Não estou chorando. — Ele diz com lágrimas se formando nos olhos. — É esse vento, ok?
— Não tem vento nenhum, mas finjo que concordo.
— Quero que leve isso com você. — Ele diz me entregando um caderno de capa preta. Olho
melhor e percebo que é um diário. — É da sua mãe, talvez ajude de alguma forma. — Não
sabia que ele guardava isso. Agradeço enquanto guardo na mochila.
— Vou sentir sua falta, Haley. — Ele diz segurando minha mão.
— Também vou sentir a sua. Espero que sua namorada seja uma boa companhia. — Ele
arregala os olhos e se vira para Ryan, que tenta conter um sorriso.
— Tem sorte que já está de saída. — Ele resmunga para Ryan.

Saímos cedo para ter certeza de que chegaríamos ao destino antes do meio-dia. Ryan
leva Jason na própria moto (que eu não sabia da existência). Ela é uma scrambler como a
minha, mas não sei dizer exatamente o modelo. Talvez eu pergunte mais tarde.

Ryan vai na frente. Ele é o único que conhece o caminho. A melhor rota nos obriga a
passar em duas províncias. A Província de Marte, que é a província de Helena, e a Província
de Vênus. O que é ótimo, por que vamos precisar reabastecer nosso combustível. Embora
Dalila consiga fazer o trajeto com um tanque cheio, quero estar preparada para possíveis
mudanças no caminho.

Passamos pela Província de Marte e o caminho a partir disso foi só ladeira abaixo.
Lama, pedras e buracos por toda parte. Os buracos do tamanho de crateras me dão uma ideia
do que Neil Armstrong viu na lua. Não consigo abandonar a estranha sensação de estar sendo
seguida. Fazemos uma pausa para comer algo perto da estrada, logo após abastecer. Engulo
rápido meu sanduíche de carne seca, querendo voltar pra estrada.

01
Capitulo 1

Nos preparamos para sair quando um bando de pássaros voa das árvores ao lado da
estrada.
— Esperem. — Ryan diz arregalando os olhos, olhando de um lado para o outro. — Tem
alguém aqui. — Ele puxa um revólver da mochila e joga para mim. Ele já tinha um no cós da
calça, que ele pega e destrava. Não tenho certeza do que fazer, mas também não quero
perguntar. Destravo a minha também e imito seu movimento de apontar para a floresta a
procura do alvo. Alguns minutos depois desistimos da busca e voltamos à estrada. E é aí que
elas aparecem.

Olho pelo retrovisor e vejo as duas figuras com mantos e encapuzadas nos seguindo.
Elas estão suspensas a pelo menos meio metro do chão. Estão voando? Ryan também percebe
e aumenta a velocidade. Seguimos o mais rápido que podemos e elas sempre no encalço.
Poderíamos levar elas até a base, com certeza teríamos ajuda lá. Mas aí correríamos o risco
de revelar sua localização. Então precisamos resolver isso logo.

Reduzo a velocidade. Ryan olha para mim sem entender. Jason está tão assustado que
seus olhos parecem que vão saltar. Viro Dalila na direção contrária e elas estão indo rápido
demais para conseguir virar também. Pego a arma para atirar, mas percebo que posso atingir
Ryan ou Jason também. Não sou fã número um de Jason, mas isso não significa que o quero
morto.

Porcaria. Uma das Fúrias consegue virar na minha direção antes que eu consiga
pensar em algo. Faço a primeira coisa que penso e entro no meio da mata. Saio desviando das
árvores sem tempo para ver se ela me segue. Eu ainda estou viva, isso deve ser um bom
indicativo. Começo a entrar em pânico quando ouço o barulho de água corrente. A floresta
não está mais tão escura agora, o que significa que estou perto de uma clareira, ou neste caso,
de um rio. Já consigo ter uma visão da água agora. Tem pedrinhas cinza escuro por toda a
margem, seguir por ela não é uma boa escolha, mas é a única que tenho. Me desequilibro e
caio sobre as pedras. Olho para trás e para meu alívio a Fúria se foi. Ninguém mais cultua
deuses, mas eu agradeceria a todos eles se pudesse lembrar seus nomes. Volto para a estrada
com o joelho ardendo pelo novo machucado.

Tem uma trilha de sangue na estrada. Droga. Droga. Droga. O que aconteceu? Se a
moto continua seguindo então Ryan está vivo. Possivelmente machucado, mas vivo. E se
tiver sido Jason? Estou com medo do que pode ter acontecido. Para meu alívio as primeiras
casas da Província de Vênus aparecem. A trilha de sangue que antes eram gotas, aumenta
significativamente. Meu medo cresce.

01
Capitulo 1

Atrás de uma curva Ryan está vindo na minha direção. Sozinho.


— Onde está Jason? — Pergunto preocupada quando ele para ao meu lado. Não queria me
importar, mas me importo mesmo assim.
— Ele se machucou um pouco, mas já o deixei em um curandeiro. — Ele responde e dá a
volta para ficar na direção que vamos seguir.
— O que houve com a Fúria? — Pergunto e ele olha para mim. Não consigo desviar os olhos.
Seus olhos verde e castanho são de uma beleza única.
— Está jogada na estrada com pelo menos três balas no peito. Jason tem uma mira bem
descente. — Ele responde e seguimos para o curandeiro.

***

Jason está sobre a cama com um corte feio na costela direita. O curandeiro, que se
apresentou como Trevor, terminou de limpar e agora fecha com um curativo. O quarto é
simples e pequeno, mas está muito limpo e organizado. Tem alguns remédios sobre a mesa e
me pergunto como conseguiu. Provavelmente de algum contrabandista.
— Este homem tem sorte de ter sido pego tão perto. — Trevor diz para ninguém em
particular enquanto limpa o sangue das mãos. — Modéstia à parte, os melhores curandeiros
de Meridia estão na Província de Vênus. — Trevor continua e me pergunto se a localização
da base tão perto daqui não é estratégica. Penso em Helena. Talvez seu bebê estivesse
crescendo saudável agora se ela tivesse pelo menos conseguido vir aqui.
— Vai querer que eu dê uma olhada nesse joelho também? — Trevor pergunta olhando o
meu machucado. O ferimento é pequeno, mas tenho certeza de que ele fará um trabalho
melhor que o meu.

Observo enquanto ele limpa meu ferimento. Trevor não deve ser muito mais velho
que eu, talvez tenha uns cinco anos a mais. Tem o cabelo preto bem aparado, e covinhas na
bochecha. Sua pele negra tem um brilho bonito. Trevor é um homem bonito. Quando termina
o trabalho ele nos deixa sozinhos com Jason.

Jason dorme por horas, está completamente pálido. Quando acorda está um pouco
atordoado olhando para os lados, mas fica mais tranquilo quando nos vê.
— O que aconteceu? — Ele pergunta e Ryan conta a história para nós dois. Jason desmaiou
logo após deixarem a Fúria para trás e Ryan teve que usar uma das mãos para segurá-lo, o
que o fez demorar um pouco mais a chegar ali. Lembro da trilha de sangue aumentando. Ele
repete o que Trevor nos disse, que Jason vai ficar bem, mas precisará de repouso. Depois de
muita insistência de Jason e da garantia de Trevor que ficaria tudo bem, resolvemos seguir

01
Capitulo 1

para a base e voltar depois para buscá-lo. Apesar das nossas diferenças, fico feliz que Jason
está vivo. Ele está de volta e eu tenho que aprender a lidar com isso.

Chegamos à base e me surpreendo com o que encontro. Um muro alto com arame
cerca toda a base, que não é muito grande, mas parece segura. No portão, um homem do lado
de dentro abre um pequeno espaço e olha para nós. Segundos depois o portão se abre com um
barulho alto e o homem diz com um sorriso:
— Bem-vindo de volta, Ryan! É muita coragem sua voltar aqui, ainda mais acompanhado.

Não faço ideia do que me espera aqui, mas essas palavras não parecem presságio de
coisa boa.

01
Capitulo 1

Capítulo 10 - Caminhos Cruzados

ASHLEY

Nos aproximamos do carro. Onde está o motorista? Será que as Fúrias o pegaram?
Enquanto estou paralisada Emily abre a porta do motorista e entra.
— Você não vem? — Entendi, Emily é a motorista. Sento no banco do passageiro enquanto
meus batimentos normalizam. — Se eu fosse você colocaria esse cinto. — Ela diz com um
sorriso suspeito. Spoiler: meus batimentos só normalizaram quando desci do carro.

***

— Nunca vou esquecer sua cara! — Emily gargalha agitando a chave na mão. —
Talvez a gente deva fazer um passeio como esse mais vezes. — Olho para ela com os olhos
arregalados. Não sei se eu sobreviveria a mais uma viagem com Emily. Ela é completamente
maluca ao volante.

Passamos pelo portão e o porteiro diz algo a Emily, pela careta que ela faz não parece
ser algo agradável. Depois de uma breve caminhada, entramos e dessa vez observo o
ambiente em que estou. Da primeira vez que estive aqui cheguei inconsciente, e na saída
tinha coisa demais na cabeça para conseguir me atentar a isso. Estamos no que parece uma
recepção, tem apenas dois sofás, uma mesa de centro e um quadro de Solares pendurado na
parede, quase igual ao do quarto de Emily. Ela me convida a sentar e entra na sala ao lado,
depois volta com um caderno na mão e coloca na mesa.

— Então, Ashley, tem algumas regras aqui que todos nós devemos seguir. — Ela se
senta a minha frente e cruza as pernas, de modo que seus pés estão sobre o próprio sofá. —
Antes de qualquer coisa, sua pulseira fica comigo. — Ela estende a mão esperando que eu
entregue, a pulseira tem um sistema que impede que ela seja removida por alguém que não
seja o dono. É difícil me despegar quando uso ela desde a adolescência. Receber a pulseira é
um evento. Tiro do pulso e entrego, relutante. — Além disso todos aqui ajudam nas tarefas
domésticas, e logo você saberá quais serão suas funções. — O modo como ela fala evidencia
que ela repete isso com frequência. Algumas tarefas domésticas não serão um problema para
mim. Suzan e eu as dividíamos em casa também. — Três refeições por dia serão servidas no
refeitório, mas dependendo da sua necessidade você pode solicitar mais alguma coisa para
comer. Além disso, sempre terá treinadores na academia, alguns mais vezes que outros, mas
independente da presença deles, você pode ficar lá o tempo que quiser. — Ela pega o caderno

01
Capitulo 1

que pôs na mesa. — Isso nos leva ao próximo tópico. Você pode ficar o tempo que quiser,
mas temos um toque de recolher, então se atente ao horário. Nem todo mundo aqui vai ser
gentil com você. — Além de Emily, só conheci o motorista e o porteiro, e estes não falaram
comigo mais do que o necessário. Sei que não vou receber gentileza por aqui, e isso me
frustra um pouco. Ela abre o caderno e procura por algo. — Aqui diz que o quarto... 11 está
disponível. E sua colega de quarto chegou ontem à noite. Alguma dúvida? — Ela me olha
com atenção. Dividir não é algo que eu precisei fazer muitas vezes. Suzan sempre fez questão
que eu tivesse minhas próprias coisas. Ela não é muito boa em dividir. Mas talvez seja legal
ter por perto alguém que também acabou de chegar.

— Hum... — Pauso pensando nas melhores palavras para continuar. — Você disse
que esse lugar é um ponto de partida para outro. A que outro lugar você se refere? — Seus
olhos verdes me encaram com uma expressão que não consigo ler.
— Não é importante agora. Por hora é só isso, Ashley, vou mostrar a você onde ficam os
dormitórios.

Emily me guia até o corredor dos dormitórios femininos e depois vai embora. Procuro
o quarto de número 11. Giro a maçaneta da porta e entro. O quarto minúsculo tem duas
camas de solteiro e uma cômoda entre elas. É cedo demais e minha colega ainda dorme. Fico
feliz por adiar nossas apresentações. Não consigo vê-la direito, por que os cabelos cobrem
parcialmente o rosto virado para a parede. Abro a primeira gaveta da cômoda e já está
ocupada. Fecho a gaveta e passo para a terceira, que está vazia. Abro minha mala e começo a
guardar minhas coisas.

É tarde demais para voltar a dormir, e muito cedo para comer de novo. Então vou
direto para a academia. Não demoro muito para encontrá-la. Um homem já está treinando
quando eu chego, ele é alto e mais velho que eu, ele tem um certo charme. Não falo nada e
começo meu treino. Minutos depois o homem se aproxima.

— É seu primeiro dia? — Ele pergunta e eu me assusto com a proximidade, não


percebi que ele estava tão perto. Respondo que sim e ele continua o treino perto demais. Me
afasto, pego minha espada e repito os movimentos até a treinadora chegar. Ela é uma mulher
relativamente baixa, tem a pele negra e longos cabelos castanhos e cacheados. Ela me olha
feio, mas não diz nada. Mais pessoas chegam para treinar, e esperam as instruções da
treinadora.

Uma mulher com mais ou menos a minha idade me chama a atenção. Ela é muito
familiar. Parece com Elisa, a mãe de Simon. Seu cabelo é preto e curto. Ela usa uma camiseta

01
Capitulo 1

cinza, calça jeans preta e coturno. Tem um rosto muito bonito. Está acompanhada de um
homem, um pouco mais alto que ela, cabelos na altura dos ombros e a barba de alguns dias
por fazer. A mulher olha para mim e eu percebo o motivo da familiaridade. É Haley, a prima
de Simon. Será que ela também me reconheceu? Ela desvia os olhos para a treinadora, que
começa a falar.

— Estou vendo alguns rostos novos hoje, outros nem tanto. — Ela lança um sorriso
atravessado ao homem que acompanha Haley. — Mas acho melhor me apresentar. — Ela faz
uma pausa. —Meu nome é Raven, e estarei aqui com um grupo pela manhã e um pela tarde,
às terças e quintas. Que são os dias de treino com armas de fogo. Aqueles que já passaram
por a aula introdutória podem se dirigir ao estande. James vai auxiliar vocês. — James é o
homem que falou comigo mais cedo, ele toma a frente e desce por uma entrada que dá para o
subsolo, a maioria dos rebeldes o segue. Nosso grupo foi reduzido a quatro. Além de Haley,
uma menina loira e alta de uns dezoito anos, e um homem baixinho que começa a apresentar
calvície nos cabelos pretos, que deve ter mais ou menos trinta e cinco anos, e, é claro, eu.

Raven começa a explicar os diferentes tipos de arma e a quais situações elas se


adequam melhor. Depois dá para cada um de nós uma pistola, e mostra como carregar,
segurar, mirar e disparar a arma corretamente. Tenho certa dificuldade em algumas etapas,
mas sei que terei tempo para aprender. Raven, no entanto, olha para mim como se eu fosse
um insulto a arte de recarregar pistolas.

— Você não vai durar muito tempo se continuar assim. — Ela me diz e repete o
movimento impacientemente. Haley olha para mim, mas desvia os olhos e continua sua tarefa
de recarregar a arma. Fico um pouco envergonhada. Lembro da última vez que a vi, será que
ela ainda se ressente pelo que houve entre nós? Quando o treino acaba tomo um banho e vou
almoçar.

Não tive dificuldade em encontrar o refeitório, foi só seguir direto pelo corredor dos
dormitórios. Inclusive, descobri que os dormitórios masculinos ficam ao lado, e também dão
para o refeitório, fazendo meio que uma simetria. A sopa de origem duvidosa não tem um
gosto muito bom, mas me sento sozinha e como mesmo assim. Alguém se aproxima de mim
e se senta ao meu lado. James, o outro instrutor. Perto demais de novo.

— E aí? Como foi a aula com Raven? — Ele pergunta com um interesse que não
tenho.
— Foi legal. — Respondo me esforçando para demonstrar desinteresse.
— Posso dar umas aulas extras a você se quiser. — Não sei o que ele quer, mas normalmente

01
Capitulo 1

as pessoas não saem oferecendo nada sem querer algo em troca.


— Estou indo bem na aula da Raven. Obrigada. — Respondo torcendo para que ele vá
embora logo.
— Eu posso ser um ótimo professor. — Ele insiste e pisca tentando parecer sedutor. Que
droga. Não gosto disso, mas não quero chamar atenção.

— Você é o James, não é? — Alguém fala e ele vira para ver quem é. Tento olhar
também, mas minha visão está bloqueada por ele. — Ouvi alguém chamando por você na
academia. — Me esforço um pouco mais e vejo minha salvadora. É Haley, com os braços
cruzados. O homem olha para ela e cerra os olhos.
— Não deve ser nada importante. E eu estou ocupado. — Ele vira para mim com um sorriso,
que estou começando a odiar.
— Não sei, parecia bem importante sim. — Haley insiste. Ele olha para ela claramente
insatisfeito ela parece não se importar. James se volta para mim de novo.
— A gente conversa depois, ok? — Ele me diz com uma simpatia forçada que me irrita e vai
embora. Fico aliviada por vê-lo ir embora, e nervosa por ter que encarar Haley de novo. Ela
toma o lugar dele ao meu lado.

— Há quanto tempo, Ashley? — Ela olha para mim com um sorriso desconcertado
enquanto brinca com o pingente no pescoço. Acho que agora teremos a conversa que
deveríamos ter tido há muito tempo.

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Capitulo 1

Capítulo 11 - Laços do Passado


HALEY

DOZE ANOS ANTES

Minha mãe segura minha mão impaciente, batendo o pé no chão, enquanto esperamos
minha tia Maeve vir nos buscar. Da última vez que estivemos na Cidade Solar, caminhamos
até a casa dela, e eu amei ver a cidade de perto. Dessa vez iremos em uma esfera, o que para
mim é igualmente interessante, já que eu só entrei uma vez.

Quando Elisa chega nos cumprimenta e entramos na esfera. Fico impressionada com o
fato de que por fora, a esfera é completamente branca, mas de dentro eu posso ver tudo lá
fora, é só um vidro transparente. Tem uma música serena tocando, e os bancos são tão
confortáveis que eu poderia dormir aqui. Quero que minha moto seja confortável assim.

Dessa vez nosso caminho não passa pelo Rio Espelhado, e é muito mais rápido.
Chegamos ao destino e Simon nos espera na chegada, com sua amiga Ashley. Simon gosta
dela, eu adoraria que fossemos amigas também. Espero que ela não vá embora tão cedo como
da última vez.

— Haley! A gente estava indo dar uma volta pelo parque, quer ir? — Simon pergunta
com a empolgação de sempre, afastando os cabelos dos olhos. Ele deixou o cabelo crescer
desde a última vez que o vi. Olho para minha mãe com uma suplica nos olhos. Ela assente
com a cabeça dando um sorriso.
— Não voltem muito tarde! E cuidado, não vão se meter em confusão! — Minha tia diz
entrando na casa com a minha mãe.

— Ah, Elisa... — Ainda ouço minha mãe dizer enquanto balança a cabeça e ri. Ela
sempre achou que a proteção de Elisa um pouco exagerada.

— Oi, Ashley. — Digo para ela enquanto caminhamos.


— Oi... Harley? — Ela pergunta com uma expressão de dúvida. Com o laço azul na cabeça, e
o vestido branco, Ashley tem uma aparência angelical.
— Quase. É Haley. — Ela concorda com a cabeça e Simon nos olha satisfeito.

— Talvez a gente veja algum macaquinho, sabia? — Simon diz com uma expressão
sonhadora e animada. — Meu pai trabalha ao lado do parque e ele disse que tem vários

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Capitulo 1

andando pelas árvores de lá. — Não sabia que o tal parque ficava perto do Edifício Alvorada.
Não gosto nada de Joseph. Só nos vimos uma vez, mas a antipatia do homem foi suficiente
para formar minha opinião. Não acho que ele goste de mim também.
— Que tipo de macaco? — Pergunto afastando a imagem de Joseph da cabeça.
— Não faço a menor ideia, mas todos são divertidos para mim. — Ele responde dando de
ombros.

***

Macacos pregos. De fato, tem muitos deles e são realmente divertidos. Eles brincam e
se penduram pelas árvores. A floresta fica logo atrás do parque e de uma fileira de prédios,
inclusive o Edifício Alvorada. É maior do que eu pensei que fosse e se destaca entre os
outros. Simon está encantado vendo os macacos, mas Ashley parece um pouco entediada.
Vejo a oportunidade de me aproximar e aproveito.
— Ei, quer ver quem dá uma volta mais rápido ao redor do prédio? — Proponho à Ashley e
ela estreita os olhos. Penso que ela vai me ignorar de novo, mas ela confirma com a cabeça.
— A gente volta logo, Simon. — Aviso e ele continua olhando os pequenos saltitantes, nos
dispensando com um gesto de mãos.

Conto até três e disparamos em direção ao prédio. Ashley me olha com um sorriso de
orelha a orelha enquanto me deixa para trás. Hoje não, Ashley. Uso todas as minhas forças e
consigo ultrapassá-la. Olho para trás comemorando minha quase vitória assim que chegamos
à parte de trás do prédio, onde algumas pessoas estão reunidas. Percebo isso tarde demais, e
me choco contra uma delas. Porcaria. Crio coragem para levantar e começar a pedir
desculpa, mas travo quando vejo quem é a pessoa. É claro que tinha que ser Joseph.

Atrás de mim, Ashley também parou a corrida e olha abismada de um para o outro.
Joseph não parece feliz em me ver. Seu cabelo e barba estão bem aparados, e alguns fios
brancos começam a aparecer. Se não fosse a personalidade horrível, eu o acharia um homem
bonito. Olho para a pessoa que está com ele e percebo que é uma mulher. Ela é jovem, deve
ter vinte e poucos anos. Seu cabelo prateado, preso em um rabo de cavalo com duas mechas
soltas emoldurando o rosto, contrasta com a sua pele escura. O terno bem ajustado dá a ela
uma postura imponente. Um dos seus olhos é vermelho, de algum jeito eu sei que ele vê mais
do que deveria. Algo no jeito frio como ela me olha me faz querer correr na direção contrária.
— Me desculpe, senhor, eu estava distraída e não o vi. — Digo com a cabeça abaixada. Meu
respeito é mais para ela do que para ele. Levanto a cabeça e ele nos olha com tanta raiva que
estremeço. Ashley parece que vai desmaiar.
— Suma daqui. — Ele diz e nós duas saímos correndo.

01
Capitulo 1

Simon ainda olha os macacos brincando quando voltamos, mas agora faz isso sentado
em um balanço.
— Por que parece que vocês viram um fantasma? — Ele pergunta pausando o vai e vem do
balanço.
— Porque nós vimos algo pior. — Respondo sentando-se ao lado dele. Ashley se senta
também. — Mas não importa.

Brincamos nos outros brinquedos por bastante tempo. Ashley parece ter esquecido o
que houve mais cedo e está mais interessada em mim do que da última vez. Voltamos para a
casa de Simon bem na hora do almoço.

Joseph almoça em casa. Ele parece inquieto, e não acho que seja estresse de um dia
comum. Suas olheiras me lembram dos dias ruins que minha mãe teve há algum tempo atrás.
Será que tem algo a ver com a mulher que estava com ele? Será que era algo que não devia
ter sido visto? Mas se fosse segredo, tenho certeza de que dentro do edifício seria mais seguro
para o encontro, e não atrás dele. Não entendo, talvez seja outra coisa. Evito olhá-lo demais.

Sempre gostei da comida da tia Elisa, mas a presença de Joseph me faz comer um
pouco sem vontade. Minha mãe também está pouco a vontade. Penso que talvez Joseph fosse
o motivo da nossa vinda surpresa da última vez. Tento me concentrar em algo positivo. Pelo
menos Ashley me deixa se aproximar agora, ela até conversou comigo sobre a irmã. Estou
feliz por isso, pelo menos. Ela olha pra mim com as sobrancelhas erguidas enquanto tenta
sorrir sem deixar a comida cair da boca.

— Ashley, sem brincadeira! Tenha educação! — Joseph a repreende e ela se encolhe,


penso que talvez ela tenha muitos motivos para "ter medo de gente" como Simon disse
quando nos conhecemos. Por que será que ela é tão calada? E por que ela vive com a irmã?
Onde estão seus pais?

Pela primeira vez penso em como sou feliz por ter Jason e Maeve por perto.

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Capitulo 1

Capítulo 12 - Vida Nova


ASHLEY

Haley espera por minha resposta enquanto olha para mim ao meu lado. O refeitório
está quase vazio agora. Tomo coragem e respondo:
— Já faz muitos anos.
— Confesso que estou surpresa de vê-la aqui, Ashley. — Ela diz amigavelmente. O tom dela
não me tranquiliza, muito pelo contrário, me deixa alerta. Limpo a garganta e pergunto:
— E por que não? — Afasto o prato porque não há possibilidade de continuar meu almoço.
Pelo brilho nos olhos de Haley eu fiz a pergunta que ela queria ouvir.
— Você não é o tipo de pessoa que sai da zona de conforto. E aqui... — Ela olha em volta. —
Não é um lugar muito confortável. — Ela não está errada. E eu sabia que as pessoas
pensariam isso de mim aqui, só não imaginei que a primeira vez que eu ia ouvir isso sairia da
boca dela.
— Algumas mudanças são necessárias. — Respondo querendo pôr fim a provocação. Gosto
de Haley, mas não tenho que aceitar isso.
— Sabe, Ashley, tem muita coisa ruim acontecendo por Meridia. Qualquer um que esteja
aqui tem muitos motivos para isso. Mas você saiu da capital, e está aqui lutando pela mesma
causa que nós... — Ela faz uma pausa e fico ansiosa pelo que vem depois. — Você tem muita
coragem, e eu respeito isso. — Solto o ar que não percebi que prendia, a opinião dela não
deveria importar, mas fico feliz mesmo assim.

— Mas ainda acho que isso é mais a cara de Simon. — Ela diz com um sorriso, e algo
se quebra dentro de mim. A tensão que eu sentia diminuir, volta a aumentar. — Como ele
está? Continuam inseparáveis? — Meus olhos buscam o chão. Ela não sabe. Como saberia?

— Simon foi um de nós, mas as Fúrias... — As palavras entalam. Não consigo


continuar, e sei que não preciso. Todos nós sabemos o que acontece quando uma Fúria cruza
o caminho de um Sombrio. Quando Haley não responde olho para ela. Seus olhos estão
distantes e consigo sentir a tristeza no ar. — Sinto muito, Haley.
— Obrigada. — Ela diz depois de um tempo, enquanto esfrega o dorso da mão nos olhos,
afastando a umidade. — Isso deve ter sido mais difícil ainda para você.
— Ainda está sendo. — Ficamos em silêncio por alguns minutos. Ela brinca com o colar no
pescoço, com um pingente de Solares.

— Você já passou pelo Rito? — Haley pergunta deixando o assunto anterior para trás.
Não sei do que se trata, e minha expressão deve ser de confusão por que ela começa a

01
Capitulo 1

explicar.
— Todos os Sombrios têm uma tatuagem com os números 0070. A maioria faz na nuca, mas
você pode escolher onde faz. — Lembro da tatuagem de Simon, então foi assim que ele
conseguiu. —Nós até podemos ser rebeldes, mas não seremos Sombrios até que o Rito
aconteça, pelo menos foi isso o que Ryan me contou. — Ryan deve ser o homem que estava
com ela no treino mais cedo. Será que são... — Ele não é meu namorado. Se é isso que está
pensando. — Era exatamente o que estava pensando antes dela interromper meu raciocínio,
mas não vou comentar. Ao invés disso pergunto:

— Você sabe para onde as pessoas vão a partir daqui? — Emily me disse que este
lugar é um ponto de partida, mas se recusou a compartilhar mais do que isso. Mas Haley
parece ter informações que eu não tenho, e eu vou tê-las de qualquer forma.
— Uma fortaleza ao Norte, dizem que há centenas de Sombrios por lá. — Ela tem uma
expressão de incredulidade enquanto fala. — Lá é o coração da revolução. É pra isso que nós
somos treinados, é lá que as coisas realmente acontecem. Como você ainda não sabia?
— Não devo ter me atentado, talvez. — Me pergunto por que Emily me escondeu isso. —
Tive dias agitados.

— Eu entendo. — Ela assente, sabe a que agitação eu me refiro. Ela verifica o relógio
de parede do refeitório. — Droga! Tenho um compromisso agora, Ashley. A gente se vê
logo, certo?
— Claro. — Respondo e quando penso que ela vai embora, ela vira de novo e pergunta:
— Qual é o seu quarto mesmo?
— Número 11. — Minha língua age mais rápido do que meu cérebro. Ela sai com passos
apressados. O que será que ela vai fazer com a informação? Embora, isso não tenha sido o
desastre que eu achei que seria. Talvez eu esteja criando desgraça onde não existe. Ou talvez,
ela só não quis ter a conversa agora. Não consigo afastar a sensação de que ela vai tocar no
assunto em breve. Afinal, ela acabou perdendo muito por minha causa.

***

Volto para o quarto sem saber direito para onde mais ir. Não quero encontrar James na
academia de novo. Aparentemente minha colega pensou em fazer a mesma coisa. É a menina
que estava na academia hoje. Talvez "menina" não seja o termo mais adequado para
descrevê-la. Ela estranhamente parece jovem e mais velha ao mesmo tempo. Está
cantarolando enquanto olha um papel. Ela dá um pulo quando me vê e abre um largo sorriso.

01
Capitulo 1

— Ei, você deve ser a Ashley, certo? — Ela estende a mão na minha direção. — Eu sou a
Jessica, vou ficar nesse quarto também. — Jessica tem uma alegria contagiante. Gosto dela
imediatamente.
— Sou a Ashley sim. — Respondo tentando parecer amigável.
— Emily passou aqui a alguns minutos atrás, ela trouxe a lista de tarefas. — Ela vira o papel
na minha direção. Terça-feira: Louça do almoço. Leio as palavras à minha frente. — Nós
vamos fazer isso juntas. — Ela diz com empolgação.

Quando chegamos a cozinha encontramos pilhas enormes de pratos e muitas panelas.


Suzan e eu nunca tivemos tanta louça. Levamos muito tempo para terminar, mas Jessica
preenche com muita conversa. Como eu disse, Jessica parece jovem, mas não é tanto assim,
na verdade ela é mais velha que eu. A idade que eu achei que fosse dezoito pulou para vinte e
seis. Ela acabou deixando a filha pequena com o pai. Ela diz que não foi uma decisão fácil,
mas acabou tendo que fazer isso. Não acho justo com a criança, mas também não acho que
seja da minha conta. Pelo que tenho ouvido, a vida nas Províncias obriga as pessoas a
fazerem muitas coisas difíceis.

Penso em treinar um pouco, mas quando chego na academia James e Raven estão
juntos, as duas pessoas que eu menos quero ver. Sentados no tatame, ambos parecendo
cansados, talvez tenham acabado uma luta. Eles conversando tão próximos que por um
segundo me preocupo que ela esteja na mesma situação que eu estive mais cedo. Mas então
ela põe a mão na perna dele e começa a rir de algo que ele falou. Volto para o quarto antes
que eles me vejam. O resto do dia voa depois disso.

Os dias seguintes não foram tão diferentes, na quarta tivemos aula de combate corpo a
corpo, e me saí bem melhor do que na aula anterior. Pela tarde, Jessica, uma dupla de homens
e eu ficamos responsáveis pelo jantar, descobri aí que somos por volta de 60 pessoas na base.
Na quinta, tivemos nossas atividades pela manhã, e cuidamos da horta. Emily apareceu para
nos dar uma força, e Jessica tagarelava quando eu cheguei. As duas se olharam e começaram
a rir da minha roupa, um macacão jeans, uma T-shirt branca e um tênis branco. Alguns
minutos depois a cor original do tênis era um mistério para quem visse. Jardinagem não era
uma tarefa dividida entre mim e Suzan. Pela tarde, aula de tiro com James e Raven. James
sempre parecia ter algo para corrigir no meu jeito de atirar, embora eu saiba que era só uma
desculpa para se aproximar. Depois de algumas vezes recusando ajuda ele se deu por vencido
e me deixou em paz. Haley tem uma mira muito boa, cheguei a pensar que ela já atirava
antes, mas ela não pulou a aula introdutória, então acredito que é um talento nato. Não
conversamos mais depois do encontro no refeitório, e me sinto um pouco desapontada. Dessa
vez eu mesma tomarei iniciativa. Amanhã, penso.

01
Capitulo 1

Hoje é sexta, dia de lavar banheiro. Eba. Fico mais tranquila quando penso que pelo
menos a aula hoje é de comunicação segura e não é tão cansativa como combate e defesa.
Banheiros lavados, banho tomado, almoço devorado, me dirijo a aula. Com uma breve
espiada constato que Haley não está, deve ter feito a aula pela manhã. Os principais tópicos
são sobre criptografia e uso de códigos. Parece o tipo de coisa que se aprende e nunca é
usado, mas sendo um rebelde, nunca se sabe.

Mais tarde, acordo com alguém entrando no quarto. Meu coração se agita. É Emily,
está escuro, mas reconheço a silhueta pela luz que vaza da porta. Ela não deveria estar aqui
essa hora da noite. O horário do toque de recolher ficou para trás há bom tempo. Ela chega
tão perto que consigo sentir o calor dela, acompanhado de um cheiro bom. Pêssego,
definitivamente. O mesmo que eu senti na cama quando vim aqui pela primeira vez.

— Preciso falar com você. — Ela diz no meu ouvido. — Na minha sala. — O que
seria tão importante que ela não pode esperar até de manhã? Levanto sonolenta e a
acompanho.

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Capitulo 1

Capítulo 13 - Segredos
HALEY

Preciso encontrar Ryan. Deveríamos ter partido para a Província de Virgem há quase
uma hora, e ainda não consegui o encontrar. Já faz três dias desde que chegamos aqui, e
visitamos Jason ela última vez ele não tem melhorado muito e não gosto da ideia de Trevor
precisar cuidar dele sozinho. Também não posso ir sozinha, e nem a presença de Ryan é
reconfortante o suficiente agora, tendo em vista os perigos que nos rondam. Mas não quero
mais ninguém com a gente. Incomodar Ryan já é suficiente para mim. Embora ele tenha dito
que não é problema nenhum, não sou uma pessoa que gosta de ajuda. Faço tudo sozinha
sempre que posso.

Me preparo para sair e fumar um cigarro quando ouço risadas abafadas vindas de uma
porta há alguns metros de mim. Parece Ryan, mas não costumo vê-lo feliz assim. Percebo
enquanto me aproximo que a sala de onde os risos vinham é uma enfermaria. Há uma grande
janela de vidro, pela qual posso ver a fonte do barulho. Lá dentro posso ver um armário prata,
cheio de medicamentos, suponho. Há também uma espécie de maca reclinável, cadeiras uma
ao lado da outra, um balcão encostado na parede com uma pia no final dele e plantas
espalhadas pela sala. Ryan está sentado em uma cadeira, ele parece muito a vontade, e tem
um sorriso largo no rosto enquanto olha para a mulher encostada na bancada. Ela manuseia
algum tipo de equipamento médico, usa um jaleco branco, tem o cabelo comprido verde
escuro preso em um rabo de cavalo, com a raiz preta dando as caras. Está de costas para mim,
então é tudo que posso ver. Ryan, por outro lado, tem a cadeira virada na minha direção, ele
desvia a atenção da mulher quando percebe minha presença. Sinto que estou atrapalhando
algo importante.

Seus olhos se arregalam em uma expressão de susto. Levanta apressado e murmura


algumas desculpas a mulher. Ela o despensa com um aceno de mão, enquanto vira na minha
direção com um sorriso e um aceno de cabeça. Ela tem maçãs do rosto bem definidas, lábios
cheios e um nariz empinado. É uma mulher muito bonita. Devolvo o sorriso a ela, enquanto
Ryan se aproxima, um cheiro forte de produto de limpeza invade meu nariz quando ele abre a
porta.

— Droga, Haley, perdi a noção do tempo. — Ele diz, e eu balanço a cabeça, sorrio
mas não respondo. Não gosto de encontrá-lo se divertindo por aqui enquanto eu o procurava.
Mas ele está me fazendo um favor e eu não posso exigir nada.

01
Capitulo 1

Seguimos pela passarela em direção ao portão e sinto os olhares das pessoas que nos segue
desde o momento em que saiu da enfermaria. O que Ryan poderia ter feito de tão ruim aqui?
O porteiro mencionou algo sobre ele ter coragem para voltar acompanhado, então qual seria o
problema de eu estar com ele? E por que a mulher da enfermaria estava tão amigável com ele
enquanto todo mundo parece nutrir sentimentos contrários ao dela? Não sei se somos íntimos
o suficiente para perguntar, mas eu estou aqui por causa dele então acho que seria justo me
dar algumas respostas.

— O que você fez aqui pra todo mundo te fuzilar com os olhos? — Ele me olha de
soslaio com uma expressão tensa, sem diminuir o passo.
— Não acho que é algo que você vai gostar de saber. — Olho para ele com uma sobrancelha
erguida e ele continua, sabendo que isso não vai ser suficiente para me fazer desistir. Ele olha
para o sol tentando adivinhar o horário. Olho também, o céu está nublado, mas há uma
pequena fresta por onde o sol passa, e beija minhas bochechas. — Acho que já está um pouco
tarde para ir e voltar, então a gente pode dormir por lá e voltar pela manhã, o que acha?
— Tudo bem, mas você vai me contar tudo o que aconteceu na sua última estadia aqui. —
Cruzo os braços sobre o peito.
— Tem minha palavra, senhorita.

Pegamos as motos e fico feliz como um vendedor de guarda-chuvas em um dia


chuvoso. O vento no rosto me tranquiliza e quase consigo fechar os olhos e fingir que minha
vida é um mar de rosas.

Temos uma viagem tranquila até a morada do curandeiro. É uma casa de madeira,
com uma varanda na frente. Batemos na porta e esperamos ele aparecer. A maçaneta gira e
somos recebidos pelos dentes brilhantes de Trevor.
— Já estava achando que vocês não vinham. Entrem, entrem. — Ele se afasta da porta nos
dando espaço para entrar, e nos conduz para o quarto que Jason está.

Jason mal percebe nossa chegada. Está completamente pálido e tem uma expressão de
dor no rosto.
— Ele piorou bastante. — Trevor diz enquanto pega o termômetro da boca de Jason e agita
antes de verificar. — A febre está mais baixa agora, mas o corte está bem inflamado. Os anti-
inflamatórios vinham ajudando, mas agora parecem não fazer efeito como era esperado.
— Talvez seja o momento de levá-lo para a base, Caroline pode ajudar. — Ryan sugere, mas
Trevor olha sério para ele. Caroline deve ser a mulher da enfermaria.
— Não acho que sua amiga possa fazer muito mais do que eu, sem contar que o estresse da
viagem poderia agravar o ferimento. Vou aumentar a dose do medicamento e ver como ele

01
Capitulo 1

reage. — Ele diz a última frase se dirigindo a mim, e não posso desviar a atenção dos seus
olhos, incitada pela autoridade em sua voz. Tenho a impressão de que Trevor seria um bom
líder, se assim quisesse. — Ele já melhorou da febre, então talvez a mudança já seja o
suficiente.

Trevor e Ryan saem e me deixam com Jason. Ele tenta falar algo, mas eu o impeço,
não acho que ele deveria fazer mais esforço do que o necessário.
— Vamos ficar aqui à noite, pode falar o que quiser amanhã. Trevor disse que você deve
descansar. — Explico forçando uma voz neutra, não vou fingir que sou uma filha carinhosa
agora. Acho que ele entendeu o que eu disse, porque parou de tentar. Não gosto de vê-lo
assim, parece errado nutrir qualquer sentimento negativo por alguém que parece tão
debilitado. Ele não foi justo comigo, mas não é da minha natureza fazer igual.

Quando ele dorme já é noite, saio para procurar Ryan. De novo. Encontro Trevor no
caminho que avisa que o jantar está quase pronto. Abro a porta que leva para o quintal e não
demoro a encontrá-lo. Está sentado num banco enquanto olha para o céu. Um vento frio me
envolve e fico grata pela minha fiel jaqueta de couro. Pego o cigarro que anseio há bastante
tempo, e sinto medo ao perceber que restam poucos na caixa, vou ter que comprar mais
amanhã. Acendo e vejo a nuvem de fumaça se formar na minha frente. Ryan olha para mim,
mas não diz nada. Acabo meu cigarro e me sento com ele, olho para o céu também.

O céu está nublado, mas vez ou outra há espaço para a lua, que está quase cheia e
ilumina bem onde estamos, os olhos de Ryan têm dois pontos brilhantes do reflexo.
— Eu confio em você, Haley. — Ryan quebra o silêncio sem tirar os olhos do céu. Olho para
ele sem entender o motivo da afirmação. Ele vira para mim com seus cabelos cobrindo parte
do rosto, a barba está feita. Ele logo desvia os olhos novamente. — Às vezes é difícil para
mim admitir isso. Não acabou bem a última vez que fiz isso. — Estou curiosa para saber o
que houve com Ryan na base, mas pelo jeito como ele coça o pescoço e não consegue fazer
contato visual comigo, sei que está desconfortável. Não quero pressioná-lo.
— Quer saber, Ryan? A gente pode conversar depois? Eu estou com fome e Trevor está nos
esperando, então...— Ele solta um suspiro como se um peso fosse tirado dos seus ombros.
— Pode ir na frente, eu não vou demorar.

Deixo-o sozinho. Fico feliz de saber que a confiança é algo recíproco, Ryan é a única
pessoa que eu tenho por perto (Jason não conta para mim e Ashley é uma incógnita). Antes
de entrar olho uma última vez e vejo a escuridão engoli-lo quando uma nuvem cobre a luz da
lua. Sei que ele não vai demorar poque quando entro, uma chuva começa a cair lá fora.

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Capitulo 1

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Capitulo 1

Capítulo 14 - Fazendo Um Passeio

ASHLEY

O familiar cheiro de pêssego me abraça quando entro na sala de Emily. A sala tem
estantes abarrotadas de livros (que para mim é algo surpreendente, pois nunca vi tantos livros
físicos assim), um tapete na cor vinho sob uma mesa de escritório marrom escuro. Emily
contorna a mesa e se senta na cadeira logo atrás e pede para que eu sente também, de modo
que eu a encaro. Sinto um frio na barriga por que sinto que isso não deveria estar
acontecendo, não costumo quebrar regras. Mas se ela fez as regras, talvez seja tolerável
quebrar agora.
— Está assustada Ashley? — Ela ri e completa: — Eu não mordo.
— Estou confusa, na verdade. — O que é verdade, não sinto medo de Emily. Não acho que
ela me faria mal algum, ela já teve a chance mais de uma vez, e aqui estou eu, intacta.
— Tenho uma missão para você. — Ela tamborila os dedos de unhas coloridas sobre a mesa.
Emily sempre opta por um visual chamativo. E eu acho isso lindo. Hoje ela veste um mom
jeans e camiseta branca. E apesar das peças normalmente comporem um visual simples, suas
roupas estão cobertas por palavras de todas as cores, semelhantes a letras de grafite. Quando
me dou conta, sinto vergonha por estar de pijama e me encolho um pouco.
— Mas eu nem passei pelo Rito. — Digo com a voz contida, quase um sussurro. Me pergunto
o motivo disso, tem muitas pessoas mais bem treinadas aqui. Eu não sou uma escolha sensata.
— Exatamente, Ashley. Sua missão faz parte do Rito. Ultimamente temos adotado algumas...
Precauções. E o Rito agora tem uma etapa extra. — Ela estuda meu rosto e não sei
exatamente o que ela procura, mas talvez agora, eu esteja um pouco assustada.
— Preciso saber em quais situações você se sairá melhor, então por que não fazer isso agora?
— Por que são 11 da noite e eu quero dormir? — Minha intenção não era fazer graça, mas ela
solta uma longa risada, que estranhamente aquece meu coração. Quando percebo que minhas
palavras podem parecer afrontosas fico com medo do que ela dirá em seguida.

— Resposta errada, bobinha. — Ela pega uma caneta sobre a mesa e começa a brincar
com ela entre os dedos. Emily parece antecipar um divertimento. — Teremos que agir
durante a noite, e esse é o melhor horário para sair.
— Então o que você quer que eu faça? - Ela me dá um sorriso, e da última vez que o vi foi
um presságio da sua loucura.
— Nós duas vamos fazer um passeio. — Porcaria.

***

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Capitulo 1

Pingos de chuva molham meu rosto, e eu aprecio a sensação maravilhada. Na Cidade


Solar nunca chove, faz frio o tempo inteiro, e embora o céu possa ficar nublado, na maioria
das vezes o sol brilha. Suzan uma vez me disse que é uma tecnologia que usam há muito
tempo, e por isso a capital carrega o nome que tem.

Emily já está no carro me esperando com uma sobrancelha levantada. Saio do meu
estupor e sento no banco ao seu lado. Ela faz uma careta quando me vê toda ensopada
sentando no seu carro. Tive um tempo para vestir algo, mas agora penso que deveria trocar de
roupa mais uma vez e me arrependo por não ter trazido ao menos uma capa de chuva. Coloco
o sinto lembrando da nossa última viagem caótica.

— Quase esqueci. — Ela revira os bolsos e joga algo na minha direção. Minha
pulseira. — Talvez seja útil para você hoje. — Noto que Emily não usa a própria pulseira. Ela
deve notar minhas sobrancelhas franzidas, porque acrescenta: — A minha está no carro, não
se preocupe.

Emily me conta que minha missão será ficar de tocaia com ela. Vamos até a Província
de Mercúrio verificar a chegada de um carregamento. Ela acha que algo está errado,
principalmente porque não é comum um volume tão grande de entrega na região, então
precisamos descobrir o que é. Emily está calada e parece preocupada, hoje não estamos a
toda velocidade porque a pista está molhada, além da chuva atrapalhar um pouco a visão.

— Quem ensinou você a dirigir? — Pergunto despretensiosamente, apenas para


preencher o silêncio que se instaurou. Os olhos de Emily parecem brilhar com as lembranças
que a pergunta desperta.
— Meu pai me ensinou. E se você fica com o coração acelerado andando comigo, tenho
certeza de que ele pularia pela sua boca se andasse com meu pai. — Ela diz sorrindo e me
sinto melhor por vê-la mais tranquila. Ela reflete em silêncio por um tempo. — Ele era um
bom homem.
— Como ele era? — Pergunto curiosa.
— Meu pai era um homem influente na Cidade Solar, ele era um engenheiro automotivo. —
A chuva açoita o carro, e o limpador de para-brisa dança desesperado para afastar a água do
vidro. — As esferas que vocês não vivem sem é uma criação dele. — Ela vira na minha
direção para ver minha expressão. Estou boquiaberta. Emily é filha de...

— Adam George! Que legal, Emily! Adam revolucionou a história da Cidade Solar. — Digo
empolgada.
— É, sim, sim... Ele também foi um ótimo pai. — Vejo um vislumbre de tristeza e resolvo

01
Capitulo 1

não perguntar mais nada. Para minha surpresa ela continua. — Quem sabe o que mais ele
teria feito se ainda estivesse vivo? — Sinto que ela está prestes a me contar algo, mas ela
freia o carro bruscamente quando vê uma árvore tombada no meio da pista.

— DROGA, DROGA, DROGA! — Emily grita enquanto agilmente dá meia volta. O que
está acontecendo? Minha confusão se transforma em desespero quando vejo que a estrada em
que nós acabamos de passar está bloqueada por quatro homens com os rostos cobertos
iluminados pelos faróis. Sem nos dar a chance de lutar, um quinto homem surge na janela de
Emily, abre a porta e cobre sua boca e nariz com um pano, enquanto puxa ela para fora. Vejo
um pano se aproximar do meu rosto, um cheiro forte penetra meu nariz e sinto minha
consciência me abandonar.

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Capitulo 1

Capítulo 15 - Más Notícias

HALEY

Observo Trevor verificar a temperatura de Jason. Hoje ele parece bem melhor, apesar
do ferimento ainda estar bem feio, pelo menos a febre se foi. Mas sobre a cama com lençóis
brancos, ele quase se camufla de tão pálido. Não vejo Ryan desde a noite passada. E quando
Trevor sai eu fico sozinha com Jason. Ele está desperto e nada o impedirá de falar agora.

— Eu sinto muito. — Ele começa. Olho para ele e percebo seu desconforto. Não
posso negar que sinto certa satisfação em ver sua reação a minha presença. E a culpa vem
logo em seguida. — Eu não fui sincero com você.
— Sincero sobre o quê? — Minha dúvida é genuína.
Ele faz um esforço para sentar na cama, mas parece perceber que a dor do movimento não
compensa. Fico dividida entre ajudá-lo ou não. Mas quando tento ajustar os travesseiros para
que ele fique na posição desejada ele me despensa. Eu poderia ficar chateada, mas pensar que
isso é algo que eu também faria quase me arranca um sorriso. Odeio admitir, mas talvez
recusar ajuda sempre que possível, seja algo que também herdei dele e não só esse queixo
partido. Volto para a cadeira ao seu lado.
— Sobre meus motivos para ir embora. — Não é surpresa para mim, não engoli essa de que
ele procurava vingança pela minha mãe. Ele parece envergonhado. — Haley, você é tão
parecida com ela. E eu não... — Ele olha para o teto, e não sei se quer evitar me encarar ou
evitar que as lágrimas rolem. Talvez os dois. — Maeve sempre foi um pedaço de mim. Eu a
amava tanto e... — Ele passa o dorso da mão na linha d'água. — Mesmo com todo esse
tempo eu nunca superei, sabe? Talvez você goste de saber que muito desse tempo eu vivi
como um cão. — Algo se agita dentro de mim. Apesar de tudo me sinto um pouco mal por
ele. Não digo nada, não porque não tenha nada a dizer, mas porque não acho que é uma boa
interrompê-lo. Então apenas espero que ele continue. — Tive sorte de encontrar quem me
desse suporte. Um casal de rebeldes. E eu poderia ter voltado quando eu melhorei. Mas eu
não conseguia. E admito que foi covardia minha. — Sinto que o motivo maior da vergonha se
aproxima. Ele volta a olhar para o teto, pelo mesmo motivo de antes. E odeio que ele não
consiga nem olhar para mim. Me reviro na cadeira. — Vocês são tão iguais, e eu não
suportaria vê-la todos os dias e saber que não fui capaz de impedir que aquilo acontecesse
com a sua mãe. — Mas que porcaria! Minha raiva está quase chegando a superfície e não sei
o quanto mais dessa conversa eu ainda poderei ouvir sem explodir. Levanto abruptamente e
cruzo os braços.
— E por que voltou, Jason? Por que não ficou onde estava? — Minha voz sai mais contida do

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Capitulo 1

que eu esperava. Ainda assim ele parece magoado, mas não me importo. Não acho mais que
ele seja merecedor de empatia nem no estado em que está.
— Meus amigos morreram. — Ele se esforça para manter os olhos em mim. E parece
arrasado. — E, eu não poderia fugir para sempre. Eu tinha que ver você de novo. E dar a você
a chance de fazer o que eu nunca fiz. — Seus olhos estão tristes como nunca vi. — O legado
de Maeve, agora é seu. E se você nunca me perdoar, saber disso já é o suficiente. — Não
respondo, e ele também não diz mais nada. Não quero deixá-lo sozinho, e me sinto grata
quando Trevor volta.

***

De volta a base, depois de deixar Dalila na garagem, caminho com Ryan pelo
caminho que leva à porta. Saímos cedo da Província de Virgem, e faz pouco tempo desde que
amanheceu. O sol está brilhando no céu não muito alto, de um jeito que deixa nossas sombras
alongadas. A terra sob a passarela que leva dos portões à entrada ainda está molhada. Ryan e
eu não falamos mais do que o necessário. E o necessário se limitou ao meu "já é hora de ir" e
o "vamos então" dele. Achei que tínhamos nos aproximado um do outro, e eu estava gostando
disso. Será que ele se sentiu pressionado a falar o que houve e está magoado de algum jeito?
Ou será que tem algo a ver com a mulher que estava com ele na enfermaria? Não esqueci a
intimidade que eles pareciam ter. Ou talvez eu esteja viajando e nada está errado. Mas e se
estiver? Droga!
— Ryan, está tudo bem?
—Está tudo ótimo, por que não estaria?
— Não sei, você parece quieto. — Ele me olha com uma sobrancelha erguida. Ryan sempre
foi mais retraído. Talvez minha solidão recente tenha me feito acreditar que as coisas tinham
mudado.
— Deve ser impressão sua. — Ele diz sem diminuir o passo.
— Acho que sim. — Respondo tentando disfarçar minha frustração.

Na parte de dentro da base, nos dividimos. Ele vai na direção da enfermaria e sinto um
sentimento estranho se agitar em mim. Me esforço para afastá-lo. Nossa próxima aula
começará logo. Algo relacionado a uso de tecnologia, não lembro direito, e me repreendo por
isso. Estamos em um treinamento. Chegar à fortaleza rebelde ao norte é meu verdadeiro
objetivo. E lá, todas essas aulas vão mostrar a sua importância. Ashley provavelmente vai se
sair melhor do que na aula de tiro. Ainda tenho um tempo antes da aula, então resolvo
procurá-la. Quarto de número 11. Não é muito longe do meu, o quarto de número 06. Bato na
porta e escuto uma voz aguda responder do lado de dentro, com certeza não é Ashley. Só
pode ser a colega de quarto. Quando entro, encontro uma mulher loira. Ela está sentada com

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Capitulo 1

as cumpridas pernas em borboleta, enquanto trança o próprio cabelo. Deve estar se


preparando para a aula.
— Você sabe onde está Ashley?
— Ela não estava aqui quando eu acordei. — Ela responde enquanto dá de ombros. — Mas
também não a vi no refeitório. — Ela inclina a cabeça com a sobrancelha franzida como se
notasse a estranheza só agora. — Por quê? Vocês são amigas?
— Eu queria falar com ela. — Não respondo a segunda pergunta por que eu não sei respondê-
la nem para mim mesma. — Mas eu posso voltar depois. Obrigada mesmo assim.
— Ah, não tem problema. Os amigos da Ashley são meus amigos. — Que amizade rápida.
Assinto com a cabeça.

Saio para o corredor e encontro Ryan vindo com passos apressados na minha direção.
O que está acontecendo?
— Emily e Ashley... — Seus olhos de cores diferentes encaram os meus com uma
preocupação atípica. — O carro foi encontrado vazio.
— O que houve? Onde elas estavam? — Digo preocupada.
— Elas saíram em uma missão, mas deveriam ter voltado ainda à noite.

Mas que droga!

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Capitulo 1

Capítulo 16 - Por Um Fio


ASHLEY

Um cheiro de madeira úmida me invade o nariz. Minha visão embaçada lentamente se


ajusta, e o pequeno cômodo que antes era um borrão marrom começa a tomar forma. Entre
mechas de cabelo que cobrem meu rosto, enxergo caixas de papelão espalhadas por todo
lado. Quando tento afastar o cabelo, percebo que estou de mãos atadas por uma corda áspera.
Estou presa a um pilar de madeira que pressiona minhas costas.

As lembranças começam a vir. A chuva forte no para-brisa. Os homens na frente do


carro. O pano branco no rosto de Emily. Onde ela está? Olho ao redor com o coração
martelando no peito, e a encontro com uma expressão preocupada olhando para mim. Os
cabelos loiros ainda estão úmidos por conta da chuva, algumas mechas claras se destacam à
medida que secam.

Emily está tão impotente quanto eu, suas mãos tão presas quanto as minhas.
— Estava com medo de que você não acordasse logo. — Sua voz não sai tão nervosa quanto
eu esperava.
— Você sabe onde a gente está? — Pergunto e sentindo que as palavras se arrastam pela
minha boca. — Não exatamente, mas o clorofórmio não tem um efeito muito longo. Então
devemos estar perto de onde fomos pegas. — Faz sentido
— O que a gente vai fazer? — Ela dá de ombros.
— Ashley, estamos literalmente de mãos atadas. Ninguém nem sabe onde nós estamos. Nossa
esperança é de que possamos negociar, e eu duvido que alguém aqui esteja disposto a isso. —
Ela apenas fita o teto depois disso. Então é isso? Me recuso a depender de uma alternativa tão
pessimista. Olho um pouco mais em volta procurando algo que possa ser útil. O que são
todas essas caixas?

— O que são... — Paro minha língua quando ouço passos pesados se aproximando. A
porta se abre e um homem com o capuz levantado cobrindo apenas os olhos entra com um
cigarro aceso entre os dedos. Ele se abaixa entre nós duas e diz em meio a fumaça:

— Acho melhor as duas donzelas fecharem o bico, se não vou ter que amordaçá-las.
Qual vai ser? — Obviamente nenhuma de nós fala mais nada. Tenho medo do que vai fazer
mas ele simplesmente levanta, pega uma das caixas e sai. Deixando apenas o cheiro de
fumaça e o silêncio, quando fecha a porta fazendo tanto barulho como quando se abriu.

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Capitulo 1

Sei que Emily é um alvo do governo, afinal, ela é uma das líderes dos Sombrios. Mas
se eles quisessem simplesmente matá-la, esses homens com certeza já teriam feito isso. Então
só podem estar esperando alguém. Mas será que alguém do Edifício Alvorada viria aqui
pessoalmente? Quem eles estão esperando? O tempo passa e quando percebo a luz do sol
entrar pelas frestas sei que quem quer que venha não vai mais demorar. Me obrigo a parar
meu raciocínio quando ouço um barulho alto lá fora.

Olho com os olhos arregalados para Emily e vejo sua cabeça inclinada com as
sobrancelhas franzidas em concentração. Em seguida um baque maior acontece e nós duas
olhamos para a porta quando ela se abre ruidosamente. Do outro lado está um homem um
pouco mais velho que eu, sua pele negra em contraste com o cabelo prateado é estranhamente
familiar. Sua barba bem-feita dá a ele uma aparência madura.

— Bom dia, senhoritas. — Ele nos cumprimenta com um sorriso charmoso no rosto.
Emily e eu nos entreolhamos. Ela sabe tanto quanto eu, ou seja, nada.
— Quem é você? Que lugar é esse? — Emily pergunta cautelosa. Estou tão tensa que acho
que o homem poderia contar as batidas do meu coração.
— Meu nome é Lorens. E você vai descobrir que lugar é esse em breve. — Ele coloca as
mãos no quadril enquanto analisa a situação. Quando ele pega o punhal o medo me domina.

— O que você quer? — Emily pergunta e pelo tremor na voz percebo que o ato de
Lorens foi capaz de amedrontá-la também. Ele ergue o punhal na altura do rosto, girando-o
enquanto o examina com os olhos estreitos. Lorens não responde e caminha na nossa direção.
Estou mais perto dele do que Emily está, então é de mim que ele se aproxima primeiro. Fecho
os olhos e espero que minha morte seja rápida. Os três segundos seguintes são os mais longos
da minha vida.

Quando a dor não chega e eu sinto a aspereza da corda roçar no meu pulso abro os
olhos. Ele está mexendo na corda.
— Eu posso libertar vocês duas dessas cordas, mas eu tenho um preço. — Ele propõe. Uma
chance de negociar. Emily olha para mim e sua resposta é rápida como um sopro.
— Eu pago.
— É assim que se fala. — Ele diz com um sorriso e suas mãos começam a trabalhar nas
cordas.

Quando nós duas estamos libertas verifico minha pulseira, ela não funciona muito
bem, provavelmente tentaram destrui-la enquanto eu estava desacordada. Emily sequer trouxe
a dela, lembro dela ter dito antes de sair que havia deixado no carro. Embora algumas linhas

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Capitulo 1

pretas atravessem a tela, consigo ver que os números 0070 estão piscando em vermelho na
tela branca.

— Alguém está vindo nos buscar. — Emily diz séria quando vê a mensagem, ela
parece concentrada e espero muito que ela esteja bolando um plano. Ouvimos passos
apressados e minha vontade é de correr. Estou prestes a fazer isso quando Lorens diz:
— Verifiquem as caixas. — A urgência na sua voz era grande demais para questioná-lo. —
Procurem até encontrar algo útil.
— Aonde você vai? — Emily o questiona quando ele começa a andar na direção da porta. Os
passos lá fora parecem mais próximos. Por cima da caixa que eu comecei a abrir vejo ele
saindo sem olhar para trás.
— Minha parte do acordo foi cumprida. — Não digo que ele está errado, mas não posso
deixá-lo ir enquanto estamos desarmadas.

— Se a gente morrer não terá nosso lado do acordo. — Essa com certeza foram as
palavras mais úteis que já saíram da minha boca. Ele para quando as ouve.
— Então talvez vocês mereçam um bônus. — Ele diz por sobre o ombro. — Mas não
abusem. Agilizem! — Ele sai sozinho e espero muito que ele ganhe tempo suficiente.

Emily solta o pior palavrão que eu já ouvi. Enquanto minha caixa tinha apenas sopa
enlatada, a dela tem um miniarsenal de armas corpo a corpo, com vários tipos de lâminas.
Como uma luz no fim do túnel a espada na caixa brilha. Ela é mais pesada do que a que eu
costumo usar, mas não há nada que força de vontade não resolva. Quando o primeiro homem
aparece na porta segurando uma faca, ele engole em seco e eu sinto seu arrependimento
daqui. Aperto a espada nas minhas mãos e quase sinto satisfação em vê-lo.

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Capitulo 1

Capítulo 17 – Esperando Um Sinal


HALEY

Não há um sequer indício de onde as duas podem ter ido parar. Ryan e eu não
demoramos a chegar aqui, Dalila pode ser rápida como uma flecha. Nós dois investigamos o
local onde o carro está. A árvore não caiu naturalmente, foi derrubada. As armas e outros
itens para a missão continuam no carro. Definitivamente uma emboscada, eles sabiam que
Emily estava a caminho.

— O que a gente faz? — Pergunto a Ryan por que estou completamente perdida no
momento.
— Raven juntou duas equipes para procurar pelas matas, mas vai ser uma longa busca, e não
sabemos quanto tempo ainda temos. — Ele abaixa a cabeça enquanto olha dentro do carro
mais uma vez e pega algo. — Espero que elas duas consigam sinalizar de alguma maneira.
— Espero que Ashley tenha feito essa aula também. — Digo me escorando no carro e
acendendo meu cigarro. Embora eu goste de ter espaço, sou uma pessoa apegada a laços.
Ashley foi uma amiga de infância. Às vezes sinto falta da leveza da nossa antiga amizade,
sem cautela, sem mágoas. Mas fico feliz de reencontrá-la mesmo assim. Solto a fumaça pela
minha boca e levo uma mão ao meu pingente.

Me pergunto por que com Jason é tudo mais difícil. E não tem muito mistério, na
verdade. Ashley sempre foi insegura, isso talvez justifique o modo como agiu comigo no
passado. Ela ainda era só uma criança, enquanto Jason era um homem adulto, e meu próprio
pai. Eu entendo que ele precisou de tempo para se curar, entendo a dor que ele passou, porque
eu também precisei e também senti. Mas o quanto essa dor poderia ter sido menor se ele
estivesse comigo para superá-la? Como seria crescer com um pai? Como seria ter uma vida
normal sem trocar de casa tantas vezes? Mas ao mesmo tempo, todo esse rancor me
envenena. Ele está aqui agora. Não posso fugir. Não ter Lewis por perto torna tudo mais
difícil.

Piso no resto de cigarro e Ryan me tira dos meus devaneios.


— Emily deixou isso. — Ele diz levantando a pulseira dela.
— Podemos mandar uma mensagem. — Digo retomando a esperança. — E pedir algum tipo
de sinal.
— Isso se elas puderem ver. O que é bem improvável. — Ele diz tentando mexer na pulseira.
— Cadê sua esperança, Ryan? — Questiono balançando a cabeça em incredulidade. — E
essas pulseiras não precisam ser desbloqueadas com o toque do dono?

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Capitulo 1

— Cadê sua esperança, Haley? — Ele imita minhas palavras e meu gesto. Seguro um sorriso
que tenta escapar, ele não vê meu esforço porque está concentrado na pulseira. — E eu tenho
meus truques, ok? — Ele acrescenta sem olhar para mim.
— Tudo bem, vou esperar aqui dentro. — Ergo as mãos num gesto de quem se rende e sento
no banco do carro. Ligo o som e uma guitarra começa a soar. Há uma capa de CD no porta
luvas, verifico enquanto a voz começa uma melodia. Quatro homens com os rostos pintados.
Eles têm uma aparência bem caricata. É claro que Emily ia ter interesse em ouvi-los. "Kiss -
Dynasty", está escrito na parte superior.

Lá fora, Ryan tem uma linha entre as sobrancelhas, formada pela concentração.
Abaixo um pouco o volume tentando não atrapalhá-lo. É um pouco estranho ouvir "I was
made for lovin' you baby, you were made for lovin' me" enquanto olho para ele
completamente alheio a isso. Ele para por um momento e olha para cima. Olho também, mas
não há nada além de um sol procurando espaço entre as árvores.
— Consegui! — Ele contorna o carro e senta no banco do motorista. — Agora só precisamos
que ela veja. — Seus ombros descem um pouco quando ele diz as últimas palavras. A música
acaba e eu desligo o som.
— Então a gente vai ter que esperar. — Digo frustrada enquanto olho para ele. Ryan é um
homem bonito. Mas com essa luz, seus olhos estão lindos como nunca vi. Os cabelos
parecem mais macios e sua boca nunca esteve tão convidativa.

Nos encaramos por mais tempo que o normal, e eu começo a pensar no que dizer,
antes que meu coração saia pela boca.
— Eu nunca agradeci você. — Digo tentando disfarçar e com medo de que eu mesma esteja
conduzindo a conversa para o rumo que eu deveria fugir.
— Pelo quê? — Ele pergunta inclinando a cabeça.
— Por ter aparecido no meu apartamento naquele dia.
— Quando você me recebeu seminua ou quando eu invadi e esperei você chegar?
— Eu não estava seminua! — Tendo me defender. Ele ainda lembra disso?
— Claro que não, me desculpe. Eu não vi nada. — Ele tenta conter um sorriso.

— Enfim... — Me esforço para retomar ao raciocínio, e ele parece se esforçar para


ouvir. — No dia em que você invadiu e me esperou chegar, eu ainda estava... Relutante, em
tomar minha decisão. — Ele agora ouve atentamente e descansa a mão no volante. — E eu
poderia não ter vindo para cá por conta própria. E você tem me acompanhado nas visitas à
Jason, e isso é cansativo até pra mim. — Sinto que minhas emoções estão quase saindo de
controle e começo a brincar com meu pingente de Solares, agora eu entendo porque minha

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Capitulo 1

mãe fazia isso, traz um pouco de conforto. Ryan parece um pouco aflito. — E você também
tem sido minha única companhia aqui. Eu sinto falta de Lewis, sabe? — Quando Ryan me
abraça minhas lágrimas desabam de vez. Ele não diz nada, e sei que isso faz parte de sua
natureza. Seu apoio é suficiente para mim.

Não quero que ele se afaste, mas quando meus soluços cessam ele aumenta o espaço
entre nós e me solta.
— Eu não sei o motivo para você ter se afastado de mim nos últimos dias, Ryan. Mas tem
sido doloroso para mim. — Digo limpando as lágrimas.
— Eu não achei que isso afetava tanto você. — Ele segura minha mão. — Eu sinto muito, de
verdade, Haley. — Sinto que as coisas estão indo pelo caminho certo. Ele desvia os olhos
para um ponto atrás do carro e eu acompanho. Por cima dos galhos da árvore tombada eu
também vejo o que chama sua atenção. Meu humor se ilumina rapidamente.

Há poucos quilômetros daqui uma um sinal de fumaça sobe em espiral pelo céu.

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