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Copyright © 2024 Elle Zutan

INVERNO PECAMINOSO
1ª edição | Criado no Brasil

ISBN: 978-65-00-95860-7

Autora: Elle Zutan


Leitura crítica: Núria Costa, Beatriz Gomes
Revisão: Beatriz Gomes
Diagramação: @artes_da_elle
Capa: @almeidaadesigner

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL E PARCIAL DESTA OBRA,


DE QUALQUER FORMA OU POR QUALQUER MEIO ELETRÔNICO
OU MECÂNICO, INCLUSIVE POR MEIO DE PROCESSOS
XEROGRÁFICOS, INCLUINDO AINDA O USO DA INTERNET, SEM
A PERMISSÃO EXPRESSA DA AUTORA (LEI 9.610 DE 19/02/1998).
ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO. NOMES, PERSONAGENS,
LUGARES E ACONTECIMENTOS DESCRITOS SÃO PRODUTOS DA
IMAGINAÇÃO DA AUTORA.
QUALQUER SEMELHANÇA COM ACONTECIMENTOS REAIS É
MERA COINCIDÊNCIA. TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO SÃO
RESERVADOS PELA AUTORA.
Nota da Autora
01
FELÍCIA
02
FELÍCIA
03
ORION
04
DALTON
05
ORION
06
FELÍCIA
07
DALTON
08
FELÍCIA
09
ORION
10
DALTON
11
ORION
12
FELÍCIA
13
DALTON
14
ORION
15
ORION
16
FELÍCIA
DALTON
17
FELÍCIA
18
ORION
19
FELÍCIA
20
ORION
21
FELÍCIA
22
DALTON
23
ORION
24
FELÍCIA
Epílogo
ORION
Agradecimentos
Outros livros
Às vésperas
Redes Sociais
Nota da Autora

Inverno Pecaminoso é um livro de fantasia paranormal com o foco


no erótico, com dinâmicas de ômega/beta e alfa. Isso significa que
teremos muuuitas cenas quentes de sexo explícito com
dominação/submissão.
É um livro de trisal, onde todos os protagonistas se relacionam
romântico e sexualmente (inclusive os homens). Se isso te
incomoda, NÃO LEIA O LIVRO!
Apesar do foco ser no romance e nas cenas sexuais, a história
contém alguns gatilhos como:
XENOFOBIA; LUTO; VIOLÊNCIA DOMÉSTICA;
DESCRIÇÕES EXPLICITAS DE MORTES E TORTURA,
INGESTÃO DE SANGUE, ABORTO.
Se estiver tudo bem para você, então siga em frente e tenha uma
boa viagem para Juneau, Alasca! Não esqueça seu casaco, tem
uma nevasca a caminho ;-)
O amor verdadeiro não se escolhe. Ele
simplesmente aparece algum dia e ocupa
nossos corações para sempre
— Autor desconhecido.
Para todos os meus leitores que vão precisar usar o golfinho ~ eu sei que
você sabe do que eu to falando ;-) ~ após ler algumas das cenas deste livro.
01

FELÍCIA
Observo o floco de neve cair lentamente do céu escuro e turbulento, e
se acomodar contra o vidro da janela. Traço com a ponta do dedo o lugar
onde se alojou, soltando um suspiro de tristeza.
Os noticiários avisaram que essa será a nevasca mais forte dos últimos
30 anos. A temperatura chegará em −18,4 °F[1], algo extremo para Juneau,
que costuma ficar em 26,6 °F[2], mesmo durante o auge do inverno.
Os membros do bando estão pulando de alegria, pelo que vi na última
reunião obrigatória, que ocorreu há uns 15 dias. Com a neve vem o cio, e
com o cio, os bebês. Além disso, os anciãos dizem que quanto mais frio,
mais forte serão os filhotes, então esta temporada de acasalamento tem tudo
para ser a melhor das últimas três décadas.
Como uma mulher acasalada, deveria compartilhar da felicidade deles.
É meu segundo cio, casada com Dalton, mas não acho que será diferente do
inverno do ano passado.
O fogo que atormenta os parceiros acasalados não chegou para nós. É
por isso que estou observando a neve cair enquanto Dalton assovia na
cozinha, secando a louça.
Ele está tentando agir como se não fosse nada demais. Como se não
estivesse chateado por ter se arriscado tanto e acabado casando com uma
shifter defeituosa, que não consegue nem fazer a porra do seu papel como
mulher e entrar no cio, o que permite que os filhos sejam gerados e o
casamento não se despedace.
— Pare agora mesmo com esses pensamentos! — a ordem mental é
acompanhada pelo barulho de algo se espatifando no chão, o que faz eu me
sobressaltar.
Desvio a atenção das árvores polvilhadas com a neve branca e encaro
a porta que leva a cozinha, vendo o rosto zangado do meu marido, que já
está vindo em minha direção.
Os olhos castanho-claros, de formato monólidos[3], puxados para um
dourado que não deixa dúvidas de sua herança sobrenatural, me fuzilam.
Sua boca está franzida em descontentamento, assim como as sobrancelhas
pretas e grossas.
Ele deixa o pano de prato em cima do ombro nu e minha atenção é
capturada por uma gota de água que desliza por seu tronco claro e esbelto,
cheio de músculos marcados por cicatrizes grosseiras, que mostram o
quanto já sofreu por ficar comigo. E nem sequer valeu a pena para ele. Eu
não posso dar a família que tanto quer…
— Quantas vezes vou ter que repetir que não tem nada de errado com
você? — questiona irritado, cruzando os braços fortes enquanto se
aproxima, as marcas em seu antebraço ficando mais pronunciadas.
Seu descontentamento é tanto, que as unhas começam a mudar para as
garras pretas afiadas da sua versão sobrenatural, criando vincos profundos
que sangram e mancham a pele amarelada. Por um segundo não posso
deixar de me lembrar de como voltou para casa, após a “conversa” que teve
com meu pai, logo depois que o alfa descobriu sobre o meu acasalamento
secreto com Dalton. Havia tanto sangue!
Os cabelos pretos e lisos estão bagunçados, uma mexa caindo perto do
piercing que tem na sobrancelha esquerda. Meus dedos coçam para ajeitar
os fios rebeldes, mas me mantenho sentada no sofá que tem em frente a
janela, não querendo tocá-lo e sentir aquele vazio no pé do meu estômago.
Sentir que não sou boa o bastante para ele.
— Você pode repetir quantas vezes quiser, não vai fazer com que seja
verdade — bufo, abraçando as pernas, também desnudas, para apoiar o
queixo nos joelhos. O movimento me causa uma fisgada na lombar e travo
os dentes, fingindo que não sinto a carne repuxar no local onde o alfa
marcou minha pele, um lembrete eterno da minha “traição” para com ele e
o bando.
Do lado de fora está congelando, mas nosso pequeno apartamento está
com agradáveis 73,4 °F[4] por causa do aquecedor. Por alguns segundos,
encaro o aparelho na parede pintada de um lavanda-claro, pensando se
talvez não seja a temperatura de dentro da casa que está impedindo o cio de
surgir em meu íntimo. Dalton segue meu olhar e, por sua mente estar
conectada com a minha, escuta o pensamento e corre para pegar o controle
e abaixar alguns graus, as garras raspando contra o plástico branco.
Isso só me deixa pior, pois, no fundo, sei que não é o maldito
aquecedor que impede meu corpo de ficar receptivo para o bebê que tanto
desejamos.
— Tem algo de errado comigo.
— Não tem nada de errado com você! — rebate, sua voz saindo como
um rosnado profundo. — Eu consegui conversar com meu avô na reunião, e
ele disse que algumas mulheres demoram mais tempo para entrar no cio —
fala, movimentando a cabeça para indicar que quer espaço para se sentar ao
meu lado.
Não me movo, o que o faz bufar e revirar os olhos. Em seguida, puxa
meu braço, tomando cuidado para retrair as garras afiadas, e me força a
levantar. O movimento dói, não por ter sido feito com força, mas porque
meu corpo está tão fraco pela falta do cio que nos últimos dias até respirar
um pouco mais fundo já me faz ofegar de angústia! Tento não transparecer
isso, para não o preocupar, mas, a cada dia que passa, fica mais difícil.
— Ei! — grito, fingindo indignação quando rouba meu lugar e me
bota em seu colo.
A mão grande se fixa em minha barriga, perigosamente perto do cós
do short que estou usando, e não posso deixar de olhar o contraste lindo que
nossas peles formam quando estão juntas.
Dalton tem a pele amarela. Herança dos avós, que vieram da
Mongólia, quase 100 anos atrás. Ele é um leopardo das Neves de raça pura,
por isso é um dos maiores homens do bando, e também o mais forte depois
do meu pai, o alfa.
Já eu tenho a pele negra clara, com um subtom quente, combinando
com meus cachos ruivos. Assim como a maioria das mulheres shifters de
lince-vermelho, tenho vitiligo, por isso há manchas mais claras que meu
tom de pele, espalhadas por todo meu corpo, sobretudo na barriga e
pescoço. Meus olhos seguem as mesmas cores dos dele, uma característica
que todos os shifters de felinos compartilham.
Por alguns segundos, deixo minha mente viajar, pensando como
seriam os nossos bebês se meu útero não fosse defeituoso. Teriam o meu
tom de pele e os olhos monólidos de Dalton? Ou viriam com a pele
amarelada e os cabelos ruivos cacheados? As imagens surgem em minha
cabeça e sinto meu marido limpar a lágrima que escorre em minha
bochecha. Ele dá um beijo na minha nuca, tentando me confortar.
— Eu te amo mais que tudo. Sabe disso, certo? — pergunto, virando-
me em seu colo, o corpo gritando de dor. Uma dor que ele sente.
Dizem que o vínculo de parceria traz a maior das bençãos e
maldições: poder sentir tudo que seu companheiro sente. Na hora do prazer,
é realmente uma dádiva, mas em momentos como esse, quando um de nós
está sentindo dor ao ponto de achar que irá morrer, é uma desgraça.
Pensei que nunca sentiria nada pior do que a punição que Dalton
recebeu do meu pai, mas desde que o inverno começou e a neve se
acumulou no chão, meu corpo vem sofrendo com a falta do cio. A dor está
tão intensa que é como se eu tivesse sido atropelada por três caminhões
seguidos e depois pisoteada por um alce. É angústia pura correndo em
minhas veias, fazendo cada membro doer e pulsar. Não consigo mais dormir
a noite, pois apoiar a cabeça no travesseiro dói tanto que me faz chorar. Mal
posso comer, engolir é um sacrifício tão grande ao ponto de ser humilhante.
E nem penso em me transformar na minha lince, pois tenho medo de não
conseguir refazer os ossos e morrer no meio do caminho entre humana e
animal.
A verdade é que estou me apoiando e consumindo as forças que o
leopardo de Dalton tem. Por ser um animal maior, não só em sentido físico,
mas em poder, meu marido está sentindo a falta do cio em menor
intensidade, principalmente depois que parei de ter intimidades com ele.
Percebi no início do inverno que quanto menos contato temos, mais o laço
se afasta, impedindo que ele sinta o pior das dores. Ele não entende por que
me mantenho longe, e prefiro que continue na ignorância, pois sei como irá
ficar bravo por eu estar sofrendo sozinha. Meu marido é protetor demais,
sempre foi. Ele recebeu aquela surra por mim, sem saber que eu sentiria
tudo.
Na época, não sabíamos que o vínculo feito com magia permitia
compartilhar os pensamentos, emoções e dores. Pouquíssimas pessoas
acasalam deste modo, pois é eterno. Não tem divórcio ou fuga. Uma vez
unidos, para sempre será assim. Então, quando nossa parceria se formou e
eu encerrei o noivado que meu pai havia arranjado com o alfa Taiga, da
cidade ao lado, ele descontou a raiva em Dalton. Foi horrível, a pior
experiência de toda a minha vida! E tudo ficou ainda pior quando meu pai
percebeu que eu estava sentindo as dores e intensificou a punição.
— Seu amor por mim só perde para o meu por você — sussurra,
acariciando minha bochecha, seus olhos demonstrando tanto amor que
minhas lágrimas se tornam mais intensas.
— Eu jamais me arrependerei do nosso laço — começo, travando logo
em seguida quando seu olhar estreita, as sobrancelhas franzindo. Respiro
fundo para tomar coragem, meus pulmões ardendo de dor, então solto a
dúvida que sei que lá no fundo, ele também tem: — Mas e se nós realmente
não formos compatíveis?
A mão que fazia carinho em minha bochecha, de repente, agarra meu
queixo com brusquidão e mordo o grito de susto e dor quando suas garras
afundam na carne, impedindo que eu me mova.
— Nunca mais diga algo assim de novo, Felícia — seu rosnado me faz
estremecer, o poder do seu animal obrigando-me a curvar a cabeça em
submissão. — Você foi feita para se encaixar em mim, assim como fui feito
para você!
— Então por que eu não estou entrando no cio? — pergunto, as
lágrimas escorrendo sem controle, embaçando a visão do seu rosto semi
transformado. — Por que estou perdendo minhas forças, assim como eles
disseram que eu faria?
Fomos avisados por todos do bando que não podíamos acasalar, por
sermos de espécies diferentes de felinos. Falaram que nossos kaylaks, a
energia dos felinos que habitam dentro do nosso corpo, iriam se repelir.
Meu pai e minha mãe perturbaram tanto a minha cabeça sobre esse assunto,
me punindo com os mais diversos castigos apenas por amar Dalton, que
quase desisti da nossa fuga para as Cavernas de Gelo Mendenhall, onde
fizemos a junção milenar e irreversível das nossas almas. Ainda assim, nós
fugimos e nos unimos, logo após eu completar 20 anos.
Eu não me arrependo de ter dado meu ser para meu marido. O que
compartilhamos naquela caverna foi a coisa mais magnifica e mágica que já
vi em toda a minha vida. Porém, o que o bando falou, está se mostrando
verdade. Não conseguimos ativar o cio para termos os filhotes e mantermos
nosso laço estável! Já tentamos de tudo, cheguei a engolir meu orgulho e
pedir ajuda para o meu pai! A única coisa que consegui foi uma nova sessão
de humilhações, a saliva dele escorrendo pelo meu rosto, e suas palavras
sobre eu ser a maior decepção da vida dele ecoando na minha cabeça.
— Espero que seu corpo sucumba nesse inverno e me livre de uma vez
por todas de você e daquele forasteiro maldito — disse um segundo antes
de bater a porta da casa onde cresci, me deixando jogada no chão gelado,
onde caí quando me empurrou.
Sempre escutei as histórias dos companheiros predestinados, que a
própria deusa da lua decidia unir. Eles superavam todas as adversidades
juntos, vivendo felizes e tendo muitos bebês. Achava que teria isso com
Dalton. Não há um pingo de dúvidas que ele é meu companheiro
predestinado. Eu sabia desde que completei 13 anos, a idade da primeira
transformação, e ao fazer 19, quando atingimos a maioridade shifter.
Percebi o quanto minha alma passou a implorar pela sua.
Tentamos resistir por um tempo, pois as apostas eram altas demais,
mas não deu. A ânsia de tê-lo unido a mim foi mais forte do que qualquer
perigo que enfrentávamos. Pensei que tudo iria se encaixar. Que a deusa nos
ajudaria.
Eu estava tão malditamente errada… Tudo ficou ainda pior!
Fomos, de todas as maneiras que importam, expulsos do bando.
Minha família me rejeitou e a de Dalton não pôde se aproximar, pois isso os
botaria em maus termos com meu pai, que já não é muito fã deles. Nossos
poderes passaram a falhar, os kaylaks não se misturaram do modo como
pensei que aconteceria, e sem o cio, nosso laço está em risco de
desmoronar. E não importa o quanto tentamos, a cada dia que passa, parece
que as coisas só ficam piores!
— Eu não sei, mas seja lá o que está te impedindo, não é nossa
incompatibilidade — reforça, retirando as garras, parecendo arrependido
por ter perdido o controle e me machucado.
Ele leva o dedo manchado de sangue aos lábios e minha barriga torce
quando o admiro lamber o líquido rubro, o movimento faz a ponta de suas
presas aparecerem. Há desejo dentro de mim, mas as dores que sinto fazem
ele desaparecer rapidamente.
Dalton faz uma bolinha de cuspe em cima do indicador e esfrega em
minhas feridas, para que se curem, o pelo branco que antes brotava na
lateral do seu rosto já tendo desaparecido totalmente. É com muito custo
que não me afasto, estremecendo de nojo e dor.
— Desculpe, alma minha — pede, dando um beijo no canto do meu
olho. — Eu não sei como te ajudar e isso está me enlouquecendo!
Apoio a cabeça no vão do seu pescoço com o ombro, soltando um
suspiro de cansaço. Não estou brava por sua perda de controle. Eu sei que
Dalton jamais me machucaria. Além da nossa ligação de almas não
permitir, ele não é o tipo de homem que fere mulheres, apenas não consegue
medir sua força, por causa do lado selvagem do seu leopardo. Sou da
mesma maneira, quando não estou sentindo que morrerei de tanta dor. É
comum os shifters serem mais violentos, por isso uma das regras dos
sobrenaturais é não se relacionar com humanos, o que para nós pode ser
uma brincadeira boba, para eles pode ser um crime.
— Está me enlouquecendo também — deixo escapar enquanto
entrelaço nossos dedos, beijando as costas da sua mão para que saiba que o
perdoo pelo tratamento brusco, e que também me arrependo das palavras
que ecoei. — Somos perfeitos um para o outro.
— Sim, nós somos — concorda, me abraçando mais forte, tentando
provar que isto é real.
Que não foi um erro a deusa da lua ter nos juntado.
02

FELÍCIA
Ficamos assim por longos minutos, encarando os flocos de neve se
acumularem cada vez mais contra o vidro da janela, até não ser mais
possível ver os galhos retorcidos das árvores.
Me forço a levantar, todos os meus membros gritando de dor. Dalton é
rápido em me segurar quando quase caio no chão, uma tontura e enjoo tão
fortes me baqueando, fazendo pontos pretos dominarem minha visão.
— Talvez devêssemos ir ver os anciãos — diz, mostrando que está
apavorado ao ponto de considerar ir pedir ajuda para as pessoas que o
torturaram.
— Só irei até lá no dia em que eu for matá-los — resmungo cheia de
ódio, não tendo forças para impedir que ele me pegue no colo. — Dalton,
eu não sou um bebê!
— Mas está frágil igual a um — retruca, me levando sem
complicações em direção ao nosso quarto.
Não sei por que, mas a visão das paredes pintadas de creme e da cama
com lençóis amarelos, faz minha garganta fechar. Aperto seu braço,
desesperada para não entrar no ambiente pequeno e aconchegante, meu
coração retumbando em meu peito como se estivesse sendo caçada.
— Preciso de ar! — imploro, novas lágrimas invadindo meus olhos
por conta das dores que me afligem.
— Lá fora está congelando, alma minha — Dalton diz, lento, me
encarando como se estivesse louca.
— Por favor.
Meu pedido mental o faz ceder.
Ele se vira, dando as costas para nosso quarto, e começa a andar em
direção à porta. Para perto do sofá, agarrando a manta laranja, que estava
apoiada no encosto, e a joga em cima de mim, me enrolando igual uma
criança. Depois abre a porta, permitindo que o ar gelado no corredor do
prédio invada o interior do apartamento.
Conforme descemos as escadas e nos aproximamos da porta que leva
até a área traseira do pequeno prédio onde moramos, sinto meu rosto
queimar com a mudança brusca de temperatura.
Sendo uma shifter, eu não deveria sentir todo esse frio. Meu animal é
um felino típico desta terra congelada. Está no meu sangue brincar com a
neve do Alasca e adorá-la! Porém, por causa da fraqueza da falta do cio,
tudo que consigo pensar ao sentir os primeiros flocos caírem sobre minha
pele negra, é quão arrependida estou por fazer Dalton me trazer até aqui.
— Quer voltar para dentro? — questiona, não demonstrando
desconforto pelo ar congelante estar batendo contra seu corpo seminu. Por
alguns segundos, me sinto feliz. Ele não está sofrendo e é isso que importa
de verdade.
Abro a boca para dizer que sim, mas por algum motivo que
desconheço, as palavras que saem dos meus lábios são completamente
contraditórias.
— Podemos andar um pouco pela floresta?
Dalton não parece animado com a ideia, mas não me contraria e segue
em direção às árvores, tentando não nos deixar cair por conta da grossa
camada de neve que esconde o chão.
O som dos passos do meu marido contra a neve fofa é acompanhado
pelo uivo do vento, que chacoalha as agulhas dos Abetos carregados de
cristais de gelo, criando uma melodia assustadoramente bela.
Minha lince apura sua audição e viro a cabeça para olhar onde a
pequena lebre se esconde, embaixo de uma Tsuga. Seu cheiro me dá água
na boca.
Dalton desvia o olhar do céu cinzento para encarar o animal, que
mexe o nariz confuso e esfrega a pata pequena e peluda contra a pouca
grama que ainda não foi tomada pela neve. Em seguida, ele se volta para
mim.
— Quer caçar? — o sorriso safado em seu rosto faz, outra vez, meu
estômago revirar; mas a chama do desejo desaparece tão rápido quanto
surgiu.
Hesito alguns instantes antes de responder, com medo de me
transformar e não conseguir voltar a forma humana, por causa da dor que
me dilacera; mas apesar do meu corpo ainda estar dolorido, não é mais
aquela sensação angustiante que me domina.
— Quero — respondo lenta, decidindo tentar.
Estremeço quando ele me bota no chão, a neve entrando em contato
com minhas pernas desnudas, queimando-as de tão gelada que está.
— Pela lua, que frio!
O idiota do meu marido ri, não tendo nenhum problema ao abaixar o
short e revelar o corpo nu para os pinheiros ao nosso redor.
Mordo o lábio inferior e pressiono minha barriga ao ver seu pênis que,
mesmo mole, segue o padrão do corpo enorme. Estou desesperada para que
o fogo surja de repente e me permita aproveitar o companheiro maravilhoso
que tenho, mas a única coisa que sinto são meus pulmões ardendo e meu
corpo virando um picolé.
— Quer apostar quem pega ele primeiro? — Dalton ergue a
sobrancelha, estendendo os braços para se espreguiçar, alheio a tristeza que
ameaça cortar meu coração.
— Para quê? Você sempre ganha — bufo, cerrando os dentes
enquanto retiro a regata rosa que estou usando e empurro para baixo o short
do meu pijama, junto com a calcinha.
O vendaval aumenta, o barulho do vento batendo nas árvores se
tornando quase um grito de mau-presságio.
Caio no chão, as mãos se chocando contra a neve macia, e mordo a
língua para evitar rosnar com a dor que me atravessa quando minha lince
empurra seu caminho para fora, remodelando os ossos e transformando a
pele negra em pelos vermelhos amarronzados, manchados de branco. A
transformação dói mais do que de costume, mas menos do que achei que
iria, o que me deixa aliviada.
Minha visão estreita, se tornando mais aguçada, e quando meu focinho
cresce por completo, o cheiro da terra escondida, dos pinheiros molhados e
do lagomorfo que está prestes a virar um delicioso ensopado, me dominam.
Passo a língua comprida nos caninos afiados e esfrego a pata no chão,
não mais incomodada com o frio, graças a camada grossa de pelos e
gordura que rodeia meu corpo.
Escuto o som dos ossos de Dalton quebrando e remodelando; um
segundo depois, seu focinho enorme bate de leve na lateral da minha
barriga, me obrigando a desviar os olhos do coelho.
Meu marido é um verdadeiro espetáculo, seja na forma humana ou
animal, e ver seu enorme corpo branco, manchado com pintas pretas, me
faz estremecer num misto de desejo e encanto.
— Se estivéssemos no cio, gostaria que você me montasse assim — o
pensamento desliza pelo laço mental, e Dalton arregala os olhos dourados
em surpresa.
Até sua boca se abre, revelando a ponta das enormes presas. Rio com
o quão engraçado se parece um leopardo das Neves chocado.
— Eu iria te rasgar no meio, alma minha — aponta, esfregando
novamente o rosto enorme no meu lombo. — Tenho o dobro do seu
tamanho.
— Você também é grande na forma humana e não teve nenhum
problema em se encaixar em mim — provoco, sentindo minha alegria e
safadeza costumeira. Talvez o que eu estivesse precisando era mesmo sair
de casa e tomar um pouco de ar!
Dalton começa a pensar numa forma de me rebater, não querendo
admitir o quanto gosta da ideia de me montar assim, mas nós dois perdemos
a linha de raciocínio quando escutamos o movimento da nossa presa.
Ao olhar para baixo da Tsuga, não encontro o coelho, apenas a trilha
de suas pegadas.
Meu marido não me espera para sair em disparada atrás do lagomorfo,
suas patas batendo na neve com tanta força que faz os flocos subirem e
caírem contra meu focinho.
— Não vou te foder como leopardo, Felícia — diz, sem nenhuma
firmeza em seu tom. — Não quero seu pai me transformando num casaco
de pele.
Suas palavras não soam como brincadeira e, ao senti-lo estremecer,
tristeza e repulsa pelo homem com quem compartilho o sangue me tomam.
Ele some de vista ao contornar um pinheiro grande e grosso, por isso
acelero meus passos, uma tentativa vã de fugir dos demônios que nos
perseguem e tiram nossa paz.
O ar gelado bate contra meu rosto peludo, me refrescando, e algumas
agulhas raspam contra meu pelo, causando tremores gostosos. Escuto o som
do coração acelerado do coelho e o guincho de terror que solta quando
Dalton o alcança.
O cheiro de sangue domina o ar, me fazendo babar, e quando consigo
contornar a árvore, vejo a pata branca do meu marido em cima do corpo do
animal morto e seu focinho vermelho.
Ele lambe o pelo, me dando outro vislumbre das presas brancas e
aponta para que eu pegue o coelho.
— Seu jantar, alma minha.
— Isso que chamo de homem provedor — provoco, me aproximando
para morder a carne ainda quente, pela primeira vez na semana sentindo
fome.
Minha ideia era levar o animal para casa e fazer um guisado, mas
minha lince parece achar que coelho cru é muito mais saboroso, pois
arranca uma das patas e engole, mastigando sem dificuldades. Puxo uma
das traseiras e jogo na frente de Dalton, que se deitou na neve suja e me
observa com tranquilidade, o rabo fofo balançando no ar, tal qual um
gatinho de estimação quando está satisfeito.
— Pode comer, amor. Você precisa recuperar suas forças — recusa a
carne, empurrando-a de volta para mim. — Como está se sentindo?
— Ótima. Melhor do que estive durante toda a semana. Talvez até no
mês!
Desde que meu pai me enxotou e desejou meu fim, quando fui pedir
sua ajuda para lidar com a falta do cio, só saí de casa para ir à reunião
obrigatória, onde o desgraçado nos dá migalhas de poder. Seu rugido para
reorganizar nossos kaylaks foi tão fraco e baixo, que foi o mesmo que nada.
Ele fez propositalmente. Deixou claro que quer meu sofrimento pela
“humilhação” que o fiz passar quando interrompi o noivado que ele
arranjou para ter mais poder. Sei que, se eu não fosse muito conhecida pelos
membros do conselho dos shifters, o grupo que ele faz parte e os únicos que
o superam em poder, e que se meu sumiço não resultasse em perguntas que
ele não quer responder, já estaria morta há muito tempo. Por isso evito sair
de casa. Tenho uma certa “segurança”, mas não sei até quando isto irá
superar o ódio que meu pai sente de mim.
— Talvez a resposta que buscamos seja realmente o frio — fala antes
de se levantar e vir em minha direção. — Deite-se no chão, por favor.
— Você não vai me enterrar na neve, Dalton — rejeito o pensamento
que vi surgir em sua mente, revirando os olhos enquanto mastigo a pata que
não quis.
— Pode ajudar!
Ele tem a coragem de jogar um pouco de neve em cima de mim e
quando abro a boca para rosnar de irritação, todo meu corpo trava.
Canela. Couro. Madeira. Uma pitada de noz-moscada e laranja.
Fungo outra vez, o cheiro enchendo meus pulmões e fazendo minha
cabeça rodar.
— Que cheiro delicioso — Dalton diz, olhando para o leste. — Está
sentindo?
— Sim, estou.
Não só o cheiro, mas também o latejar na minha barriga e o fogo do
desejo me dominando.
— O que será que é? — meu marido continua, alheio a loucura que
meu corpo se tornou.
— Não sei, mas é meu! — é tudo que consigo pensar antes de sair
correndo.
03

ORION
O machado cai na madeira, quebrando-a no meio e fazendo farpas se
soltarem e caírem na neve branca. Suspiro de cansaço, os braços doendo
por conta da força que estou fazendo repetidamente há quase uma hora,
para criar uma pequena montanha de lenha que não me deixará morrer de
frio durante a nevasca, caso a energia caia como os noticiários estão
dizendo que pode acontecer.
O ar gelado bate contra minha pele, queimando e tentando rasgá-la,
mesmo com toda a roupa que botei para vir aqui fora. Minhas bochechas
ardem, assim como a ponta do meu nariz, que parece ter congelado. Esfrego
as mãos para descongelar as juntas e não perder os dedos que ficaram
expostos à neve, mas a fricção só deixa a dor pior. Aproveito para
chacoalhar o corpo e tirar os flocos que se acumularam no casaco e touca,
molhando os tecidos.
Por alguns segundos, permito que meus olhos corram pela paisagem,
admirando as árvores enormes cobertas pelo branco da neve, que abrem
caminho em direção à ponte sobre o rio Cross Bay Creek, que se estende até
chegar na estrada principal. É estranho não escutar o som da água batendo
contra as barras de ferro da ponte.
Este ano o inverno veio tão rigoroso que o rio congelou quase que por
completo. Como eu queria que tivesse sido assim naquela noite. Suspiro
enquanto desvio o olhar do caminho que passei a odiar, prestando
novamente atenção a pilha de lenha que já cortei.
Uma parte minha quer cortar mais. A casa que herdei da minha avó é
enorme e precisa de muito para ser aquecida; mas minha outra metade
entende que não tem necessidade de aquecer todos os cômodos. Eu só uso
quatro deles hoje em dia. Penso, esfregando o peito que começa a doer pela
lembrança do par de olhos mais lindos que já vi. Verdes iguais às agulhas
dos abetos, quando a neve começa a derreter.
Um verde engolido pelo azul.
O som de um galho estralando atrás de mim faz minhas lembranças
dissiparem. Me viro, o coração disparado, preparado para encarar algum
animal selvagem. Solto um bufo ao ver o pequeno esquilo subir na árvore
mais próxima e me encarar por entre as folhas do pinheiro.
— Você me assustou pra caralho! — desabafo, botando a mão no
peito, sentindo a pulsação acelerada mesmo com todas as camadas de roupa
que estou usando.
O esquilo balança o nariz e vai embora, me deixando de novo, sozinho
no mausoléu que chamo de lar.
A mansão cheia de torres e colunas revestidas com tijolinhos
vermelhos, agora polvilhados com o branco dos cristais de gelo, seria o
sonho da maioria das pessoas. Ela tem quartos espaçosos, todos com
lareiras e varandas, um belo salão para festas e uma biblioteca que faria até
a Fera[5] ficar com ciúme. No térreo, há portas de vidro, permitindo quem
está dentro ver a bela floresta que cerca a propriedade e, ocasionalmente,
avistar até algum urso ou raposa. Agora revelam apenas o interior escuro e
abandonado do lugar aonde um dia eu fui feliz.
— Eu deveria ter ficado em Anchorage — resmungo, pensando na
oferta de Taylor, um dos meus amigos, para permanecer em sua casa
durante a tempestade.
Eu iria aceitar, mas na hora, minha mente ficou esquisita. Quando
percebi, já tinha pilotado o hidroavião de volta para cá, e guardado meu
Havilland Canada DHC-6 Twin Otter[6] na base.
Foi quase como ser enfeitiçado, pois não lembro direito das minhas
ações. Vim para um lugar que odeio, que me lembra de tudo de ruim que já
aconteceu em minha vida, ficar sozinho, enquanto a maior nevasca da
década dura sei lá quantos dias. Só pode ter sido bruxaria!
Me abaixo para pegar as madeiras, querendo sair do frio que tenta
arrancar meus membros de mim e, enquanto organizo duas toras para ficar
mais fácil de carregar, sinto um arrepio percorrer minha espinha, levantando
os cabelos de minha nuca.
Tem alguém me observando.
O pensamento se fixa em meu cérebro, tal qual um chiclete numa
pelúcia, por isso me elevo lentamente, tentando não transparecer o medo e
incômodo que sinto.
Seguro firme a madeira na mão, me preparando para bater no idiota
que invadiu minha propriedade. Puxo o ar ao correr os olhos pelos galhos
dos abetos carregados de neve, e pelas sombras que eles fazem no chão
claro.
Tento apurar a audição, mas tudo que escuto é o som do vento batendo
contra as árvores. Quando não acho nada de diferente, dou de ombros, me
sentindo um idiota paranoico, e sigo para o galpão, aceitando que é só mais
algum animal de passagem. Talvez até o mesmo esquilo de antes.
Faço cinco viagens para levar a maior parte da madeira para o galpão,
e quando volto para pegar as últimas toras que vão repor as da lareira da
sala, suspiro aliviado.
— Caralho, como odeio frio — reclamo quando um pingente de gelo
cai bem no meu olho direito, me deixando momentaneamente confuso.
Quase caio, batendo com o pé na quina da base da fogueira de pedra,
que vovó costumava acender quando eu vinha visitá-la na infância. Três
toras saem do meu agarre e caem no chão, espirrando neve para todos os
lados. Uma delas bate no meu pé e, mesmo calçando botas pesadas, ainda
sinto uma dor que me faz xingar, se juntando ao ardor da pele das minhas
mãos, que o gelo queimou.
— Filho da puta! — explodo, abaixando para acariciar o local
dolorido, olhando com ódio a fogueira escondida de forma parcial pela
neve. — Quando o inverno acabar, vou destruir você — prometo ao objeto
inanimado, todo meu ódio se voltando para ele, que permaneceu na
propriedade enquanto ela se foi.
Porra de vida injusta do caralho!
Chuto a neve, furioso com as dores que me percorrem, não só físicas,
como emocionais. Agarro de novo as madeiras úmidas e mordo com força o
lábio inferior para tentar impedir que escorra a lágrima que se acumula em
meu olho esquerdo. Não dá certo e a sinto congelar assim que cai,
queimando minha bochecha.
Ao chegar na porta que deixei encostada, faço um malabarismo para
conseguir abri-la com o pé, apoiando o ombro na parede, para não ir ao
chão. Suspiro de alívio assim que o ar quente do aquecedor da mansão bate
em meu rosto, sendo rapidamente engolido pelo vento uivante, que parece
querer me empurrar para dentro. Dou um passo adiante, apertando firme as
madeiras para que não caiam, e quando a porta está prestes a se fechar, sinto
algo me desequilibrar, passando ao lado das minhas pernas.
Olho para baixo e para trás, procurando o ser responsável por quase
me fazer cair, mas a única coisa que encontro é um rastro de neve, que o
vento trouxe.
Estou sozinho aqui, me lembro, fechando a porta de uma vez,
impedindo de entrar o frio que já havia me tirado tanto.
Uma pena que a porta marrom não possa bloquear o frio que
congelou meu coração…

O fogo ruge e estala na lareira, soltando labaredas que flutuam pelo ar


e caem graciosamente no chão de madeira, se apagando antes de tocarem no
tapete vermelho bordado.
Coloco o atiçador de volta no suporte e desabotoo minha jaqueta
molhada, apreciando o calor que começa a me descongelar. Jogo o tecido
preto no chão, em seguida minhas calças geladas, ficando apenas com as
peças de segunda pele.
Passo a mão nos meus cabelos curtos, retirando qualquer floco de
neve que possa ter ficado para trás e vou em direção à cozinha, batendo a
mão no interruptor para iluminar o ambiente luxuoso, mas já um pouco
ultrapassado.
Minha avó fez todos os móveis com uma madeira clara, o que dava a
sensação de conforto e elegância, porém eles destoavam bastante dos
eletrodomésticos novos que tive que colocar alguns anos atrás, pois os
antigos já não funcionavam direito. Lutei por eles o máximo que pude, não
queria me desfazer de nada que vovó escolheu, mas, no fim, a praticidade
venceu a beleza e as memórias, e a cozinha ficou parecendo a minha vida:
uma bagunça.
Abro a porta da geladeira de inox, com o pensamento de fazer um
chocolate quente para me aquecer, mas não consigo evitar pegar uma
garrafa de cerveja. Preciso do álcool para lidar com a ideia de ficar preso
neste lugar infestado de más memórias que tentam me devorar vivo.
Jogo a tampa de metal em direção à lixeira. Ela bate na borda da lata e
cai no chão com um estalinho que me faz bufar. Sigo até lá, o frio da
garrafa fazendo os machucados da minha mão gritarem de dor, e me agacho
para pegá-la. Franzo a testa quando começo a sentir um calor estranho no
pé da barriga e esfrego o local, sem entender o motivo.
Ao me levantar, os cabelos em minha nuca arrepiam e o coração
acelera, todo meu corpo gritando que tem algo errado. Que tem alguém me
observando.
A ideia surge seguida por outra coisa: um calor abrasador no pé do
meu estômago, que desce rápido até minha virilha, endurecendo meu pau.
— Porra! — meus joelhos falham e caio no chão, soltando a garrafa
no processo, que estoura com um baque alto assim que entra em contato
com a madeira, derramando cerveja para todo lado.
Não ligo para a bagunça, ocupado demais com a onda de prazer
repentina, que me faz arfar e afastar o tecido preto colado das minhas
calças, todo corpo tremendo pelas sensações intensas que se apoderaram de
mim. Ao tocar meu pênis, grito com o quão quente e sensível à carne está.
Aperto forte, a mão descendo e subindo com rapidez pelo pau
pulsante, mal sentindo as veias sobressalentes. Meu estômago se aperta com
a perspectiva de ter um orgasmo, os gemidos saem da minha boca em
sequência, o prazer forte demais para controlar. Sinto meus mamilos
endurecerem e quando esfrego o polegar na cabeça avermelhada,
esbarrando no piercing em formato de argola, os jatos de porra saem com
força, caindo sobre o tecido preto da camisa e virilha descoberta.
O orgasmo rápido leva embora toda minha energia, ao ponto de eu não
conseguir nem cogitar me levantar do chão molhado com a cerveja. Fecho
os olhos ao jogar um dos braços em cima deles, e repasso os últimos
minutos. Ou será que foram segundos? Tudo aconteceu tão rápido que nem
tenho certeza. A onda de tesão surgiu do nada, dominando meu corpo! O
pior é que não estou satisfeito. Eu quero mais. Meu pênis endurece de novo,
o que não é comum, já que tenho mais de 38 anos e se passou pouquíssimo
tempo desde que gozei, o desejo revira minhas entranhas, arrancando um
novo suspiro meu.
Ainda de olhos fechados, pego de novo meu pau, acariciando-o com
mais tranquilidade, sem aquele desejo angustiante de gozar.
Tateio as veias com a ponta do dedo, suspirando ao sentir a carne
melada por causa do sêmen que derramei. Puxo um pouquinho o piercing e
solto um silvo com a leve dor que o movimento causa, que se transforma
numa onda de satisfação perversa logo depois. Meus lábios se abrem para
conseguir ar e outro gemido sai quando afasto as pernas o máximo que
minha calça permite, levando minha outra mão ao períneo, esfregando ali e
aumentando o prazer. Deixo os dedos roçarem nas minhas bolas com suaves
movimentos, e quase ronrono com o quão bem me sinto.
— Porra, como isso é bom! — desabafo antes de abrir os olhos,
quando o prazer aumenta e o desespero para gozar volta.
Porém, não é o teto branco da cozinha que enxergo, mas sim o rosto
peludo de um animal. Um leopardo das Neves, meu cérebro processa alguns
segundos depois; que não parece impressionado com minha sessão de
masturbação.
Seus olhos dourados brilham de uma maneira que me deixa tonto,
fixos em meu rosto, e quando sua atenção lentamente sobe até meu pau,
algo em mim se solta e eu explodo, gozando de novo.
— Ai, caralho — não consigo me controlar e ofego, o corpo tremendo
com a mistura de prazer e terror.
Tento parar os jatos, botando a palma em cima da uretra, mas tudo que
consigo é que a sensação se intensifique, pois meu dedo esbarra e engancha
no piercing de argola, e o puxar doloroso aumenta a intensidade do prazer,
ao ponto do meu corpo curvar e meu pescoço ficar exposto.
Meus olhos se fecham por vontade própria, e mesmo mordendo o
lábio inferior para não gemer, barulhos vergonhosos saem da minha
garganta.
O gozo para após longos e tortuosos segundos, que foram polvilhados
por um medo cegante que me deixa com dificuldades de abrir as pálpebras
agora e encarar o felino mortal que observou meu corpo desfalecer.
Quando reúno coragem, porém, o único ser vivo que encontro na
cozinha sou eu mesmo.
— Não é possível que imaginei isso — murmuro, levantando
cambaleante, as pernas mal funcionando diante da intensidade do orgasmo
que tive.
Me agarro na bancada de mármore claro, olhando cada canto da
cozinha bem iluminada, o coração batendo com tanta força em meu peito
que o sinto na garganta, mas não há nada. Nenhum leopardo das Neves ou
qualquer outro felino com tamanho para me fazer de próxima refeição.
— Pronto. Agora fiquei doido de vez!
04

DALTON
Mantenho a pata pressionada nas costas de Felícia, impedindo-a de se
arrastar até onde o homem com cheiro delicioso está. O movimento também
me impede de me aproximar de novo. Não acredito que não consegui me
controlar e fiquei parado na frente dele, vendo-o gozar!
O humano não faz ideia de que nos escondemos embaixo do armário
planejado e que, neste momento, estou dando tudo de mim para impedir que
minha esposa pule em sua garganta, o encha de beijos e enfie seu pau
dentro dela.
— Nosso companheiro é tão lindo! Olhe para ele, amor — Felícia diz
pelo nosso laço mental, o corpo roçando o meu na sua tentativa de se
aproximar do humano que agora está ajoelhado no chão, limpando a poça
que a cerveja caída criou, resquícios do seu gozo secando sobre a blusa
preta.
— Ele não é nosso companheiro — repito pela terceira vez, me
negando a aceitar tal coisa.
Não importa que ele tenha um cheiro tão gostoso que praticamente
nos obrigou a vir até aqui, nem que meu corpo tenha queimado quando o vi
olhar para mim, as íris azuis quase engolidas pelo preto das pupilas.
Também não é relevante que minha esposa tenha entrado no cio assim que o
sentiu, um cio que parece ter afetado o humano, e que meu peito parece
prestes a explodir de emoção enquanto o observo. Nada disso importa, pois
ele não pode ser meu companheiro.
— Eu não sou gay — afirmo, agitação tomando meu corpo, meu rabo
balança com tanta força que bate na madeira, criando um estralo alto que
faz o humano ajeitar a postura e olhar em nossa direção.
Prendo a respiração quando o moreno se ergue lentamente e anda até
nós, segurando a base de metal que mantém o papel-toalha em pé, com
tanta força que os nós dos dedos estão brancos.
— Olá? Tem alguém aí? É você, gatinho? — pergunta, sua voz rouca
e grossa fazendo minha espinha arrepiar e um ronronar quase escapar de
minha garganta.
Felícia me encara e, por causa da visão melhorada do meu animal,
consigo ver com perfeição seu rosto peludo, franzindo numa cara de
prepotência.
— Negue o quanto quiser, alma minha, mas, no fundo, você sabe que
ele nos pertence — diz pelo laço, usando o apelido carinhoso que eu lhe dei
no dia que acasalamos, a voz mental transbordando arrogância.
Não respondo, focado demais nos pés do homem que se aproxima
mais a cada segundo que passa. Um sentimento estranho toma meu peito, se
espalhando até minha barriga. Só percebo o que é quando Felícia começa a
rolar no chão, a mente sendo tomada por imagens tão pornográficas que
tiram meu ar e fazem meu pau subir.
Tento me concentrar no plano de fuga, para caso o humano se agache
no chão e nos ataque, mas acaba não sendo necessário. Os pensamentos de
Felícia o atingem e ele dá um passo bambo para trás, colocando a mão em
frente a ereção maciça que surgiu do nada.
— Que caralhos tá acontecendo aqui? — ofega, parecendo tão sexy
com a confusão e o tesão dominando seu corpo, que quase saio debaixo do
armário e roço em sua perna, todo meu ser exigindo tocá-lo.
— Imagina se ele fosse seu companheiro… — Felícia debocha,
esfregando-se em mim.
O moreno cai em cima de uma cadeira, de costas para nós, e o som da
carne deslizando, junto com seus gemidos, faz minha boca encher de água.
— Vamos sair agora que ele está distraído — me obrigo a dizer,
minha cabeça e corpo lutando para entender o que está acontecendo.
Eu não posso ser acasalado com um homem. Eu sou hétero! Casado
com uma mulher! Eu amo Felícia mais que tudo. Estou satisfeito com a
nossa vida. Nunca nem sequer pensei num homem desta forma. Então,
porque agora quero me ajoelhar em frente a este estranho e enfiar seu pau
grosso na boca, puxando o piercing até que peça clemência?
— Vamos ficar só mais um pouquinho — Felícia implora, ronronando
alto quando o homem joga a cabeça para trás, expondo por completo o
pescoço claro, marcado com algumas poucas linhas pretas, que sobem do
seu peito. — Pela lua, eu faria qualquer coisa para explorar as tatuagens
que ele tem com a ponta da minha língua!
Rosno quando a imagem surge em minha mente, a boceta de Felícia,
molhada e inchada, encaixada no pênis do homem, que está caído no chão,
o corpo nu a nossa plena disposição. Ela lambe a carne marcada,
distribuindo beijos e mordidinhas que o fazem enlouquecer.
— Quero vocês dois dentro de mim, amor! — seu pedido faz o pouco
autocontrole que ainda restava em meu corpo se extinguir.
Antes que algo aconteça que nos exponha de novo, mordo sua nuca,
puxando o pelo vermelho, e levanto-a igual uma mãe faz com seu filhote,
correndo para fora da cozinha.
Minha esposa se contorce, furiosa por eu tê-la tirado de perto do nosso
companheiro, mas mantenho o agarre forte dos meus dentes, para que não
consiga se soltar.
— Me larga! Eu não sou criança! — grita pelo laço.
A ignoro enquanto subo as escadas, querendo estar o mais longe
possível do homem que está partindo minha cabeça ao meio. Quando vejo
uma porta entreaberta, sigo para lá, trancando nós dois dentro.
O cheiro de poeira e mofo ataca imediatamente meu focinho e acabo
soltando Felícia para conseguir espirrar. Ela mete a pata na minha cabeça,
irritada.
— Idiota. Nem o vimos gozar! — resmunga, voltando para a forma
humana.
O quarto em que entramos está escuro, mas, por causa da visão
noturna do meu leopardo, vejo com perfeição Felícia, que empurra os
cachos ruivos para longe do rosto, um biquinho fofo nos lábios.
Ela cruza os braços e se vira para encarar o ambiente, os pés batendo
nervosos contra o chão de madeira, onde há uma camada tão grande de
poeira que até me preocupa.
— Será que ele não tem uma vassoura na casa? — questiono, também
me transformando.
— Vai ver se mudou faz pouco tempo. Olha quantas caixas. — Sigo a
direção da sua mão e avisto quase que uma parede inteira composta por
caixas de papelão amassadas.
Elas também estão lotadas de poeira e dispostas de um modo que
parece que foram botadas aqui na pressa.
Me aproximo devagar, curioso para descobrir mais sobre o homem
que virou nossas vidas de cabeça para baixo em questão de minutos. Puxo
com cuidado um porta-retrato enfiado de qualquer jeito numa das caixas
apoiadas no chão, e sorrio ao ver a foto de um garotinho emburrado, com os
braços cruzados e um grande bico de insatisfação.
Ele tem cabelos castanhos cacheados, que caem sobre sua testa
pequena e cobrem parte dos olhos azuis. Está usando um macacão amarelo
e sapatos pretos envernizados. Atrás dele, está a mansão onde estamos
agora. É inegável se tratar da versão mais jovem do homem na cozinha. O
formato do nariz é o mesmo, o arco do cupido e até o jeito de franzir as
sobrancelhas.
— Com certeza não é um novo morador — entrego a foto para Felícia,
que se desmancha com a fofura do pequeno garotinho.
— Será que nosso filho vai ter essas bochechas gordinhas?
Ignoro sua fala, para não ter que lidar com as estranhas emoções que
me causam. Não é exatamente ciúme o que estou sentindo, mas também
não é felicidade.
Sinto algo por ele, só não sei definir o que é. Talvez ódio por
conquistar minha mulher em tão pouco tempo, sendo que precisei esperar
20 anos para tê-la? Desejo pelo seu corpo tatuado e pau com piercing? Ou
seria pena? Ele emana uma escuridão e solidão que chega a ser opressiva!
Vi isso lá fora, e agora que estou revirando suas caixas, observando as fotos
antigas guardadas com pressa, isso só fica pior.
— Acho que ele tem uma irmã gêmea — digo, pegando outro porta-
retrato.
Este parece mais bem conservado. A qualidade da foto é quase de um
iPhone e mostra de forma clara a garotinha vestindo o mesmo macacão
amarelo, com a cara emburrada.
A única diferença entre as duas crianças é que esta tem cabelos um
pouco mais longos, presos num penteado que os deixa caindo do lado, e
olhos verdes. O resto é tão idêntico que dá medo.
— Se tem caso de gêmeos na família, podemos ter dois bebês de uma
vez só! — diz ao encostar a cabeça no meu braço, soltando um suspiro de
felicidade logo depois. — Uma cópia de você e uma cópia dele. Não
consigo imaginar nada melhor!
— E a sua cópia, quando teremos? — largo o porta-retrato e agarro
sua cintura, puxando seu corpo contra o meu, me sentindo muito melhor por
ela lembrar de mim desta vez.
Não estou surpreso por Felícia ter aceitado o humano como seu
companheiro, sem nem o conhecer. Ela sempre escutou a intuição da sua
lince e deixou isto guiá-la. Por ser uma ômega, destinada a ser dada como
moeda de troca para outro alfa, em busca de fortalecer os territórios, Felícia
foi ensinada desde cedo sobre como os companheiros devem ser amados e
estimados. Como ela deve ser leal e obediente.
O bando todo tinha altas expectativas para com ela, pois desde jovem
se mostrou exemplar. Ela aceitava o que o pai impunha sem questionar.
Estava de casamento arranjado com Taiga, o líder da matilha de Auke Bay,
algo que traria grandes benefícios para todos.
Foi por isso que o choque do nosso acasalamento foi tão grande. Ela
se rebelou para ficar comigo, um beta que está na pior posição hierárquica
da alcateia, mesmo sendo o mais forte em poder.
Bethal já odiava meu leopardo, pois não é um felino típico do Alasca,
passou a vida me relembrando que meu lugar não é aqui, mas, após sua
filha, praticamente uma princesa, largar tudo para ficar comigo, Bethal foi
obrigado a desfazer o acordo com a matilha vizinha. Ele se sentiu
afrontado, e não apenas a humilhou e puniu na frente de todo bando,
marcando em suas costas o símbolo dos traidores, mas também me
espancou ao ponto de eu quase morrer, proibindo em seguida que qualquer
curandeiro cuidasse de nós.
Minha família teve que se manter longe, pois Bethal ameaçou-os com
o exílio, e proibiu que participássemos de mais do que uma reunião da
matilha por mês. Foi a forma perfeita de nos manter fracos, já que
precisamos das reuniões para equilibrarmos o kaylak, a energia vital que
todo metamorfo tem com a natureza e que nos permite mudar de forma,
preservando a consciência humana.
Infelizmente, apenas o rugido de um alfa pode reorganizar nossa
energia, que é como uma sombra dentro de nós, nos dando poder e
disposição. E por Bethal ser o alfa supremo do Alasca, ele tem controle de
todos os outros espalhados pelas cidades vizinhas, os quais deixaram claro
que não iriam nos aceitar nos bandos, evitando assim de virarem inimigos
de um dos membros do conselho dos shifters, o mais alto escalão do mundo
sobrenatural, formado apenas pelos metamorfos mais fortes e poderosos.
Estamos lidando com um problema enorme, pois meu sogro quer nos
fazer sofrer. Ele sente que roubei algo dele — a ômega que o ajudaria a
conseguir mais poder — e agora está determinado a nos destruir de maneira
lenta e agonizante.
Abraço Felícia mais forte, tentando afastar a frieza que se espalha em
meus membros, conforme lembro dos gritos da minha mulher quando foi
marcada de forma humilhante na frente das pessoas que a viram nascer e
crescer. Eu não pude fazer nada, pois estava sendo segurado pelas sentinelas
de Bethal, os betas de alta patente no bando. O pior de tudo foi ver que
ninguém fez ou disse nada! Nem mesmo os anciãos, o único grupo com um
poder semelhante ao de Bethal, não moveram um dedo para nos ajudar!
— Podemos fazê-la no inverno do ano que vem — sua voz abafada
por estar com a boca pressionada no meu ombro, me tira das lembranças
amargas, recordando-me que neste momento temos um problema ainda
maior para lidar. — Agora eu só quero mini cópias dos companheiros que a
deusa me presenteou.
Beijo sua testa, o ouvido sincronizado com o homem no andar
debaixo, que terminou de se aliviar e parece estar decidindo se enlouqueceu
ou não. Enquanto isso, começo a pensar nas nossas opções.
— Ele é humano, amor.
— Eu sei — sua animação diminui de forma considerável com o
lembrete amargo do que isto significa. — Mas foi a deusa que nos uniu e eu
não irei sair desta casa sem esse homem do meu lado!
— O problema não é sair. É conseguir se manter vivo se seu pai
descobrir — a fala, que era para ser uma brincadeira, faz minha esposa
estremecer, seu cheiro de terror ficando tão intenso que é como uma facada
no meu peito.
Com a palma da mão, sinto a textura grossa de onde a pele de suas
costas cicatrizou, e a acaricio com cuidado, pois mesmo que não sinta mais
dores, a área ficou permanentemente sensível por conta do veneno que
Bethal usou nas garras, quando a marcou.
— Será que um dia vamos conseguir ser livres, Dalton? — questiona,
a voz embargada com uma tristeza tão crua que corta meu ar. — Livres de
verdade. Não precisar mais ficar olhando por sobre o ombro toda vez que
saímos de casa, achando que ele mandou alguém nos perseguir e atazanar.
Poder conversar com sua família, sem ser um perigo para eles. Eu só queria
paz, droga!
Intensifico o abraço, tentando lhe transmitir uma força e calma que
não tenho.
— Os nossos filhos nunca vão poder se juntar aos outros filhotes do
bando — murmura, suas lágrimas caindo em minha pele. — Eles ficarão
fora da cerimônia de transformação quando completarem 13 anos. Só nós
três iremos vê-los se transformarem pela primeira vez e correrem pela
floresta, descobrindo os prazeres de se conectar com o animal da alma, e
nunca terão o kaylak forte igual ao das outras crianças. Fico pensando…
será que vale a pena ter filhos na situação em que nos encontramos? Nós só
podemos ir a uma única reunião mensal, o limite de tempo para não
enlouquecermos, e ainda temos que ficar longe dos outros, como se
tivéssemos uma doença contagiosa — nega com a cabeça, as palavras
saindo trêmulas pelo choro. — Eu quero nossos bebês mais que tudo, mas
não poderemos proporcionar plena felicidade para eles, e isso me mata!
Acaricio seus cabelos, escutando-a dizer as dúvidas que eu mesmo
tenho. Apesar de querer desesperadamente entrar no cio, não fiquei de todo
chateado quando não aconteceu, pois isso afastou a possibilidade de termos
filhos por um tempo.
Nenhuma shifter é obrigada a engravidar, há formas de enganar o
corpo para pensar que o ventre foi procriado, porém, é difícil encontrar as
plantas que precisamos, sobretudo com nosso isolamento. A falta do cio
trabalhou ao nosso favor nesse quesito. Mas agora, não tem como fugirmos.
Não só temos que lidar com o assunto das crianças, como temos um
companheiro humano que não sabe que invadimos sua casa, e minha esposa
está com dois cios acumulados atormentando seu corpo, que se não forem
satisfeitos, irão quebrar sua mente, levando a minha e do humano juntas.
— Vou cuidar de tudo, ok? Não precisa se preocupar com isso agora
— ela concorda, confiando em minha palavra sem reservas, algo que só me
deixa me sentindo pior.
Ômegas precisam de ambientes estáveis e seguros para poderem
desenvolver as habilidades de cura, pelos quais são tão famosos. Este é um
dos motivos para serem acasalados com alfas, para que os ajudem a sempre
se manterem fortes e saudáveis, cuidando assim do bando.
Quanto mais submissão um ômega mostrar, mais forte ele será, e
assim mais forças terá o alfa. Felícia tinha tudo para ser uma das ômegas
mais poderosas que já existiu, mas preferiu ficar comigo, um mero beta.
Tento ser o que ela precisa, me forço a ser dominante e lidar com as
coisas sozinho, mas a verdade é que jamais serei um alfa. Eu não nasci para
dar ordens, e sim ajudar um alfa a torná-las reais. No fim, eu só quero o
mesmo que ela: alguém que explique o que eu tenho que fazer, cuide de
tudo, e nos permita ter paz.
E ao invés de um projeto de alfa, a deusa nos mandou um humano
velho. Bufo, não acreditando na nossa falta de sorte.
— Ele não é tão velho assim. Deve ter uns 30 anos — responde ao
meu pensamento.
— Tá mais pra 40.
— Isso significa que ele é experiente! Pode nos ensinar coisas novas.
— Ensinar o quê? Eu descobri sozinho em qual dos buracos eu tinha
que entrar — zombo e tenho que me abaixar rápido para não ser acertado
por um dos porta-retratos que ela joga em minha direção.
O objeto bate contra a parede e o vidro que protege a fotografia se
estilhaça num barulho alto.
Felícia arregala os olhos e leva a mão a boca no exato momento em
que escuto a poltrona de couro fazer barulho no andar de baixo, indicando
que o homem se levantou.
— Talvez ele não tenha escutado — diz pelo laço, não ousando fazer
nenhum som para podermos ouvir o que acontece.
Algo range, uma porta se abrindo, talvez. Escuto metal se chocando e
logo em seguida o mecanismo de uma arma sendo engatilhado.
— Sabia que tinha a porra de um gato aqui dentro — escuto-o
resmungar antes de vir em direção às escadas, pronto para me caçar.
05

ORION
Tento manter meus passos silenciosos enquanto subo os degraus de
madeira, a espingarda firme em minhas mãos. Sinto o coração pulsar em
minha garganta, em um misto de medo, confusão e desejo.
Aquele fogo maldito continua correndo por minhas veias, não
permitindo que minha ereção desapareça ou que minha cabeça pare de
invocar imagens pornográficas. Esse tipo de situação nunca me ocorreu
antes, de ficar tão excitado a ponto de eu ignorar a intuição que gritou na
cozinha que tinha algo me observando.
Pareço a porra de um adolescente que acabou de descobrir o próprio
pau!
O corredor escuro e silencioso se estende a minha frente, partículas de
poeira dançando no ar, sendo iluminadas pela parca luz que adentra na
janela, quase toda tampada por uma grossa cortina cor de vinho. Desvio o
olhar do pano, um nó se formando em meu peito ao lembrar de todas as
vezes que me escondi ali para fazê-la rir.
Porra, como odeio essa casa e as lembranças que moram nela!
Observo as portas fechadas, tentando descobrir, sem abri-las, em qual
o leopardo está. Não quero matá-lo, só o retirar da mansão. É perigoso, para
nós dois, mantê-lo aqui dentro. Apesar de não ter feito nada comigo na
cozinha, ainda é um animal selvagem e carnívoro. Uma hora o bicho ficará
com fome, e como não é capaz de abrir a porta do congelador, decidirá que
serei o jantar.
Tento raciocinar de onde escutei o barulho do vidro quebrando. É de
algum quarto acima da sala de estar, então tem que ficar no lado esquerdo
do corredor. Também não pode ser muito ao norte, pois, apesar da sala ter
espaço para acomodar facilmente umas 70 pessoas, e ser grande em largura,
os quartos também são extensos.
Engulo em seco ao perceber que o animal está dentro de um dos dois
primeiros cômodos do corredor. Justo os quais que evito entrar a qualquer
custo.
— Posso jogar carne lá dentro por uma fresta e deixá-lo ir
sobrevivendo até a nevasca acabar, né? — penso em voz alta, considerando
se esta é uma opção viável.
Um barulho alto soa dentro do primeiro quarto e respiro aliviado ao
perceber que não é o quarto dela.
— Ok, Orion. Não é tão ruim — continuo falando comigo mesmo,
tentando me convencer a abrir a maçaneta e libertar o felino. — São só
várias caixas, cheias com o seu passado. Elas não vão te atacar, só o
lembrarão que nunca mais será feliz.
Bufo, sem acreditar no quão doido me tornei para estar conversando
comigo mesmo em terceira pessoa. Foi um hábito que adquiri por ficar
muito tempo sozinho.
Balanço a cabeça para limpar minha mente dos pensamentos que
dizem para eu me internar num hospício, e me concentro em criar um plano
para pegar o felino, de preferência sem machucá-lo.
O certo seria ligar para os bombeiros, mas a tempestade está forte
demais, e sei que eles têm problemas maiores para lidar. Me recuso a
chamá-los sem ser uma verdadeira urgência. Não quero tomar a vez de
alguém que necessita de verdade. Não quero que aconteça com os outros o
que aconteceu comigo naquela noite.
Ajustando meu agarre na arma, abro a porta e a empurro com o pé,
preparado para atirar caso o animal pule em cima de mim.
Por sorte, nada me ataca, mas o medo e a ansiedade continuam firmes
em meu sistema, a adrenalina correndo em minhas veias, mal permitindo
que meus pulmões filtrem o oxigênio.
— Gatinho, eu sei que você está aí — tento manter a voz leve e suave,
para não assustar o felino, enquanto dou um pequeno passo para frente,
entrando de vez no quarto abarrotado de lembranças.
Engulo em seco ao ver as caixas encostadas na parede, antes pintada
com um laranja clarinho, a cor preferida de vovó. Agora, o laranja desbotou
para um ocre feio e desanimador. No lugar onde ficava a cama só tem uma
camada grossa de poeira no chão, mas as marcas de onde ficavam os pés do
móvel, feito de madeira maciça, ainda são visíveis.
O cômodo se tornou um fantasma triste e pobre do que foi no passado.
O quarto, que antes era o mais luxuoso e vivo da mansão, hoje é uma tumba
suja e vazia. Exatamente igual todos os outros quartos desta casa
amaldiçoada.
— Eu não quero te machucar. Só preciso te tirar daqui — continuo
tentando conversar com o bicho, uma forma de impedir meu cérebro de
lembrar do que um dia já tive. — Sei que entrou na minha casa sem querer,
fugindo da neve, mas precisa voltar lá pra fora. Acredite em mim, aqui não
é um bom local para morar…
Me movo com cuidado por entre as caixas espalhadas, sempre
apontando a arma para os espaços ocultos entre os pacotes entulhados.
Quando olho praticamente tudo, mas não encontro nada, fico ainda mais
confuso.
Eu o sinto aqui. É a mesma sensação da cozinha. O arrepio na nuca, a
boca seca, a ponta dos dedos dormentes, o fogo na barriga se espalhando de
forma gradual para meus outros membros.
— Que porra, onde caralhos tá você? — resmungo, frustrado, batendo
o pé no chão por não conseguir controlar meu próprio corpo.
Vejo com o canto dos olhos um movimento, indo em direção ao closet,
e sorrio vitorioso sabendo que o bichano ficará encurralado, pois tenho
certeza de que a porta do banheiro está fechada.
— Se você colaborar comigo, gatinho, nós dois vamos sair desta
situação ilesos, ok? — mantenho a voz baixa e tranquila, indo devagar na
direção do espaço estreito onde vovó guardava seus artigos de luxo. —
Lembre-se que eu não quero te machucar, mas vou, se pular em cima de
mim!
Mesmo depois de 20 anos, a maioria das roupas, bolsas e sapatos de
vovó continuam no lugar, quase como se estivessem esperando ela voltar do
cruzeiro, para onde foi e infelizmente não retornou. Olhar para os itens
cobertos de pó doí, e preciso morder o interior da bochecha para impedir
que as lágrimas caiam.
Tento não fazer barulho ao ligar o interruptor, e até tenho sucesso,
porém as luzes queimaram com o passar dos anos, e apenas um dos leds se
acende, lançando sombras sinistras ao longo dos objetos empoeirados,
tornando o lugar fantasmagórico ainda pior.
Respiro fundo para manter a cabeça no lugar e me agacho, a arma
firme na mão, procurando o corpo branco peludo nas partes baixas do
closet. É um risco ficar tão perto do chão, mas não tem outra forma de
verificar o local sem adentrar mais no pequeno espaço.
— Onde você está gatinho? Já te disse que não vou te fazer mal.
Um miadinho fraco e manhoso vem do armário do fundo, onde vovó
guardava suas joias e, por alguns segundos, fico em dúvida se o que eu vi
na cozinha era mesmo um leopardo. Eles não deveriam rugir e rosnar,
sendo tão grandes?
— Não precisa ter medo. Eu só quero te levar lá pra fora.
Vejo a ponta de um rabo peludo, que na parca claridade do closet
parece ruivo, e isso só me deixa ainda mais confuso.
Será que minha mente pregou uma peça em mim e o animal não era
branco, mas sim vermelho?
— Sai gatinho, eu quero te ver. — Me mantenho agachado no chão,
ansiedade correndo em minhas veias ao observar o animal botar uma pata
para fora da proteção da madeira, como se estivesse acreditando em minhas
palavras. — Eu não vou te fazer mal.
A parte racional do meu cérebro grita para que eu me levante e aponte
a arma para cabeça do animal antes que ele me ataque, mas algo me faz
ficar parado e deixar a espingarda apoiada na coxa, mantendo as mãos
livres.
Levanto as duas, para mostrar para o gato vermelho, que inclinou a
cabeça o suficiente para eu conseguir ver as orelhas pontudas e um dos
olhos dourados, que não represento ameaça a ele.
Parece dar certo, pois ele dá mais um passo devagar para longe da
madeira, balançando o corpo peludo, num tom de laranja puxado para o
marrom.
Perco o ar ao vê-lo por completo, o coração disparando no peito.
Não é um gato comum, isto é certo. Deve ter uns 60 centímetros, da
ponta do focinho manchado de branco, até a cauda, que é pequena e com
pelos curtos. O padrão de sua pele é uma mistura de onça com guepardo, e
as orelhas bem pontudas são mais uma indicação de que este gatinho com
certeza não é doméstico.
— Você é muito bonito — falo baixinho, não querendo assustá-lo, a
mente meio embaçada com uma emoção que não sei explicar.
Algo dentro de mim está gritando que conheço o animal, mesmo que
eu nunca o tenha visto em toda a minha vida!
Sua cabeça se inclina para o lado e algo no jeitinho de agir me faz ter
uma certeza estranha: é uma fêmea.
— Bonito não. Bonita. Você é uma mocinha, não é?
A gata ronrona tão alto que meu coração dispara, todo meu corpo indo
para trás. Minha mão segura a arma no automático e, antes que eu possa me
parar, já estou com a cabeça do animal na mira, o dedo prestes a apertar o
gatilho.
— Uma mocinha que não sabe se esconder direito — a voz masculina
raivosa vem de trás de mim, mas antes que eu possa fazer qualquer coisa,
sinto um baque forte na minha nuca e todo meu mundo se apaga.
06

FELÍCIA
Mudo para minha forma humana, preocupação aperta meu peito ao
ver como nosso companheiro caiu no chão com um baque forte, levantando
vários grãos de poeira no ar.
— Você não tinha que ter apagado ele! — disparo para Dalton ao me
aproximar do homem que descobri se chamar Orion, quando o escutei falar
consigo mesmo.
— Ele ia atirar em você!
— Não ia não! Ele prometeu não me fazer mal — respondo seu grito
com outro, tão irritada que quero fazê-lo desmaiar também.
— E você acreditou? Enquanto ele segurava uma espingarda apontada
para sua cabeça? — meu marido me encara como se eu fosse louca e rosno
em resposta, não gostando do modo como está me tratando.
— Orion é nosso companheiro, Dalton! Não iria me machucar, só se
assustou.
O empurro para ter acesso ao humano caído, que está com o rosto
pressionando o chão poeirento. O viro com uma leve dificuldade, pois
mesmo sendo uma shifter, o cara é musculoso e pesa pra caramba.
— Deixa que eu faço isso, você ainda não pode se esforçar demais —
Dalton resmunga, tocando minha pele com cuidado, como se temesse que
eu explodisse.
Tenho vontade de dizer que ele já fez até demais, mas minha
consciência me alerta que não é uma boa ideia provocar meu marido. Ele já
mostrou estar sentindo um pouco de ciúme e desconfiança do nosso novo
companheiro e não quero que a relação deles já comece abalada, por isso,
mordo a língua, impedindo uma série de xingamentos de sair, e me forço a
dar um sorriso.
— Vamos procurar o quarto dele e botá-lo na cama, ok? Aí fazemos
uma compressa na nuca para aliviar a dor que ele, com certeza, irá sentir
quando acordar — oriento, meu lado prático mandando a raiva para o lado.
Dalton concorda e pega nosso humano sem nenhum problema,
jogando-o no ombro igual um saco de batatas. Cravo as unhas afiadas na
palma da mão para me impedir de pular no pescoço dele e chacoalhá-lo, até
que se crie algum juízo ali dentro. Pelo modo como me olha, fazendo um
biquinho emburrado, percebo que pegou meu último pensamento.
— Você tem sorte que eu te amo — provoco, estapeando sua bunda
gostosa quando passa por mim, para que não fique chateado com meu
pensamento.
— Eu sei que tenho — resmunga, derretendo qualquer traço de
irritação que ainda tinha em meu peito.
Pelo cheiro de canela e couro que emana no ar, seguimos até o final do
corredor, encontrando o único local onde não há um monte de pó em frente
a porta. A abro e franzo a testa com o quão vazio está o quarto.
Só há uma cama posicionada em frente a lareira apagada, com um baú
anexo, e um monte de toras de madeira empilhadas de qualquer maneira no
lado esquerdo do ambiente, perto da janela tampada por uma cortina preta
simples.
A roupa de cama é preta, contrastando bastante com as paredes
brancas sem nenhum quadro ou foto, e há um único travesseiro em cima do
colchão.
— Você também sente essa aura pesada de tristeza, vindo da casa? —
pergunto ao meu marido, enquanto ele joga Orion na cama. O homem quica
no colchão e a cama range de um jeito que me faz arregalar os olhos e ter
certeza de que irá desabar.
Por sorte, nada acontece, mas ainda boto a mão no peito, o coração
acelerado pelo susto. Quando o encaro, Dalton está sorrindo satisfeito. Ele
parece querer machucar o humano, e não sei como lidar com isso. Sei que
ele sente que Orion é nosso companheiro, então por que está agindo igual
um homem das cavernas?
— E vindo dele também. — Aponta com o queixo para o moreno,
desviando rapidamente o olhar do homem desmaiado. — Não sei o que
aconteceu aqui, mas este lugar cheira a morte.
Dou uma boa fungada, deixando minha lince tomar a dianteira, e ela
corre de volta para dentro da minha mente, se encolhendo ao perceber que
Dalton está certo. Isso atiça minha curiosidade, e fico um pouco
arrependida por não ter explorado mais a sala com as caixas.
Preciso voltar lá mais tarde. Apesar de já ter aceitado Orion de todo
coração como meu, e minha lince confiar nele, quero saber quem é o
homem que adentrará a minha vida.
Esta é a primeira vez que vou, de verdade, conhecer uma pessoa do
zero. Meu relacionamento com Dalton é tão antigo que não consigo me
lembrar de quando não esteve em minha vida. Nos conhecemos desde
pequenos e crescemos juntos, lutando contra nossos sentimentos. Com
Orion é diferente. Não tenho certeza da sua idade. Não sei seu sobrenome.
Qual sua comida ou cor preferida. É tudo novo e isso está me deixando
animada!
Também é o primeiro relacionamento que terei, onde não sinto medo.
Já perdi tudo que tinha, então posso explorar as emoções de forma
tranquila. Não há mais o pavor de ser rejeitada pelo bando, pois já me
rejeitaram. Não temo sofrer represálias do meu pai, ele já me marcou como
traidora e me humilhou de todas as formas que eram possíveis. A única
coisa que poderia me parar é Dalton, mas sinto o desejo dele por Orion. Ele
está curioso a respeito do humano, mas não quer aceitar que está atraído por
um homem.
Sento-me na cama, tentando ajeitar Orion para que fique mais
confortável. Tocá-lo me acalma e, enquanto exploro os músculos definidos,
começo a pensar em suas palavras.
O que aconteceu com Orion para ele dizer que as caixas iriam
lembrá-lo de que nunca mais será feliz?
Acaricio sua bochecha, apreciando o calor que sua pele transmite, e
tiro um cachinho marrom de perto dos seus olhos, deixando a ponta do meu
dedo deslizar pelas sobrancelhas grossas, marquinhas de rugas e pintas que
tem no rosto.
— Seu coração também pulsa mais forte quando olha para ele? Como
se agora que o encontramos, nosso corpo finalmente estivesse funcionando
direito? — questiono baixinho, descendo o toque para os lábios
entreabertos, o vermelho suave de sua boca me convidando a explorá-la.
Puxo o superior para cima, revelando os dentes, suspiro ao ver os
caninos pontudos, mas não no padrão dos shifters.
Um minuto se passou desde que fiz a pergunta, e me obrigo a olhar
para meu marido, parado bem atrás de mim, observando Orion com um
misto de sentimentos.
— Eu não sou gay, Felícia — repete o que disse na cozinha, sua voz
sem um pingo de firmeza.
— Você pode ser bissexual. Já pensou nisso? — mantenho o tom
calmo, não querendo que ele se feche, pensando que estou zombando.
— Por que eu pensaria? Nunca nem sequer cogitei a ideia de amar
outra pessoa que não fosse você!
Estendo a mão em sua direção, tocando a pele nua de sua coxa, para
mostrar que estou aqui para apoiá-lo.
— Você não vai me amar menos só porque agora descobrimos que
temos outro companheiro, alma minha.
— Sinto desejo por ele. Não amor — diz de supetão, se encolhendo
assim que a palavra desejo sai de sua boca.
Seus olhos dourados estão arregalados, as sobrancelhas franzidas no
que acho ser medo. Da minha reação? Dos sentimentos novos? Do homem
que os está causando?
— Está tudo bem, Dalton. O amor não surge do nada, mesmo nos
parceiros verdadeiros. Demora para ser cultivado — o lembro, puxando sua
mão para deixar um beijo na palma.
Eu sei que está sendo mais difícil para ele do que para mim. Cresci
sendo ensinada a nunca questionar, por isso não estou com tantas dúvidas
sobre Orion. A deusa o deu como meu companheiro e vou amá-lo
independente de qualquer coisa. Mas para Dalton, que cresceu tendo que
lutar por tudo, que foi ensinado a pensar e repensar cada uma das suas ações
antes de fazê-las, pois meu pai sempre encrencou com sua família e punia
qualquer errinho, não é tão simples aceitar a escolha do divino. Ele quer
garantias que isso irá funcionar e, infelizmente, não temos.
— O nosso não demorou.
— Demorou sim. Eu odiava você quando tinha 12 anos — brinco,
tentando aliviar o clima. — Você arrancou a cabeça da minha Barbie e
jogou em mim, se lembra?
Ele solta uma pequena risadinha e concorda com a cabeça, sua postura
relaxando de forma considerável. Nenhum de nós dois comenta sobre o tapa
que meu pai deu nele, quando descobriu.
— Você era uma praga quando criança. Andando para cima e pra
baixo com a cabeça levantada, agindo como se fosse melhor que todos —
debocha, e me encolho com a lembrança do quão tola eu era. Achava que,
por ser a filha do alfa, estava numa posição mais elevada, que era intocável.
Quão rápido papai me mostrou que sangue não significa nada para ele…
— O que estou dizendo — me forço a continuar a conversa, tirando o
passado da cabeça — é que apesar do laço de companheirismo intensificar
nossos sentimentos, ainda somos nós que decidimos se vamos levar isto
para frente ou não.
— O cio foi iniciado, amor. Não tem como escapar agora — murmura,
acariciando a lateral do meu rosto com carinho.
— Se você não quiser ficar, vamos embora e lidamos com ele só nós
dois — digo, mesmo que todo meu ser berre que não sairá daqui sem Orion.
— Mas você passaria o resto do inverno infeliz, pensando no
companheiro que deixou para trás. — Ele me dá um sorriso, não
exatamente triste, mas conformado. — Ainda corremos o risco de você ficar
insatisfeita e sua mente quebrar.
Estremeço com a lembrança amarga do que um cio insatisfeito pode
fazer, imagens da única fêmea que conheci, que não foi saciada como
deveria por seu companheiro, voltando a minha cabeça.
Não foi só a mente dela que quebrou, mas o corpo, pois os ossos
começaram a se desfazer, assim como a carne, que apodreceu. O animal
dentro dela morreu de desgosto, levando a alma humana junto.
Foi um ato de misericórdia, tento me convencer, a bile subindo em
minha garganta ao lembrar do som das garras do meu pai entrando no peito
da coitada, findando seu sofrimento.
— Sinto muito por te botar em perigo mais uma vez — murmuro,
lágrimas enchendo meus olhos ao perceber que, de novo, sou a fonte do
sofrimento do homem que jurei, diante da deusa da lua, tentar fazer feliz
para sempre.
Ela deve estar tão decepcionada comigo, por não conseguir manter
minhas promessas… Por não ser uma ômega obediente.
Dalton segura meu rosto com cuidado, elevando-o para que eu o olhe
nos olhos.
— Você não está me fazendo sofrer, nem me deixando em perigo,
alma minha. Tê-la do meu lado foi o melhor presente que a deusa me deu.
— Ele se inclina e beija minha testa, transmitindo tanto carinho e amor que
as lágrimas escapam e choro abraçada a sua barriga, a dor e confusão que se
instalaram em meu peito, nesses últimos anos, se aliviando. — Nós vamos
fazer isso dar certo, tudo bem? Não se preocupe com nada.
Sinto seus dedos em meu cabelo e, por estar com o rosto colado a sua
pele, a chama do desejo se acende com mais facilidade. Beijo seu abdômen,
sentindo o gosto salgado da pele na minha língua. Sorrio quando segura
meus cachos com um pouco mais de força, empurrando gentilmente minha
cabeça para baixo.
— Ele pode acordar a qualquer segundo… e vai me ver de boca cheia
— ronrono, confiando em suas palavras de que tudo funcionará e jogo as
dúvidas para fora da minha cabeça. Foco em deixar uma trilha de beijos por
seu abdômen sarado, descendo em direção à ereção que se formou numa
rapidez impressionante. — Até que estou achando esse negócio de cio bem
divertido.
Agora que tenho meus dois companheiros no mesmo ambiente, me
sinto calma e tranquila. Minha lince está empolgada para servi-los
fielmente, cuidando para que ambos fiquem satisfeitos. E minha parte
humana também está feliz por finalmente poder se reconectar com Dalton.
— Eu não tô vendo vantag… — Dalton se engasga no meio da frase,
quando boto a glande na boca e sugo de levinho, deixando a ponta da minha
língua acariciar a parte de baixo da carne quente e dura. — Porra, que
delícia, amor!
Seu agarre se intensifica, o provoco deixando meus dentes roçarem no
pau. Dalton treme dos pés à cabeça, como se tivesse levado um choque, e
seus olhos brilham tanto quando me encara, que chega a ser enervante.
Calor e amor enchem meu peito por ver quão contente ele está. Não é
só pelo prazer do sexo, mas pela intimidade. Faz alguns meses que não nos
tocamos desta maneira, na minha tentativa de não o deixar sentir minha dor,
então reatar os laços com meu marido, antes de acrescentar Orion na
equação, é importante para nós dois.
— Adoro quando você faz assim — ofega, soltando um gemido baixo
quando deixo seu caralho deslizar até o fundo da minha garganta, só para
puxar de volta e lamber a cabeça.
O tiro da minha boca com um estalo que ecoa no quarto e faz Orion se
remexer na cama, mas nenhum de nós dois se vira para olhá-lo, perdidos
demais no momento que estamos compartilhando.
Deixo minhas unhas rasparem contra a parte interna de suas coxas,
provocando, ronrono ao sentir o gosto do pré-sêmen encher minha boca,
conforme Dalton vai ficando mais excitado.
Acaricio seus testículos com cuidado para não machucar, quando
percebo que está prestes a gozar, uma ideia nova adentra minha mente e
decido tentá-la.
A mão esquerda, que estava fazendo círculos suaves na pele fina de
suas bolas, vai um pouco mais adiante, e roça a pelezinha do seu períneo.
Dalton engasga e dá um passo para trás, desestabilizado com a nova
sensação, que lhe causou mais prazer do que eu previa.
Ele abre a boca para reclamar da minha ação, mas a única coisa que
sai dos lábios é uma mistura de rosnado com miado, quando o gozo chega
sem avisar, pegando nós dois de surpresa.
Minha boca enche rapidamente de porra, e Dalton se afasta, não
querendo me ferir. O resultado é que ele esporra por todo meu rosto e seios,
as manchas brancas do sêmen criando rastros que se destacam contra minha
pele negra.
Meu marido leva a mão ao pau, ainda duro, e se masturba com
rapidez, retirando cada gotinha branco-perolada. Quando não há mais nada,
ele estende a mão e esfrega o sêmen que caiu na minha pele, deixando-me
ainda mais grudenta.
— Adoro te ver assim, toda marcada com a minha porra.
Rio, feliz por observá-lo plenamente satisfeito, os olhos caídos de
prazer, o corpo parecendo mais leve.
— Adoro ser marcada com sua porra — ronrono, deslizando o dedo
por ela e enfiando-o na boca em seguida, gemendo alto com o sabor, que
faz minha boceta queimar.
As pupilas de Dalton engolem o dourado e quando fala, abrindo o
sorrisinho sacana que sempre me enlouquece, sei que serei uma mulher
muito feliz nos próximos minutos:
— Deite-se na cama, que quero matar a saudade do gosto da minha
companheira.
— Sim, senhor. — Me arrasto para trás. Quando não sinto o corpo de
Orion, só o calor no colchão, tiro os olhos de Dalton e o procuro no quarto,
percebendo que meu outro companheiro sumiu.
— Onde ele foi? — meu marido questiona, também olhando ao redor,
as sobrancelhas franzidas.
É o som de uma chamada tocando que nos deixa em alerta.
— Você ligou para o Departamento de Polícia de Juneau, Alasca.
Este é um serviço de emergência. Forneça seu nome, localização atual e
uma breve descrição da situação, para podermos atendê-lo com maior
eficiência.
Meu sangue gela ao escutar a voz de Miranda, uma das sentinelas de
Bethal, responsável por contar a ele tudo que acontece na cidade.
Dalton não me espera para sair correndo do quarto, indo atrás de
Orion, que começou a responder.
— Oi, aqui é Orion Donovan. Minha casa foi invadida. Primeiro achei
que eram animais, mas eles me nocautearam e quando eu acordei, percebi
que, na verdade, era um casal de malucos! Preciso urgente de ajuda!
— Pode me descrever a aparência do casal?
— Claro. A garota tem a pele negra e cabelos rui… — Orion não
termina a frase, caindo no chão com um baque forte e alto quando Dalton
invade o pequeno quarto onde estava escondido, fazendo vassouras, rodos e
baldes voarem para todos os lados.
Chego alguns segundos depois e desligo na cara de Miranda,
escutando-a perguntar se está tudo bem. Encaro o celular com raiva e num
ato de descontrole, esmago o aparelho, sabendo que ela provavelmente já
deve ter somado os pontos e entendido que fomos nós que invadimos a casa
de Orion.
— Que merda! Como se a nossa vida já não estivesse complicada o
suficiente — Dalton diz pelo laço, enquanto luta com Orion no chão,
tentando dominar o humano, que está enlouquecido, gritando, xingando e
rosnando como se ele fosse o animal.
Por alguns segundos me mantenho afastada, deixando que se
resolvam, mas quando alguém se machuca e o cheiro de sangue flutua no ar,
pego o objeto mais próximo, uma vassoura, e dou nos dois.
— SERÁ QUE DÁ PARA VOCÊS PARAREM COM ISSO?
Meu marido me encara chocado, o punho levantado no ar, que estava
pronto para descer sobre Orion. Este também virou para me observar, sua
mão a centímetros do estômago de Dalton.
— Você. — Aponto para o humano, o dedo tremendo de raiva e pavor.
Não consigo manter minha voz calma, e ela sai mais chorosa do que eu
gostaria quando completo: — Acabou de fazer a gente entrar numa situação
muito difícil.
— Está querendo me fazer sentir culpado por ligar para a polícia,
depois de invadirem a minha casa e me apagarem? — questiona, incrédulo,
a voz rouca fazendo pequenos choques de prazer deslizarem pelo meu
corpo.
— Não. Estou querendo que sinta culpa por praticamente botar nós
dois na forca. Seus companheiros — destaco a palavra, sentindo um pouco
da raiva evaporar ao ver o quão mexido ele fica ao escutar.
O moreno encara Dalton, ainda em cima dele, e quando ergue a
sobrancelha, os olhos descendo para o pênis que ainda está meio-duro pela
brincadeira anterior, meu marido salta para longe, o rosto ficando da cor de
um tomate maduro.
— Tem alguma coisa muito errada com vocês dois — murmura,
piscando de forma descontrolada.
— Tem mesmo e agora isso afeta você também, então parem, para
podermos conversar direito, pois a situação ficou séria. — Bato o pé no
chão antes de me afastar, tentando não chorar ao me deparar com outro
relacionamento prestes a ser estragado pelo tirano do meu pai.
07

DALTON
O cio acabou com minha cabeça. Não tem outra explicação.
Enquanto eu lutava com Orion no chão, antes de Felícia arrebentar a
vassoura nas minhas costas, eu senti tanto desejo que minha mente até se
apagou.
Fui inundado pelo cheiro do humano, e depois, pelo gosto do sangue
dele, quando bateu o punho na minha boca e a pele rasgou ao entrar em
contato com meu canino afiado.
Mesmo agora, observando minha esposa andar de um lado para o
outro, ansiedade e medo saindo dela em ondas, não consigo focar no nosso
problema. Tudo que eu quero é colocar a boca no pescoço do humano e
sugar sua pele até que ela se rompa.
Eu quero o vínculo. Entrar dentro dele. Tê-lo dentro de mim.
Os pensamentos me desestabilizam, por isso não noto Orion chegando
por trás até ser tarde demais.
A pancada não me apaga, mas me faz cair no chão, a cabeça rodando.
Escuto Felícia gritar, sentindo a mesma dor que eu, e o desejo se
transforma em raiva.
— Vou acabar com você — rosno, um segundo antes dele me bater de
novo, desta vez, bem mais forte.
Sinto minha esposa desmaiar, por causa do laço mental que
compartilhamos, e tenho apenas um fio de consciência quando Orion se
agacha ao meu lado, puxa meus cabelos com força, obrigando-me a levantar
o rosto, e diz, a boca quase colada na minha:
— Você deveria ter ficado na forma de gatinho. Eu sou contra
maltratar animais. Mas humanos? — ele nega com a cabeça e estala a
língua.
Por um mero segundo, os olhos azuis parecem brilhar em dourado,
mas não tenho tempo de pensar muito no assunto antes de ele afundar
minha testa no piso de madeira, me apagando de vez.

Acordo com o crânio latejando e a boca seca. É como se eu tivesse


engolido areia, de tanto incômodo que sinto na garganta.
Minha cabeça pesa pra frente e os olhos demoram um pouco para se
adaptarem a meia-escuridão do quarto, meu leopardo ainda no processo de
despertar. Encaro o pênis ereto e a visão faz a minha bexiga gritar seu
incômodo, o corpo notando as necessidades urgentes que temos.
Puxo o braço para frente, mas sinto uma corda grossa mantendo os
punhos unidos a base de madeira da cadeira, onde Orion me botou. A
lembrança dele puxando meu cabelo, antes de eu desmaiar, enche minha
mente, e solto um rosnado irritado por ter sido tão desprevenido para que
um humano tenha me derrubado.
Tento ignorar a ardência na bexiga e observo meus arredores,
suspirando de alívio ao ver Felícia a poucos metros de distância, também
amarrada a uma cadeira. Cutuco nosso laço, para descobrir se a situação é
grave, e me acalmo ao escutá-la resmungar e me mandar deixá-la dormir
por mais alguns minutinhos.
A posição não facilita que eu a veja com clareza, mas pelo laço
consigo sentir suas dores, que não são muito fortes. Até as minhas já estão
enfraquecendo conforme os segundos passam, por conta da cura acelerada
que os shifters têm, a única coisa aumentando é o desespero para ir ao
banheiro e conseguir beber alguma coisa.
Droga, não deveria ter pensado nisso. Travo os dentes e luto para me
libertar das amarras, sentindo que a qualquer segundo explodirei, mas
parece que quanto mais eu me movo, mais forte os nós ficam, impedindo
minha fuga.
A porta se abre quando estou prestes a berrar para Orion aparecer.
Por causa da minha visão noturna, não tenho problemas para separar o
corpo do moreno da escuridão do corredor. Seus olhos humanos estão fixos
nos meus, e sinto um arrepio quando o vejo se aproximar com passos lentos
e calculados, o corpo gingando tal qual o de um caçador, prestes a abater
sua presa. A presença dele é forte e preciso lutar muito para não abaixar a
cabeça em submissão.
Ele é só um humano. Por que estou me sentindo submisso?
O cheiro do salmão adentra minhas narinas antes que meu cérebro
processe o prato que ele tem nas mãos, e meu estômago ruge, todas as
funções do meu corpo ficando desesperadas por alívio, afastando as
dúvidas.
— Bom dia, gatinho. Ou é mais correto dizer “boa noite”? — a voz
grossa ecoa pelo quarto e minha mente captura um movimento vindo de
Felícia, que ronrona em seu sono, sentindo conforto ao escutar a voz do
companheiro que nos apagou.
— Me solte. Preciso ir ao banheiro. — Travo os dentes ao falar, não
apenas sentindo ódio, mas também desespero.
— Você é um animal, faça no chão — zomba, dando de ombros ao
sentar-se despreocupado no colchão, ficando bem diante de mim.
Ele posiciona o prato de comida no colo e retira um pedaço do salmão
suculento, balançando-o de forma despretensiosa na altura dos meus olhos.
Travo a barriga, tentando impedir que um novo ronco saia, mas não dá
certo. O barulho parece ecoar pelo quarto e juro que vejo os olhos de Orion
brilharem com malícia.
— Por favor — imploro, as palavras saindo de mim sem controle,
enquanto encaro as íris azuis, flamejante por conta do reflexo das chamas
intensas da lareira.
O homem leva lentamente o garfo a boca, dando uma lambida no
salmão, o que me causa revertérios.
Estou a um passo de estourar e mesmo fazendo toda a força que posso
para não ceder diante da humilhação, ainda sinto meus olhos se encherem
de lágrimas.
Por que eu tenho que passar por isso de novo? O que de tão mal fiz
para a deusa me punir desta maneira?
Felícia balança a cabeça, na linha entre acordada e dormindo. Meu
coração teme pelo que ela irá passar nas mãos do homem que achou ser o
nosso companheiro. Ele não é, isso eu tenho certeza. Os companheiros
cuidam. Amam. Protegem. Esse cara? Ele só machuca.
Deve ser por isso que a casa cheira a tristeza. Não dá para ser feliz
perto de alguém assim.
Alguma coisa em seu olhar muda e vejo quando coloca o prato de lado
para se levantar. Ele puxa meus cabelos, obrigando-me a levantar o rosto,
mas não dói muito.
— Se tentar qualquer gracinha, vou te transformar no meu novo par de
botas, entendeu? — não é uma ameaça e sim uma promessa. Está tão claro
em seu rosto, que concordo rapidamente, um misto de pavor e outra coisa
que não quero nomear, bombeando em meus sistemas.
Ele se coloca de joelhos na minha frente, uma posição que não ajuda
no meu estado atual e, com uma rapidez impressionante, arranca um
pequeno canivete do bolso traseiro da calça, o abre e rasga as cordas que
prendiam meus pés na cadeira. Faz as mesmas coisas com minhas mãos,
mas ao invés de deixá-las livres, prende os pulsos juntos, os mantendo atrás
das costas.
Em qualquer outra ocasião, seria fácil derrubá-lo e fugir. Ele é um
mero humano. Mesmo forte, não é páreo para a força sobrenatural que
tenho. Porém, estou com tanta vontade de usar o banheiro que a ideia nem
se desenvolve em minha cabeça.
A porta escura, que leva ao lavabo, range de forma suave quando se
abre, e tenho poucos segundos para processar as paredes feitas de mármore
branco com veias douradas, o chão opaco, a bancada extensa com duas pias
e a enorme banheira que antigamente devia ser uma glória da arquitetura,
mas que agora está num ponto sofrível. Todo o banheiro está. Ele parece
abandonado, igual ao restante da casa. Apenas o chuveiro está mais ou
menos limpo, assim como a privada branca, já com a tampa levantada, para
onde Orion me empurra.
— Vai logo, se esvazie — resmunga, aumentando o aperto em meu
antebraço.
— Solte um dos meus braços, não consigo assim — reclamo, sentindo
toda minha barriga arder, desesperada para se soltar, mas sem coragem de
fazê-lo.
Ele apenas olha para a minha cara, deboche explicito em cada ruga.
— Eu não consigo mirar — murmuro numa última tentativa,
implorando a deusa para que me livre dessa situação.
Quando mais alguns segundos se passam e nenhum milagre acontece,
deixo os ombros caírem, aceitando a derrota. Forço minha bexiga a fazer o
que precisa ser feito e estou tão focado nisso que só quando o primeiro jato
sai, noto a mão de Orion indo em direção ao meu pau, para posicioná-lo no
lugar correto.
Travo a mandíbula, uma onda ainda mais forte de humilhação me
dominando.
Acho que prefiro a tortura de Bethal a esta situação vexatória.
Ele chega a balançar meu membro quando acabo e, após dar a
descarga, me leva até a pia para que possa lavar a mão. Meu rosto no
espelho se mostra vermelho de vergonha e desvio rapidamente o olhar
quando nossos reflexos se cruzam.
— De volta para a cadeira, gatinho — diz, me empurrando para o
quarto.
Uma parte minha quer lutar com ele. Socá-lo. Fazê-lo pagar por ter me
batido e depois humilhado, mas não encontro energia para fazer essas
coisas. É como se algo estivesse desconectado dentro de mim e não sei
direito o quê.
— Posso ao menos verificar se ela está bem? — peço antes de me
sentar na cadeira, apontando com o queixo em direção a Felícia, que ainda
não despertou.
— E por que não estaria? Eu nem bati nela — fala, me surpreendendo
ao puxar meu braço para irmos até ela. — Sendo sincero, não faço ideia do
porquê desmaiou.
— Estamos ligados. O que você fizer em mim, ela vai sentir — as
palavras escapam antes que eu possa sequer pensar se é prudente ou não
contar um dos nossos maiores segredos ao homem que arrebentou minha
nuca, depois de apontar uma arma para a minha mulher.
— Hum. — É o único barulho que faz, os olhos fixos em Felícia, que
parece estar num sono profundo.
— Estamos dormindo há muito tempo?
— Umas quatro horas — sua voz soa vaga, perdido em pensamentos
distantes. Após alguns segundos, o vejo piscar rapidamente, como se
estivesse botando a cabeça de volta no lugar. Quando as íris azuis se
chocam com as minhas, ofego com a intensidade contida ali. — A luz
acabou nesse meio tempo, mas não se engane, eu vejo bem o suficiente no
escuro para ainda conseguir te perseguir e arrancar sua pele se você tentar
fugir.
Engulo em seco e concordo com a cabeça, seguindo sem outras pausas
para a cadeira, onde me prende de novo. Os nós dos punhos estão ainda
mais firmes do que antes, mas ele não amarra meus tornozelos, um pequeno
alívio. Quando puxa a cadeira em direção à cama, me deixando bem no
meio de suas pernas abertas, o desconforto em meu estômago retorna.
Ele pega o prato de comida, vapor saindo de dentro do peixe cozido
com especiarias. Pelo cheiro, acho que tem mel e mostarda no molho que
besunta a carne rosada, fazendo minha boca encher de água.
— A cada resposta que você me der, te dou uma colherada disso. —
Orion balança o garfo na minha frente, o cheiro intenso batendo contra o
meu nariz, fazendo minha fome piorar.
Concordo rápido com a cabeça, a dor no meu estômago não me
deixando pensar direito.
— O que são vocês? — começa, deixando a comida longe o suficiente
para que eu não possa alcançar ao estender a cabeça.
— Shifters.
Nem tenho tempo de abrir a boca direito antes que ele esteja forçando
o metal na minha língua, me obrigando a engolir o peixe que está pegando
fogo.
Tusso, sem saber se cuspo e perco o alimento, ou se engulo e morro
cozido por dentro. Orion resolve a situação para mim, pois me dá um tapa
na cabeça, pensando que estou me engasgando. A comida voa e cai com um
som úmido no piso de madeira.
— Mastigue antes de engolir, pelo amor de Deus — repreende,
revirando os olhos como se eu fosse o culpado.
Meu temperamento ferve, um milhão de xingamentos rugindo em
minha mente, mas tudo que consigo fazer quando o vejo trazendo o garfo
de novo para perto de mim, desta vez sem brusquidão, é assoprar o
alimento. Por algum motivo, meu animal não quer se rebelar. Ele está
escondido dentro de mim, olhando com um misto de curiosidade e temor
para o humano que conseguiu nos amarrar.
— Shifters como nos livros eróticos? — pergunta, me surpreendendo.
Agora que estou observando-o de perto, minha cabeça mais limpa,
percebo que ele não parece assustado por descobrir da existência do
sobrenatural. Ele sabia que eu era um felino. Falou que eu deveria ter me
mantido na forma de gato, que não iria me machucar. Me lembro, tentando
encaixar as informações para que façam sentido.
Orion está agindo como se fosse corriqueiro ver pessoas se
transformando em animais, mas perguntou o que somos. Será que queria
uma confirmação? Ou é apenas um humano que não demonstra suas
emoções?
— Somos metamorfos — digo lento, o cérebro trabalhando para dizer
coisas que não vão explodir na minha cara depois. — Dividimos nossos
corpos com um animal.
— Você, leopardo, e ela Raposa — afirma, fazendo um gesto vago em
direção a minha mulher. Há um certo tédio em seu tom que começa a atiçar
a minha curiosidade.
Ele deve saber. Ninguém reage deste modo ao descobrir sobre a
magia!
— Ela é uma lince, não uma raposa — corrijo, sabendo o quão irritada
Felícia ficará se o escutar chamá-la assim. — Uma lince-vermelho, para ser
mais específico.
— Ela é uma gatinha grande com rabo cortado — bufa, revirando os
olhos para minha explicação.
Pelo laço mental, sinto minha esposa se remexer, seu animal
acordando ao escutar nossa conversa. Abro a boca para alertar Orion a não
dizer algo assim na frente dela, mas depois penso melhor e me mantenho
calado, querendo vê-lo lidar com isso.
Uma pequena vingança pela cena humilhante do banheiro.
— Por que invadiram minha casa? — volta ao questionário, pegando
outro pedaço de peixe. Desta vez ele não o balança na minha frente, mas se
alimenta com ele.
Por algum motivo inexplicável, ver seus lábios cheios pressionarem o
garfo com que estava me alimentando, faz a chama do cio se acender na
minha barriga. Cruzo as pernas rapidamente, tentando ocultar o início da
minha ereção, mas o movimento só faz com que os olhos dele se desviem lá
para baixo, deixando tudo ainda pior.
Ele tira o garfo da boca com um estalo suave e, lentamente, sobe o
olhar por meu corpo, a sensação sendo tão intensa que é como se ele
estivesse me tocando. Quando o azul prende o dourado, estou lutando para
encontrar fôlego.
— Isso é para mim, gatinho? — ronrona, fazendo os pelos da minha
nuca se arrepiarem diante do tom sensual.
Mordo a língua, lutando contra a pequena palavra proibida que quer
escapar. Uma palavra tão boba, mas que me obrigaria a encarar
sentimentos novos que não estou pronto para sentir.
Orion se inclina, sua cabeça ficando a centímetros da minha. O hálito
quente bate contra minha bochecha e tremo sem controle, lutando contra a
profusão de sensações que me domina.
— Eu te fiz uma pergunta, gatinho. E eu quero uma resposta. — Sua
mão grande agarra minha nuca e engulo com o calor da sua pele contra a
minha. Os dedos apertam forte minha carne, mas sem machucar, apenas
exercendo pressão suficiente para não permitir que eu vire o rosto. — Essa
ereção é para mim?
O azul se transforma em ouro, ou assim se parece por um brevíssimo
segundo, forçando a palavra para fora da minha boca.
— Sim.
08

FELÍCIA
Há uma sensação boa em meu peito, um calor que desliza por minhas
veias, me mantendo quentinha e confortável, a cabeça leve e tranquila. É
tão bom, que quase não me importo com o incômodo em minha nuca, ou
noto as emoções que vem do laço de parceria que tenho com meu marido.
Bocejo, os olhos pesados de sono, e ainda meio grogue, tento entender
o que Dalton está sentindo. Há desejo. Irritação. Vergonha. Uma pitada de
medo e... submissão?
Pisco rapidamente e levanto a cabeça, notando que meu corpo está
amarrado numa cadeira, próxima da lareira acesa. Reconheço as paredes
vazias do quarto de Orion e, ao encarar a cama grande, encontro meus dois
companheiros a centímetros um do outro.
A mão do humano pressiona a nuca de Dalton, impedindo-o de se
afastar, e mesmo que meu marido esteja amarrado na cadeira, com as pernas
cruzadas, ainda consigo ver com perfeição a ereção que ostenta.
É daí que vem o desejo e a vergonha, então…
Observo Orion largar os fios pretos e se afastar um pouco, permitindo
que Dalton puxe uma respiração rápida e instável. O som ecoa pelo quarto,
iluminado apenas pelo fogo e, por algum motivo, sinto como se estivesse
presenciando algo que não devo.
Um nó se forma em minha garganta, confusão toma meu corpo e,
quando estou prestes a desviar o olhar, cruzo com as íris azuis do humano e
fico irremediavelmente presa. O ar trava em meus pulmões, o calor em meu
corpo aumenta tal qual uma fornalha alimentada por lenha seca, e minha
cabeça roda.
Ele inclina de leve o rosto, os cachos marrons caindo e roçando a
lateral de sua testa. Quando lambe lentamente o lábio inferior e ergue a
sobrancelha esquerda, sinto que desfalecerei a qualquer segundo.
Dalton não parece perceber que acordei, está tomado pela confusão
com os sentimentos que o humano causou, no que seja lá que estavam
fazendo enquanto eu dormia. Ele deixa o corpo deslizar alguns centímetros
na base da cadeira, o peito arfando forte. Orion me libera do agarre que
exercia e o encara.
— Vocês são um casal? — a voz rouca me arrepia e um gemidinho
quase escapa da minha boca.
Dalton concorda rapidamente com a cabeça.
O olhar de Orion se estreita, a testa franze e, por um segundo, meu
coração para, achando que ele não está satisfeito com a informação. Será
que quer apenas meu marido? Não sente que eu também sou sua
companheira?
O pensamento é cortante, pois desde que descobri que tínhamos um
novo companheiro, contei com a ideia de que ele iria aceitar meu marido e
eu em sua vida, sem considerar que, diferente dos shifters que acasalam
muitas vezes em trios e haréns, os humanos não acham esse tipo de
relacionamento “natural”!
É o som da pele estralando e o grito de Dalton que me tiram dos
pensamentos angustiantes. Não vi a mão grande descer sobre a perna do
meu marido, mas a palmada arde em mim, me fazendo soltar um silvo de
dor pelos dentes cerrados.
— Não te falei que quando eu perguntar algo, é para você responder?
— seu tom é tão parecido com um rosnado que, por um segundo, fico
confusa se quem falou foi Orion ou o animal de Dalton.
— Sim, ela é minha esposa! — grita, fúria e humilhação batalhando
dentro de si.
Considero lhe enviar um carinho mental, para tentar acalmá-lo, mas
Orion me encara de novo e algo em seus olhos me faz travar. É quase como
se ele estivesse mandando-me ficar quieta.
— E sua esposinha não vai ficar chateada quando descobrir que você
está duro por minha causa? — não vejo o que ele faz com a mão, mas
Dalton joga o corpo para frente, um longo gemido retorcido saindo de sua
garganta.
Um flash invade minha mente e ofego quando sinto a palma quente
pressionar firmemente o membro ereto, quase chegando no limite entre dor
e prazer.
Ele arrasta o punho para cima, acariciando a glande vermelha com
cuidado, e a sensação é tão intensa, por conta do laço de companheirismo
que foi recentemente fortificado, que não consigo mais me controlar e
chamo o nome do meu marido, querendo, precisando, implorando, por
algum alívio.
Dalton tenta saltar da cadeira, assustado por saber que eu vi tudo.
Nosso laço se enche de pavor e humilhação, matando todo o desejo que
sentíamos um segundo atrás. Isso cria um nó na minha barriga, de tristeza e
angústia, pois até notar minha presença, ele estava se divertindo.
— Tire as mãos de mim! — ruge para Orion, as emoções fora de
controle.
Os olhos do humano se estreitam e uma fisgada de dor percorre nós
dois, quando ele aperta o pênis do meu marido com mais força.
— Calma aí, gatinho. Você vai se machucar se ficar agitado.
— Não me chame assim! E tire a porra das mãos de cima de mim,
humano. — O cuspe parece voar pelo ar em câmera lenta e arregalo os
olhos quando acerta a bochecha direita de Orion.
Um fleche de memória surge em minha mente, do dia em que meu pai
fez o mesmo comigo, quando fui pedir sua ajuda para lidar com a dor da
falta do cio, por isso um som de horror sai da minha boca, fazendo ambos
olharem para mim.
Dalton acessa minha cabeça e a culpa que sente por me fazer lembrar
da situação faz nós dois sufocarmos.
— Você é o pirralho mais mal-educado que eu já conheci — Orion
resmunga, alheio ao que está se passando no laço. Ele passa o dedo na
bochecha, limpando o cuspe, e nos surpreende quando esfrega a bolinha de
saliva na glande de Dalton, fazendo-o arfar. — Um dia você ainda vai sentir
muita falta dessa saliva!
Em seguida me encara e um arrepio me percorre. Os olhos dele
parecem dourados.
Ele sorri de lado, estremeço com o quão feral está se portando. O
humano vem em minha direção, os passos lentos tal qual o de uma pantera.
As chamas da lareira iluminam seu maxilar forte coberto pela barba marrom
e, conforme se aproxima, sinto o fogo do cio se aquecer de novo,
sobrepujando qualquer outro sentimento que estava dentro de mim.
Orion bota a mão no topo da cadeira de madeira, inclinando o objeto e
meu corpo para trás. Meu coração começa a bater descompassado no peito
quando sinto o calor das chamas ficar mais forte, o barulho das toras
queimando se tornando mais audíveis.
— Acho que seu marido está numa profunda crise de sexualidade —
sussurra, a voz densa como um uísque raro, soando tão gostosa em meus
ouvidos que minha mente demora mais do que o normal para processar as
palavras.
— É que ele quer sentar em você, mas não quer confessar — minha
voz soa ofegante quando conto a verdade que Dalton está,
desesperadamente, tentando ocultar.
Meu marido rosna em sua cadeira, incomodado, a mente disparando
palavrões de raiva e desgosto.
Orion ri alto, jogando a cabeça para trás em completo abandono.
Minha boca enche de água ao ver seu pescoço exposto e me inclino para
frente, ansiosa para colocar minha mordida ali e reclamá-lo oficialmente
como meu. A corda machuca minha pele, me impedindo por milímetros de
conseguir o que tanto quero. Solto um bufo de raiva quando desce a cabeça,
escondendo a pele cremosa. Foi por tão pouco!
— E você não se sente incomodada com isso? — pergunta quando
para de rir, pegando um cacho do meu cabelo para brincar, a ponta do dedo
mindinho roça minha bochecha e faz pequenas ondas de prazer deslizarem
pela pele.
— Eu também quero sentar em você.
Dalton bufa em sua cadeira e vejo que está forçando o rosto de lado
para conseguir nos ver. Suas sobrancelhas estão franzidas de aborrecimento,
mas quando toco sua mente com a minha, percebo que não é raiva que ele
está sentindo, e sim ciúme.
Ele quer os olhos de Orion nele, igual eu queria antes. Eu sei que é o
laço fazendo efeito, deixando nossos kaylaks descontrolados. Precisamos
reclamá-lo oficialmente, antes que nossos animais comecem a se ver como
inimigos. Me lembro de uma das informações que vi em um dos livros que
meu pai tinha em seu escritório, sobre a história dos shifters que acasalam
em haréns. Nesse tipo de vínculo, todos os parceiros precisam se acasalar
entre si, senão os laços já criados se desmancham.
— Você não pode ser real, garota — o humano murmura, seu rosto
cheio de descrença e algo mais, que me faz se contorcer.
— Eu sou bem real. E não sou uma garota. Sou sua mulher. — Pisco,
o que parece deixá-lo chocado pela primeira vez, pois bota a cadeira no
chão e se afasta rápido, os olhos azuis arregalados. — E não foi nem um
pouco legal da sua parte bater nos seus companheiros e depois prendê-los
com cordas.
— Companheiros… — ecoa a palavra, parecendo testá-la na língua.
— Já é a segunda vez que você fala isso.
— E você não parece desconhecer a expressão — é Dalton quem diz,
ainda no processo de virar a cadeira, para que possa nos ver.
Orion observa a tentativa dele, parecendo se divertir. Quando meu
marido acaba se desequilibrando e indo para trás, o humano se move
rápido, parando a queda que, com certeza, faria a nossa dor na nuca
aumentar.
— Fique parado, antes que eu decida prender você na minha cama —
aquele som que parece um rosnado e deixa minha boceta latejando, sai
novamente de sua garganta.
— Isso era para ser uma ameaça? — escuto o pensamento intrusivo
de Dalton, vendo suas bochechas ficarem vermelhas de vergonha.
O cheiro de sua excitação está intenso no ar e quando Orion puxa uma
respiração profunda, as narinas se contraindo e as pupilas dilatando, fica
óbvio que até ele consegue sentir nosso desejo.
— Eu aceito que você me prenda na cama. Deve ser mais confortável
que essa droga de cadeira. — Bufo, cansada de lutar contra as cordas. — Aí
você e meu marido podem se revezar em me foderem.
Orion ri, um som cheio de descrença. Quando aproxima novamente
nossos rostos, vejo que o preto engoliu totalmente o azul, por causa da
atração que sente.
— Não deseje coisas que não pode suportar, Ninfeta — o apelido
desliza por sua língua de uma forma carinhosa, e ronrono alto com o prazer
que me causa.
— Mas eu suporto. Vocês foram feitos para se encaixarem em mim.
Posso até imaginar o quão gostoso vai ser ter os dois ao mesmo tempo. —
O fogo do cio se intensifica com a fantasia de ter Orion em minha bunda
enquanto Dalton fode minha boceta.
Meu marido geme alto, sendo assaltado com imagens da minha
fantasia. Orion o encara, franzindo as sobrancelhas. Ele está sendo afetado
pelo desejo e não entende o porquê.
— Jesus, o que está acontecendo aqui? — escuto-o murmurar,
passando a mão na testa para limpar o suor.
Ele puxa as mangas da camiseta preta para cima, revelando as
tatuagens que se estendem pelo braço esquerdo e meu animal vai à loucura.
Eu tinha visto as da barriga e peito, pois havia levantado a blusa na cozinha
quando o primeiro calor do cio lhe atingiu, mas saber que tem mais
desenhos marcados em sua pele me deixa pulsante.
— O que está acontecendo, é que você está pronto para nos reclamar e
foder até desmaiar. Solte logo a gente, Companheiro.
Orion se afasta, uma pitada de medo em sua postura ao perceber que
escutei seu sussurro.
— Orion, você foi feito para a gente. Nos solte para podermos
completar o vínculo e ficar juntos para sempre. — Minha lince dá mais
força as palavras, perdendo a paciência com nosso companheiro, que não
está trabalhando para nos satisfazer.
Porém, as palavras que eram para fazê-lo agir tem o efeito contrário.
Sua mandíbula se contrai e o desejo que brilhava em seus olhos se
transforma em… outra coisa que não sei descrever.
— Você só pode ter fugido de um hospício. Não tem outra explicação
para o seu nível de loucura.
Rosno com o modo depreciativo com que fala de mim, minhas garras
saindo e raspando na madeira.
— Eu não sou louca! — uma das cordas se rompe com a irritação que
sinto e quando vê que libertei uma mão, dá um passo para trás, parecendo
com medo.
— Ele te chamou de raposa também — Dalton diz, quase
cantarolando, feliz em aumentar minha raiva.
A segunda corda se rasga e puxo as mãos livres para frente, os pulsos
feridos onde a amarra raspou. É um gesto automático lamber o lugar
machucado, pois a saliva dos shifters é curativa. Quando me livro das
amarras que mantinham meus pés presos, Orion já está quase na porta do
quarto.
Ele não parece saber se foge ou fica para me encarar, os olhos
correndo de mim para a porta, sem parar.
— Venha cá e me peça desculpas! — digo, apontando para o chão a
minha frente, a voz soando distorcida por meu animal estar perto da
superfície.
— Desculpas? Pelo quê? São vocês que deveriam se desculpar por
invadir a minha casa! — cospe, o rosto ficando vermelho de raiva.
Ele parece desistir da fuga, pois se vira para me encarar de frente,
ajeitando a postura. Por um segundo, minha lince balança, a aura de poder
que Orion emana a atinge em cheio, mas me apego a minha raiva, não
recuando.
— Você bateu em nós! Seus companheiros! — grito, indignada ao me
lembrar do fato.
— Vocês me bateram primeiro! Vem cá, quantos parafusos soltos tem
na cabeça da sua esposa? — questiona a Dalton, me enfurecendo ainda
mais.
Grito ao pular em cima dele, me transformando no ar. Miro em sua
garganta, não para machucar, mas para mostrar que não aceitarei que ele se
refira a mim desta maneira. Estou a centímetros da sua pele quando sinto
meu pelo ser puxado com força, impedindo que eu bata nele.
O ar sai dos meus pulmões quando percebo que ele conseguiu me
agarrar. Como que um humano foi rápido o suficiente para me pegar?
Os sinais de alerta disparam em minha cabeça, assim como na de
Dalton, que está tentando se soltar com maior empenho agora que Orion me
tem em seu agarre.
— Gatinha, você não deveria ter feito isso — diz num rosnado baixo,
aproximando nossos rostos.
Dourados.
O centro dos olhos azuis está dourado.
— Dalton, eu acho que nosso companheiro não é humano — digo pelo
laço, um arrepio gelado me percorrendo ao me ver, mais uma vez, no centro
de um problema que pode abalar nossas vidas.
09

ORION
Minha mente é uma mistura de sentimentos. Não sei direito o que
estou fazendo. Há uma névoa dourada embaçando minha visão, sussurrando
em meu ouvido como tenho que agir. Ao mesmo tempo em que estou com
raiva dos pirralhos que invadiram minha casa, há outra emoção em meu
peito, que não sei nomear. Quero eles perto de mim, o que não faz o menor
sentido, pois nem os conheço!
— Ela não pode agir desse jeito. É sua função puni-la e educá-la,
para que seja uma ômega obediente. — A voz, que parece o rosnado de um
animal, diz em minha mente. É ela que tem me guiado nos últimos minutos,
fazendo minha mente ficar leve.
Seguro Felícia com firmeza, mas sem machucá-la. Me mantenho
longe das patinhas nervosas, que balançam, tentando me pegar, e a levo em
direção à cama, contornando Dalton, que está puxando as cordas com
aparente desespero.
— Nosso beta também precisa de uma punição. Sua parca idade não é
desculpas para escapar das consequências. Algo que o faça nunca esquecer
quem tem o poder! — continua orientando, preenchendo minha cabeça com
as mais distintas formas para educar o gatinho raivoso, deixando claro o
quão irritada “a voz” ficou com a ação dos dois.
O calor infernal que não saiu do meu corpo desde que o casal invadiu
minha casa, aumenta ainda mais quando passo por trás do garoto e puxo
seus cabelos, forçando sua cabeça a ir para trás e me encarar.
— Se você não quiser ficar com a bunda vermelha igual um tomate
maduro, é melhor ficar bem quietinho nessa cadeira, me entendeu, gatinho?
— sua boca se abre, as pupilas dilatam e o cheiro de excitação fica ainda
mais forte no ar, fazendo minha ereção se forçar contra o tecido preto da
calça, desesperada para ser livre e saciada. — Fique à vontade para olhar eu
educar a ômega selvagem, e saiba que muito em breve vai ser você, pois
não esqueci daquele cuspe.
Felícia se mexe com mais força, quase me fazendo soltar seu pelo. A
garra afiada raspa na minha pele, formando um rasgo fino que rapidamente
começa a sangrar. Os olhos dourados se fixam lá e ela abre a boca para
soltar um miadinho que eu tenho certeza se tratar de um pedido de
desculpas.
— Dê o sangue para ela lamber — a sombra dentro de mim orienta.
Franzo a testa com a ideia, que me parece bem antiética, mas não consigo
evitar mudar a gata de mão e puxá-la até que meu antebraço fique a
centímetros da sua boca.
— Limpe a bagunça que você fez, querida.
Dalton ofega na cadeira e a própria Felícia parece ficar confusa com a
ordem, pois olha do sangue para meu rosto sem parar, os olhos
esbugalhados.
— Eu não vou repetir — minha voz sai distorcida, a névoa dourada
adentrando dentro de mim, reforçando minhas palavras.
É uma sensação estranha. Eu me sinto como eu mesmo, só que mais
selvagem. Sem as preocupações costumeiras. É como se uma parte sombria
de mim finalmente tivesse se libertado.
— Felícia, não faça. Principalmente agora! — Dalton diz, as palavras
tremendo no que parece ser medo. — A gente não sabe o que esse cara é!
A gatinha solta um miado confuso, se mexendo com mais forças na
minha mão. A ponta dos meus dedos dói e mordo um xingamento quando a
agonia se torna insuportável.
— Ela tem que beber da gente! — a névoa berra em minha cabeça,
intensificando as dores que já estou sentindo.
— Felícia, estou falando sério. Não faça! — me viro para Dalton,
furioso por ele estar tentando interferir no que parece certo. — O laço de
sangue é eterno, amor. Não faça isso. Você iniciará o vínculo de parceria!
Um sentimento voraz me domina ao escutar as palavras e forço a boca
da gatinha contra meu braço.
— Beba logo — rosno, desespero me corroendo para que ela tome
meu sangue.
Felícia me olha e vejo o exato momento em que ela escolhe beber de
mim. É uma lambidinha tímida, mal toca a pele, mas é o suficiente para que
eu sinta o choque de prazer me percorrer, quase me deixando de joelhos.
Nossa. Nossa. Nossa. A palavra dança em minha mente, se repetindo
sem parar, uma emoção nova e intensa me dominando, expulsando os
resquícios de pensamentos sobre eles serem estranhos que invadiram minha
casa e poderem mudar para a forma animal.
Eu deveria estar apavorado, confuso, perplexo. Nunca vi nada
parecido antes, fora dos livros e séries. Eu nem sabia que magia era real!
Mas tudo parece tão certo e reconfortante. Quando olho para a gata em
minha mão, não vejo um ser místico estranho, mas algo que quase se parece
com reconhecimento.
A mulher se transforma e me vejo agarrando sua nuca, a mão firme na
pele marrom, os dedos profundamente enfiados na carne. O cheiro de
sangue está forte no ar, e é com um misto de espanto e satisfação que
percebo que minhas unhas cresceram ao ponto de parecerem garras, e se
fincaram em sua pele, formando 5 pequenos rasgos que não permitem que
ela vá para longe. Se eu estivesse num estado normal, questionaria a
mudança, mas tudo que consigo pensar agora é como são deliciosos seus
lábios carnudos entreabertos, se de choque ou prazer, eu não sei.
Puxo Felícia em direção aos meus, precisando sentir seu gosto. O
gosto da nossa companheira.
Invado sua boca, lambendo, sugando e mordendo, tomando-a como
minha. Deslizo a mão por sua cintura, colando o corpo quente e pequeno no
meu. As unhas afiadas se fincam em meus ombros e ofego em sua boca
com a ardência deliciosa que me toma.
— Por favor! — escuto-a implorar quando permito que se afaste para
respirar.
— Por favor, o quê? — grudo em seu pescoço, louco para colocar um
chupão ali e marcar a pele, a sombra em minha cabeça recitando sem parar:
Nossa. Nossa. Nossa.
Uma de suas mãos sobe para meu cabelo, agarrando firme os fios
marrons, e ronrono de prazer quando a sinto me empurrar em direção a sua
pele, erguendo a cabeça para que eu tenha mais espaço para explorar a
garganta esbelta.
Morda. Morda. Morda. Continua dizendo, me enlouquecendo.
Não me sinto mais no controle do meu corpo. Sou como uma
marionete, sendo guiado pela sombra dourada e pelo prazer que corre nas
veias. Eu mal consigo enxergar, minhas íris tomadas pelo ouro da luxúria,
que me incendeia e tira o ar.
— Está doendo, Orion. Não consigo mais suportar! — meus dentes,
que estavam prestes a se fincarem na junção do pescoço com o ombro,
param a centímetros da pele, a voz em minha cabeça ganhando um tom de
pânico e confusão, quebrando um pouco do controle que movia meus
membros.
O que houve com nossa companheira?
Puxo uma respiração profunda, tentando identificar o que há de errado
com ela, mas tudo que sinto é o caramelo salgado que emana de sua pele e a
excitação intensa, que faz meu pau babar na calça.
A empurro de leve para longe, confusão tomando minha mente, me
fazendo lembrar que não conheço essa mulher e que eu não deveria estar na
cama com ela.
O que está acontecendo aqui, pelo amor de Deus?
Tento sair de cima dela, uma angústia sem igual correndo em minhas
veias. Quando me afasto o suficiente para olhar seu rosto, contorcido no
que parece ser dor, Felícia estremece violentamente e cai no chão, todo o
corpo balançando, como se estivesse tendo uma convulsão.
— Porra, o que tem de errado com ela? — questiono Dalton,
desespero me invadindo por não saber o que está acontecendo.
— É o cio. Ele ficou acumulado por 2 anos e agora está caindo sobre
ela tudo de uma vez — responde, parecendo ainda mais apavorado do que
eu. Suas palavras adentram minha cabeça e, ao mesmo tempo que eu sei o
que significam, elas também soam estranhas.
Cio. O que diabos é isso?
— Ela precisa ser saciada, não gozou desde que chegou.
Por um segundo, tiro os olhos de Felícia e o encaro, considerando sua
fala tão absurda e estranha que até o tempo parece parar por um momento.
— Você quer dizer que ela está assim porque não gozou? — repito, só
para confirmar o que, com certeza, é a situação mais bizarra da minha vida.
Dalton abre a boca, as sobrancelhas franzidas em raiva e medo, ele
está pronto para me xingar, eu vejo em seus olhos, mas antes que fale
qualquer coisa, Felícia solta um grito e chuta minha perna, trazendo nossa
atenção de volta para ela.
— Temos que deixá-la confortável — a névoa dourada volta a me
dominar, e perco o ar quando sou obrigado a agachar e pegar Felícia no
colo. O corpo pequeno e quente parece pulsar sobre meus dedos e aquela
confusão que me tomava desaparece, deixando apenas a preocupação com
minha mulher.
A levo com cuidado até o colchão, tentando não a apertar muito, para
que os gemidos que saem da sua boca não se intensifiquem. Sinto o lençol
gelado contra o antebraço quando a deito. Estou me levantando, minha pele
ardendo com um desejo tão absurdo que sinto que a qualquer momento
explodirei, quando suas unhas se fincam no meu braço, não permitindo que
eu me afaste.
— Você compartilhou sangue com ela e isso intensificou o cio. Ela
precisa ser saciada, antes que a mente se parta — escuto Dalton dizer,
soando tão ofegante quanto eu estou.
Não preciso olhá-lo para saber que sua ereção está tão maciça quanto
a minha. Sinto o desejo dele. Sinto a angústia de Felícia. Sinto a nossa
conexão.
Nossa. Nossa. Nossa. A voz ecoa, me enlouquecendo. Não tenho mais
certeza se é minha voz interna ou uma assombração. Por que em alguns
momentos eu a considero como minha e em outras como nossa? O que é
esse cio? Por que meu pau não deixa de ficar duro? Por que desejo tanto
esses dois estranhos?
As perguntas rodam no meio da fumaça dourada em minha cabeça,
sumindo e desaparecendo. Me enlouquecendo.
Agora não é hora para você ter dúvidas. Nossa mulher precisa da
gente! A voz repreende, me fazendo focar no que está acontecendo diante
de mim.
— Ninfeta, solte meu braço — tento manter a voz suave quando falo
com a mulher deslumbrante deitada entre meus lençóis, o corpo nu em
plena exibição, se contorcendo de um modo tão pecaminoso que me dá
água na boca.
Seus olhos estão pressionados com força, os cílios pretos fazendo
sombras nas bochechas coradas. Passo a ponta do dedo na mão que segura
meu antebraço, um choque de prazer me percorrendo com o breve contato.
Ela ofega e eleva os quadris, me permitindo ver o brilho em suas
coxas, da excitação que escorre da boceta melada. Travo a mandíbula,
tentando não escutar a voz sombria que fala para eu me enfiar entre suas
pernas e afundar o rosto ali, sugando-a até que goze em minha língua.
Isso já é demais! Ela é casada com outro homem!
Minha mente luta contra o certo e o errado. Eu não conheço essa
mulher, nem o marido dela. Eles invadiram minha casa no meio de uma
tempestade. São pessoas que viram animais. Eles me bateram e apagaram.
Desde que chegaram, meu corpo está sofrendo com esse calor insuportável
e tudo que posso pensar é foder até minhas bolas explodirem. Foder eles.
— Ela precisa da gente — a voz sombria diz, soando dolorosa quando
Felícia solta outro grito agudo e se contorce, quase rasgando meu braço no
processo.
— Orion, ou você me solta para eu poder cuidar da minha mulher, ou
enfia logo o rosto no meio das pernas dela! — Dalton grita, me fazendo
sobressaltar.
Viro para encará-lo e vejo o exato momento em que as cordas, que o
prendiam firme na cadeira, se rompem. Uma possessividade como nunca
senti me toma e obriga-me a falar:
— Não ouse se mexer, porra! Ela é minha! — agarro as coxas
cremosas de Felícia e forço-as a se abrirem, para conseguir me colocar entre
elas.
Onde estou, consigo ficar de olho em Dalton, que parece ter
congelado, pois está numa posição estranha entre sentado e prestes a
levantar. Os olhos dourados estão arregalados e a boca carnuda aberta em
choque.
Começo a perguntar por que está assim, quando o cheiro da boceta de
Felícia, bem na minha cara, me toma e minha mente parece derreter em
dourado.
Enfio a língua entre suas dobras molhadas, absolutamente extasiado
com o gosto delicioso da minha mulher. Cravo as mãos em suas coxas, que
apertam com força minha cabeça, conforme ela berra de prazer e dor, no
estado caótico em que se encontra, forçando-as a se manterem abertas para
que eu possa sugar, lamber e morder como eu bem quiser.
Na sua virilha há uma marquinha de vitiligo, e quando beijo ali,
encantado com o quão linda e única ela é, Felícia agarra meus cabelos e me
força a voltar para onde quer: seu clitóris pulsante.
— Me faça gozar! — rosna, não permitindo que eu levante a cabeça
para respirar. A ordem puxa algo dentro de mim e mordo sua pele com
força para puni-la.
Gatinha malvada. A sombra dourada ri em minha cabeça, enquanto
Felícia grita e se contorce, se esfregando com mais força em minha cara.
Sou dominado por seu cheiro e gosto, a possessividade correndo em minhas
veias, me enlouquecendo. A pele quente e sedosa em minhas mãos, as
garras afiadas nos meus cabelos, a boceta molhada em minha boca, que
pulsa e aperta minha língua, como se não quisesse que eu saísse de dentro
dela.
Minha. Minha. Minha.
Sugo o clitóris de levinho, assoprando em seguida, o que a faz tentar
fugir para longe. Mantenho meu agarre forte, não permitindo que se afaste
nem um milímetro, e forço dois dedos em sua entrada, adorando sentir o
quão apertada ela é.
Todo seu interior trêmula, seus gemidos altos me mostrando quão
perto do clímax está.
— Goze logo, Ninfeta. Eu não vou continuar aqui embaixo por muito
mais tempo — blefo, desesperado para senti-la vir em minha boca,
precisando do seu gozo igual um humano precisa de ar para viver.
— Cale a boca e continue me comendo — gargalho contra sua pele
quando sua mão volta a me forçar para baixo, seu quadril começando a
remexer, sujando toda a minha barba com sua excitação.
Deixo que ela própria se foda com minha língua e dedos, puro prazer
me percorrendo ao ver como ela está gostando, a coisa dentro de mim
ronronando de satisfação. Sua outra mão brinca com seu seio esquerdo,
puxando o mamilo escuro e torcendo-o, pequenos miadinhos chorosos
saindo dos lábios carnudos.
Meu olhar vaga até Dalton e sou dominado pelas íris douradas, que
estão fixas em mim, devorando sua esposa.
O pênis grosso balança levemente, como se estivesse sendo
estimulado por um vibrador, a cabeça vermelha brilhante não esconde que a
qualquer minuto o gatinho vai gozar.
— Isso mesmo, venha para mim. Me presenteie com seu orgasmo,
para que eu possa saboreá-lo. — A névoa selvagem que me domina,
ronrona e, por alguns segundos, fico confuso se ela está realmente falando
em minha cabeça, ou se tem outra pessoa no quarto, pois posso jurar que
Dalton a escuta, dado o modo como se sobressalta segundos antes de
explodir, jatos fortes de porra caindo sobre as coxas e barriga nuas, fazendo
uma bagunça que vou adorar limpar mais tarde.
— ORION! — Felícia grita, tirando minha atenção do marido e, assim
que levanto os olhos para encarar a Ninfeta, sou atingido por um jato.
Porra, ela está esguichando!
Agarro sua bunda e volto a pressionar minha boca em sua boceta,
bebendo cada gota da sua excitação. Ela se contorce, grita e quase arranca
meus cabelos, perdida em seu prazer, mas só me afasto quando paro de
sentir os pequenos tremores percorrerem o sexo.
Beijo novamente a pequena mancha em sua coxa, uma onda grande de
satisfação percorrendo-me por saber que meus dois companheiros gozaram.
— A morda, assim nunca mais poderá ir embora — a névoa sussurra,
conforme vou subindo meus beijos, seguindo a trilha de manchinhas que
leva a sua bela garganta exposta. — Não ficaremos mais sozinhos.
Felícia solta pequenos gemidinhos manhosos por conta dos meus
carinhos, e quando lambo a pele do seu pescoço, aquele lugar macio e
delicioso, na junção do ombro com a garganta, ela crava as unhas em meus
ombros.
— Por favor! — implora, soando ofegante.
— Por favor, o quê, Ninfeta? — questiono rouco, sentindo que não
sou apenas eu falando, mas a névoa também. Sua ideia de mantê-los para
mim me seduz, por isso não consigo desgrudar a boca de sua carne, aquele
pequeno pedaço de pele me chamando.
Morda. Morda. Morda. A sombra dourada continua ressoando, me
distraindo da dor aguda em minhas gengivas.
— Nos tome como seus.
Ergo os olhos, vendo quão entregue ela está a mim. Em seguida
encaro Dalton, deixo que aquela sombra selvagem me domine e é com ele
na minha mira que digo:
— Mas vocês já são meus, gatinha.
10

DALTON
Ver minha mulher perdida em prazer por conta de outro homem
deveria me enojar. Me deixar com raiva. Talvez até me magoar. Porém,
quando vi as pálpebras de Felícia tremerem, os pés se contorcerem contra
os ombros claros de Orion e a boceta esguichar na cara dele, apenas senti
tanto prazer e desejo que gozei amarrado, sem poder tocar no próprio pau.
Pior, me senti realizado por estar sob a mira atenta do homem que me
deixou nessa situação, e que agora está prestes a reclamar minha
companheira.
— Felícia, não deixe ele te morder! — repito pelo laço que
compartilhamos, em pânico por quão desejoso estou para que ele a morda e
faça o mesmo comigo. — Precisamos descobrir o que ele é!
— Ele é nosso! O que mais importa? — diz, bêbada de prazer.
Uma parte minha concorda com Felícia, aquela que gozou quando
Orion me olhou, que foi à loucura ao ver como o homem ficou chocado
com o orgasmo da minha mulher batendo em seu rosto, só para depois
grudar a boca na boceta inchada e devorá-la, como se fosse a coisa mais
saborosa que já provou, e estremeceu quando ele disse que já somos dele.
Orion é nosso companheiro e nada mais importa. Porém, meu outro lado, o
que não está tomado pelo cio e ainda sofre com as dores do que Bethal fez
ao meu corpo, sabe que não é tão simples assim.
Já teríamos um problema gigantesco se acasalássemos com um
humano, pois as regras do alfa proíbem essa interação, mas se ele for o que
estou pensando, e eu tenho 99% de certeza que é, dado o modo como meu
corpo travou com sua ordem, tudo será ainda mais complicado!
— Felícia, se você deixar Orion te morder, dois passos do vínculo de
companheiros terão sido realizados. Já é o suficiente para matar metade da
sua alma quando seu pai o matar.
Minha esposa dá um pulo na cama, se afastando de Orion, que
continuava brincando com seu pescoço, dando beijinhos e mordiscadas. Ela
se transforma no ar, voltando para a forma de felino e vem até meu colo, a
mente tomada por medo e desgosto, pois sabe que o que falei é verdade.
Bethal irá matá-lo!
— Volte aqui, Ninfeta — a voz de Orion soa rouca e sombria, e
quando nos encara, estremeço com a visão do ouro lentamente tomando o
lugar do azul, em suas íris.
Felícia balança em meu colo, o rabo curto batendo em meu estômago
conforme luta contra a ordem.
— Eu quero tanto obedecê-lo! — choraminga pelo laço, soltando um
miado sofrido que ecoa pelo quarto. — Mas não quero que ele sofra, igual
nós sofremos.
Orion se ergue, as chamas da lareira fazendo sombras dançarem pelos
seus músculos, criando contornos hipnotizantes. Ele parece um deus do
pecado, parado com uma ereção maciça no meio do quarto, a barba
molhada pelo gozo que não conseguiu engolir, os olhos brilhando de desejo
e possessividade.
— Eu não vou repetir de novo, gatinha — ele soa ainda mais perigoso
agora, e é humilhante a quantidade de tesão que sinto por vê-lo assim.
Minha esposa finca as garras na pele da minha coxa e a fisgada aguda
de dor quebra o encantamento que me dominava, impedindo-me de me
mover.
— Orion, você precisa se acalmar — mantenho o tom baixo e calmo,
para que não tenha nenhuma reação impulsiva, enquanto me levanto,
Felícia em meus braços.
As íris mescladas seguem meu movimento e quando lambe o lábio
inferior, movendo bem de leve o pé esquerdo, sei que teremos outra luta.
— Eu não quero te machucar.
— É fofo como você acha que é capaz — ele ri, fazendo um arrepio
de desejo me percorrer. — Seja um bom beta e siga minhas ordens. Se
ajoelhe na minha frente e minha mão será leve na punição — quase perco o
ar com o quão feral e dominante soa.
Felícia ronrona e se contorce em meus braços, a nova ordem sendo
demais para ela suportar. Como uma ômega, ela é mais suscetível a ser
manipulada, pois está no seu DNA servir e agradar. Porém, desta vez não é
sua categoria a culpada pelo desejo insano de obedecê-lo, mas sim o poder
que o homem a nossa frente tem. Mesmo eu, um beta com força maior do
que grande parte dos machos shifters que moram em Juneau, estou tendo
que fazer forças para não ceder e fazer exatamente o que Orion está
mandando. Meu leopardo quer obedecê-lo.
— Você precisa nos contar o que é. — Dou um passo para trás,
esbarrando na cadeira quando ele começa a se aproximar, o corpo gingando
igual de um animal prestes a abater seu jantar.
— Vocês já sabem o que eu sou. — O brilho em seus olhos aumenta e
engulo em seco quando observo o azul desaparecer no meio do dourado. —
Não me faça caçar vocês, Companheiro.
Ouvi-lo me chamar de companheiro me desestabiliza. Sinto falta de ar
e quase caio com a necessidade latente que me domina, exigindo que eu vá
até ele e deixe que faça o que bem quiser comigo.
Ele me alcança rapidamente e quando pressiona o corpo grande no
meu, me prendendo contra a parede, toda a disposição para lutar se vai, o
cheiro de canela adentrando em meus poros, me enlouquecendo.
— Vou deixar uma mordida tão grande no seu pescoço, que será
visível a quilômetros de distância — ronrona no pé do meu ouvido,
fazendo-me tremer.
Felícia mia sem parar no meu colo, sendo pressionada entre os dois
corpos quentes e, por alguns segundos, até esqueço de sua presença quando
Orion dá uma lambida brincalhona na minha carne, como se estivesse
experimentando meu gosto.
— Tudo bem, eu só… só preciso saber que tipo de shifter você é — os
últimos resquícios de sanidade que ainda tenho, me obrigam a falar antes
que eu seja completamente dominado pelo desejo do cio.
Ele lambe mais uma vez minha pele, a ponta dos dentes, que não
parecem mais tão retos, raspando de um jeito gostoso. Quando penso que
não irá me responder, só morder e acabar de vez com nossas vidas, Orion se
afasta.
O moreno pisca, cheirando a confusão, e prendo o ar quando vejo o
azul batalhar contra o dourado em suas íris. A visão é chocante.
— O que está acontecendo? — resmunga, botando a mão na cabeça
quando tropeça para trás, soando em pânico.
Solto Felícia, que se transforma em humana. Ela corre em direção a
Orion, para ajudá-lo, mas o homem ergue as mãos, o cheiro de medo
ficando tão forte que me causa enjoo.
— Não toque em mim, porra! — exclama, indo para trás.
— Orion, nós só queremos te ajudar. O que você está sentindo,
Companheiro? — minha esposa responde, magoada por ter sido rejeitada.
— Não me chame assim! VOCÊS NÃO SÃO NADA PARA MIM!
EU NÃO CONHEÇO VOCÊS — berra, as pernas falhando quando tenta
correr em direção à porta.
Ele cai no chão, soltando um choramingo de partir o coração, as mãos
agarrando os fios escuros do cabelo com força. Parece estar em profunda
angústia, e isso está afetando Felícia, que agora está ligada a ele por sangue.
Não sei quem de nós está mais confuso. Em um mero segundo, Orion
deixou de se portar como um shifter alfa e virou um humano medroso,
horrorizado com as novas descobertas.
Felícia coloca a mão no peito, sentindo falta de ar e tomo uma decisão
drástica, querendo que isso pare antes de se tornar um caos ainda maior.
Pego o atiçador de metal, pendurado no suporte ao lado da lareira e me
preparo para apagar Orion com ele. O objeto pesado está a segundos de
bater em sua cabeça quando sinto o laço em minha alma afrouxar, indicando
que Felícia desmaiou, levando Orion com ela.
Por ter um novo companheiro, que não me reclamou ou completou o
ritual de junção de almas, meu vínculo com Felícia enfraqueceu, e é por
isso que não desabei junto com ela e Orion. No momento, isso é uma coisa
boa, pois posso pensar e tentar encontrar uma maneira de lidar com o que
quer que esteja acontecendo aqui.
Eu só queria saber o que é...

Com o silêncio agudo sendo quebrado apenas pela madeira estalando


na lareira, boto os dois em cima dos lençóis, evitando as áreas úmidas que
Felícia deixou com o orgasmo. Jogo novas toras no fogo, para manter o
quarto bem aquecido, e quando meu leopardo se sente satisfeito com o
estado em que deixou seus companheiros, saio do quarto para procurar um
telefone.
Só tem uma pessoa que pode me ajudar neste momento e, apesar de
não querer colocá-lo em risco, estou desesperado. Que a deusa da Lua nos
proteja, para que Bethal nem sonhe que entrarei novamente em contato
com meu avô!
Desde que assumimos publicamente que fizemos os laços eternos de
companheirismo, o alfa nos exilou, não permitindo que tenhamos contato
com ninguém do bando. Isso inclui minha família.
Eles nunca foram bem-vistos por Bethal, por serem de uma espécie
diferente, e não é de hoje que sofrem humilhações e represálias, mas após
meu vínculo com Felícia, tudo piorou ainda mais. Meu avô, considerado um
dos anciãos mais experientes do bando, foi destituído do cargo, algo que
nunca havia acontecido na história dos metamorfos, pelo que sei; e vovó,
junto com mamãe, foram impedidas de continuar prestando serviços como
curandeiras.
Toda a minha família foi afetada pela minha decisão de me casar com
Felícia, e este, talvez, é o único ponto que me faz me sentir um pouco
arrependido. Eu deveria ter pensado que Bethal iria encontrar mais formas
de se vingar de nós, além da surra pública. Não bastou quase ter nos matado
com a dor, lotado nossos corpos com cicatrizes que jamais irão desaparecer,
e impedir nossos kaylaks de se estabilizarem completamente, ele tinha que
envolver minha família nisso. Eu lhe dei de bandeja o motivo que tanto
buscava para tratá-los como lixo. A família estrangeira do traidor.
Vou em direção ao pequeno quarto onde Orion se escondeu para ligar
para a polícia, tentando parar de pensar em coisas que não posso mudar.
Minha esperança é que Felícia não tenha destruído o telefone quando
desligou na cara de Miranda. A energia da casa acabou, por conta do
vendaval intenso que assola o lado de fora da mansão, então não dá para
utilizar o telefone fixo que vi lá na cozinha, quando estava escondido
embaixo do armário.
Não tenho problemas com a escuridão, devido a minha visão noturna,
mas andar por esta casa gigante, no meio da noite, ouvindo os uivos da
tempestade lá fora, é apavorante por si só. A aura deste lugar é pesada e
conforme sigo pelo corredor, vai se tornando ainda mais sufocante.
Quando chego no quartinho cheio de objetos de limpeza, que também
estão cobertos por uma camada grossa de poeira, solto um suspiro frustrado.
O telefone está no chão, os moldes dos dedos de Felícia na lateral de metal.
Me agacho para pegá-lo, já com a ideia de deixar a casa e correr até a de
algum vizinho só para roubar um aparelho, quando surpreendentemente a
tela despedaçada se acende.
— Caramba, eu sempre ouvi falar que os celulares da Nokia eram
indestrutíveis, mas não pensei que fosse verdade — murmuro,
impressionado pelo touch screen estar funcionando.
O telefone tem senha. Tento as mais clássicas, como 1234, 4321 e
0000, mas nenhuma funciona. Não posso acordar Orion para perguntar qual
é, então decido dar uma volta pela casa, torcendo para que ele seja do tipo
de pessoa que anota em post-its.
Velhos fazem isso, né?
Há cinco portas em cada lado do corredor, então começo com a que
está na minha frente. Espero que as dobradiças ranjam, igual nos filmes de
terror, mas a porta se abre facilmente, sem fazer nenhum barulho.
O local está vazio e sujo, o que não me surpreende, dado o que vi da
casa até então. As paredes estão com a pintura desbotada e, o que antes era
branco, agora parece um cinza deprimente. Assim como no outro quarto, há
marcas no chão de madeira, no lugar onde a cama de casal ficava. O
banheiro está num estado de calamidade pública, e há tanta poeira no closet
que se juntar tudo dá para cobrir Felícia quando está transformada.
Os próximos quartos que visito se encontram no mesmo estado.
Estou indo para o penúltimo do lado direito, antes daquele onde
achamos os porta-retratos, pensando em desistir e ir logo para a cozinha,
quando me deparo com algo bem diferente.
É um quarto infantil.
As paredes estão pintadas com um amarelo-claro e brilhante, com
diversos desenhos de borboletas cor-de-rosa, espalhadas em todos os lados.
Os móveis são brancos e delicados, e a cama com dossel, que fica bem no
centro do cômodo, é uma verdadeira preciosidade.
Me aproximo dela, tomando cuidado para não pisar nos brinquedos
jogados no chão, que, surpreendentemente, está limpo. No meio dos
cobertores cor-de-rosa, bagunçados como se a criança tivesse acabado de
sair da cama, vejo uma pelúcia em formato de onça, e isso cria um nó no
meu estômago.
Será que é isso que Orion é? Uma onça-pintada?
Estendo a mão para pegar o brinquedo, que tem um colar com o
símbolo de uma rosa no pescoço, mas não consigo tocá-lo. Me parece
errado mexer nesse quarto intocado pelo tempo, limpo e bem cuidado.
Chego até a olhar para a porta, esperando ver a menininha que dorme aqui
me observando, mas não há nada. Estou sozinho aqui, e sinto como se não
devesse estar aqui.
Saio do quarto, arrepios me percorrendo e, antes que eu possa
entender o que estou fazendo, me vejo novamente no quarto de Orion,
trancando a porta para que nenhum fantasma imaginário possa entrar.
O homem está na mesma posição em que o deixei, quase 20 minutos
atrás, roncos baixinhos saindo de sua boca entreaberta. Felícia praticamente
subiu em cima dele e está com a cabeça apoiada no vão do pescoço, as
pernas jogadas sobre as de Orion.
Um pedaço da camisa preta está levantada, revelando a pele clara
tatuada por baixo e meu instinto diz que a resposta que estou buscando está
mais perto do que eu esperava. Me aproximo deles e, após alguns minutos,
consigo afastar Felícia o suficiente para erguer o tecido preto.
Bem no meio do peito musculoso, vejo quatro números tatuados:
1702. O mais interessante é que ao redor dos traços que formam os
números, há pequenas rosas desenhadas, pintadas com um vermelho
vibrante. A cor é tão intensa, comparada as outras tatuagens pretas, também
de rosas e espinhos, que até parece sangue.
— Por que essa fixação por rosas, Orion Donovan? — murmuro,
permitindo meu dedo roçar na pele quente, satisfazendo um pouquinho do
desejo do meu leopardo.
No fim, esse é só mais um dos mistérios que preciso descobrir sobre o
homem que, a cada segundo que passa, se torna mais interessante e
enlouquecedor.
11

ORION
Abro os olhos lentamente, uma dor alucinante em minha cabeça. Sinto
a garganta seca, implorando por água, mas a mera ideia de me mover faz
meu corpo estremecer, pontadas de desconforto se espalhando pela carne,
junto com uma onda intensa de náuseas.
Tento forçar a mente para lembrar o que fiz ontem, para estar nesse
estado, mas não consigo me recordar de nenhuma festa ou bebida. Cortei
lenha, me preparando para a nevasca, e peguei uma cerveja na geladeira.
Depois disso não há… nada.
Uma única cerveja não é capaz de me causar essa ressaca. Já bebi
muito mais e nunca acordei ruim deste jeito. O que será que aconteceu?
Encaro a fresta da janela que a cortina não cobriu, observando as
rajadas de vento curvarem os abetos carregados de neve, que se destacam
contra o céu preto turbulento. Ainda não amanheceu, e a nevasca está em
pleno vigor.
A luminária, que sempre deixo acesa antes de ir deitar-me, está
desligada, mostrando que a energia acabou. A única iluminação do quarto
vem da lareira, onde o fogo ruge alto e intenso, como se tivesse acabado de
ser alimentado. Não consigo olhar por muito tempo para as toras sendo
consumidas, minha cabeça lateja com mais vigor.
Jogo o braço sobre o rosto, a ação me faz rosnar de angústia, e tento
normalizar a respiração, para poder recordar o que me deixou assim.
Quando consigo tranquilizar meu corpo, percebo algo que até então a dor
não havia me deixado notar: há alguém em cima de mim.
O corpo pequeno e quente está encaixado do meu lado direito, o rosto
pressionado em minha garganta. A respiração suave faz cócegas em minha
pele e me causa um pequeno prazer.
Minha outra mão está sobre a cintura fina, mantendo a pessoa colada
em mim. Me movo com cuidado, ainda mais confuso do que estava antes, e
quando consigo me afastar o suficiente para encará-la, perco o ar.
Felícia.
O nome explode em minha mente, causando uma sensação intensa de
prazer e possessividade em meu peito.
Pulo para fora do colchão, assustado com as lembranças que descem
sobre mim sem nenhum controle. O tesão repentino na cozinha. O leopardo
me observando. A gatinha no closet de vovó. O casal pelado. O sangue
compartilhado.
Meus. Meus. Meus. A voz sombria de antes ecoa em minha alma, me
fazendo estremecer. São os nossos companheiros.
Puxo os fios do meu cabelo, numa tentativa vã de fazer a sombra
dourada parar de murmurar na minha cabeça. Ela me domina, me sufoca.
Faz eu me sentir livre de todo o peso que ando carregando.
Tropeço para longe da mulher, que se remexe na cama, murmurando,
dengosa, em busca do calor que estava recebendo antes. Ela rola para onde
eu estava e afunda o rosto no meu travesseiro, como se quisesse sentir meu
cheiro. A ação me causa profundo prazer, e quando sinto meu pênis
estremecer, corro para fora do quarto, desesperado para fugir dos
sentimentos que me assolam.
Caminho silenciosamente pelo corredor escuro, algo dentro de mim
dizendo que não devo ser espalhafatoso. Um alerta grita em minha mente,
me mostrando que estou me esquecendo de algo. Só lembro o que é quando
estou prestes a entrar na cozinha, e escuto a voz grossa de Dalton.
Ele está encostado na bancada da pia, de costas para mim, um dos
braços levantados como se segurasse algo no ouvido. Percebo ser o meu
telefone quando o escuto falar:
— É um homem. Saí para correr com Felícia e sentimos o cheiro dele.
Ela descobriu que era nosso companheiro…
Aquela névoa dourada se intensifica ao meu redor, e estremeço
quando minha audição parece ficar mais aguçada, pois passo a escutar a
respiração do outro lado da linha.
— E como você está lidando com isso? — é um homem, talvez um
senhor, pelo modo arrastado que fala.
— No começo não fiquei muito feliz — Dalton admite, usando a outra
mão para esfregar a nuca. Meu olhar se fixa na carne exposta e minha boca
enche de água com a ideia de mordê-lo ali. — Nunca me interessei por
homens. Eu só… amo Felícia mais que tudo, aiga1. Estava satisfeito com
nosso casamento. Me parece uma traição sentir coisas por outra pessoa que
não seja ela!
Meu coração se aperta ao escutar a angústia na voz.
— Ela está se sentindo traída?
— Não sei. Acho que não. Para Felícia tudo está perfeito, ou o mais
perto da perfeição, dada a nossa situação. — Suspira, puxando os fios
pretos do cabelo liso.
— E você está com raiva dela por não estar se importando com seus
sentimentos — afirma, e posso jurar que está se divertindo.
— Não estou com raiva dela — Dalton nega após alguns segundos,
não parecendo muito convincente.
— Então o que está sentindo?
O garoto fica em silêncio por tanto tempo que preciso mudar de
posição, minha perna esquerda não aguentando mais o peso que coloquei
nela.
— Acho que é ciúmes — sussurra, envergonhado.
— Dela ou dele?
— Dele. — Meu coração dispara no peito e preciso levar a mão a boca
para que um rugido de satisfação não escape de mim, a névoa dourada me
aperta, mostrando sua felicidade. — Isso me faz um péssimo companheiro
para ela, né? Estou com ciúmes da minha esposa estar recebendo mais
atenção do homem que acabamos de conhecer, do que eu.
Bom gatinho. A sombra ronrona em minha mente, me deixando tonto.
É por isso que só percebo que Dalton começou a se virar, quando está
praticamente de frente para mim. Pulo em direção à parede, pois não quero
que descubra que estou lhe espionando. Encosto na superfície pintada de
branco e escuto seus passos pelo chão, indo em direção às banquetas. Ele
arrasta uma e se senta, o couro range diante do seu peso. Viro a cabeça
apenas um pouco para olhá-lo, e suspiro de alívio ao ver que se sentou de
costas para mim.
— Você não é um péssimo companheiro, Khishig. Isso é apenas seu
leopardo querendo atenção e carinho — o homem que acho ser seu avô diz,
e os apelidos me deixam curioso, pois parecem que estão em outra língua —
Agora vocês são em três, precisam descobrir uma forma de se conectarem
mutuamente. Você disse que ele fez um laço de sangue com Felícia. Seu
leopardo quer um também.
— Ele não deveria querer um. Eu não quero um! Estou satisfeito com
minha mulher! — Dalton mete o punho na mesa e um som alto de algo
trincando ecoa pela cozinha. Preciso morder a língua para não xingar o
pivete por partir o mármore da minha ilha. — Puta merda, o Orion vai me
matar!
— O que você fez, Khishig?
— Não importa — responde rápido, soando apavorado, o que quase
me faz rir. — O que estou dizendo, é que eu não o quero como
companheiro!
A sombra dentro de mim se torna raivosa, cravo as unhas na palma da
mão para me impedir de ir até ele para fazê-lo retirar as palavras
mentirosas.
— Vamos fazê-lo perder a voz de tanto dizer que nos pertence —
aquela voz sombria diz e sorrio, satisfeito pela ideia.
O fogo maldito no pé do meu estômago aumenta e esfrego minha mão
em cima da ereção crescente, sem saber direito se quero fazê-la sumir ou
endurecer ainda mais. Me perco no prazer gostoso do movimento, lutando
contra os pensamentos sobre eu ter virado um adolescente ninfomaníaco
que só pensa no próprio pau. A minha mente só volta a prestar atenção na
conversa que ele está tendo com o avô quando Dalton diz meu nome, me
tirando da névoa dourada de desejo.
— Orion é estranho, aiga. Eu nunca vi nada igual. No começo, achei
que ele fosse só um humano velho. — Faço uma careta com o desprezo
com que diz a palavra velho. — Mas ele é forte e rápido! Pegou Felícia no
meio de uma transformação. Além disso, ele dá ordens de uma maneira que
obriga nosso corpo a reagir.
— O que está dizendo exatamente, Dalton? — é a primeira vez que o
tom do homem do outro lado da linha ficar sério.
— Acho que ele é um shifter. Um alfa, na verdade.
A palavra desliza pela minha espinha tal qual um raio e a lembrança
do que me causou a terrível dor de cabeça, que até então não havia
ressurgido, cai sobre mim igual a um maremoto.
Não tombo, pois já estava encostado na parede, mas perco o fôlego
com as imagens e sons que piscam na cabeça, memórias há muito
esquecidas voltando com tudo.
— Está ansioso para ver as onças, Orion? — mamãe pergunta,
virando o rosto para que eu consiga vê-la no banco dianteiro do carro.
— Estou!
— Você deveria ter trazido sua pelúcia — papai diz, e mesmo que
esteja utilizando óculos escuros, sei que os olhos dourados me encaram
pelo espelho retrovisor.
— Não sou mais uma criança, pai. Agora eu tenho 13 anos! — o
relembro, revirando os olhos.
— Treze anos… pela deusa, como o tempo passa rápido! — comenta,
balançando a cabeça sério, fazendo mamãe sorrir. — Nosso garotinho em
breve será um alfa!
— Não sou mais um garotinho, pai! Sou um adolescente — marco
bem a palavra, para que ele entenda de uma vez que minha época como
criança acabou. Ignoro a palavra estranha, já acostumado a nunca obter
respostas sobre o que significa esse tal “alfa”.
Mamãe se engasga, tentando ocultar a risada, e bufo de raiva
enquanto cruzo os braços. Encaro o deserto árido pelo vidro do carro,
apreciando as montanhas e colinas terrosas no horizonte. Os cactos vão
ficando mais comuns conforme o Parque Nacional de Saguaro se aproxima,
e minha excitação cresce ao vê-los contra o céu límpido.
— Tem razão, você é um adolescente — papai concorda, aplacando
um pouco do meu rancor. — Um adolescente com 13 anos, que está prestes
a ter o dia mais mágico da sua vida. Hoje será um dia que jamais
esquecerá, Orion!
Sorrio, os olhos escaneando cada cacto que passa por nós, a procura
das tão famosas onças-pintadas que papai jurou morarem aqui.
Abro a boca para questioná-lo sobre como iremos encontrá-las, já
que o parque é enorme, mas uma dor forte toma minha barriga, a ponta dos
meus dedos e minha gengiva.
Meu grito se perde no barulho agudo da buzina de um caminhão.
Engulo em seco, a mão pressionando minha traqueia para fazer o ar
voltar a circular, enquanto tento me livrar da lembrança do barulho do metal
sendo esmagado junto com os ossos do meu pai, que recebeu a maior parte
do impacto.
Com a memória fresca na mente, percebo que a dor que senti mais
cedo nos dedos, lá no quarto, foi a mesma que senti antes do acidente.
Será que tem alguma ligação?
— A energia em volta dele é muito forte, vovô. Me lembra demais
Bethal, só que sem a parte maligna que quer me rasgar no meio e pendurar
meus restos para o bando cuspir e pisotear — a voz de Dalton me traz de
volta ao presente e esfrego a mão no rosto para me concentrar no que ele
está falando, jogando para o fundo da mente o maldito acidente e a porcaria
das onças.
— Isso não significa que ele é um shifter. Humanos também podem ser
fortes e ter espíritos dominantes.
— Os olhos de Orion são azuis, mas quando estava com a gente no
quarto, mandando a Felícia beber do sangue dele, eles ficaram dourados.
Totalmente dourados! E quando mandou eu ficar na cadeira, meu corpo
travou, exatamente como acontece quando Bethal entra na mente dos betas
e os usa como marionetes!
— Ele forçou vocês? — questiona, num misto de raiva com medo.
— Não! Claro que não! Ele é meio bruto, mas não acho que seja do
tipo que toma o que quer sem permissão.
Escutar Dalton me defender com tanto empenho me acalma, e um
pequeno sorriso desponta em meus lábios.
— Bom gatinho. — A sombra dourada ronrona de novo em minha
mente, esquecendo a raiva de antes.
— A questão aqui é que os olhos dele mudaram. Até a voz mudou!
Ficou mais forte e selvagem. Ele praticamente se transformou de humano
para shifter, e quando questionei de qual espécie ele era, sua mente entrou
em pane e ele desmaiou.
— Com os olhos dourados?
— Não, depois que perguntei sobre a espécie, as íris ficaram azuis,
como se voltasse a ser humano. Ele ficou assustado, parecia não saber quem
era a gente, mesmo que estivesse, até então, agindo como se já nos
conhecêssemos há séculos. — Dalton suspira, apertando novamente os fios
do cabelo. — Ele sabia que Felícia era uma ômega e eu um beta. Falou até
sobre a mordida dos companheiros.
Pisco confuso, suas palavras me fazendo perceber como é estranha a
situação em que me encontro. Eles invadiram a minha casa e me fizeram
desmaiar, depois disseram que nascemos para ficar juntos, algo que eu sinto
ser verdade. Não conheço nenhum dos dois, mas me sinto possessivo com
eles. Quero cuidar e mimar, assim como punir. Quero marcá-los como meus
e, ao mesmo tempo, jogá-los para fora de casa, para não ter que lidar com
todas essas sensações que estão me fazendo reviver.
Jesus Cristo, por que essa loucura está acontecendo justo comigo? —
questiono, passando a mão na cabeça, uma tentativa fraca de afastar a dor
que começa a se espalhar em minhas têmporas.
— Humanos não podem ser transformados em shifters, Dalton — o
homem no telefone responde sério, e algo no tom faz meu sangue gelar. —
Eles nascem humanos e morrem como tal. Porém, já ouvi de shifters que
foram afastados do bando quando crianças, não aprenderam nada sobre
seus lados sobrenaturais, e só os acessaram depois de adultos. Não estou
dizendo que é o caso do seu companheiro, mas é a única explicação
razoável que posso pensar.
Afastados do bando quando crianças… Engulo em seco, as palavras
rodando em minha mente sem parar, flashes dos olhos dourados do meu pai,
há muito perdidos nas sombras do passado, voltando para me perturbar.
— E o que preciso fazer para descobrir se ele é mesmo um shifter e
depois ajudá-lo a mudar? — Dalton questiona, a frase saindo meio abafada
por conta do dedo que colocou na boca. Pela posição, acho que está
mordendo as pelinhas que ficam ao redor da unha.
— Você não faz nada. Na verdade, nem sequer cogite isso! — a voz
do seu avô se eleva, assustando o garoto, que pula para fora do banco. — O
animal dele está selvagem, soltá-lo seria perigoso.
A dor na minha barriga se intensifica e me forço a levantar, não
querendo escutar mais nada sobre essas loucuras que me causam sensações
mistas e me deixam tonto. Tento andar para longe da cozinha, mas meu pé
trava ao escutar a próxima pergunta do gatinho.
— Mesmo ele sendo um possível alfa?
“Nosso garotinho em breve será um alfa!” As palavras que meu pai
disse naquele dia, uma das últimas, começam a rodar em minha mente, e
coloco a mão na boca para me impedir de vomitar, meu corpo tendo uma
sobrecarga de lembranças que parecem tentar me matar.
— Isso só torna tudo pior. Bethal o mataria, temendo perder o posto.
— Um calafrio se espalha em minha nuca e sinto aquela sombra dourada se
mexer em meu peito, me enchendo de algo que se parece muito com
interesse. A combinação das emoções não me faz bem e preciso me apoiar
na parede para não ir ao chão. — Além disso, ninguém conseguiria segurar
seu companheiro, dependendo do quão forte ele for. Você é um beta forte.
Se acha que seu companheiro pode ser um alfa, então quer dizer que ele te
supera em força, e nós dois sabemos que só o seu sogro é mais forte que
você no bando.
— Entendo o quão desastroso pode ser, mas como faço para ele não se
transformar? Parece que apenas ficar perto dele já atiça o lado dominante!
A sombra selvagem se mexe dentro de mim, crescendo e expandindo,
tomando um espaço que antes parecia vazio. Ela afasta as lembranças, me
permitindo respirar sem achar que morrerei de dor. Não luto contra a
sensação, aliviado por não sentir mais a tristeza que as lembranças me
causaram. Meu pé toca o chão, mas não em direção às escadas, para onde
antes tentei fugir, e sim em direção a Dalton, que está com a cabeça jogada
para frente, o telefone ainda pressionando a orelha.
Meus ouvidos captam a voz do seu avô, mas não entendo as palavras.
Elas passam por mim como se fossem um ruído irritante. A cada passo que
dou, me aproximo mais do garoto, meu foco em sua nuca exposta.
Sinto minha gengiva arder e ao passar a língua sobre a ponta dos
dentes, me surpreendo com quão pontudos eles se parecem. Os caninos
enchem minha boca e parecem latejar, conforme paro atrás de Dalton,
encarando a pele amarelada que ficará perfeita com minha marca.
Morda. Morda. Morda.
— Estou com medo de tudo isso explodir na nossa cara, e eu não dar
conta — murmura, dando uma fungada de tristeza que quase aplaca o meu
desejo de mordê-lo.
— Não tem como voltar atrás agora, Khishig. Sua esposa já começou
a ligação, e para que as mentes de vocês não se quebrem, você terá que
completá-la. A mordida é o próximo passo. Não o provoque, nem o
desobedeça. Se mantenha com a cabeça baixa e, com sorte, o animal não
virá para a superfície.
— Mas e se ele vir? Mesmo com a gente se mantendo obedientes?
— Aí vocês correm.
A risada explode em minha boca e Dalton se vira para me encarar, a
boca aberta, os olhos esbugalhados em choque. O telefone escapa da sua
mão e cai no chão. Ele não sobrevive a nova quebra, a tela estoura de vez,
mandando pedaços de vidro para todos os lados e encerrando a ligação com
seu avô.
O garoto dá um passo para trás quando eu avanço, e isso alimenta
aquela possessividade brutal dentro de mim, todo meu ser pedindo para
caçá-lo.
— Vai fugir, gatinho? — ronrono, deixando a mão encostar no banco
do couro que nos separa.
Vejo seu pomo de adão quando engole em seco, e isso só me deixa
mais desejoso de marcar sua garganta.
— Se for para correr, é melhor ser em direção ao quarto, porque na
hora que eu te pegar… — deixo a frase no ar, estalando língua em
satisfação quando vejo os pelinhos do seu corpo se arrepiarem.
Seu olhar desvia, apenas por um momento, para a entrada da cozinha
atrás de mim, e meu divertimento aumenta quando o vejo erguer as mãos
lentamente, como se estivesse declarando paz.
— Orion, eu acho que você deveria se acalmar — murmura, mantendo
a voz suave. Sua tentativa é boa, mas não esconde todo o medo e o desejo
que está sentindo.
— E eu acho que você deveria se botar em movimento, pois só vou te
dar cinco segundos de vantagem, começando a contar agora. — Levanto um
dedo, sussurrando o número um.
Dalton se endireita, os olhos se arregalando ainda mais. Quando ergo
o segundo dedo, ele sai correndo, pulando praticamente o mármore
quebrado da ilha da cozinha.
Escuto seus pés batendo contra os degraus de madeira quando ergo o
terceiro, aquela sombra dourada deslizando por meus membros, me
enchendo de fome.
Ele adentra o quarto e passa a tranca quando levanto o quarto dedo.
Quando me viro, o número cinco ecoando pelo cômodo, escuto as
molas da cama rangerem.
— Bom gatinho — ronrono, seguindo atrás da minha presa.
12

FELÍCIA
O colchão balança com brusquidão, me tirando do sono profundo em
que estava. Abro os olhos e me deparo com meu marido quase que em cima
de mim, seu rosto tomado de pavor. Puxo seus sentimentos pelo laço, para
entender o que aconteceu, e ofego com o desejo que sinto.
— Orion está vindo — diz, a voz saindo rouca e falha.
— O que você fez?
— Não faço ideia! Eu estava falando com meu avô e do nada ele
surgiu atrás de mim, perguntando se eu iria fugir… — ele balança a cabeça,
fazendo os fios escuros baterem na testa. — Felícia, você não viu os olhos
dele. Pensei que iria me devorar ali mesmo!
Aguço minha audição para tentar descobrir onde Orion está e engulo
em seco quando mal consigo escutar seus passos ou respiração. Tento puxar
suas emoções pela pequena parte de nossas almas que está ligada, e
estremeço quando sinto o quão feral está.
— O que seu avô disse? — questiono, tentando controlar meu corpo,
que se incendiou ao sentir o poder do ser dentro de Orion, que meu marido
conseguiu atiçar.
— Que ele pode ser um shifter que nunca se transformou.
As palavras perfuram minha cabeça e paro meu movimento de sair da
cama, surpresa demais para fazer qualquer coisa além de encará-lo, a boca
aberta.
— Nunca se transformou? Isso é possível?
Mesmo já tendo lido praticamente todos os livros da biblioteca
privada do meu pai, nunca vi nada sobre shifters que não se transformaram
assim que completaram 13 anos. Normalmente, ocorre no dia do aniversário
e, no mais tardar, durante a semana. Nunca passa de dez dias!
— Vovô disse que já tiveram alguns casos, quando a criança é
separada do bando ainda muito nova.
Mordo o lábio inferior, processando as novas informações. Sinto pena
de Orion, que nunca teve um bando para lhe ajudar a desbravar seu animal,
mas também felicidade, pois poderei participar do momento mágico que é a
primeira transformação. Que tipo de shifter ele é?
Encaro meu marido, desejando que ele seja algum animal tão grande
quanto o leopardo, para não ter problemas para me dominar na forma
animal. Dalton me olha zangado ao perceber meus desejos profanos.
— Você tem que parar com essas ideias de acasalar na forma animal.
Isso é errado!
— Por que é errado? Somos companheiros. Nascemos para completar
e satisfazer uns aos outros — ronrono, me aproximando dele que está
ajoelhado do lado oposto da cama, o mais longe possível da porta trancada.
Meu marido me deixa tocar seu peito e faço um carinho com o polegar
em cima de uma das suas cicatrizes. Ele me observa enquanto eu me inclino
e beijo a pele quente.
— Eu sei que você também quer. Não precisa mentir para mim…
— Nunca disse que eu não queria, apenas que é errado — diz com os
dentes cerrados, tentando não demonstrar como está gostando dos beijos
que distribuo em seu peito.
Meu ouvido, sincronizado com seu coração acelerado, foca nos passos
de Orion, que finalmente chega diante do quarto e mexe na maçaneta.
Dalton vira o rosto para olhar a porta e aproveito o momento de
distração para me botar de quatro e lamber a glande do seu pau, que já
estava ereto quando veio para a cama.
— FELÍCIA! — Dalton grita de surpresa e desejo, agarrando meus
cachos com força, sem saber se me afasta ou me puxa para mais perto.
O fogo do cio queima forte em minha boceta e rio de satisfação
quando escuto o ofego do meu marido e o rosnado de interesse que Orion
solta, segundos antes de meter o pé na porta e estourar a madeira.
— Puta que pariu! — não tenho certeza se Dalton xinga pelo susto da
entrada repentina do nosso companheiro, ou pela sugada gostosa que dou na
cabeça avermelhada do seu pau.
— Gatinho, eu esperava que você estivesse de quatro me esperando,
assim como a Ninfeta está.
As palavras rosnadas de Orion me arrepiam e não consigo evitar
balançar o quadril, um reflexo de satisfação da minha lince. O movimento
faz o pênis de Dalton entrar mais fundo em minha boca, e meu marido
intensifica o aperto nos meus fios, soltando um gemido entrecortado.
A risada sacana de Orion só deixa tudo mais prazeroso.
Escuto-o se aproximar e parar atrás de mim. A mão enorme desliza
suavemente pela minha bunda e retiro rápido o pau da boca para gritar
quando ele deixa um tapa ardido na banda direita.
— Já é a segunda vez que você mama no seu marido dentro deste
quarto — diz, esfregando o lugar onde bateu.
O encaro por cima do ombro, o máximo que Dalton me permite, pois
ainda segura meus cabelos, e sorrio ao falar:
— Se você chegar mais perto, vou mamar em você também.
Ele sacode a cabeça, fazendo os cachos castanhos balançarem, e
choramingo com o fogo intenso que vejo nas íris completamente douradas.
— Em breve vou usar essa boquinha gulosa, mas não hoje —
murmura, deixando os dedos deslizarem pela minha carne até chegarem a
minha boceta, já encharcada. Ele roça de levinho nos grandes lábios e
encosto a cabeça contra o estômago de Dalton, gemendo.
Meu marido permanece parado, praticamente sem respirar, agarrando
meus cachos como se fosse algo necessário para sobreviver. Não preciso
acessar nosso laço para saber que está batalhando contra o medo e o desejo.
O cheiro de sua excitação está forte no ar, e sei que não é apenas pelo meu
boquete interrompido. Ele quer Orion tanto quanto eu.
— O que você vai usar hoje? — pergunto ofegante, empurrando meu
quadril para trás, na tentativa de fazer seus dedos me preencherem. O
movimento me rende outro tapa ardido e um rosnado, que faz meu animal
entrar no modo completo de submissão.
Caio com o rosto no colchão, gemendo de prazer ao senti-lo afundar
os dedos na lateral das minhas coxas, pequenos rasgos se formando nos
lugares onde suas unhas se fincam. O cheiro de sangue preenche o ar, me
deixando selvagem, mas não saio da posição em que me deixou,
desesperada para lhe agradar.
Orion sobe no colchão, fazendo-o ranger, e estende o corpo por cima
do meu, o hálito quente fazendo cócegas em meus ouvidos quando
responde:
— O cuzinho do seu marido.
— Puta. Que. Pariu. — Dalton arfa pelo laço, em absoluto choque.
Ele não se mexeu desde que Orion entrou no quarto e, quando levanto a
cabeça para encará-lo, percebo que está com a boca aberta, os olhos
desfocados por conta do cio. Todo seu corpo travado, a luxúria dominando
seus membros.
É uma sobrecarga de prazer que desliza por nosso vínculo e minha
mente começa a embaçar, aquela dor terrível que me acometeu mais cedo
crescendo de novo em minha barriga.
— E quando meu cacete estiver todinho dentro dele, vou dar a
mordida que ele está desesperado para receber — ronrona, lambendo o
lóbulo da minha orelha, só deixando tudo mais intenso.
— Você vai me morder também? — pergunto, tentando lutar contra o
ciúme que me domina. Não tenho êxito e preciso segurar os lençóis para
não deixar minha lince rosnar seu desagrado.
— Só se você for uma garota muito boazinha — é uma provocação, e
o beijo que deixa na lateral da minha cabeça, por cima dos cachos, faz o
ciúme se desmanchar em segundos.
Sinto vontade de rodar e lhe mostrar a barriga de tanta felicidade que
sinto, mas me mantenho na posição que me deixou, com o rosto
pressionando o colchão, os seios roçando suavemente o lençol preto.
Observo-o se levantar para encarar meu marido de frente.
Dalton está tremendo e, por causa do laço, vivencio todas as suas
emoções confusas. Lhe mando um carinho mental, na tentativa de transmitir
a calma que sinto, por saber que nosso companheiro irá cuidar de nós, mas
não acho que funciona.
O colchão se mexe quando meu marido muda seu peso de um joelho
para o outro, começando a recuar.
— Não ouse dar mais um passo para trás — a ordem de Orion ecoa
pelo quarto, tão sombria e forte que faz minha mente rodar.
Se ainda houvesse qualquer dúvida dentro de mim de que meu novo
companheiro é um alfa, agora elas estariam mortas. O poder desliza pela
minha espinha, mexendo com minha lince, que praticamente se desmancha
com a autoridade latente que Orion emana. É mais do que apenas domínio.
Eu o sinto se apoderar de mim, invadindo minhas moléculas e
convencendo-as de que elas lhes pertencem.
Sua. Sua. Sua. Meu animal ecoa, olhando com adoração para Orion,
que está a apenas um palmo de distância de Dalton.
— Minha paciência para joguinhos acabou! — sua voz retumba pelo
quarto, me causando calafrios. — Vocês invadiram a minha casa,
bagunçaram a minha cabeça e foderam com meus sentidos. Está na hora de
lidar com as consequências.
— O que você vai fazer? — a voz de Dalton soa baixa e quebrada. Ele
está lutando para não ceder, seus traumas travando uma batalha árdua
contra os sentimentos que o cio proporciona.
Ao mesmo tempo que seu leopardo está desesperado para dar todo o
controle a Orion, como a minha lince fez, o medo de ser novamente
machucado por um alfa está impedindo que Dalton aceite de uma vez o
nosso companheiro, e isso parte meu coração, pois a culpa deste trauma é,
em grande parte, minha. Se ele não tivesse ficado comigo, meu pai não o
teria punido de forma tão severa e deixado tantas cicatrizes em sua pele!
— Eu já disse o que eu quero. Agora está na hora de você me dizer o
que quer — fala, cutucando o peito de Dalton com a ponta da unha, afiada
demais para um humano. — Felícia fez sua escolha quando bebeu meu
sangue de forma voluntária. Está na hora de você fazer a sua.
Mudo a posição do meu rosto, para ver melhor Dalton. Ele morde o
lábio inferior e parece tão perdido que meu peito se aperta. Seu olhar desvia
para encontrar o meu, mas dura apenas um segundo, pois Orion agarra seu
queixo, forçando-o a encará-lo.
— Isso é entre mim e você. Esqueça que Felícia está aqui e me diga
sua decisão, pensando apenas no que você quer.
— Não posso fazer isso. Preciso pensar no que ela quer. Tenho que
resolver tudo, porque sou o mais forte da relação! — desabafa, me fazendo
perceber, verdadeiramente, quanta pressão estava sentindo no nosso
casamento. Isso traz lágrimas aos meus olhos e me sento, levando a mão na
boca para não escutarem meus soluços.
O agarre de Orion sobre Dalton não afrouxa, mas sinto o carinho que
ele começa a fazer com o polegar sobre o queixo do meu marido, e isso
também me acalma um pouco.
— Agora quem toma conta de Felícia sou eu, gatinho — o ronronar de
Orion afrouxa a tensão que estava me dominando, e respiro fundo para me
lembrar que este momento não é sobre mim, e sim sobre o que meu marido
vai escolher.
Ninguém é obrigado a criar um vínculo com seu companheiro. A
maioria das pessoas não o faz, preferindo casamentos tradicionais, onde o
divórcio é possível. O desejo de se unir vai continuar existindo, mas nada
impede de lutar contra. Milhares de casais o fazem, então a gente também
irá conseguir.
Será difícil para nós agora por causa dos nossos kaylaks, que já estão
uma bagunça, mas se Dalton não quiser a união, não a faremos. Nem é
possível fazer.
Para um vínculo de companheirismo ser formado, são necessários três
passos: troca de sangue, mordida de arrebatamento e, por fim, as palavras,
onde nossas almas são entregues um ao outro. Nenhum desses passos tem
volta, pois a cada etapa há troca e ligação de nossas energias. Não tenho
certeza de como irá funcionar entre nós três, pois dei minha alma a Dalton e
meu sangue a Orion, iniciando o vínculo, mas não irei me preocupar. Orion
disse que tomará conta disso, e confio nele.
— Apenas me diga o que você quer.
— Não sei o que quero — resmunga, colocando a mão em cima do
braço de Orion.
— Acho que sabe, sim, só está com medo de aceitar.
Orion desliza o dedo até os lábios de Dalton, falando com a voz tão
suave, que nem meu marido consegue se impedir de desmontar. Ele cai nas
mãos do alfa, que o segura com um cuidado que me traz lágrimas aos olhos.
Eles ficam assim por um tempo, os olhos fixos e, pela primeira vez na
vida, sinto meu marido relaxar e abaixar totalmente a guarda. Nos braços de
Orion, ele não é um beta rejeitado, um estrangeiro que precisa lutar para
sobreviver ou um companheiro marcado por cicatrizes. Ele é só um homem
tentando descobrir o que sente por outro homem. Não nego que me causa
um pouco de dor saber que não lhe causo essa sensação de paz profunda,
mas tento deixar o ciúme de lado, lembrando que todos os companheiros
trabalham em conjunto, para que o grupo esteja em paz.
— Querem saber um segredo? — Orion murmura, puxando Dalton
para que ambos se sentem no colchão ao meu lado.
Meu marido permanece caído em seu peito, sem forças para se
levantar, e me arrasto para compartilhar o colo do alfa, precisando fazer
parte deste momento.
Orion ajeita nós dois, de modo que eu fique com o rosto a centímetros
do de Dalton. Quando meu marido me olha, um pouco envergonhado,
sorrio, lhe mandando um carinho pelo nosso frágil laço.
— Eu também estou com medo… — murmura, acariciando meus
cachos. Não consigo me impedir de gemer de satisfação e ele dá uma
coçadinha no meu queixo que faz meu pé bater no colchão, de tão gostoso
que é. Ele não soa mais como um alfa e, quando ergo os olhos, vejo que
está me encarando, suas íris estão mais azuis do que douradas e há um
sorrisinho em seus lábios. — Vocês apareceram na minha vida não faz nem
6 horas e já a virou de cabeça para baixo de um modo que não tem como
consertar. Essa sombra no meu peito não para de falar que vocês são meus
e, as lembranças que achei ter esquecido, estão voltando para me assombrar.
— Sombra? — questiono, sem saber se está falando de forma
figurada, ou se é esquizofrênico.
Sinto a preocupação de Dalton pelo nosso laço, e nós dois erguemos a
cabeça para encarar Orion, que está agora está com o olhar vago.
— Essa névoa dourada — murmura, soando quase encantado. — Ela
me faz sentir bem. Livre do passado. Mas quer algumas coisas tão
estranhas…
— Como o quê? — Dalton pergunta, apoiando o cotovelo no colchão,
para se erguer por cima de Orion e encará-lo de frente.
Minha mente está focada, procurando o que pode ser essa tal sombra
dourada, por isso demora um pouco para meu cérebro processar as
próximas palavras de Orion.
— Como morder vocês, para que sejam, irremediavelmente, meus.
13

DALTON
Num piscar de olhos, as íris azuis de Orion são engolidas pelo
dourado e ele agarra meu pescoço, forçando meu corpo contra o colchão.
Boto a mão em seu braço, chocado com quão forte ele me segura.
Tento afastá-lo, mas, mesmo usando toda minha força, não consigo movê-lo
nem um milímetro para longe de mim.
O corpo quente aperta o meu contra o colchão e choramingo com a
queimação gostosa do cio, que só ficou mais forte ao ter sua pele colada na
minha, o cheiro intenso de canela e couro contra o meu nariz. A respiração
quente de Orion bate contra meus lábios e me vejo abrindo a boca,
erguendo o máximo que posso a cabeça, para tocar a sua com a minha. Ele
ri malicioso quando roço contra seu lábio inferior.
— Me diga o que quer, gatinho — sua voz grossa e cheia de poder me
arrepia, e sinto uma fisgada no meu pau, que está pressionando sua coxa.
Ele percebe meu desejo, pois ri de forma mais intensa, me pressionando
com força contra o colchão, a cabeça sensível do meu pênis roçando
deliciosamente no tecido preto da sua calça. — Fale as palavras e prometo
te dar uma noite que jamais irá esquecer.
Minha boca já está aberta, as palavras de submissão na língua, meu
leopardo ronronando alto de satisfação por finalmente poder se entregar.
Porém, apesar de todo meu ser estar gritando para ceder a Orion, algo ainda
me trava. E se ele acabar sendo igual Bethal? E se me machucar, depois
que eu me entregar?
Felícia me manda carinhos pelo laço, demonstrando seu apoio,
achando que isso irá me ajudar. Me sinto horrível por querer que ela me
deixe pensar sozinho só por um segundo. Sei que não está fazendo por mal
e que se sentiu péssima quando revelei quão sobrecarregado eu estava com
o nosso casamento. Não quero machucá-la, pois a amo demais, mas estou
tão sufocado com suas emoções, que minha mente parece estar derretendo!
— Ninfeta, faça um favor para mim — Orion diz, sem desviar os
olhos cor de ouro dos meus. Ele transmite paz com o ronronado que sai do
seu peito, e minha mulher geme suave, sem se dar conta dos meus
sentimentos conflitantes. — Vá até a sala e pegue o lubrificante na mesa de
suporte, ao lado do sofá.
Felícia mal espera Orion terminar de falar antes de sair da cama,
fazendo o colchão balançar, e segue para o térreo, pulando de ansiedade.
Quando sua presença se afasta o suficiente, sinto tanto alívio que minha
mente nem foca no motivo para Orion estar querendo o lubrificante.
Sua mão, que estava em meu pescoço, sobe até o queixo, acariciando
de um modo que me faz querer fechar os olhos e ronronar de satisfação.
— Quer um conselho, garoto? — pergunta, soando mais humano do
que alfa, o que me acalma ainda mais. — Você pode continuar em cima do
muro, como está agora. Continuar tentando dar o que Felícia precisa,
esquecendo dos seus próprios desejos. Vai dar certo por um tempo. Um
tempo longo, talvez. Mas a verdade é que uma hora você irá quebrar, e
quando isso acontecer, pode ser tarde demais…
— Para quê? — questiono, fingindo não ter entendido o recado, não
querendo aceitar suas palavras.
Ele me dá um pequeno sorriso e, quando beija a lateral da minha testa,
de uma forma tão cuidadosa que enche meus olhos de lágrimas, aquela
partezinha que ainda estava se segurando finalmente se quebra.
— Para ser feliz.
Afundo o rosto no seu pescoço, desesperado para sentir seu cheiro
bom, sentir aquela paz que me dominou antes, quando ele me apertou em
seus braços. Sou envolvido por seu perfume e calor, e digo as palavras que
soam como um grito de liberdade:
— Eu quero. Quero a mordida. Quero ser seu.
Sua boca roça em meu ouvido, a respiração quente me fazendo
arrepiar. Quando lambe a carne e dá uma mordidinha brincalhona, levanto o
rosto, sendo dominado pelo dourado em seus olhos.
Ele sorri feral quando diz:
— Mas você já é meu, gatinho. É meu desde o momento que invadiu
minha casa. A única diferença é que agora todo mundo irá saber.
A mão em meu queixo desce novamente para meu pescoço e ele
aperta forte a carne, bloqueando minha passagem de ar. Arregalo os olhos e
abro a boca, desespero e desejo batalhando dentro de mim quando sinto sua
outra mão puxar minhas coxas, obrigando as pernas a abrirem.
— Vou marcar você por dentro com a minha porra e por fora com a
minha mordida — rosna, agarrando de modo brusco meu pau, a mão cheia
de calos esfrega na cabeça sensível. Me contorço, tentando sair do seu
agarre, o prazer sendo demais para lidar junto com a falta de ar.
Orion não me deixa se afastar, mas quando minha cabeça começa a
rodar, libera um pouco o aperto em meu pescoço, permitindo que eu
consiga alguns goles de oxigênio. Estou tão focado em não desmaiar, que só
percebo que Felícia voltou com o lubrificante quando o homem que me tem
nas mãos lhe agradece e pede para abrir a embalagem.
— Vou foder vocês dois juntos — afirma ao esfregar o gel gelado na
minha bunda, me fazendo gritar de susto. Ele ri, se divertindo com minha
aflição e dá um tapa nas minhas mãos quando me esforço para fazê-lo parar
de tentar penetrar no meu buraco. — Gatinho, é melhor você manter suas
mãos no lençol, senão além de amarrar você, vou enfiar meu punho na sua
bunda, ao invés do meu pau.
Corro para segurar firme o tecido, o desejo e o medo batalhando
dentro de mim. Orion ri mais forte e mordo a língua para não resmungar
com o desconforto que é ter seus dedos pressionando um lugar que ninguém
nunca tocou. É estranha a sensação de ser preenchido, mesmo com o
lubrificante, arde um pouco, por isso, tento me distrair encarando Felícia,
que está ao lado de Orion, observando tudo com a boca aberta e os olhos
dilatados de desejo.
— Você se sente bem? — ela questiona, começando a balançar os
quadris, o cio tomando conta do seu corpo, igual está tomando do meu.
— Eu me sentiria melhor se estivesse dentro de você — confesso,
tendo que enfiar a mão na boca para impedir um grito de sair quando Orion
enfia o segundo dedo dentro do meu rabo e começa a fazer o movimento de
tesoura, me alargando de uma forma que faz meus olhos girarem nas
órbitas.
— Relaxe, Dalton. Você está duro demais, e não é no bom sentido —
Orion zomba, retirando a mão da minha garganta para pegar meu pênis. O
prazer desliza pela minha espinha tal qual um raio, e arqueio as costas sem
controle, fogo disparando em minhas veias.
Puta que pariu, eu vou gozar!
Felícia ronrona mais alto, me acariciando pelo laço, e tê-la em minha
cabeça, enquanto sinto Orion me masturbar, ao mesmo tempo que alarga
minha bunda, é demais para lidar.
O orgasmo rasga através de mim, e venho com um grito, o corpo
tendo espasmos tão fortes que sinto como se meus membros tivessem se
desintegrado e reorganizado em segundos, o prazer me percorrendo.
— Pobre Felícia, então seu marido é do tipo que só dura um minuto e
meio?
Tento rosnar com a provocação de Orion, mas estou tão tomado de
deleite que meu resmungo sai como um miadinho choroso, que só o faz rir
mais forte.
— Posso lamber? — Felícia murmura, a voz rouca de luxúria.
Me forço a abrir os olhos, as pálpebras pesadas de satisfação, e vejo o
momento em que Orion concorda com a cabeça, permitindo que minha
esposa se debruce sobre meu corpo e lamba a porra em minha barriga.
Ai, caralho.
Engasgo quando sinto outra pontada no pau, que começa a levantar
sobre os estímulos da língua áspera da minha mulher, que chupa, lambe e
mordisca a carne, degustando do meu sabor.
— Estou sensível! — digo com os dentes cerrados, segurando firme os
cachos de Felícia quando ela deixa um beijinho na minha glande,
provocando.
— MÃOS NO LENÇOL! — o grito de Orion me faz pular e volto a
segurar o tecido escuro, meu leopardo desesperado para agradar seu
companheiro.
Felícia ri, safada, aproveitando o momento para continuar sua
exploração. Quando ela acaricia minhas bolas, meus olhos reviram.
— Chega, Ninfeta — escuto o estalo que ele dá na bunda da minha
mulher, a queimação chegando até minha pele, por conta do vínculo que
compartilho com ela. — Saia de cima dele para eu continuar.
— Você disse que iria foder nós dois juntos — Felícia resmunga e
meu coração dói um pouquinho com o ciúme e rejeição em sua voz.
Orion também percebe, pois agarra sua nuca, forçando-a a lhe encarar.
Ele praticamente cola seus rostos, quase que respirando dentro da boca da
minha esposa, que o observa com os olhos arregalados de desejo.
— Eu sempre cumpro minha palavra, gatinha. Mas não será do jeito
como você está pensando. Não agora, pelo menos… — Sua outra mão
acaricia o rosto da minha esposa, e o ronronar que está soltando se
intensifica para acalmá-la.
Isso tranquiliza ainda mais aquela parte que estava com medo dele ser
um alfa ruim. Vê-lo cuidar de Felícia, garantindo que ela tenha o que
precisa, além de dar o que eu preciso, me deixa tão feliz que não consigo
evitar esfregar o rosto em sua coxa, meu animal exigindo demonstrar sua
felicidade.
Ele dá um tapinha na minha cabeça, aumentando minha satisfação,
mas o momento fofo dura pouco, o cio exigindo ser saciado.
— Agora chega — ele deixa Felícia de lado e agarra uma das minhas
pernas, me girando em sua direção, deixando-me na beirada do colchão. A
força e rapidez com que faz isso deixa minha mente tonta.
Observo enquanto se afasta, retirando pela primeira vez a blusa preta
que escondia os músculos torneados, marcados pela tinta preta das
tatuagens. Agora eu entendo o desejo que Felícia teve na cozinha, de
explorar os desenhos com a ponta da língua. As rosas e os espinhos tomam
conta da lateral do seu corpo, descendo pelos braços fortes, e por conta das
chamas tremulantes da lareira, fico com a impressão de que os desenhos
estão se movendo. A tatuagem com os números está bem no meio do peito,
a única com alguma cor, e o vermelho vibrante me atrai igual fez quando a
vi pela primeira vez.
Orion retira a calça e minha boca enche de água ao ver e as coxas
torneadas e o pênis duro, com o piercing de argola no topo. Porra, imagine
esse homem em cima de mim!
— Em breve não será apenas imaginação — estremeço ao perceber
que ele escutou meu pensamento.
Quando encaro seu rosto, vejo que as íris douradas estão me
fuzilando. O sorriso animalesco que me dá faz meu pênis pulsar com mais
força.
— Nosso companheiro é tão lindo! — Felícia suspira pelo laço, o
corpo quente encostando no meu. Sinto vontade de tocar sua pele, mas me
lembro da ordem de Orion, para continuar segurando os lençóis, e meu
leopardo me força a obedecê-lo.
— O que vou fazer com vocês dois? — ele ronrona, dando um passo à
frente, se botando no meio das minhas coxas. Pela cama ser alta, seu pênis
fica no nível perfeito para me penetrar e um arrepio de expectativas me
toma. O toque de sua mão no meu joelho faz minha perna tremer,
ansiedade, medo e desejo correndo por meu sistema. Ele ri baixinho e nega
com a cabeça, os cachos castanhos balançam sedutoramente. — Você já
teve outro homem dentro de você, gatinho?
Engulo em seco antes de responder, vergonha tomando meu corpo.
— Não. Nunca.
A resposta o agrada, dado o modo como rosna alto de satisfação e
possessividade. Suas garras se fincam na minha pele e mordo um grunhido
de dor misturado com prazer, esfregando a nuca no colchão quando arqueio
o corpo.
— Bom gatinho — o poder em sua voz é quase algo físico, de tão
forte. — Se manteve virgem, só para mim.
Concordo com a cabeça, meu leopardo louco para agradá-lo, mesmo
que não tenha sido este o motivo para eu nunca ter transado com outro
homem. Jamais senti desejo por ninguém que não fosse Felícia e, até
algumas horas atrás, tinha plena certeza que era hétero! Como tudo mudou
em tão pouco tempo?!
Agora, sinto meu buraco pulsar, e quando Orion esfrega a glande
grossa do seu pau contra minha carne, preciso morder a língua para não
implorar por um impulso mais forte de seus quadris.
Eu preciso dele dentro de mim!
O fogo do cio queima em minha barriga, deixando minha cabeça
zonza e o corpo mole. O desespero para ser reivindicado pelo meu
companheiro chega a doer! Tento controlar a angústia, e estou tão focado
em manter minha respiração estável, que só percebo que Orion ordenou que
Felícia subisse em mim quando sinto a boceta dela se encaixar no meu pau,
me engolindo de uma só vez.
Rujo com o prazer cegante que passa por mim quando ela me aperta
dentro de si, rebolando o quadril do jeitinho que faz minha cabeça rodar e o
estômago pressionar.
Porra. Porra. Porra!
— Não o faça gozar, Ninfeta — Orion bate na bunda de Felícia, que
quica em meu pau, me fazendo soltar um miado com quão boa é a sensação.
Ela se deita em meu peito, a nova posição intensifica o aperto de sua
boceta. Reviro os olhos de deleite, quase sem consciência do que está
acontecendo ao nosso redor.
Orion pressiona de novo os dedos no meu buraco e, no automático,
endureço o corpo e tento me afastar. O movimento me rende um tapa ardido
na coxa e um rosnado irritado.
— Vou entrar aí, quer você esteja facilitando ou não, gatinho. As duas
maneiras me farão gozar, mas só uma dela vai te deixar andando de pernas
abertas amanhã — alerta e a cadela da minha esposa ri em cima de mim, se
divertindo por não ser o rabo dela que vai tomar o pau grosso.
— Eu trocaria de lugar com você se pudesse — ela diz pelo laço,
beijando meu queixo enquanto aperta a boceta, me fazendo ofegar.
Orion aproveita o momento para empurrar, me fazendo soltar um grito
quando sinto a pressão aguda, junto com algo cedendo.
— PUTA QUE PARIU! — grito, sentindo o ardor gostoso que me
toma quando meu companheiro empurra o pau para dentro de mim, me
arregaçando no processo. Meu corpo todo entra em curto-circuito, sensível
demais por sentir Felícia me apertar enquanto Orion se esfrega num lugar
que nunca pensei que seria invadido.
— Porra, que cu apertado do caralho! — ele rosna antes de agarrar a
nuca da minha esposa, obrigando-a a levantar. Felícia é arrastada para fora
do meu pau, e choramingo com o quão bem me sinto quando fica só a
glande para dentro de sua boceta. — Eu falei que iria foder vocês dois.
Rujo quando ele a empurra de volta para baixo, obrigando-me a entrar
de uma só vez na boceta apertada e molhada, ao mesmo tempo que bate
com o pau na minha próstata, o piercing, causando sensações estranhas e
intensas.
Minha mente se anuvia, tomada pelo prazer. Seus impulsos são fortes
e rápidos, batendo sempre no mesmo lugar, o que me faz implorar, só não
tenho certeza se é para ele parar ou continuar.
Ele continua manipulando Felícia em cima de mim, obrigando-a a me
cavalgar tão gostoso, que não consigo impedir as lágrimas de escorrerem
por meu rosto, tudo sendo demais para lidar.
O lençol está aos trapos em minhas mãos, e finco as garras no
colchão, tentando me firmar para aguentar a explosão de luxúria que me
domina. Quando Orion diminui a velocidade e tira praticamente o pau todo,
deixando só a cabeça gorda para dentro, o piercing de argola provocando
contra minha carne, solto um miado alto de desespero e cravo as unhas em
seu braço, para impedi-lo de ir mais longe.
— Seu marido está me sugando tão gostoso, Ninfeta — sussurra no
ouvido de Felícia, os olhos grudados nos meus, deixando tudo mais erótico
e íntimo. Ele puxa minha mão, me fazendo segurar os seios fartos de minha
esposa, que estão implorando por atenção. Os mamilos duros se esfregam
contra minha palma e ela grita, apertando a boceta, o que me faz ofegar
enquanto Orion ri. — Queria que você pudesse sentir como ele é apertado.
É quase como se não quisesse que eu tirasse do cuzinho dele, sabe? Fez
tanto drama para eu entrar, mas agora não quer me deixar ir.
Felícia responde com um miado engasgado de prazer, jogando o corpo
para trás, em busca de apoio. Aperto seu mamilo esquerdo do jeito que
gosta, rolando-o contra meus dedos, raspando as unhas de leve em sua pele,
sentindo o arrepio no meu próprio corpo, por causa do vínculo que
compartilhamos.
— Sinto você dentro dele — admite, fechando os olhos e abrindo a
boca em busca de ar, os gemidos saindo sem controle quando Orion deixa
uma das mãos deslizar por seu corpo, até chegar no clitóris inchado,
brilhante por conta da sua excitação. — Isso é tão gostoso!
— Eu sei que é. E logo, logo, vai ficar ainda melhor — ronrona,
dando um beijinho na lateral da sua cabeça antes de esfregar o clitóris com
força.
Minha mulher arqueia contra ele e Orion agarra seu pescoço,
mantendo-a na posição que deseja, profundamente enfiada no meu pau. Ele
choca o quadril contra minhas coxas, voltando ao ritmo punitivo de
penetração, largo os seios de Felícia para segurar de novo no lençol,
gemendo sem controle com cada estocada que sinto na próstata.
O fogo se aperta em minha barriga, se espalhando pelos membros, e
jogo a cabeça para trás, fechando os olhos quando o gozo jorra para dentro
dela, destruindo minha consciência no processo.
Caralho!
— Isso mesmo, gatinho. Dê todo seu prazer para mim. Quero cada
maldita gota — escuto Orion ronronar e meu pênis pulsa com mais força,
como se estivesse o obedecendo. — Encha a bocetinha da sua esposa, que
mais tarde vou lamber tudo. Quero o gozo dos dois na minha boca.
Felícia grita, todo seu interior se apertando quando chega no clímax.
Isso estende meu prazer ao ponto de quase parecer uma tortura, e soluço
com quão bem eu me sinto com meus dois companheiros “dentro” de mim.
Orion mete mais algumas vezes no meu cu, antes de me encher com a
porra quente, rugindo seu prazer tão alto que a casa treme. Me sinto
absurdamente cheio, mas é de uma maneira tão boa, que só solto um
miadinho de satisfação enquanto abraço minha esposa, que está caída em
meu peito, num estado entre consciência e sono, o corpo ainda tendo
espasmos com os resquícios do orgasmo.
O momento se estende por vários segundos e aprecio o modo como
Orion joga a cabeça para trás, o pomo de adão faz força para engolir a
saliva que se acumulou em sua boca, a pele branca brilha com o suor que
veio do esforço do sexo gostoso que tivemos. Sua respiração está forte e
rápida, tomada pelo esforço, mas quando ele abre os olhos dourados e os
fixa em mim, sei que não está pensando em fazer uma pausa.
Chegou a hora.
— Onde você quer a sua mordida, gatinho? — ronrona, a voz tomada
de poder. Ela soa diferente quando seu animal está na superfície, mais
grossa e rouca, quase rosnada. Orion sai lento de dentro de mim e fecho
rápido as pernas, estranhando o quão solto me sinto lá embaixo.
A mão desliza por meu joelho, acariciando-o, e quando sobe na cama,
deixando Felícia pressionada no meio de nós dois, perco o ar.
— N-no meu pescoço — gaguejo, inclinando a cabeça para o lado.
Felícia ronrona em meu peito, minha ansiedade correndo pelo nosso
vínculo, atiçando-a. Ela abre os olhos para tentar entender o que está
acontecendo, sua lince sentindo ciúme, mas os fecha de novo quando Orion
beija sua cabeça.
— Descanse, Ninfeta. Esse momento é do seu marido, não seu. — A
repreensão é suave e tira apenas um leve resmungo da minha pretinha, que
volta ao seu cochilo de satisfação.
O “certo” seria tirar Felícia de perto de mim, pois a mordida de
acasalamento costuma provocar sentimentos intensos de desejo, mas estou
tão cheio e saciado, que quero apenas ficar abraçadinho com meus
companheiros. Orion entende meu desejo e o respeita, vindo se deitar ao
meu lado, botando-nos numa conchinha.
Seu rosto afunda no meu pescoço, e a respiração quente em minha
carne me faz estremecer.
— Relaxe, gatinho, eu não vou te machucar — sussurra, beijando a
pele, provocando e seduzindo.
— Promete? — a pergunta escapa dos meus lábios e endureço quando
sinto seu dedo indicador esfregar contra uma das diversas cicatrizes que
tenho no corpo.
Espero sua resposta por vários segundos. Viro o rosto, pensando que
dormiu, e é quando ele ataca, agarrando firme a pele sensível do meu
pescoço, cravando os dentes e perfurando a carne, enchendo a boca com
meu sangue.
É como ser atingido por um raio. O prazer desliza em minhas veias,
chegando até meu coração, que dispara com a sensação intensa e inebriante.
Sua presença em minha mente aparece de forma imediata, e tudo gira
quando sua voz explode em minha cabeça, dizendo a única coisa que
consegue eliminar de uma vez por todas os meus medos:
— Prometo, meu companheiro.
14

ORION
Abro o armário da cozinha, franzindo os olhos para tentar enxergar
quais alimentos tem dentro dele. Apesar do relógio digital na parede dizer
ser 13h, o vendaval continua forte do lado de fora da casa, mantendo o sol
longe e o interior da mansão, escuro.
A luz não retornou e, apesar de saber que tem um gerador na garagem,
estou relutante de sair do quentinho para enfrentar a nevasca intensa, que
balança os pinheiros com tanta força que não me surpreenderia se um deles
se soltasse do solo e voasse em minha direção.
— Não achou as velas? — a voz de Dalton me assusta, e me viro para
encará-lo, encontrando-o debruçado no batente da porta, os braços cruzados
sobre o peito desnudo. — Inclusive, peguei um dos seus shorts emprestado.
Espero que não se importe.
O tecido preto de tactel marca com perfeição as coxas musculosas e o
volume do pênis, que é impressionante mesmo mole. A luz da lareira o
ilumina por trás, me permitindo ver a mordida que lhe dei. A sombra
dourada em meu peito ronrona de satisfação, e desvio o olhar para não
atiçar de novo o desejo que nos fez ficar na cama, trepando como coelhos,
por toda a madrugada e boa parte da manhã.
— Só achei o cotoco delas — respondo a sua primeira pergunta,
tentando controlar a voz que rosna de irritação por nosso companheiro não
estar mais nu. — E a lanterna está sem bateria — continuo, esfregando a
mão nos cabelos, irritado por não lembrar de carregar as malditas pilhas
especiais do aparelho que é um dos itens mais básicos para a sobrevivência
numa nevasca.
Sinto minhas gengivas começarem a doer e minha pele começar a
coçar, uma irritação que não consigo controlar. Me viro de volta para
Dalton e aponto para o short.
— Arranque isso, eu não permiti que você usasse roupas!
Vejo suas sobrancelhas se erguerem em choque e a boca abrir. Isso me
deixa mal, pois no fundo da mente sei que estou sendo um maluco, mas
ainda assim não retiro minhas palavras e fico extremamente satisfeito
quando o vejo puxar o tecido escuro para baixo, revelando a pele cremosa,
sem me desafiar.
— Você quer que eu vá lá fora procurar o gerador? Não me incomodo
com o frio — continua a conversa como se nada tivesse acontecido,
repetindo pela quarta vez a pergunta que está fazendo desde que acordamos
da última soneca que tiramos, alguns minutos atrás. Rosno, igual fiz das
outras vezes, dizendo que não quero.
O problema todo não é nem o frio, mas sim ir até a garagem, um lugar
que me mantenho longe faz muitos anos. Depois daquela noite terrível,
onde perdi tudo que me era importante, nunca mais entrei lá, com medo de
encontrar os fantasmas que atormentam meus pesadelos, não me deixando
dormir.
Curiosamente, eles não apareceram hoje, quando cochilei agarrado ao
casal que adentrou na minha cabeça e alma, de forma literal. Foi o melhor
sono que tive nos últimos 8 anos, e quando acordei, com os dois em cima
do meu peito, a baba de Dalton criando uma poça na minha pele, me senti
tão bem que até quis continuar deitado, aproveitando o momento gostoso.
Algo que não acontecia fazia muitos anos…
— Você é sempre tão teimoso? — questiona, soltando um bufo.
A sombra em meu peito se aquece e minha voz sai distorcida ao dizer:
— Está mesmo querendo me irritar, enquanto ainda está andando
com as pernas abertas?
As bochechas de Dalton ficam vermelhas e ele abaixa o olhar. A
risada de Felícia ecoa pela sala e ela aparece um momento depois, se
apoiando no ombro do marido. As curvas deliciosas estão escondidas
embaixo do tecido branco de uma das minhas camisetas, que cai até o meio
de suas coxas, parando bem acima de uma das manchas de vitiligo que tem
espalhadas pelo corpo.
— Retire a camisa — mando, irritado por eles estarem tentando me
impedir de admirar algo meu.
— Por quê? — questiona, vindo até mim.
Seus quadris balançam sedutoramente, e me vejo aguando para
mordê-la quando vejo que prendeu os cachos, deixando-os caírem rebeldes
em volta do rosto, roçando o pescoço delgado.
Ela roça a ponta das unhas afiadas em meu peito, e o arranhar suave
envia uma pontada para o meu pau.
— Dentro da minha casa, vocês só podem andar nus, para que eu
possa ter pleno acesso ao que me pertence — é a sombra dourada que me
atiça a dizer.
Felícia ri baixinho e vejo em seus olhos quanto gosta da minha
possessividade. Ela se ergue na ponta dos pés, jogando os braços ao redor
do meu pescoço, e cola a boca no meu queixo.
— Você sempre terá pleno acesso a nós. Te pertencemos, assim como
você nos pertence — um ronronar estranho explode em meu peito, e puxo
sua boca para se chocar na minha.
O beijo começa voraz, mas toma um rumo doce quando sinto seus
dedos brincarem gentilmente com os cachos da minha nuca.
Apesar do calor que não se apaga em nossas barrigas, estamos
satisfeitos sexualmente, e eu sei que não estamos precisando de uma foda
bruta agora, e sim de alimento.
Dou um passo pequeno para trás, liberando sua boca, e não consigo
me impedir de dar um selinho rápido no seu lábio inferior carnudo,
completamente encantado com o modo como ela me olha.
— Posso ficar com a camisa?
— Não — acompanho sua risada suave, meus dedos deslizando para
desfazer os botões. Abro os dois primeiros e, quando estou indo para o
terceiro, ela bota a mão em cima da minha, me fazendo erguer a
sobrancelha.
— Por favor. Eu quero ter seu cheiro perto de mim.
Como dizer não a um pedido desses?
— Mantenha os botões de cima abertos — digo só para ter a sensação
de que estou no controle, e ela se afasta, saltitando de alegria.
— Eu posso pegar o short também? — Dalton questiona e algo em seu
tom me faz encará-lo. Ele está olhando para o chão, a ponta do dedão do pé
brincando com uma das ranhuras da madeira.
Me aproximo dele e puxo seu queixo para cima. Me deparo com as
íris douradas cheias de ciúme.
— Você também quer um beijo, gatinho? — ronrono, enlaçando sua
cintura para que seu corpo cole no meu.
Os lábios se abrem e as pupilas dilatam.
— Eu... — ele hesita e lambe o lábio inferior. Demora alguns
segundos para tomar coragem e balançar a cabeça, confirmando. — Sim,
por favor.
Acaricio a pele amarela clara com cuidado, adorando quão suave ela
é, e beijo de levinho seus lábios. Este é um momento importante para
Dalton, dá para perceber.
Ele disse que nunca teve um homem dentro dele, e pelo modo como
reagiu quando o prendi na cadeira, acho que sente medo de desejar outro
homem.
Invado sua boca com lentidão, deixando que se acostume comigo.
Quando sinto seu corpo relaxar em meus braços, se moldando ao meu,
intensifico a pegada, sugando sua língua, brincando com ela.
Ele ofega e aproveito para aprofundar ainda mais o beijo, agarrando o
cabelo preto liso para forçá-lo na posição que quero.
Meu. Meu. Meu. A voz dentro de mim diz e quando me afasto de
Dalton, posso ver a mesma possessividade em suas íris douradas.
— Tudo bem, eu fico sem o short — murmura, as palavras saindo
ofegantes.
Beijo a ponta do seu nariz e o empurro para longe, na direção de onde
Felícia se sentou, nos observando com um interesse que me enerva.
Volto a atenção para a dispensa, como estava fazendo antes da voz
dourada surtar, e pisco confuso quando percebo quão bem estou enxergando
no escuro.
— Ao menos me deixe ajudar com alguma coisa — Dalton diz alguns
segundos depois, batendo o pé no chão, revelando sua agitação. Com o
canto do olho, vejo que não se sentou como eu esperava que fizesse, mas
sim ficou parado no lugar que o deixei.
— Não preciso de ajuda para encontrar os itens da minha própria
dispensa. Vá se sentar e descansar — ordeno, voltando a encarar as
prateleiras abarrotadas, agradecendo a Deus por eu ter feito uma compra
vasta, me preparando para a nevasca.
— Dalton não consegue deixar de ser prestativo. É o jeitinho dele —
Felícia revela, se erguendo da cadeira para se aproximar de novo.
É estranho como estou consciente da presença deles. É mais do que
apenas físico. Dois terços da minha alma agora pertencem a eles, e assim
como sinto suas emoções, também posso escutar alguns pensamentos. Eles
são fracos, quase um zumbido no fundo da mente, mas estão lá, me
enlouquecendo ao mesmo tempo que confortam.
— Posso fazer o almoço para nós. Sou uma boa cozinheira — diz,
colocando a mão no meu braço, a barra da camisa roçando meu corpo.
— Obrigada gatinha, mas eu mesmo irei cozinhar — rejeito sua
oferta, a sombra dourada em meu peito exigindo que nós que devemos
prover nossos companheiros.
Ainda não pensei muito afundo sobre o que significa isso. Estou
apenas aproveitando o quão bem me sinto perto deles. Alívio correndo por
minhas veias por conseguir me livrar dos demônios que me perseguem,
pelo menos por algumas horas.
Procuro inspiração entre os ingredientes que comprei, e quando vejo o
vidro do molho de soja e da sopa de molho Worcestershire, decido fazer
Estufado de Carne de Alce com Legumes, um prato bem reforçado para
repor as energias.
Deixo as embalagens em cima do balcão e fecho o armário, antes de
seguir em direção à geladeira. Abro rápido a porta e retiro a embalagem de
carne, assim como o saco com batatas e cenouras já cortadas e o pote de
aipo em conserva, não querendo desperdiçar o ar gelado, que mantém os
alimentos conservados.
Puxo a tábua de madeira do suporte onde fica pendurada e pego uma
faca afiada para diminuir o tamanho dos pedaços de carne. Após cortar,
pego a panela de pressão, uma das antigas de vovó que mantive guardada, e
ligo o fogo com a ajuda de um fósforo.
O fogo brilhante quase fere minha vista e boto a mão diante dos olhos,
protegendo-os da luz intensa. Após alguns segundos, eles se ajustam e bufo,
pensando no quão estranho é isso. Mas parando para refletir, o que nas
últimas 12h não foi estranho?
— Onde você aprendeu a cozinhar? — Felícia pergunta, desviando
meus pensamentos sobre a loucura que acometeu minha vida após a
chegada da nevasca.
— Minha avó que me ensinou, numa época em que vocês
provavelmente nem eram nascidos — brinco, agarrando a cebola que havia
deixado no canto da bancada quando separei os ingredientes, cortando-a em
4 pedaços grosseiros.
Jogo para dentro da panela e sorrio quando o cheiro da carne dourando
começa a preencher a cozinha, acordando o estômago do casal que me
observa com atenção. Eles se sentaram nas banquetas, em frente ao
mármore rachado da ilha que Dalton destruiu de madrugada, quando
conversava com o avô. Fiquei um pouco triste ao ver o estrago, pois sempre
tomei cuidado para modificar a casa o mínimo possível, mas o sentimento
se foi rapidamente quando me toquei que era só um pedaço bobo de pedra.
Minha avó não estava contida nele, e nem iria reclamar se eu trocasse.
Ela estava morta e nada iria mudar o triste fato de que eu fui o
responsável.
— Quantos anos você tem, exatamente? — é Dalton quem pergunta,
soando julgador, o que me faz rir.
— Eu que deveria fazer essa pergunta. Você ainda não tem pelos no
pau. Ao menos é legal? — provoco, me referindo ao casamento deles,
fazendo o gatinho resmungar.
— Temos 22 — Felícia responde, comprovando minhas suspeitas de
que eles têm mais de 18 anos, para serem casados.
— Sou velho o suficiente para ser o pai de vocês… — Caso eu os
tivesse tido na adolescência… Lembro com diversão do pavor que vovó
tinha de que eu engravidasse alguém aos 16 anos.
— Falei que ele tinha mais de 40! — Dalton grita, batendo no ombro
de Felícia, soando horrorizado.
Me sinto um pouco ofendido e rosno em sua direção, a névoa dourada
tomando conta do meu corpo e me obrigando a falar:
— Garoto, eu vou te dar uma surra daqui a pouco que vai realmente
te deixar sem andar!
Dalton arregala os olhos e abre a boca, mas qualquer palavra que fala
é abafada pela risada alta de Felícia.
— Ele com certeza age como um daddy — a garota brinca, cutucando
o marido, que está com as bochechas num tom de vermelho vibrante.
— Que horror, Felícia! — Dalton lhe dá outro tapa na coxa e sai da
cadeira, começando a andar de um lado para o outro.
— Relaxe gatinho, eu ainda não tenho 40. Faltam 2 anos para eu
chegar na melhor idade — falo para tranquilizá-lo, arrancando as cascas do
alho para picá-lo e jogar na panela, tentando ignorar a luxúria que senti ao
escutar Felícia me chamando de papai.
Esse relacionamento já está estranho demais sem acrescentar
fetiches!
— Você é 16 anos mais velho que a gente, então — ele faz as contas,
ainda não muito animado.
— Já percebi que você não é fã de age gap — murmuro, observando-o
se aproximar.
Ele dá uma espiada na comida e pega a colher de pau para mexer a
carne.
— Tira a mão da minha comida — estapeio sua bunda e ele pula para
longe, a colher voando pelos ares. Ela cai no chão com um baque, é
estranho como consigo ver as gotículas de sujeira que deixou na madeira.
Me agacho para pegá-la e, após passar uma água, me viro novamente,
vendo que Dalton voltou a se sentar.
— O que diabos é isso?
— Carne de alce. Não gosta? — franzo a testa, percebendo que nem
perguntei se eles comem, antes de começar a preparar.
— A gente gosta, mas estou falando desse age gap — responde, me
aliviando.
— É uma trope dos livros de romance, onde um personagem é bem
mais velho que o outro — explico, indo pegar outra panela para colocar as
batata e cenouras congeladas.
— Isso é um hobby seu? Ler livros de romance? — Felícia questiona,
e gosto do quão interessada em mim ela parece estar.
Já faz tanto tempo que não converso com uma pessoa diferente, que
até havia esquecido quão emocionante é o processo de conhecer alguém.
Nego com a cabeça, jogo água dentro da panela de pressão e a fecho.
Em seguida acendo outra boca do fogão, com a ajuda do fósforo, e boto a
panela com os legumes para aquecer.
— Eu li muitos deles no passado, numa tentativa ridícula de encontrar
respostas.
— Respostas? Para o quê? — Dalton pergunta, pura curiosidade na
voz.
— Para entender minha ex-esposa e manter nosso casamento.
Claramente, não deu certo — murmuro, fazendo um gesto vago com as
mãos.
Um silêncio estranho invade a cozinha e tiro os olhos das panelas para
encará-los. Me deparo com Dalton e Felícia me observando, ambos com a
boca aberta e caras de choque.
— O que foi? — questiono, tentando entender o que ocasionou a
sensação de irritação em meu peito. É uma pressão estranha, que puxa meus
músculos e me faz querer rosnar e arranhar alguma coisa.
— Você era casado? — a pergunta de Dalton sai por entredentes, e é
quando percebo que não sou eu sentindo raiva, e sim, eles.
— Com uma mulher? — Felícia completa, parecendo ainda mais
furiosa.
— Sim, eu era. Qual o problema? — cruzo os braços, apoiando o
quadril na bancada.
Vários segundos se passam antes de Dalton trocar um olhar com
Felícia e me responder.
— Não é nada. Só não estávamos esperando concorrência.
Ergo as sobrancelhas de surpresa ao entender que eles estão com
ciúmes.
A sombra em meu peito se regozija de felicidade e mordo a língua
para não sorrir com o quão bonitinho os dois ficam com biquinhos.
— Não há nenhuma concorrência. Meu casamento se encerrou há 8
anos, quando Cassandra decidiu fugir com meu melhor amigo no meio da
noite. Muito antes disso, para falar a verdade... — a confissão sai da minha
boca antes que eu possa me dar conta e esfrego minha barba, tentando
entender por que contei a eles algo tão pessoal.
Não há segredos entre companheiros. A voz animalesca dentro de
mim diz, causando um arrepio em minha espinha. E eles precisam saber,
para não ficarem se sentindo mal. Ambos são muito possessivos.
— Eu… sinto muito pelo seu casamento — Dalton diz, tentado ser
legal, mas é tão claro que é uma mentira, que não posso deixar de rir.
— Não sente não. — Sorrio ao negar, voltando a encarar a tábua de
madeira, para terminar de picar os aipos. — Mas não tem problema. Como
eu disse, isso foi há muito tempo.
O silêncio se estende na cozinha, pesado e carregado de emoções não
ditas. Os pensamentos de Felícia estão no fundo da minha mente,
pressionando e se contorcendo, me deixando mal do estômago.
Ela sai da cozinha alguns minutos depois e escuto o som dos ossos se
remodelando, indicando que se transformou no pequeno felino que vi no
closet. Sinto vontade de ir atrás dela, entender por que está chateada e
encontrar uma maneira de ajudá-la, mas decido dar um tempo para ela se
acalmar sozinha, sabendo que às vezes tudo que queremos é um pouco de
paz. Para evitar segui-la, pergunto a Dalton:
— Isso dói? — aponto em direção à porta por onde Felícia saiu.
— Só na primeira vez, mas é mais pelo medo. A gente passa a vida
toda escutando os ossos dos outros quebrarem, e isso mexe com a mente. —
Ele dá de ombros, passando a mão nos fios lisos para tirá-los de perto do
olho.
— E quando é a primeira transformação? — questiono, a voz dourada
dentro de mim sussurrando em minha mente que já sei a resposta.
— Aos 13 anos, normalmente no dia do aniversário.
Engulo em seco, flashes do acidente de carro tomando minha cabeça.
— Como vocês sabem que vão se transformar?
Dalton ergue os olhos dourados e os fixa nos meus, a testa franzida em
confusão.
— Não entendi sua pergunta.
— O que mostra que a transformação está prestes a ocorrer? Vocês
sentem desconforto? Dor? — largo a faca para esfregar a ponta dos meus
dedos, recordando como eles doeram naquele dia, vinte e cinco anos atrás.
— Na hora a gente sente os dentes descerem, então a gengiva coça —
ele puxa o lábio superior para cima, me dando uma visão melhor dos
caninos afiados. — Nascemos como humanos e, após a primeira
transformação, adquirimos as características mais animalescas, como a
visão noturna, que faz nossos olhos brilharem. Aprendemos a descer as
garras também — ele ergue os dedos e olho com espanto para as pontas que
ficam escuras e afiadas, as unhas se tornando longas e cortantes. Elas
somem tão rápido quanto surgiram.
— O que mais? — questiono, esfregando minha gengiva com a
língua, lembrando o desconforto que senti ontem, antes de morder Dalton, e
quando estava lambendo o pescoço de Felícia.
— Hum… não sei. Faz tempo que minha primeira transformação
ocorreu. — Ele esfrega o queixo, como se fosse um sacrífico se lembrar de
9 anos atrás. — Acho que senti dor no estômago, na hora. Muita gente se
desespera quando os órgãos começam a mudar, por isso é importante estar
num lugar isolado, pois o comum é a pessoa correr, tentando fugir. Muitos
acidentes podem ocorrer se o metamorfo se transformar no meio de outras
pessoas. Já houve casos até de mortes!
O desconforto em meu peito aumenta e me afasto da bancada,
sentindo meus pulmões lutarem por ar.
— Olhe as panelas para mim. Eu já volto — me obrigo a dizer antes
de sair correndo da cozinha, desespero percorrendo minhas veias enquanto
as últimas palavras de Dalton ficam martelando em minha cabeça.
“Já houve casos até de mortes! Já houve casos até de mortes! Já
houve casos até de mortes!”
Minha mão bate contra a maçaneta de uma das portas de vidro, que
revelam a floresta sendo castigada pelo vendaval, e só percebo o que estou
fazendo quando o vento congelante bate contra meu corpo seminu,
retirando o resto do meu ar.
— Está tentando nos matar? — a sombra dourada que me persegue
berra na minha mente quando ando para frente, afundando as pernas na
grossa camada de neve que se acumulou no chão.
Sei que não posso fugir de algo que está dentro de mim, mas ainda
assim, eu tento. Corro e tropeço na neve, meu coração disparado no peito,
as respirações ofegantes.
Olho o contorno da garagem, onde evito entrar desde que os
bombeiros deixaram a carcaça do carro lá dentro.
Meus pés parecem criar vida própria, me levando para encarar meu
pior pesadelo.
Não. Não. Não! Grito em minha mente, mas meu corpo não me
responde. Sou novamente uma marionete nas mãos da sombra dourada, que
me obriga a reviver coisas que preferia esquecer.
A porta de metal desliza para o lado com um rangido enferrujado
quando eu a empurro, revelando o interior sujo e escuro. Tento fechar os
olhos, virar a cabeça, qualquer coisa para não encarar o metal distorcido,
mas não consigo. Meu corpo é empurrado para a frente, os passos ecoando
pelo chão de concreto quando me aproximo.
Sinto as lágrimas deslizarem pelas minhas bochechas assim que paro
ao lado da porta traseira esquerda, e é como se meu coração se rasgasse
dentro do peito quando encaro a pequena cadeirinha cor de rosa,
permanentemente manchada pela água do rio que a engoliu e apagou o
verde dos olhos da minha garotinha.
— Por que está fazendo isso comigo? — questiono, a voz embargada
pelo choro quando minha mão é forçada a puxar a maçaneta para abrir a
porta. Um gesto tão pequeno, mas que eu não consegui fazer naquele dia.
Meu corpo parece pesar uma tonelada, como se a água do rio ainda
estivesse me pressionando, tomando meu fôlego, roubando de mim a pessoa
que mais amei no mundo. O peso da minha própria dor é demais para
suportar e caio no chão gelado, os joelhos ardendo ao se chocarem contra o
cimento áspero.
As emoções me consomem e escuto a sirene dos bombeiros junto com
a água correndo. Sinto as mãos me segurando, impedindo-me de voltar de
novo para a água, os gritos falando que não posso fazer mais nada.
— Ela se foi Orion! — Noah diz, forçando meu corpo para trás, as
mãos fortes me chacoalhando, tentando botar algum juízo em minha mente.
— Eu ainda posso salvá-la! — digo, a voz saindo falha por conta do
frio intenso que me percorre. Luto contra ele, uma raiva tão forte me
dominando que quase consigo escapar do agarre do Sargento.
— Filho, ela está lá embaixo há 20 minutos. Não tem como ter
sobrevivido! Só nos resta esperar os bombeiros retirarem os corpos e o
carro.
— EU NÃO VOU DEIXAR MINHA FILHA LÁ EMBAIXO! — berro,
desesperado para ver de novo os olhos verdes de Rosa. Ver minha
garotinha linda, que foi arrancada da cama no meio da noite.
Ela estava segura lá. Eu a botei para dormir, caralho! Coloquei o
cobertor em cima dela, dei o beijo na testa e disse que iria vê-la na manhã
seguinte. Que iriamos brincar na neve!
Eu preciso vê-la de novo. Eu preciso vê-la só mais uma vez!
Uma mão quente segura minha cabeça e pisco rápido, saindo do
tumulto das lembranças. Não estou na beira do lago, sendo segurado pelo
meu ex-sogro, mas sim na garagem da minha casa, Felícia em cima de mim.
Abro a boca, mas não sei o que dizer. As emoções continuam cruas no
meu peito, a dor forte demais.
— Está tudo bem, querido. Estou aqui. Me deixe te ajudar —
murmura, acariciando a lateral do meu rosto.
Sua voz suave é como um bálsamo calmante e me vejo hipnotizado
por suas íris douradas, que parecem levar embora, pouco a pouco, minha
dor.
Ela me dá um sorriso pequeno e gentilmente se senta no chão ao meu
lado, me ajustando para ficar com a cabeça no seu colo. Não diz mais nada,
mas nem precisa.
Sinto seu apoio. Sua força. Seu carinho.
Puxo respirações profundas, e quando minha mente se acalma, me
ajeito para ficar sentado ao seu lado. Ela sobe em cima de mim e solto uma
pequena risada, pois mesmo na forma humana, ela ainda age como um
gatinho dengoso.
— Você quer conversar? — questiona vários minutos depois, piscando
os enormes olhos dourados, que estão cheios de curiosidade.
Abro a boca para dizer que não, mas a pequena palavra trava em
minha garganta, pois me lembro de algo que o animal no meu peito disse
quando eu ainda estava dentro da casa: “Não há segredos entre
companheiros”.
Engulo em seco e, pela primeira vez desde o acidente, me permito
reviver o momento e tudo que lhe antecedeu, sem medo de ser dominado
pela tristeza, pois sei que Felícia está ali para me puxar, caso eu caia de
novo naquele buraco escuro e sombrio.
15

ORION
Oito anos atrás…

O garfo arranha contra o fundo do prato quando corto a salsicha de


carne de rena, o som enviando um flash de desconforto pela minha espinha,
que me faz ranger os dentes.
Tento controlar a raiva que desliza pelas minhas veias, pelo bem de
Rosa, que tagarela sobre seus amigos na escola e os planos para amanhã,
mas é difícil quando minha esposa parece sentir prazer em esfregar na
minha cara o chupão que o amante deixou no seu pescoço ontem de tarde,
quando ela mentiu que ia fazer as unhas no salão.
— O que você está olhando? — diz ríspida, cortando a fala da nossa
filha no meio, que arregala os olhos de surpresa com a grosseria da mãe.
Esfrego a língua nos dentes para me acalmar e abro um sorriso suave
antes de esfregar os cabelos castanhos de Rosa, um lembrete tanto para
mim, quanto para Cassandra, que ela está na mesa.
— A cor do seu esmalte. Eu adorei. — Puxo a taça de vinho e tomo o
último gole, sentindo uma satisfação perversa ao ver seu rosto ficar bordô
de vergonha quando encara as próprias mãos, sem uma única gota de
esmalte.
— Papai bobinho, a mamãe não tá usando esmalte! — Rosa ri e
Cassandra se remexe na cadeira, encarando o próprio prato.
— Não está princesa? Tem certeza? — ergo a sobrancelha, sorrindo
de verdade por causa da sua alegria ingênua.
— Claro que sim! Mostra pra ele, mamãe! — grita, mas Cassandra
finge não escutar, se levantando num rompante.
— Quer mais vinho, querido? — indaga, puxando com brusquidão
minha taça. O cristal bate dolorosamente contra meu ombro, mas não lhe
dou o gosto de saber que me machucou.
— Eu adoraria, amor — a última palavra escorre por meus lábios
igual veneno e, sem conseguir me parar, completo: — aproveita que o vinho
está diante do espelho e dê uma esfregada no seu pescoço. Tem uma sujeira
grudada na pele que não saiu com o banho.
Escuto a base de cristal bater na mesa e me concentro de novo em
Rosa, que está com as sobrancelhas franzidas.
— O que iremos fazer amanhã, minha princesinha? — pergunto para
tirar sua atenção da mulher desgraçada que, infelizmente, é sua mãe.
— Podemos fazer um boneco de neve? — os olhos verdes brilham de
empolgação e meu peito se enche de amor.
Cassandra pode ser uma maldita que inferniza minha vida, destrói
minha autoestima e diariamente faz eu me arrepender das escolhas que
tomei no passado, mas não posso negar que ela me deu o melhor presente
do mundo: minha garotinha.
— Claro, querida. Acho até que temos cenouras na geladeira para
serem os narizes.
— Não tem — Cassandra diz, se inclinando sobre meu ombro para
colocar a taça cheia de vinho diante de mim.
O corpo roça o meu e seu perfume marcante invade minhas narinas,
mas a única coisa que sinto é um nojo tão forte que me deixa nauseado.
— Usei para fazer o jantar — ronrona, passando a ponta das unhas
pela minha nuca, fazendo a bile invadir minha boca.
Encaro o prato de comida a minha frente, prendendo a respiração
para não sentir mais do seu perfume, e quase rio quando não vejo nenhuma
cenoura no meio dos legumes salteados.
A desgraçada fica do meu lado até meus pulmões arderem, então puxo
o copo para perto, para sentir o cheiro do álcool e não o dela. Engulo
quase que todo o vinho, precisando do álcool para não enlouquecer, e solto
um suspiro de alívio quando Cassandra se afasta, resmungando com Rosa
que ela tem que terminar seu jantar.
Quando coloco a taça na mesa, sinto minha cabeça leve e desfocada.
— Rosa, hora de ir pra cama — digo, vendo que ela não quer mais
comer, pois jogou o resto dos legumes para as laterais do prato.
— Você conta uma história para mim? — indaga ao se levantar. Vê-la
pular de animação faz meu estômago revirar.
Me ergo lentamente da cadeira, o mal-estar deixando meus membros
pesados. Encaro com nojo as salsichas que sobraram no prato.
— Jogue isso fora. Não estão boas — murmuro para Cassandra antes
de seguir atrás de Rosa, que correu para o seu quarto assim que respondi
“sim” a sua pergunta.
— Orion… — me chama quando estou quase saindo da sala de jantar.
Me viro para encará-la e, por um segundo, posso jurar ver
arrependimento em seu olhar. Espero ela pedir perdão pelo chupão. Pelas
mentiras. Pelo nosso casamento que fracassou após suas diversas traições.
Quase torço para que as palavras saiam de sua boca, um desespero voraz
me corroendo para consertar nosso relacionamento.
A única coisa que diz, porém, é:
— Não esqueça de mandá-la escovar os dentes.
Concordo rígido com a cabeça, me sentindo o mais idiota do planeta
por considerar que, por um maldito momento que Cassandra ainda poderia
virar a mulher que jurei para vovó que ela era…
— Se eu a tivesse escutado, teria me poupado de muita decepção —
resmungo, me arrastando pelos degraus, sentindo um cansaço tão profundo
que minha vontade é de deitar ali mesmo e tirar um cochilo.
Quando chego no quarto de Rosa, ela já está sentada na cama,
segurando um livro. Sorrio ao ver a pelúcia de onça ao seu lado, e desvio
dos diversos brinquedos espalhados no chão para me sentar junto a ela.
— O papai está exausto, amor, então vou ler uma história bem
curtinha, ok? — digo, botando a mão na boca para bocejar.
Passo as páginas do livro, procurando algum conto de fadas com
apenas uma página, mas mesmo quando acho, as letras parecem sair do
papel para dançarem na minha frente. Tento me concentrar, franzir os
olhos, virar o livro, mas não adianta.
Caralho, o que tinha naquela maldita salsicha para me fazer perder a
capacidade de ler?
Abaixo o livro e encaro minha menina, que está com a sobrancelha
erguida, esperando-me começar.
— Querida, será que eu posso ler amanhã para você? Estou tão
cansado que não consigo ler — confesso, soltando uma risadinha de pura
vergonha.
— Tudo bem, papai. — Ela bota a mãozinha quente na minha
bochecha e meu coração se desmonta quando sinto seu beijinho na ponta
do meu nariz. — Mas amanhã vou querer duas histórias.
Rio da sua esperteza e me levanto. Dou um beijo em sua testa e puxo
seu cobertor amarelo para cobrir todo o corpo.
— Te amo — escutou-a murmurar quando apago a luz central do
quarto e deixo apenas o abajur ligado.
— Também te amo, querida. Amanhã, eu prometo que vamos brincar
o dia todo e eu vou te contar três histórias — digo, acariciando seus
cabelos castanhos macios, com cheirinho de morango. — Também vou
comprar mais cenouras para os bonecos de neve.
Ela solta um murmuro suave de concordância, já sendo engolida pelo
sono.
Me afasto de maneira lenta, fazendo uma força hercúlea para ergues
os pés. Sinto como se tivesse cinco elefantes em cima de mim, e preciso ir
me apoiando nas paredes para chegar até meu quarto.
Ao passar pela porta de Cassandra, que está entreaberta, paro, pois
vejo duas malas grandes na beirada de sua cama.
Ela passa na frente da porta bem no momento e, ao me ver parado,
pula de susto, soltando um gritinho ao colocar a mão no peito.
— O que você está fazendo aqui?
— Eu moro aqui — murmuro, voltando a olhar as malas. Faço o
esforço de erguer o braço para apontar a bagunça na cama. — Está indo
viajar?
Cassandra encara as malas com os olhos arregalados, como se não
tivesse visto elas até o momento. Sinto um comichão no peito, uma voz
sussurra em minha cabeça, mas estou tão cansado que não dou
importância para o quão estranho ela está agindo.
— N-não. Estou separando umas roupas para a caridade — afirma,
ajeitando a postura.
Franzo a testa, confuso.
— E existe bondade dentro desse seu coração?
Cassandra ajeita a postura e avança em minha direção, o rosto
vermelho de raiva. Quase arranca a porta das dobradiças quando a bate.
Xingo a cretina assim que Rosa grita, acordando com o barulho
estrondoso.
— Desgraçada filha da puta, espero que sofra um acidente quando for
entregar as malditas roupas. O maior sonho da minha vida é me ver livre
de você — resmungo, voltando para o quarto da minha garotinha, para
tranquilizá-la.

Acordo com falta de ar, uma sensação horrível dominando meu peito.
Tento sair da cama e acender a luz, mas meus movimentos estão lentos,
meu corpo não conseguindo obedecer a meus comandos.
Caio no chão, o lençol se arrastando atrás de mim. Me ergo com
dificuldade, o coração batendo contra meus ouvidos, deixando minha
mente em polvorosa.
Não me lembro se foi um pesadelo que me deixou nesse estado, mas
decido sair do quarto e ir verificar Rosa, só para garantir que está tudo
bem.
Caminho pelo corredor iluminado pela lua brilhante, tendo que
segurar nas paredes, pois meus membros ainda estão pesados. Quando
chego na porta da minha filha, abro devagar, só para garantir que não irei
acordá-la. Demora um pouco para meus olhos se adaptarem na escuridão
do quarto e isso emite outro alerta em minha cabeça, pois tenho certeza de
que deixei o abajur aceso.
Bato a mão no interruptor de luz e o clarão me cega por alguns
segundos. Pisco para me livrar dos pontos brancos em minha visão e,
quando encaro a cama vazia, aquele pavor que senti ao acordar se
intensifica.
— Pare de ser louco, porra — rosno, tentando manter a mente sob
controle enquanto ando até o quarto de Cassandra. — Ela foi dormir com a
mãe. Teve um pesadelo, só isso — murmuro para mim mesmo, mas a
desculpa é falha e frágil, pois sei que Rosa nunca dormiu no quarto da
mãe.
Cassandra tem horror a compartilhar a cama com nossa filha, isso
desde que ela era um bebê recém-nascido.
Ainda assim, bato na porta dela e, após longos segundos de espera,
onde não tenho nenhuma resposta, forço a maçaneta. O rangido das
dobradiças envia um arrepio em minha espinha e, quando acendo a luz do
quarto, esperando ver as duas deitadas na cama king size que Cassandra
me obrigou a comprar quando decidiu que não iria mais dormir comigo,
apenas duas semanas após o nascimento de Rosa, encontro apenas o
colchão perfeitamente arrumado, como se minha esposa nem tivesse se
deitado.
Meus olhos correm pelo quarto, a procura das duas malas que a vi
mexendo mais cedo, e quando não as encontro, me curvo para vomitar, o
enjoo sendo forte demais para combater.
Ela não fez isso. Não pode ter feito! Repito em minha mente, correndo
para o térreo após regurgitar as malditas salsichas.
Meu pé escorrega no piso da cozinha e bato a barriga na quina de
mármore da ilha. A dor passa por mim, mas não me concentro nela, meus
olhos correndo para todos os lados, em busca de algum sinal de Rosa.
Encaro o relógio do micro-ondas, vendo que são 3h23 e decido que a
melhor opção é chamar a polícia.
Meu telefone ficou no quarto, então vou até o fixo. Quando o tiro do
gancho e escuto a linha muda, sinto um ódio assassino de Cassandra.
— Eu juro por Deus que na hora que eu botar as mãos em você, eu
vou te matar! — rosno, enxergando tudo vermelho.
Me viro para seguir até o andar de cima e pegar meu telefone, mas
uma sensação estranha me toma, e quando percebo, estou correndo para
fora da casa, seguindo o caminho até a ponte que leva até a estrada
principal.
A cada passo que dou, o pavor em meu peito aumenta. Só entendo o
motivo disso quando vejo a ponte destruída.
— Não… — a palavra escapa da minha boca quando sinto meu
coração parar.
Na beira do rio, está Cassandra, caída no chão, berrando a plenos
pulmões.
Rosa não está do lado dela.

— O carro caiu no rio e foi engolido pelas águas. Eu pulei atrás e


consegui chegar nele, mas a pressão não me permitiu abrir a porta para
salvar Rosa. Vi a minha menina se afogar, Felícia! — choro, apertando seu
corpo com mais força, como se ela fosse um bote salva-vidas.
A gatinha acaricia meus cabelos, me dando o conforto que preciso.
Quando as lágrimas se findam, sinto como se eu pudesse respirar direito
pela primeira vez em oito anos. Aquele peso sufocante tendo finalmente
sumido de cima do meu peito.
— Eu não consigo nem imaginar a dor que você está carregando
durante todos esses anos — sussurra, limpando com a ponta do dedo os
traços molhados que o choro deixou. — Sinto muito pela Rosa, Orion. Sinto
de verdade!
— Obrigado — sussurro, tocado por ver como ela parece se importar
com meu luto. — Nesses últimos 8 anos, não teve um único dia em que eu
não fui dormir, desejando não acordar mais — admito, brincando com o
botão da camisa que usa, para não ter que olhá-la nos olhos e ver seu
julgamento sobre como sou fraco.
— Orion, você não é fraco. Jamais pense isso de novo! — diz,
puxando meu queixo, me obrigando a encarar as íris douradas. A emoção
que vejo ali faz novas lágrimas invadirem meus olhos.
— Ontem foi a primeira vez que dormi sem desejar morrer, ou fui
assombrado por pesadelos — confesso, me sentindo tão bem em seus
braços, que é como se os sentimentos ruins retrocedessem em meu peito
diante da sua presença calmante.
Ela não diz nada em resposta, mas nem precisa. Sinto sua empatia e
compreensão.
Quando vários minutos se passam e eu me sinto recomposto, nos
erguemos do chão. Rapidamente vou atrás do gerador para fazê-lo
funcionar e quando a energia da casa liga, saímos da garagem de mãos
dadas.
Dou uma última olhada no carro destruído, antes de fechar a porta de
metal, e é curioso como ele não parece tão ameaçador quanto achei que era
nesses últimos 8 anos.
— A culpa não foi nossa, Orion — a sombra dourada diz, soando tão
melancólica quanto eu me sinto.
Ainda não acredito em suas palavras, mas com certeza não me sinto
mais como antes. Aquele sentimento arrebatador de dor e sofrimento foi
substituído por algo mais desbotado e latente, tudo graças a Felícia.
Não sei direito que magia ela fez, mas quando a vejo correr no meio
da nevasca, os cabelos ruivos se enchendo de flocos de neve, sorrio, tendo a
certeza de que essa mulher foi a primeira benção que Deus botou na minha
vida em muito tempo.
— Senhorita. — Faço um gesto com a mão, mandando-a entrar e fugir
do frio, e ela solta uma risadinha, aceitando meu convite com uma
reverência de brincadeira.
Sigo atrás dela e, quando estou fechando a porta, paro para admirar a
neve que rodopia no ar, antes de se acomodar no chão. Sorrio, pois tudo que
estava em cinza parece ter voltado a ter cor.
Admiro a vista, sentindo uma certa paz, mas o sentimento rapidamente
some quando percebo as pegadas que seguem em direção à cozinha.
As patas são pequenas e o animal esteve aqui há pouquíssimo tempo,
pois a neve ainda não apagou o rastro. Sei que não são de Felícia, pois as
pegadas dela estão na forma humana, tanto no momento que ela foi para a
garagem, quanto na hora que retornou comigo, e Dalton é grande demais
para combinar com o rastro que vejo.
Há duas trilhas, uma vindo e a outra voltando para a floresta. Um
arrepio me percorre, mas não tem nada a ver com o vento gelado.
Estou sendo observado.
— Orion, você não vai fechar a porta? — Felícia pergunta ao tocar
meu ombro, tirando minha atenção das árvores carregadas de neve.
Encaro seu rosto bonito, franzido de preocupação, e abro um pequeno
sorriso para acalmá-la, não querendo que sinta o quanto está raivosa a
sombra dourada em meu peito.
— Vou, sim, gatinha. — A empurro mais para dentro, antes que veja
as pegadas, e fecho a porta, o som da fechadura se encaixando ecoa pela
sala.
Dou uma última olhada para a floresta, antes de seguir para a cozinha,
e não sei dizer se são as últimas informações e lembranças mexendo com
minha cabeça, mas posso jurar que vi um par de olhos dourados me
encarando na escuridão.
16

FELÍCIA
Encaro Orion, que come em silêncio, os olhos desfocados, deixando
claro que está perdido em pensamentos. Ele não falou muito desde que
voltamos da garagem, mas até que o entendo.
O modo como ele descreveu para mim o relacionamento com a ex-
esposa, e como se sentiu quando não viu a filha na cama, me fez sentir
como se eu estivesse lá! Foi horrível sentir sua angústia e reviver suas
lembranças, e me doeu a alma saber como ele se sentia culpado pelo
acidente.
Apesar de agora ter mais informações para montar o quebra-cabeça
que é o meu novo companheiro, ainda tenho muitas perguntas, e o ciúme
que senti sobre sua ex-esposa ainda não se foi totalmente.
Sei que é ridículo. Eu deveria ficar satisfeita por ele estar conosco
agora, mas o animal em meu peito exige saber o que aconteceu com a
mulher que veio antes de mim!
— Ela morreu — Orion diz de repente, me fazendo pular da cadeira
de susto.
Tiro os olhos do prato de comida e o encaro, encontrando as íris
completamente douradas.
— O quê? — Dalton questiona, franzindo a testa.
— Felícia quer saber o que aconteceu com minha ex-mulher. Ela
morreu — explica, apontando com o garfo para mim. — Agora coma.
— Não estou com fome — murmuro, a mente rodopiando com
pensamentos. Me sinto horrível por estar satisfeita com o fato da ex de
Orion ter morrido e, apesar da informação ter aplacado uma das minhas
dúvidas, várias outras surgiram.
— Vou reformular a frase então. Coma, que eu respondo suas
perguntas — diz e, imediatamente, levo uma garfada de carne na boca, o
que o faz soltar uma pequena risada. — Você precisa de sustância, Felícia.
Não dá para engolir só porra e achar que ficará tudo bem.
— Apesar de eu concordar que ela deve comer, durante o cio nossos
corpos se desenvolvem para, de fato, conseguir sobreviver longos períodos
só com porra. Inclusive, isso dá muita energia — Dalton corrige Orion, e
engasgo com a comida, diante da cara de choque que o moreno faz.
— Meu Deus do céu… — murmura, negando com a cabeça,
espantado. — Vocês saíram de um filme pornô muito maluco. Não tem
outra explicação!
A risada que solto faz ambos me olharem, e me contorço com a
atenção repentina.
— Mais uma colherada e pode perguntar — Orion orienta e, enquanto
aprecio o sabor do caldo temperado, penso no que irei dizer.
Não quero que ele fique chateado por se lembrar do passado, mas a
curiosidade para saber como Cassandra morreu está me matando!
— Se você não quiser conversar, tudo bem, Orion — digo enquanto
cruzo os dedos embaixo da mesa, torcendo para que ele diga que está
pronto para nos contar seus segredos.
— Eu não quero conversar — meu estômago despenca ao escutá-lo e
rapidamente abaixo meu olhar para o prato, a fome sumindo de novo. —
Mas você quer, e eu acho importante vocês saberem mais sobre mim, se
vamos avançar nesse relacionamento.
Respiro fundo, o coração disparado soando contra meus ouvidos,
tamanha minha felicidade por saber que ele está cogitando avançar no
relacionamento!
— Ok, eu começo as perguntas então. Quem diabos é Cassandra? —
Dalton diz, fazendo Orion rir.
— É minha ex-esposa.
— E ela morreu?
— Graças a Deus que sim — ele não tem vergonha de dizer, e meu
marido o encara chocado.
— Ela era uma pessoa ruim?
— Para mim, era o próprio diabo usando salto alto — fala, se
recostando na cadeira. Ele cruza os braços sobre o peito largo, mas antes
aponta para mim e diz: — Continue comendo.
— Eu estou! — reclamo, enfiando o garfo na boca.
Vejo seus olhos se estreitarem em minha direção e a risada de Dalton
explode em minha cabeça.
— Está querendo entrar no grupo dos que andam com as pernas
abertas?
Mostro a língua para meu marido, o chamando de idiota, mas não
posso negar que a ideia não é tão ruim assim.
A verdade é que, além de estar com ciúmes da ex-esposa de Orion,
também estou com ciúmes do relacionamento que ele está criando com
Dalton. Sinto que a conexão e a química entre os dois é muito mais forte do
que a minha! Não quero me sentir assim, mas também não consigo evitar.
Orion já teve outra mulher em sua vida. Alguém que o traiu e machucou e
acho que é por isso que ele busca muito mais a atenção e o toque de Dalton,
do que o meu.
A cadeira do moreno range quando ele a força para trás, para se
levantar, e o observo vir em minha direção. Ele toma o talher da minha mão
e me puxa para cima, me fazendo ofegar.
Meu corpo se choca com o seu, o cheiro de canela e couro adentrando
meu nariz, fazendo o fogo do desejo se atiçar.
Quando Orion segura meu queixo e me força a encarar as íris
douradas, engulo em seco.
— Você é uma gatinha tão ciumenta… — ronrona, e meus joelhos
falham com a intensidade contida em sua voz. — Nem seu marido escapou.
— N-não estou com ci-ciúme — gaguejo a mentira, sentindo sua outra
mão deslizar pela minha cintura, colando ainda mais nossos corpos.
— Mentirosa — sussurra em meu ouvido e gemo alto quando
mordisca o lóbulo da minha orelha e dá um tapa forte em minha bunda. —
Vou te dar as respostas que tanto quer, Ninfeta, e depois morderei seu corpo
todinho, para você não ficar mais com ciúme do seu marido.
Minha mente desmancha com suas palavras e, quando ele me larga,
praticamente caio na cadeira, sem forças para me sustentar.
— Termine seu almoço. Enquanto estiver comendo, pode perguntar o
que quiser. Quando acabar, os únicos sons permitidos de saírem dos seus
lábios, vão ser gemidos e o meu nome.
Concordo rápido com a cabeça, pegando de volta meu garfo.
Ele anda lentamente até seu lugar, passando por trás de Dalton. Vejo
seu dedo deslizar pelo ombro do meu marido, que fica com as pupilas
dilatadas. Por estar sem shorts, sua ereção crescente fica muito óbvia, e
Orion solta uma pequena risadinha sexy quando encara o pênis semiereto.
Espero-o se sentar para começar meu questionário.
— Você disse que a Cassandra morreu, mas não foi durante o
acidente, né? Nas suas lembranças, ela estava na beira do rio e seca.
— Ela sobreviveu ao acidente porque saiu do carro antes de ele passar
na ponte.
— Por que ela saiu e Rosa ficou?
— Ela esqueceu algo e estava voltando para pegar. — O sorriso que se
estende por seus lábios demonstra pura dor. — A maldita pelúcia de onça…
Orion bufa e esfrega o rosto, seus movimentos são raivosos.
Não sei que pelúcia é essa, mas Dalton aparentemente sabe, pois a
imagem surge em sua mente e a capturo pelo laço.
— Aquela com a flor no pescoço?
Orion encara Dalton como se uma segunda cabeça tivesse crescido em
seu pescoço.
— Onde você viu a pelúcia de onça?
Me arrepio com seu tom de raiva e Dalton se ajeita na cadeira. O
clima da sala deixa de ser sexy para se tornar pesado e sufocante.
— Eu… acabei entrando no quarto e vi em cima da cama. Não sabia
que era o quarto da sua filha. Eu nem sabia que você tinha uma filha! —
explica, se remexendo sobre o olhar voraz de Orion. — Desculpe por
bisbilhotar. Não fiz por mal.
As narinas do moreno dilatam e escuto como o coração dele está
disparado. Orion cheira a raiva, medo e tristeza, e meu peito se enche de
empatia, pois vi o quanto sofreu com a perda da filha.
— Tudo bem — diz quase um minuto depois, mas é bem nítido que
nada está bem.
— Acho que está bom de conversa por hoje — murmuro, não
aguentando ver o quão esquisito ele se tornou conosco.
Me levanto da cadeira e pego o prato, ainda com um resquício de
carne e caldo, para levar até a pia. Mal dou dois passos e a mão de Orion
agarra meu braço, me impedindo de avançar.
— A gente só sai daqui quando você terminar de comer. — Ele me
puxa para que eu me sente em seu colo e pega o prato das minhas mãos,
botando de novo na mesa.
— Mas que fixação pelo caldo de carne é essa, homem? — resmungo
antes de ser obrigada a abrir a boca, para que ele me alimente.
— Fiz o jantar para os meus companheiros, e eles vão comer — rosna
e eu suspiro de choque quando a mão que ele apoiou na minha coxa se
transforma, as unhas afiadas fincando na pele.
O cheiro de sangue domina o ar, e sinto o animal de Orion se remexer
com mais força, o poder que ele emana, aumentando.
Dalton me encara com os olhos arregalados, e me lembro do que me
contou sobre a conversa com o avô.
— Não podemos deixá-lo se transformar! — diz em pânico, pelo laço.
— É claro que vamos querido. Inclusive, ficou muito bom —
mantenho minha voz suave enquanto acaricio a mão em minha coxa. —
Mas confesso que agora estou com vontade de algo mais… duro, se é que
me entende.
As garras se desprendem da pele quando Orion ri safado, e a mão
pressiona minha barriga, um dos dedos entrando pelo buraco dos botões,
encostando direto na carne.
— Você só pensa em sexo, gatinha — brinca, roçando o rosto na
minha nuca. O gesto me faz suspirar de satisfação e dou uma piscadinha
para Dalton, que praticamente desfaleceu em sua cadeira pelo susto.
— Tenho dois companheiros gostosos. No que mais eu deveria
pensar?
Ele deixa um beijinho no meu pescoço e se afasta, sem resquícios de
raiva em seu humor.
— Sim, você tem. É por isso que não deveria sentir ciúme. Eu já sou
seu.
Me desmonto com a declaração, os olhos se enchendo de lágrimas.
Ele puxa meu queixo, para que eu o encare, e acaricia a pele suavemente, os
olhos dourados demonstrando cuidado e carinho.
— Só para que não fique mais nenhuma dúvida nessa sua cabecinha
bonita: Cassandra morreu com uma bala na cabeça, pois não conseguiu
lidar com a perda de Rosa e de Oliver, o seu amante. Era ele quem estava
dirigindo o carro e, por estar bêbado, confundiu o acelerador com o freio.
Pelo menos foi isso que a perícia disse. — Ele dá de ombros, sua voz
soando sem sentimentos. — A morte dela aconteceu poucas semanas após o
funeral e eu, inclusive, cheguei a ser investigado, pois deixei claro que
desejava matá-la por fugir no meio da noite.
— Mas foi você que matou? — Dalton indaga, tão chocado quanto eu,
com o rumo que a história tomou.
— Não tive a oportunidade, infelizmente. — Estala a língua, os olhos
dourados brilhando com mais força, deixando claro que é o alfa falando,
não o humano. — Ela usou a arma do pai, que é Sargento Militar, para se
matar. Eu estava em Anchorage na época, fui dispensado do exército por
causa da depressão, então Noah não conseguiu me condenar por homicídio,
mesmo querendo muito.
— Quem é Noah?
— Meu ex-sogro, e também, ex-chefe. — Ele dá outro daqueles
sorrisos cheios de mágoa e observo, embasbacada, o azul se mesclar com o
dourado em suas íris. — Você tem mais alguma dúvida, Felícia?
Nego com a cabeça, sem palavras diante das novas informações.
— Ótimo, então agora são vocês que vão me responder algumas
coisas — diz, apontando para Dalton, que ajeita a postura na cadeira. —
Quem ousou marcar meus companheiros?

DALTON
Felícia perde o fôlego diante da pergunta de Orion e começa a se
remexer para tentar sair do seu colo.
Ele endurece o aperto em sua pele, os olhos brilhando num dourado
profundo e, antes que eu possa falar ou fazer qualquer coisa, sinto minha
cabeça começar a rodar, diante do barulho sedutor que sai do seu peito.
Ele está usando o ronronar de transe!
— O que é isso? — questiona, me encarando.
— É um dos poderes que o alfa tem, para controlar os betas e os
ômegas. — As palavras se formam em minha boca contra minha vontade, e
começo a me sentir sufocado por não ter controle das minhas ações.
— Você está com medo de mim, por quê? Acha que eu lhe faria mal,
companheiro? — Orion ergue a sobrancelha e nem tenho a oportunidade de
mentir, pois ele continua ronronando suavemente.
— Você tem poder suficiente para fazê-lo, caso queira.
— E você acha que eu quero?
Pisco, sem saber a resposta.
Orion pode me machucar, mas eu não sei se ele quer. Meu leopardo se
sente tranquilo perto dele, principalmente depois de ter recebido a mordida
ontem à noite. Não tenho medo de que ele nos fira estando consciente.
O problema é se ele perder o controle, como vovô falou. No breve
segundo que se irritou, agora pouco, já senti um pavor cegante, pois sei que
não sou páreo para lidar com ele, e com o transe que aprendeu a exercer,
agora, sim, sou inútil contra o alfa.
— Mas por que você iria querer lutar comigo, gatinho? — pergunta,
só me deixando mais confuso.
— Eu… não sei.
— Se não consegue pensar no motivo da brigar, então por que está
preocupado em vencê-la?
— Não sei — repito, me sentindo um idiota.
— Bom, eu tenho um palpite — ele ajeita Felícia em seu colo, que
está mole igual uma gelatina. O ronronar a atinge de uma forma diferente,
atingindo suas partes emocionais, pois sua lince já é naturalmente submissa.
— Você dois foram feridos e isso criou uma marca em você.
— Tá mais para várias marcas. — Forço uma risada, esfregando uma
das cicatrizes que tenho no braço. Só quando faço o gesto que percebo que
não estou mais sendo controlado.
— Não falo das cicatrizes externas. Você tem medo de confiar em
mim e acabar se machucando.
— Não tenho uma boa experiência com alfas. — Dou de ombros,
sentindo as emoções a flor da pele.
— Foi um alfa que deixou essas marcas em vocês?
Concordo com a cabeça, desviando os olhos para as minhas mãos. Seu
ronronar volta a aumentar e minha cabeça se ergue de novo para encará-lo.
— Ontem, você disse que meu poder era parecido com um tal de
Bethal. Ele é o alfa que te feriu?
— É o meu pai — Felícia quem responde, nem o ronronar de Orion
sendo poderoso suficiente para superar a raiva que ela sente do genitor. —
E sim, ele é um alfa. O mais poderoso do extremo Noroeste dos Estados
Unidos. E faz parte do conselho dos shifters, infelizmente.
— Por que isso é ruim?
— Ele é um tirano invencível, falando de modo resumido — explica, a
voz cheia de desgosto.
A mão de Orion adentra por baixo da barra da camisa que Felícia está
usando, e vejo que sobe por suas costas. Imagino que toque a cicatriz que
minha mulher tem nas costas, pois Felícia se encolhe e solta um
choramingo.
— Por que é um T? — questiona, franzindo a testa.
— Sou uma traidora. Desobedeci a suas ordens e o fiz quebrar uma
promessa, trazendo dificuldades ao meu bando, por isso ele me marcou. É
um aviso para os outros alfas, para saberem que eu não sou uma boa ômega
e não presto para se ter por perto. — As palavras de Felícia demonstram
toda a dor que ainda sente pela atitude do pai.
Foi difícil para mim lidar com a punição diante da alcateia, mas para
ela, que cresceu e era adorada pelas pessoas, foi uma humilhação muito
pior! E o pai dela queria humilhá-la, tanto que a marcou com um T gigante
nas costas, que sempre será visto quando ela for se transformar. A marca é
visível até quando está na forma de lince, mas os pelos ruivos longos ao
redor, cobrem a área, disfarçando.
— Por que você acha que não é uma boa ômega? — Orion puxa o
rosto de Felícia para que ela o encare, e limpa com suaves as lágrimas que
começaram a escorrer pelo rosto da minha mulher.
— Se eu fosse, ficaria s-satisfeita com o que vocês estão me dando,
mas quero mais — confessa, gaguejando por causa dos soluços.
Meu coração se aperta por vê-la chorar.
— O que você quer, exatamente?
— Eu quero tudo, e isso é o problema! — ela se desmancha em
soluços altos e sua angústia chega até mim pelo laço.
Puxo minha cadeira para perto deles e boto minha mão em suas coxas,
querendo que saiba que estou ali, igual ela fez ontem à noite.
— M-minha função é servir, me dedicar aos outros, mas tudo que
ando fazendo ultimamente é procurar m-meus próprios interesses — diz,
gaguejando as palavras. — Fiquei com Dalton porque o a-amava, mesmo
sabe-endo que se não me casasse com Taiga, o contrato que meu pai fez
com ele, para ma-manter a paz, seria desfeito. Ago-gora, eu quero mais
atenção do que vocês estão dispostos a me dar. Não estou satisfeita, mesmo
que vocês estejam. Isso é errado!
— É isso que você acha, amor? — estou horrorizado por minha
esposa estar contendo os sentimentos dessa maneira, por achar que deveria
servir a nós.
Sempre soube que ela tinha algumas ideias extremas em relação a sua
posição como ômega, mas não pensei que isso interferia tanto assim em sua
vida!
— Primeiro de tudo, sua função não é servir. Você não é uma
empregada ou serviçal. Você é uma mulher adulta, forte, amorosa, gentil e
capaz — Orion afirma, a voz cheia de poder, não permitindo dúvidas. —
Segundo, você não está sendo egoísta por querer atenção e cuidados. Isso é
seu direito como nossa companheira, Felícia. Se você sente que não está
recebendo o que deve, então você conversa conosco. Um relacionamento
não funciona com ocultações e mentiras! Entendeu?
Ela concorda com a cabeça, a boca entreaberta para respirar. Seu
corpo treme, revelando todas as emoções que lhe percorrem.
— E só para deixar claro, você também não é uma traidora. O que seu
pai fez, de marcar você apenas por seguir seu coração e se casado com a
pessoa que ama, é horrível e vergonhoso. Só deixou claro que ele não é uma
pessoa digna de carregar o título que tem — rosna, e o ódio que vejo em
seus olhos, quando os ergue rapidamente para me encarar, me deixa
arrepiado.
O poder desliza por seu corpo, chegando até o meu por conta do laço,
e meu leopardo geme no lugar onde está escondido, mostrando a barriga em
submissão.
— Você disse que ele é um tirano invencível? — Felícia concorda
com a cabeça, encarando o pescoço de Dalton, pois o poder no seu olhar é
demais para lidar. Ele a força a enfrentá-lo, porém, colocando o dedo no seu
queixo. O sorriso que está em seus lábios faz até minha mente desmanchar.
— Ninguém é invencível, gatinha.
Quando Orion me encara, percebo que não adianta mais me manter de
cabeça baixa, como vovô orientou. O alfa já está na superfície, e parece já
ter definido sua próxima caçada.
17

FELÍCIA
A mão quente de Orion pressiona minha coxa, e o peso dela é tão
reconfortante e gostoso que não consigo parar de ronronar.
Já estamos nessa posição há quase duas horas, descansando no sofá
cinza enquanto conversamos e, apesar de eu me sentir feliz e até aliviada
por confessar o ciúme dos meus companheiros, ainda me sinto um pouco
sensível e mexida.
Passei a vida toda escutando palestras dos meus pais sobre como ser
uma boa ômega e, apesar de ter decepcionado eles quando me casei com
Dalton, decidi que faria meu melhor para ser boa agora. Ainda podia fazer a
deusa da lua ter orgulho de mim!
Tentei me manter sobre controle, fingir que não estava sentindo essa
emoção horrível, mas ela foi se acumulando no meu peito até se tornar
insustentável mantê-la em segredo.
Agora, Dalton e Orion sabem, e eu me sinto tão humilhada!
Eles fingem que está tudo bem, mas é óbvio que não está. Orion nem
cumpriu a promessa que fez na cozinha, sobre me marcar!
Estou tentando não cismar com isso, deixar as coisas acontecerem
naturalmente, mas a cada segundo que passa, mais angustiada fico. E se ele
não me reclamar, apenas a Dalton?
Ele já fez uma parte do vínculo comigo, é verdade, mas com meu
marido já foram duas partes, e eu não quero ficar para trás!
Será que eu falo? Eu tenho coragem de exigir? Decido prestar a
atenção na conversa deles, para ver se surge uma oportunidade de eu
relembrar o vínculo.
— Então vocês sentem esse tesão absurdo todos os anos? — Orion
pergunta, e preciso me conter para não pular de animação com minha sorte.
— O cio vem no inverno, normalmente no final de dezembro, início
de janeiro. Dura de 5 a 20 dias — Dalton murmura, balançando a mão para
fazer o sinal de mais ou menos.
Ele está deitado do outro lado do sofá, e os pés gelados estão apoiados
na minha coxa, bem ao lado de onde está a mão de Orion.
— Vinte dias trepando igual coelhos? Vocês dois vão ser o motivo da
minha morte — seu resmungo me faz rir, e ele me abraça mais apertado,
seu perfume intenso fazendo minha mente rodar.
— Ninguém morre por transar demais — respondo, e minha
respiração acelera quando sinto a ponta dos seus dedos subirem por minha
pele até roçarem a borda dos meus grandes lábios.
SIM! ISSO MESMO!
— Quando se tem 20 aninhos, com certeza não morre, Ninfeta. Mas
eu já tenho quase 40, para a profunda infelicidade do seu marido — zomba,
fazendo Dalton corar, continuando sua exploração por meu sexo. — Não é
comum meu pau ficar ereto tanto tempo.
— Você é um shifter, 40 anos não é nada. Está no pico da sexualidade
— murmuro, soltando um miadinho quando ele separa os lábios da minha
boceta e acaricia o interior dela, subindo o toque até roçar no meu clitóris.
O toque é leve, apenas uma provocação, mas me incendeia e faz minha
mente girar.
— Os shifters vivem mais tempo? — questiona, e leva alguns
segundos até eu entender suas palavras.
— Normalmente vivemos o dobro dos humanos. Cerca de 160 a 200
anos — Dalton responde e mordo os lábios quando o vejo se erguer para
engatinhar na nossa direção. Ele bota o rosto no centro das minhas coxas, e
me remexo quando sinto a respiração dele lá embaixo. — E pela nossa
experiência como vizinhos do Yukon, tem homens muito mais velhos do
que você que passam o inverno inteiro fazendo a companheira berrar.
Seu nariz toca meu monte de vênus, e aperto os dedos dos pés, o
desejo se acumulando em minha barriga para que ele me lamba logo.
— Senti muita inveja de Wasilla no inverno passado — admito,
gritando em seguida quando Dalton morde forte minha coxa, bravo com
minhas palavras. — Não foi uma crítica a você!
Orion ri atrás de mim e usa a mão, que estava apoiada em minha
cintura, para esfregar o lugar onde meu marido mordeu, aliviando as
pontadas de dor. O fato da sua outra mão continuar se mexendo em meu
sexo faz minha cabeça ficar anuviada.
— Dalton não te satisfez o suficiente no ano passado, Ninfeta? —
questiona em meu ouvido, soando brincalhão.
Seu dedo pressiona mais fundo em minha boceta, e agarro seu pulso,
sem ter certeza se é para fazê-lo ir mais fundo, ou pará-lo.
Deixo de sentir a respiração de meu marido na pele e vejo que se
afastou, o rosto tomando de tristeza. As palavras de Orion não foram uma
crítica a ele, mas ainda é um assunto muito sensível para Dalton.
Quando Orion percebe o clima tenso, retira os dedos de dentro de
mim, encerrando a brincadeira sexual.
— O que foi?
— Não consegui entrar no cio no inverno passado. Foi por isso que
senti inveja de Wasilla — explico, puxando a mão que Dalton colocou no
meu joelho para entrelaçar nossos dedos.
— O sexo só ocorre durante o cio?
— Não, mas é um momento muito importante para fortalecer o
relacionamento — Dalton diz, soltando um suspiro. — Reforça os laços e
aumenta nosso amor e desejo um pelo outro, algo que se mantém durante o
resto do ano.
— Também é o único momento em que o corpo da mulher fica apto
para gerar as crianças, por isso tem o ditado: com a neve vem o cio, e com o
cio, os bebês — digo, e Dalton sorri com meu tom de voz esperançoso.
Se tudo der certo, daqui a alguns dias estarei com nosso bebê na
barriga!
— Nunca ouvi isso antes — Orion resmunga, e quando olho para seu
rosto, vejo que as sobrancelhas estão franzidas.
— É um ditado shifter, bem comum nas regiões onde o inverno ocorre
em janeiro. De modo mais abrangente, o cio sempre chega no começo do
ano, como Dalton já falou.
— Esta é a razão para todos os shifters nascerem em outubro — meu
marido tenta aliviar o clima, soltando uma risadinha. — Aí em janeiro já
estamos prontos para botar mais um rebento na barriga delas.
— Você é um imbecil. — Chuto de leve seu peito e grito quando ele
agarra meu membro e o mordisca, arrastando a língua áspera pela minha
carne.
— Mas não é verdade, meu amor? — questiona, erguendo as
sobrancelhas de um modo que faz minha boceta pulsar.
Orion agarra minha cintura com mais força, me impedindo de ir para
frente quando Dalton puxa. Resmunga uma ordem para nós dois pararmos.
Quando me volto de novo para ele, vejo que seu rosto ficou ainda mais
fechado.
— Eu não nasci em outubro, foi em julho. — Fico momentaneamente
confusa, até minha mente se lembrar da conversa anterior.
— Isso é impossível. O corpo da mulher shifter só fica propenso para
gerar em janeiro e é muito raro uma criança nascer prematura de 5 meses e
sobreviver. Eu nunca ouvi falar sobre isso — meu marido responde, se
sentando no chão para ficar mais confortável.
Um silêncio estranho domina o ambiente e vejo os olhos de Orion
desfocarem. Ele fica perdido em pensamentos por vários minutos e flashes
do rosto de pessoas que parecem familiares invadem minha cabeça.
Dalton entende primeiro do que eu, que são os rostos dos pais do
nosso companheiro.
— E se minha mãe não fosse shifter? Eu só lembro do meu pai ter
olhos dourados — Orion murmura vários minutos depois, a voz cheia de
saudade e dor.
— Não sei se isso é possível… — respondo, tentando me lembrar de
qualquer menção a mestiços nos livros da biblioteca do meu pai.
Relacionamento com humanos são proibidos, principalmente porque
eles são incompatíveis com os metamorfos. Somos selvagens demais para
eles e perdemos o controle de nossas forças rapidamente. Às vezes me
machuco quando Dalton perde a paciência, mesmo sendo uma shifter puro-
sangue, não posso imaginar como uma humana iria aguentar!
— Mas explicaria por que seus olhos ficam mudando de cor. Você
seria a mistura de dois DNAs muito diferentes — digo, numa tentativa de
animar Orion, que está com o humor cada vez mais fechado.
— Posso ligar para o meu avô e perguntar se ele sabe. — Dalton
começa a se levantar, sentindo o mesmo desespero que estou sentindo, pelas
emoções voláteis do alfa.
Apesar de eu querer ajudar Orion a ter as respostas que busca, impeço
meu marido de sair do chão.
— Acho muito arriscado, amor. A Miranda já deve ter contado para o
meu pai sobre a ligação de Orion. Ele vai cair em cima da sua família,
esperando que você quebre as regras! — o lembro, não querendo nem
pensar no que Bethal poderá fazer ao vovô Jargal. Ele já retirou seu posto
como ancião e expulsou vovó Enali e Dona Naran do templo das
curandeiras.
— Droga, é verdade. — Ele empurra os fios pretos para fora do rosto,
mordendo o lábio inferior enquanto tenta pensar em outra solução.
— A sombra dourada me disse que é isso mesmo. Só meu pai era um
shifter — Orion resmunga, esfregando o centro do peito.
Troco um olhar com meu marido, e as dúvidas que surgiram ontem
retornam a minha cabeça.
— Você falou dessa sombra ontem. O que é?
— Vocês que deveriam me dizer, não? Ela fica me dizendo o que
fazer. — Ele ergue a sobrancelha, formando um sorrisinho no canto do
lábio.
A ideia de que ele está fazendo algo porque está sendo “controlado”,
faz meu estômago torcer e chego a sentir ânsia de vômito por pensar que
nosso companheiro não está conosco porque quer.
Tento não focar nisso, jogar para o fundo da mente e me concentrar na
conversa, lembrando que é impossível um alfa ser controlado, mas o
pensamento angustiante fica pairando nas bordas da minha consciência, me
enlouquecendo.
— Ela realmente fala com você, ou é mais um sexto sentido, onde
você advinha que deve fazer algo? — Dalton pergunta.
— Não, é uma voz que fala na minha cabeça. Parece outra pessoa. Às
vezes até domina meu corpo e me faz fazer coisas que eu não quero, como
ir na garagem. — Acaricio seu braço, uma tentativa mista de lhe dar forças
e não surtar.
Ele está sendo dominado. Não se importa de verdade conosco. Vai ver
o Orion de verdade nem sabe que estamos aqui!
Me lembro de como gritou, ontem à noite, sobre não nos conhecer, os
olhos completamente azuis. E se for verdade? E se estivermos conversando
e nos relacionando apenas com essa tal sombra, e não com nosso
companheiro de verdade?
— Acho que nosso companheiro é doido — Meu marido diz pelo laço,
brecando a profusão de pensamentos angustiantes.
Percebo que está tentando não demonstrar quão assustado está.
— Será que existe alguma planta que possamos dar para curá-lo e
eliminar a tal sombra? Os remédios humanos não dão muito resultado em
nós — respondo enquanto penso nas plantas curativas que conheço,
desesperada para livrá-lo do que seja lá que esteja o dominando.
— Não sou doido e nem preciso de planta nenhuma! — Orion rosna,
me arrancando do seu colo enquanto se levanta. Ele me deixa em cima do
sofá e começa a andar pela sala, esfregando a mão nos cachos castanhos.
Seu rosto está torcido de raiva, a emoção intensa saindo dele em ondas,
fazendo nossos animais se agitarem.
É isso que me faz perceber o que pode ser essa tal sombra.
— É O KAYLAK DELE! — grito, encarando meu marido com os
olhos arregalados de animação, uma sensação de alívio tão forte me
percorrendo que quase perco o ar. — Se o shifter ficou preso durante 25
anos, ele pode ter aprendido a falar para ver se conseguia se libertar!
— É o espírito de um animal, Felícia. Animais não falam — Dalton
responde lento, como se fosse eu a louca.
— Falam sim! A gente consegue se comunicar com o alfa do bando,
na forma animal, quando é uma emergência — relembro, me erguendo para
se aproximar de Orion, que parou no meio da sala, perto da lareira, e nos
encara com os braços cruzados. — Os alfas têm a habilidade de entender os
animais, e Orion é um alfa. — Aponto para seus olhos, que estão brilhando
num dourado intenso. — A relação dele com seu felino pode ser diferente
da que tenho com minha lince, e você com seu leopardo — completo,
olhando para meu marido, que ainda não parece muito convencido.
— O que é um kaylak? — Orion pergunta, suas íris rodopiando entre
dourado e azul, como se estivesse numa batalha entre o humano e o shifter.
Isso ainda me deixa um pouco receosa, mas então me lembro que o
kaylak faz parte do humano. Não dá para existir um sem o outro. Não nos
shifters, pelo menos, então o homem com quem estamos nos relacionando
com certeza é Orion. Uma versão selvagem e livre dele, mas ainda é ele…
— Não é um kaylak, e sim o kaylak. É a energia dos animais dentro de
nós. É por causa disso que podemos mudar de forma, sem perder a
consciência humana. Normalmente eles não falam conosco, mas podem
mudar nossa forma de agir se ficarem desregulados. — A explicação deixa
tudo ainda mais claro na minha mente.
Orion sente que não tem o controle das suas ações, provavelmente
porque o animal dele está descontrolado. Se ficamos muito tempo na forma
humana, isso começa a nos enlouquecer. Orion passou anos sem se
transformar, a energia dentro dele deve ter se acumulado, e com o poder que
tem, pode ter virado quase que uma consciência separada.
— Felícia, isso não é possível! — Dalton diz num tom carinhoso,
escutando os pensamentos em minha cabeça. Ele se aproxima de mim com
passos lentos, como se temesse que eu ficasse irritada. — É mais fácil ele
ser maluco do que, de fato, conseguir conversar com o animal dele, que
criou uma consciência própria. Ninguém é tão forte assim!
— Garoto, você realmente quer ficar sem andar. — O rosnado de
Orion pega nós dois de surpresa e vejo o momento em que ele agarra a nuca
de Dalton e o puxa em sua direção, os corpos se chocando com força. —
Você me deve um pedido de desculpas por não acreditar que eu seja forte o
suficiente para adquirir uma habilidade dos humanos.
Ele segura firme o queixo do meu marido, não permitindo que se
afaste. Os poderes que deslizam pelos laços são tão fortes, que não deixam
um pingo de dúvidas que é a pura versão do alfa na nossa frente.
— D-desculpe — ele gagueja ao dizer, e Orion ri de um modo que faz
um arrepio percorrer minha espinha.
— Não desculpo — ronrona, empurrando Dalton para longe, que se
choca na parede e fica lá, os olhos arregalados e a boca aberta em choque.
Sinto a atenção do alfa em cima de mim e abaixo a cabeça no automático,
lhe dando minha submissão, algo que lhe agrada, dado o rosnado de prazer
que solta. — Venha aqui, Ninfeta. Você tem sido uma gatinha muito boa.
Merece seu presente.
Sigo até ele, tremendo num misto de animação com ansiedade, aquela
chama do cio, que ele havia alimentado mais cedo quando começou a me
tocar, retorna.
É agora? Será que vai me dar a mordida?
Orion desliza o dedo pelo meu ombro, coberto por sua camiseta
branca e contenho um gritinho quando puxa o tecido de uma vez, que se
rasga com um barulho alto e estrondoso. Dói um pouco a pressão que o
pano faz contra o corpo, mas a dor é rapidamente esquecida quando o vejo
lamber os lábios, uma expressão de pura fome em seu olhar.
— Você já jantou, então acho que é hora da sobremesa. Fique de
joelhos, que eu vou te dar algo especial para degustar — solto um
miadinho quando agarra meus cabelos, assim que me boto de joelhos, um
misto de animação com tristeza, pois, apesar de querer lamber Orion, não
era exatamente isso que eu estava esperando agora…
O desejo de Dalton, que está vendo tudo de longe, passa por mim e
quando viro o rosto para olhá-lo, vejo que ostenta uma ereção maciça.
Orion também olha e a risada que solta, junto com a carícia embaixo
do meu queixo, me deixa todinha mole.
— Ontem você estava desejando estar no lugar dele, agora ele que
vai desejar estar no seu. Puxe meu short para baixo e pegue seu doce,
Ninfeta.
Minhas mãos tremem quando as ergo até o cós do short preto de
tactel, que desce sem nenhum esforço pelas suas coxas fortes, revelando o
pênis ereto, erguido no meio de uma pequena camada de pelos bem
aparados, uma mistura de preto com cinza que me deixa aguando.
— Você foi uma menina tão boa, se submeteu desde o primeiro minuto
a mim, então deixarei você escolher o que quer. É só pedir que será seu.
Minha companheira.
Ouvi-lo me chamar de companheira, enquanto acaricia meu rosto, me
olhando com tanto cuidado e reverência, enche meus olhos de lágrimas.
— Será que… — as palavras travam em minha boca uma parte minha
se sentindo péssima por ousar pedir.
Respiro fundo, tomando coragem, e com suas palavras em minha
mente, sobre isso ser o meu direito como companheira deles, faço o pedido
que tanto desejo:
— Você pode fazer amor comigo e me morder?
18

ORION
Encaro Felícia, que está de joelhos na minha frente, o rosto escondido
pelos cachos ruivos bagunçados. Seu corpo bonito está tremendo e, por
conta do laço, sinto seu medo pela minha reação.
Ela acha que não estou preparado para escutar a palavra amor, por
causa do meu ex-casamento e da filha que perdi, e também se sente culpada
por estar exigindo a mordida.
Enquanto estava deitada em meu peito, escutei alguns dos seus
pensamentos, mas preferi não dizer nada, para deixá-la processar as
próprias emoções.
O passo involuntário que dei quando escutei seu pedido não foi de
repulsa, e sim, uma mistura de choque com orgulho.
Apesar de ter falado sobre avançar no relacionamento, não posso
negar que acho que tudo está indo muito rápido, sendo intenso e profundo
demais.
Sinto uma necessidade feroz de manter os dois do meu lado, seguros e
satisfeitos, muito disso vindo da sombra dourada em meu peito, que só sabe
ronronar de felicidade por ter achado os companheiros. Mas, parando agora
para pensar, o que sinto não vem só desta coisa dentro de mim. Ele não está
manipulando meus sentimentos, como a gatinha pensou, algumas horas
atrás.
Felícia e Dalton me fazem bem!
Eles me tiraram do meu casulo de solidão. Me forçaram a sentir mais
do que apenas dor e saudade. Faz menos de dois dias que os conheci, mas
eu fiquei mais feliz nessas poucas horas do que nos últimos oito anos!
Volto a me aproximar dela, tocando com cuidado o ombro nu,
adorando a sensação da pele macia. Me ajoelho na sua frente e deixo um
beijo ali, respirando seu perfume gostoso, que mexe comigo de um jeito que
nada e nem ninguém conseguiu.
— Vai ser a maior honra da minha vida, gatinha — sussurro contra seu
ouvido e o pequeno soluço de alívio que solta aperta meu coração.
A levo de volta para o sofá, desta vez abrindo-o em toda sua extensão,
para que vire uma cama de casal. Decido atiçar um pouco mais o fogo,
sentindo que o calor tornará o momento mais romântico.
— Posso fazer isso. — Dalton toca meu ombro quando me ajoelho
diante da pilha de madeira que havia reposto ontem, após a sessão de
masturbação relâmpago na cozinha.
Deus, parece que foi dias atrás!
— Pode deixar que eu faço. Não estou tão velho para não conseguir
acender o fogo — zombo e um vermelho bonito toma suas bochechas. —
Por que não começa a aquecê-la para mim? — indico com a cabeça para
Felícia, que se ajoelhou em cima do sofá e nos encara com as pupilas
dilatadas.
Dalton nem me dá uma segunda olhada antes de se apressar até a
esposa, agarrando-a nos braços. Os dois caem na superfície macia e Felícia
solta um gritinho misturado com risada quando Dalton começa a distribuir
beijos por seu rosto.
A cena me faz sorrir e me sinto tão bem, que fico vários segundos os
observando, tentando me lembrar de um tempo em que eu estava relaxado
igual estou agora. Foi muito antes de Rosa nascer!
Mesmo na época em que minha filha estava viva, eu era uma casca de
tristeza. Mal parava em casa, pois me doía estar com Cassandra, sabendo
que ela não me amava.
Fiz de tudo para o nosso casamento dar certo. Até lutei contra vovó,
que sempre deixou claro que não aprovava minha ex.
— Ela não é a pessoa certa para você, oncinha! — vovó apela para o
apelido carinhoso que meu pai costumava usar, achando que isso irá
amolecer meu coração para seu pedido.
Infelizmente para ela, estou convicto da minha decisão.
— Cassandra é o amor da minha vida e nada do que você disser irá
mudar isso — repito, tentando manter a paciência. — Eu a amo desde que
me mudei para cá e quando ela finalmente me dá uma chance, você quer
que eu desperdice a oportunidade?
— Porque acha que ela te deu uma chance justo agora, quando você
recebeu acesso à herança dos seus pais? Aquela garota não presta! É uma
interesseira!
Puxo os cabelos e me viro para que vovó não veja os xingamentos que
estou murmurando. Ódio me invade por ela achar que Cassandra só se
interessa por mim por causa da porra do dinheiro que meus pais deixaram.
A respondo olhando para a parede, para não fazer algo que irei me
arrepender no futuro:
— Ela não é nada disso. Cassandra me ama! Ela já mostrava gostar
de mim antes de eu completar dezoito.
— Sim, eu me lembro muito bem que ela começou a te rodear quando
a notícia da herança se espalhou — diz mordaz, só me irritando mais. —
Aquela garota é igual à mãe dela, uma vagabunda de luxo, que corre atrás
dos ricos para lhes dar o golpe. Deixe o desejo sexual de lado e abra os
olhos, Orion!
Meto o punho na parede, tanta raiva dentro de mim que parece ecoar
como o rugido de um animal feroz, pronto para abater sua presa. Me viro
para vovó e, pela primeira vez na vida, a visão dos seus cabelos curtos
pretos, alisados e moldados em ondas perfeitas, a pele negra clara, que
contrasta com o conjunto de terninho e calça amarelos de tweed, os olhos
verdes e as joias de pérolas que usa nas orelhas e pescoço, não me traz paz
e felicidade, apenas mais ódio.
— Não ouse chamar a minha futura esposa de vagabunda! — minha
voz sai baixa e estranhamente rouca.
Vovó dá um passo para trás, e o medo que vejo em sua expressão faz
meu estômago retorcer. Ela abre a boca algumas vezes, mas nenhum som
sai. Vários segundos se passam até ela balançar a cabeça e desviar o olhar,
com isso, sei que a discussão se encerrou.
— Não vou ficar aqui vendo você destruir sua vida — escuto-a
murmurar antes de sair da sala, me deixando sozinho com a raiva que
parece rasgar seu caminho para fora de mim.
Um gemido de Felícia me puxa para fora das lembranças e balanço a
cabeça para me livrar do resquício delas. Me apresso a colocar a lenha na
lareira, junto com um pouco de álcool etanol, e jogo o acendedor, já
pegando fogo, no meio das toras. O fogo se espalha rapidamente, labaredas
altas tomando conta do pequeno vão.
O som dos estalos crepitantes da madeira parece se mesclar com
perfeição aos pequenos miadinhos que Felícia está soltando no sofá, e
quando me aproximo dos dois, vejo que seus lábios vermelhos estão
inchados e úmidos.
Meu pau se contorce quando imagino quão gostoso deve ser enfiar
dentro da boquinha molhada, afundando meu caralho até o fundo da sua
garganta. Mais tarde eu farei isso.
Dalton ofega e geme alto quando os pensamentos chegam até ele.
Quando me encara, seus olhos estão encapuzados de luxúria.
— É uma delícia mesmo! — revela sem vergonha nenhuma, me
fazendo rir.
— Me dê espaço para sentar — peço, dando um tapinha na sua bunda
nua, satisfeito por ter me obedecido e ficado pelado.
Ele resmunga ao sair de cima da esposa, que geme manhosa ao ter o
corpo descoberto. A coloco no meu colo.
— Olá, gatinha — ronrono ao acariciar as laterais do seu corpo,
adorando sentir a maciez da pele negra clara, polvilhada pelas manchinhas
do vitiligo. Seu cheiro doce invade meu nariz, e lambo o lábio inferior,
aquela chama em minha barriga queimando mais forte com o desejo de
devorá-la. — O seu marido te aqueceu o suficiente para mim?
— S-sim — gagueja, e sinto outra pontada no pau ao ver como sua
boca está brilhante com a saliva que Dalton deixou, as pupilas dilatadas e as
pálpebras pesadas.
Ela parece uma deusa da luxúria.
— E foi o suficiente para satisfazer seu desejo? — questiono, subindo
meu toque até seu pescoço, onde retiro os cachos ruivos para ter uma visão
completa da carne delgada.
— Não. Eu quero mais — revela num sussurro, lançando uma olhada
temerosa para o homem ao nosso lado, que está com o corpo colado no
meu, a respiração batendo no meu ombro.
— Está tudo bem, amor — Dalton a acalma, lhe dando um toquinho
na ponta do queixo. — Não é errado que você queira os beijos dele
também.
— Só não quero que você sinta que não é o suficiente…
— Sei que não sou, querida — Dalton não diz isso com raiva ou
rancor. Sua voz soa calma e as sensações que correm dentro dele são apenas
desejo, satisfação e felicidade. — A deusa nos fez em três, porque dois não
bastavam. Não há razão para ficar chateado quanto a isso. Além disso, eu
desejo tanto os beijos dele quanto você — brinca, aliviando a angústia da
nossa mulher, que relaxa contra minhas mãos.
Dou um olhar aquecido a ele, prometendo lhe recompensar mais tarde,
e volto a fazer carinho em Felícia, querendo que a única emoção em seu
corpo seja a mesma lascívia que corre no meu.
Beijo a pontinha do seu nariz largo, o que a faz pular de surpresa, e em
seguida pairo sobre sua boca, preparado para lhe dar a minha versão de
romance.
— Eu vou fazer amor com você, gatinha. Primeiro forte, rápido e
intenso — prometo, segurando com cuidado seu rosto, mantendo os olhos
fixos nos seus para deixar claro quão sério estou falando. — Depois
faremos um amor tão docemente lento, que você irá implorar para que eu
acelere e a faça gozar. Aí, quando seu corpo não estiver aguentando mais
tanto prazer, vou te entregar para o seu marido, e ele vai fazer a mesma
coisa, te levando a absoluta loucura — Dalton concorda com um pequeno
rosnado de desejo, e Felícia começa a tremer em minhas mãos, as íris
douradas já ficando anuviadas de expectativa, a respiração saindo
descompassada. — Vamos adorar você do jeito que deve ser adorada,
marcando seu interior com as nossas porras, para que você nunca se
esqueça a quem pertence.
— Sim, por favor! — ela implora e solto um risinho de satisfação, o
animal no meu peito encantado pela submissão dela, louco para completar a
reclamação que não fiz na noite anterior.
Felícia achou que eu tinha me esquecido, mas como eu poderia,
quando a sombra dourada está resmungando sem parar, sobre ela ainda não
ter nossa marca na carne?
Roço de levinho o lábio inferior no dela, e estou tão concentrado em
provocá-la, que não percebo suas mãos agarrando meus cabelos e os
puxando em sua direção até ser tarde demais.
Felícia me força a beijá-la com força. Ela luta pelo controle, atiçando
o alfa em meu peito, e seguro sua nuca com mais força, forçando sua
cabeça para trás para que eu possa tomá-la do jeito que desejo. Ela morde,
suga e brinca, e me vejo encantado com sua tentativa de tomar o controle do
beijo, principalmente quando suas garras se fincam no meu couro cabeludo,
a ardência súbita me fazendo gemer.
— Vocês também pertencem a mim — ronrona contra minha boca
quando nos afastamos para respirar, e rio, deslumbrado pela sua
possessividade.
— Sim, querida. Nós pertencemos — Dalton murmura, e ao virar o
rosto, percebo que ele está quase colado em nós. Tão perto que se eu me
esticar um pouco, consigo beijá-lo também.
Felícia bota minha ideia em prática e, ainda sentada em meu colo, a
boceta melada encaixada na minha ereção coberta pelo fino tecido de tactel,
beija o marido, que se apoia em meu braço.
O barulho da boca dos dois se chocando faz meu estômago revirar, e
puxo seus cabelos, trazendo-a de volta para mim quando o desejo se torna
demais.
— Ladrão maldito — Dalton resmunga, e Felícia ri em minha boca, só
tornando o momento mais gostoso.
Sugo seu lábio inferior e mordo de levinho, uma punição por ela ter
tomado o controle. O suspiro dengoso que solta faz tudo valer a pena, e
nem o alfa no meu peito consegue ficar irritado com ela.
Dalton puxa o rosto de Felícia de volta para ele, sua bochecha roçando
na minha. A boca deles está tão pertinho, que quase enfio a língua ali,
começando um beijo triplo. Prefiro me afastar, porém, lembrando que este
momento é focado em Felícia.
Hoje é seu dia de ser adorada e mimada, mas em breve testarei a
ideia de três bocas juntas. Prometo a mim mesmo.
— Foi você que fez o discurso sobre apenas dois não bastarem —
provoco, colocando a mãos nas coxas macias dela, numa tentativa de fazê-
la parar de se mexer contra meu pau.
Seus mamilos duros roçam contra meu peito e, para me distrair, agarro
o direito com a ponta dos dedos, torcendo-os de leve. O movimento a faz
jogar a cabeça para trás e soltar um gritinho de prazer, então repito a mesma
coisa com o outro.
— Você deveria fazer isso quando está dentro dela. Ela aperta a boceta
de um jeito que até a consciência some! É muito sensível nos seios — o
garoto diz contra meu ouvido, soando ofegante.
— É verdade, Ninfeta? — pergunto, aumentando o aperto apenas um
pouquinho. Sua resposta vem por meio de mais gemidos, e molho ainda
mais meu short com o pré-sêmen.
Coloco minha mão no centro de suas coxas, e ronrono de prazer com
quão quente e inchada ela já está.
— Dalton, erga ela um pouco para que eu possa retirar o short —
peço, e assim que ele agarra a cintura dela, levantando-a, empurro o tecido
rapidamente para baixo, chutando-o com os pés até que caia no chão. Dou
uma bombeada no meu pau duro, tentando controlar o desejo que me
percorre e envia pontadas para as minhas bolas, já cheias de porra. — Desça
ela devagar sobre mim — oriento, cerrando os dentes assim que sinto o
calor da boceta melada engolir minha glande, os gemidos e miadinhos que
solta sendo igual a álcool numa fogueira.
Meta dentro dela com força. A domine. Mostre que ela nos pertence!
O animal sussurra em meu ouvido, mas o ignoro, decidido a deixar Felícia
ditar o ritmo hoje. O momento é dela, não nosso!
— Aperte ele daquele jeitinho, amor — o desgraçado do Dalton diz, e
finco as unhas no estofado do sofá quando sinto a pressão molhada, tão boa
que me tira o ar.
Dalton experimenta do próprio veneno por conta do laço, e seu agarre
sobre Felícia se solta. A garota me engole de uma vez, e os rosnados e
gritos ecoam pela sala quando o prazer desliza por nossos corpos sem
controle, quase uma overdose de deleite.
— Eu te sinto tão fundo! — ela treme ao dizer, e como um fodido
masoquista, deslizo a mão novamente até seu seio esquerdo só para apertar
o mamilo.
— Puta que pariu! — xingo quando ela movimenta a boceta, como se
estivesse me sugando. Rapidamente, seguro sua cintura, levantando-a na
tentativa de não estourar dentro dela, o alfa na minha cabeça, repetindo sem
parar como devo jogá-la no sofá e meter na bocetinha apertada até que nós
dois esqueçamos os nomes.
Tomo uma respiração profunda para não fazer o que a voz diz.
— Eu disse que a gente perde até a consciência. — Dalton ri,
passando os braços pelo tronco dela, num abraço que acho estranhamente
excitante e fofo.
Vejo quando começa a deslizar lentamente a mão esquerda na direção
do centro das coxas de Felícia. Seu dedo roça contra meu pau quando ele
começa a acariciar o clitóris dela, e impulsiono para cima, indo de encontro
a ela, que remexe, de modo pecaminoso, os quadris, rebolando no meu
caralho.
— Pela deusa, vocês dois estão tão molhados! — Dalton diz,
erguendo os dedos melados com a excitação de Felícia. Ele estende os
dedos na frente do meu rosto, e o cheiro dela, tão próximo de mim, serve
como combustível do meu desejo.
Capturo-os com minha boca e gemo quando o gosto suave domina
minhas papilas gustativas. Felícia ofega e crava as unhas nos meus ombros
para ter melhor apoio para começar a cavalgar.
— Se você continuar me esfregando lá embaixo, não vou durar muito
tempo — ela choraminga quando Dalton novamente desce os dedos até seu
centro, acariciando o clítoris inchado.
— Você não precisa segurar seu orgasmo, amor. Pode deixá-lo sair,
que em seguida te tiraremos mais um — afirma, deslizando a excitação
pelos mamilos túrgidos.
Minha boca enche de água ao ver o brilho na pele, e me inclino para
frente, não conseguindo controlar o impulso do meu alfa para lambê-la.
Sugo a carne macia, acariciando-a com a pontinha da minha língua, e
Felícia ondula em cima de mim, sua bocetinha me sugando tão gostoso que
minhas bolas queimam enquanto eu tento me impedir de gozar.
— Vale para você também, Orion. Pode enchê-la de porra e aproveitar
o prazer do orgasmo — Dalton diz, sentindo a força que faço para não me
render aos apertões deliciosos da Ninfeta que pula no meu colo sem
controle, soltando gemidos altos enquanto sugo seus peitos e o marido
brinca com seu clítoris.
Era só o que faltava, um beta dando instruções a um alfa! Meu animal
resmunga em minha cabeça, soando divertido com a audácia de Dalton. Já
não bastava a ômega ditando o ritmo do acasalamento…
— Eu gostaria que você fosse mais forte, inclusive — Felícia responde
os pensamentos, os olhos encapuzados de desejo, a boca aberta em busca de
ar. — Estou tão pertinho!
Rio da sua confissão e a puxo para um novo beijo, dessa vez lento e
profundo. A forço a diminuir o ritmo das estocadas, o que a faz resmungar
em minha boca, e aproveito os sentimentos que passam entre nós. Aprecio
quão bem me sinto todo enterrado em seu interior quente e pulsante. Como
a respiração levemente picante desliza pela minha pele, causando pequenos
arrepios de prazer, não apenas sexuais.
— Você foi feita para mim, gatinha — ronrono, sentindo as bolas
pesadas quando a forço para baixo, deixando nossos corpos completamente
colados. — Eu vou encher essa bocetinha gulosa agora, e quero que você
gema meu nome bem gostoso enquanto eu te marco como minha, entendeu?
— Sim, alfa! — ofega, me levando a completa loucura.
Meu corpo queima como se eu estivesse no inferno e agarro sua nuca,
movimentando sua cabeça para deixar o pescoço mais exposto. Minhas
gengivas coçam, os dentes crescem, foco no lugar aonde irei mordê-la.
Minha. Minha. Minha.
Encaro Dalton por apenas um segundo, vendo como ele esfrega a
cabeça gorda do seu pau com rapidez, os olhos quase fechados de prazer, a
boca carnuda entreaberta em busca de ar.
Caralho, como tive tanta sorte de encontrar esses dois?
— Orion! — Felícia grita e sinto seu interior me apertar daquela
maneira que me força a revirar os olhos, o orgasmo caindo sobre ela,
fazendo todo o corpo tremer e ceder.
Ataco a carne macia neste momento, e o gosto doce do seu sangue
explode em minha boca, tornando o calor abrasador demais para suportar.
Estou no inferno. Estou no céu.
Sinto como se meus testículos queimassem, meu pau entrando em
frenesi quando o gozo sai de mim em jatos fortes, enchendo a bocetinha
melada de Felícia, que não para de palpitar. Algo se encaixa dentro de mim,
a sensação sendo tão perfeita que me tira o ar.
Alcanço seu clítoris durinho e o esfrego com força, para que seu
prazer continue por todo tempo que meu orgasmo durar. Os gritos de Felícia
se intensificam, o tremor deles chegando até meus lábios, que continuam
sugando sua pele sedosa.
Tiro os dentes afiados do seu pescoço e encaro com as pálpebras
semicerradas o formato da mordida que ficou, tão satisfeito que a emoção é
quase demais para lidar.
— Chega, amor, por favor! — ela implora, colocando a mão por cima
da minha, que continua instigando seu brotinho de nervos, forçando-a gozar
de novo.
Se ela não tivesse me chamado de amor, eu pararia, mas a pequena
palavra foi como álcool sendo jogado na lareira, e me vejo necessitado de
mais um orgasmo seu.
— Goza de novo no pau do seu companheiro, Ninfeta. Só mais uma
vez e eu paro — prometo, subindo meus beijos até seu queixo, onde lambo
a manchinha mais clara que o tom de marrom da sua pele.
Ela treme, grita e se contorce contra meus dedos. Tenta fugir das
sensações intensas, mas, por fim, cede, vindo com um grito estridente, que
se entrelaça com perfeição ao rugido de Dalton, que também gozou.
Sua porra escorre pela lateral do corpo de Felícia, se acumulando
contra a pele da minha coxa. Ele cai ao meu lado, enquanto ela se acomoda
em meu peito, e rio quando os dois enfiam os rostos no meu pescoço, em
busca de carinho.
— Bons gatinhos — elogio, tão feliz que chega a parecer irreal.
Enquanto escuto as respirações deles se acalmarem, e os corpos
pararem de tremer, aproveito a sensação de contentamento que me domina,
pensando no quão fácil será me acostumar com esses dois em cima de mim.
Parece que depois de tantas desgraças, Deus finalmente me
presenteou com algo bom. Divago, acariciando com cuidado as costas de
Felícia, evitando o lugar da cicatriz, pois já percebi que a área lhe deixa
tensa.
Minha garota suspira e esfrega o rosto com mais força em minha
garganta. Um arrepio misturado com cócegas me percorre quando sinto a
língua áspera de Dalton lamber o outro lado.
Sei o que eles querem sem que nenhuma palavra seja dita.
Eu já os reclamei. Está na hora deles fazerem o mesmo comigo.
Abro a boca para lhes dar a permissão que querem, pela primeira vez
na vida não sentindo medo de me entregar, mas não são palavras que
escapam dos meus lábios, e sim um rugido raivoso.
O alfa domina meu corpo e sinto como se estivesse vendo tudo por
uma TV, um mero expectador, sem poder suficiente para mudar o que está
acontecendo.
Meu corpo se levanta do sofá, jogando Felícia e Dalton para os lados.
Me aproximo das portas de vidro, que revelam a floresta polvilhada de
branco.
Ao longe escuto os questionamentos dos meus companheiros, mas as
vozes são abafadas pelas palavras que são repetidas sem parar.
Precisamos proteger nossos companheiros.
Temos que ficar atentos.
Há um intruso no nosso território
19

FELÍCIA
Um dia depois…

Jogo água no rosto para tentar conter o mal-estar que faz minha
cabeça pulsar e o estômago revirar, mas não adianta.
Estou destroçada. O sentimento de rejeição é intenso e parte meu
coração, mas não é só isso que está me deixando mal.
Tem algo errado com meu corpo.
Desde que Orion se afastou ontem, dizendo que estava confuso e
precisava pensar, ando sentindo uns picos de calor, que fazem minhas mãos
tremerem e a pulsação disparar.
Não sei se é resultado da dispensa de Orion, ou se os dois anos sem o
cio resultaram em alguma doença, mas estou tentando não demonstrar meu
desconforto para Dalton, pois ele já está muito irritado e eu não quero
colocar mais pressão em suas costas.
Lágrimas invadem meus olhos enquanto encaro meu reflexo no
espelho, a mordida de acasalamento ainda visível no meu pescoço. Sei que
tudo está ocorrendo depressa do ponto de vista humano, e ontem foi um dia
cheio de emoções para Orion, com ele nos contando sobre seu passado, mas
ainda assim não consigo lidar bem com seu afastamento, pois tudo estava
indo bem! Ele fez amor comigo de um jeito que me senti tão querida e
cuidada. Eu era dele. Mas quando foi o momento de ele ser meu, me afastou
e desde então nem sequer olha para mim.
Ele preferiu dormir no sofá ontem, e deixou claro que não queria a
nossa presença lá embaixo.
— O que estão fazendo aqui? — indaga, os olhos brilhando num
dourado intenso, que me faz arrepiar.
Me escondo parcialmente atrás de Dalton, para não ser o foco de sua
atenção, que exala desconforto e até raiva.
— Queremos saber se já está melhor — meu marido diz, cruzando os
braços para tentar esconder que também está aflito pelo afastamento
repentino do nosso companheiro.
Às vezes eu me esqueço que Dalton também está criando um
relacionamento com Orion, um muito mais complexo que o meu, inclusive,
pois meu marido teme o poder que os alfas têm, e até dois dias atrás, nem
sequer considerava gostar de homens.
— Nunca estive passando mal, para início de conversa — Orion
resmunga, desviando o olhar de volta para as portas de vidro, para onde
estava encarando desde que nos mandou para o andar de cima.
— A-amor… — a palavra escapa da minha boca quando vou chamá-
lo, e meu peito se parte quando vejo ele flexionar o maxilar, mas sem me
olhar. Quase corro de volta para o quarto, mas respiro fundo e ajeito a
postura, me lembrando que é um direito meu ter respostas para esta
situação. — Orion, o que está acontecendo? A gente fez algo?
— Muitas coisas — escuto-o resmungar, antes de soltar um suspiro
profundo e esfregar o rosto.
— Diga para nós. Não podemos resolver se não soubermos o que
fizemos! — Dalton fala, indo em sua direção.
Ele estende a mão para tocar o ombro de Orion, mas nosso
companheiro lhe segura o pulso, impedindo o movimento. O ar sai dos
meus pulmões ao ver a raiva em suas íris.
— Dalton, a única pessoa que pode resolver essa situação, sou eu
mesmo. SOZINHO.
Meu marido quase cai para trás quando Orion larga seu pulso e
aponta em direção à porta atrás de mim.
— Vão lá para cima. A presença de vocês dois está me distraindo das
coisas realmente importantes.
Um soluço escapa dos meus lábios, por causa da lembrança, bem
quando Dalton bate na porta do banheiro. Puxo a toalha do suporte e
esfrego com força o rosto, para que ele não veja meus olhos molhados. Ao
abrir a porta, porém, sei que não deu certo.
— O que aconteceu, alma minha? — questiona, arregalando os olhos.
Ele me puxa pela cintura, colando nossos corpos, e a aproximação faz
uma nova leva de lágrimas surgirem.
Afundo o rosto no seu pescoço, chorando alto pela dor que me
percorre.
— N-nada — gaguejo, me agarrando a ele com força, uma nova leva
de calafrios descendo por meus membros, fazendo as dores das lembranças
se acumularem. São como choques elétricos, que se acumulam em minha
barriga, me fazendo ofegar.
Por estarmos tão próximos, Dalton também sente o desconforto, e seu
corpo enrijece. Ele se afasta um pouco e segura meu rosto.
— O que diabos foi isso?
Nego com a cabeça, sem querer, ou ter, condições de explicar.
— Felícia, você está com dor! Eu senti. — Desliza as mãos pelas
laterais do meu corpo, e quando chega perto da barriga, outra onda de
calafrios surge.
Seus olhos dourados se arregalam e Dalton cai de joelhos no chão a
minha frente.
— O-o que está fa-zendo? — pergunto quando sinto seu rosto se
aproximar da minha vagina, as palavras sendo quebradas por meus soluços.
— Não estou c-com desejo ag-gora.
Não o sinto desde ontem, após Orion nos mandar subir pela primeira
vez.
— Espere aí, alma minha — Dalton murmura, enfiando o nariz contra
meu monte de vênus.
O gesto me deixa desconfortável e choramingo baixinho, querendo me
encolher numa bola e ficar deitada até esse pesadelo em que me encontro,
acabar.
Sua mão começa a fazer carinho na minha coxa esquerda e abaixo o
olhar para encarar seu rosto. Quando o faço, fico confusa com a emoção
que vejo em suas íris.
— Por que não me contou antes, amor? — ele questiona ao se afastar,
e vejo um sorriso largo surgir em seus lábios.
— Dá dor? — pisco, sem ter certeza de como me sinto por ele estar
feliz num momento em que me sinto horrível.
Ele se ergue devagar e as ondas de alegria que vem da sua parte do
laço me deixam ressabiada.
— Do nosso bebê, querida — responde com tanto carinho contido em
sua voz, colocando a mão direita sobre meu ventre, que demora vários
segundos para eu conseguir processar o que ele disse.
— Bebê? — repito, a palavra soando esquisita em meus lábios.
— Sim, amor. O bebê que você carrega aqui. — Esfrega de novo
minha barriga e outra onda de choques se espalha por meu corpo. — O
cheiro ainda é bem fraquinho, o que indica que está nos primeiros estágios
da fecundação, mas já dá para senti-lo.
Uma emoção como nenhuma outra que já senti me domina, e preciso
me segurar nos braços de Dalton para não cair no chão.
— Um bebê? Vamos ter um bebê? — repito sem parar, a ideia soando
tão estranha e maravilhosa que embaça minha mente.
— Sim, vamos ter um bebê — responde rindo, me puxando mais para
perto. — O nosso bebê.
Uma nova leva de lágrimas invade meus olhos, mas desta vez elas são
de pura felicidade.
A deusa me abençoou com o filho que sempre desejei ter!
Acompanho sua risada, botando a mão no ventre ainda sem acreditar,
os choques ganhando um significado totalmente diferente e belo, agora que
os sinto.
— Será que é normal esses calafrios indo para o ventre? — pergunto,
ficando preocupada quando os sinto pela segunda vez em pouco tempo.
— Não sei. — Franze a testa, olhando minha barriga com um misto de
receio e carinho. — Vou tentar entrar em contato com meu avô para saber.
— Podemos perguntar a Orion! A ex dele ficou grávida, então deve
saber o que acontece numa gravidez — me lembro, já saltitando em direção
à porta, feliz por ter encontrado um motivo para ir falar com meu
companheiro.
Dalton segura meu braço, porém, impedindo meu avanço. Minha
felicidade cai ao ver seu olhar.
— Não acho que seja bom contarmos a ele agora.
— Por quê? Ele também vai ser o pai desta criança — afirmo,
esfregando protetoramente meu ventre, a mania já se instalando em meu
íntimo.
— Eu sei, mas… — meu marido nega com a cabeça e observo o
brilho que seu piercing reflete, meu estômago caindo ao entender seu ponto.
— Talvez ele não fique feliz — murmuro, toda a animação sumindo.
Ele trava o maxilar, cheio de raiva, e concorda com a cabeça.
— Mas não foque nisso agora. Sua única preocupação tem que ser
ficar bem, para o nosso filho vir saudável — ele tenta fingir animação e,
para não o preocupar, também forço o sorriso.
— Vai dar tudo certo.
— Vai sim.
É horrível ver como nossas palavras parecem uma mentira…

DALTON
Dois dias depois…

Observo o galho dos abetos balançarem suavemente com a brisa e


solto um suspiro, tentando me livrar do sentimento ruim que domina meu
peito já faz 3 dias e meio.
Quando Orion pegou Felícia nos braços e disse que faria amor com
ela, imaginei que tudo entraria nos eixos. Ele iria nos reclamar e cuidar do
nosso cio até que o útero de Felícia fosse fecundado, iniciando a família que
tanto sonhamos em ter.
Tudo estava caminhando nessa direção!
Mas, do nada, ele mudou de homem carinhoso para uma pedra de
gelo. Não permitiu que o marcássemos com nossa mordida, uma rejeição
que faz meu peito doer até agora, e desde então mal olha nos nossos rostos!
Eu sempre soube que não seria fácil esse relacionamento. Tinha o
problema de ele ser humano, e a relação ser proibida por parte de Bethal.
Depois houve o problema sobre ele não ser humano e todas as implicações
que isso tinha, como a possibilidade de ser um shifter descontrolado, que
não apenas tem um kaylak tão forte que pode superar o do meu sogro, mas
que também “criou” vida própria e fala com ele, e às vezes com a gente
também.
É nítido quando o alfa está na superfície, porque a voz de Orion muda.
Fica mais rouca e intensa. Causa arrepios em nossa espinha, nos obrigando
a mostrar pura submissão. E claro, como se tudo isso não bastasse,
descobrimos que a tristeza que sentimos vindo dele, logo quando chegamos,
é, na verdade, luto pela filha que morreu afogada, após a tentativa de fuga
da sua ex-esposa, que lhe traiu com o melhor amigo.
Não me surpreende que o homem seja ferrado da cabeça, algo que só
piorou com os sentimentos que Felícia e eu estamos causando nele. Mas,
apesar de até esperar algum nível de afastamento quando a luxúria do cio
diminuísse, pois os humanos são conhecidos por fugirem quando se sentem
pressionados, ainda dói profundamente ver como ele nos jogou de lado e se
fechou no mesmo casulo de solidão que estava quando chegamos.
O pior é ver como isso está afetando Felícia, que desde ontem virou
uma bolinha de emoções voláteis, indicando que algo que eu sempre
desejei, e ao mesmo temi, aconteceu.
— Achei você — sua voz suave quebra o silêncio do quarto e o cheiro
doce que adquiriu assim que o óvulo foi fecundado me domina, muito mais
forte do que estava ontem, quando o senti pela primeira vez.
O leopardo ronrona em meu peito, satisfeito pela cria que cresce no
útero da nossa companheira, e desvio o olhar da floresta polvilhada de neve
para encará-la, abrindo os braços para que possa se acomodar entre eles.
O tecido azul da camisola de seda, que encontrou no meio do closet da
avó de Orion, toca minha pele, causando um pequeno arrepio em minha
espinha, e lhe aperto com força, na tentativa de acalmar as emoções
conflitantes, tanto as minhas, quanto as dela.
— Ele saiu de novo? — questiono, deixando meus ouvidos se
aguçarem, em busca da batida do coração de Orion.
— Faz alguns minutos. Engoliu a comida e disse que iria retirar a neve
da estrada — sua voz sai trêmula e me dói não poder fazer nada para
impedir o sentimento de rejeição, que também rasga meu peito ao meio.
Desgraçado filho da puta! Espero que caia e bata a cabeça. Talvez
isso o faça agir decentemente!
Felícia solta uma mistura de riso com choro, por causa dos meus
xingamentos a Orion, o que só me deixa pior.
— A culpa é minha. Eu não deveria ter forçado ele a fazer amor. Ele
não estava pronto!
— Ele é um alfa adulto de 40 anos. Não foi forçado a nada — rosno,
me lembrando das mentiras suaves que sussurrou contra os nossos ouvidos
duas noites atrás. Como me fez acreditar que isso era mais do que apenas
prazer.
“— Relaxe, gatinho, eu não vou te machucar — sussurra, beijando a
pele, provocando e seduzindo.
— Promete?
— Prometo, meu companheiro.”
Mordo a língua para me livrar da lembrança, me amaldiçoando por ser
tão burro em acreditar.
— Será que sabe do bebê? Quando fui buscar nossa comida, ele me
olhou estranho e deu uma fungada no meu pescoço. Depois rosnou e saiu
correndo de volta para sala. — Felícia se afasta com os olhos cheios de
lágrimas, botando as mãos protetoramente em cima da barriga plana, que só
começará a crescer daqui a algumas semanas, talvez até meses.
Apesar da fecundação dos shifters ser muito mais rápida que dos
humanos por conta do cio, que deixa o corpo da mulher o mais preparado
possível para engravidar, as fêmeas levam os mesmos 9 meses para gestar
os bebês, um período em que vários rituais precisam ser feitos, tanto na
mãe, quanto no bebê.
Porra, como faremos esses rituais? Bethal não vai aceitar presidi-los!
Esfrego a mão na testa e a ponta do dedo mindinho roça dolorosamente no
piercing que coloquei na sobrancelha esquerda aos 15 anos, num surto de
desobediência contra a minha mãe.
A lembrança me faz querer chorar, pois tudo que eu queria neste
momento era poder ir até sua casa e me enrolar no seu colo, escutando-a a
dizer que tudo ficará bem.
— Ele não sabe identificar a diferença no cheiro. Nunca presenciou o
cio, então com certeza nunca cheirou as mulheres grávidas — respondo,
sem ter certeza se isto é uma coisa boa ou ruim.
Quero contar para Orion sobre o bebê tanto quanto Felícia, mas estou
com medo de sua reação, e como isso irá impactá-la.
Já faz três dias que ele está afastado, e ainda me irrita e mágoa muito
lembrar de como ele disse que estamos lhe distraindo das coisas realmente
importantes, pois isso deixou muito claro que, para ele, nós não somos
importantes.
Orion se manteve afastado, dormindo na sala como se fôssemos
contagiosos, e negou todas as nossas tentativas de reaproximação. O
desgraçado só fica olhando as malditas janelas, como se estivesse apenas
aguardando a oportunidade certa para fugir.
Procurei entender o que estava acontecendo por meio de conversa,
sem Felícia estar por perto, mas ele só rosnou para eu deixá-lo em paz, e
quando tentei invadir seus pensamentos, me deparei com um bloqueio que
me fez chorar, pois era a prova concreta de que não nos queria em sua vida.
Mas agora que começamos o acasalamento, não dá para parar! A
mente irá enlouquecer aos poucos, exigindo que o laço se complete. Será
uma dor pior que a falta do cio! Não temos escapatória e, mesmo se nos
afastarmos, ainda teremos uma parte da alma ligada a Orion, um lembrete
eterno de que ele não nos quis, nem ao nosso bebê!
Felícia passa a mão delicadamente no meu rosto, retirando a lágrima
que escorreu e mordo a língua para tentar me recompor.
— Não dá para continuar assim, alma minha. — Balanço a cabeça,
uma exaustão pesada caindo em cima de mim. — Estou cansado de sempre
termos que lidar com alfas mimados…
— E o que podemos fazer? — questiona, cruzando os braços ao se
afastar. Ela anda até a beirada da cama, que ainda tem um resquício do
cheiro de Orion, e se senta, soltando um suspiro que também demonstra sua
exaustão. — Não podemos sair daqui. Nenhum bando na América irá nos
aceitar. E não podemos deixar Orion para trás. Ele é nosso companheiro!
— Ele não é nosso companheiro, amor — me dói dizer as palavras
quando me aproximo, mas estou cansado de mentir. — Se ele fosse, não
teria nos descartado assim que o prazer acabou, nem desviado quando
íamos reivindicá-lo. Infelizmente, fomos apenas um passatempo sexual para
ele. Não dá mais para negar isso, querida.
Minha esposa balança a cabeça com força, fazendo os cachos ruivos
balançarem, na tentativa de expulsar minhas palavras da mente. Ela não
quer admitir que é verdade, pois vai contra tudo que foi ensinada a crer
sobre os companheiros.
Me ajoelho na sua frente e seguro sua mão direita, tentando lhe passar
forças. Escutar seu choro engasgado faz com que minhas próprias lágrimas
ressurjam, então desvio o olhar para a janela, vendo o céu que começou a
escurecer. A lua está totalmente cheia hoje.
Uma onda de raiva me percorre ao observá-la, algo que só se
intensifica com as próximas palavras de Felícia.
— Ele é, sim, Dalton! A deusa o deu para nós! Você mesmo disse que
a deusa nos fez em três, porque dois não bastavam. — Rosno ao ser
lembrado das palavras e largo sua mão para me levantar.
— A deusa não existe! — cuspo, olhando com ódio para a janela.
— Dalton, como pode falar algo assim? — seu tom chocado me faz
estremecer e sentir um pouco envergonhado. — Isso é blasfêmia, amor.
Peça desculpas imediatamente!
— Pedir desculpas? — repito, soltando uma risada histérica. — ELA
QUE DEVERIA VIR ME PEDIR DESCULPAS! EU PASSEI TODA A
MINHA MALDITA VIDA ORANDO PARA ELA, ACREDITANDO QUE
ERA JUSTA E BOA, QUE RECOMPENSAVA SEUS SERVOS
OBEDIENTES. OLHA SÓ O QUE EU GANHEI! — berro, gesticulando
para meu corpo coberto por cicatrizes. — A DEUSA NUNCA FEZ NADA
POR NÓS. NADA!
Soco o vidro da janela, tão furioso com a visão da lua brilhando no
céu, agindo como uma suposta salvadora, que nem penso direito ou sinto os
cacos se estilhaçarem contra os meus dedos.
Felícia tenta ocultar seus soluços ao tampar a boca com as mãos, mas
o som adentra minha cabeça, me fazendo lembrar de todas as vezes que
chorei, implorando para ser salvo.
— ELA NÃO ME AJUDOU QUANDO SUPLIQUEI POR AJUDA,
QUANDO SEU PAI ESTAVA ME RETALHANDO NA FRENTE DA
MATILHA! — rujo, sem conseguir controlar meu tom de voz. — ELA
NÃO ME AJUDOU QUANDO TIVE QUE VER VOCÊ SER
TORTURADA!
— Ela não tem c-culpa, amor! — Felícia gagueja, vindo em minha
direção com passos bambos.
— Ela tem, sim, pois foi ela que deu poder ao seu pai para abusar da
gente. Foi ela que nos deu um companheiro fodido da cabeça, que só queria
brincar com nossos corações!
— O que está acontecendo aqui? — a voz zangada de Orion desvia
minha atenção de Felícia, e a raiva queima com mais força, como tivessem
jogado gasolina no fogo. — Ouvi a gritaria lá de fora!
Olhar para ele, parado seminu na porta do quarto, nem fazendo
questão de entrar e se aproximar, me deixa com tanto ódio que até minha
visão embaça.
— Olha só quem decidiu aparecer — zombo, cravando as unhas na
palma das mãos para não voar no pescoço dele e rasgá-lo inteiro. — Seu
pau começou a doer?
— O quê? — ele franze as sobrancelhas grossas, os olhos dourados se
estreitando em minha direção, deixando claro seu aborrecimento com meu
tom. Dá um pequeno passo à frente, mas para e retrocede, o que me causa
ainda mais dor. Ele realmente não quer nenhum contato com a gente… —
Que merda você está falando?
— Eu que deveria perguntar que merda você anda fazendo. Acha que
pode brincar com nossos corações, dizer palavras bonitas e DEPOIS NOS
JOGAR DE LADO COMO SE FÔSSEMOS LIXO? — termino a frase
berrando, e Felícia se afasta de mim, medo transitando por nosso laço.
— Gatinho, é melhor você medir esse tom de voz ao falar comigo. —
O dourado brilha com mais intensidade e o poder reverbera por cada
palavra, deixando claro quem manda ali.
Meu leopardo quer se submeter, abaixar a cabeça e pedir perdão, mas
estou cansado de sempre aceitar calado as desgraças que ocorrem em minha
vida.
— Não me chame assim, seu mentiroso desgraçado! — minhas
palavras quase são encobertas pelo rosnado que Orion solta. — Você perdeu
esse direito quando nos abandonou três noites atrás, após ter o desejo de
foder saciado!
— Não fale besteiras. Estou protegendo vocês!
Gargalho alto com sua cara de choque fingido.
— Nossa, devemos agradecer então? Olha só amor, ele está agindo
igual um babaca, não olhando nas nossas caras ou sequer falando com a
gente, tudo para nos proteger! — zombo, fazendo um gesto em direção a
Felícia, que está com a mão na barriga, protegendo nossa cria, — Que
benção ter um companheiro tão amoroso e preocupado com nosso bem-
estar! Você também protegerá nosso bebê saindo de casa e nunca falando
com ele?
— Bebê? Do que você está falando? — questiona, encarando Felícia
pela primeira vez. Seu olhar se fixa na barriga coberta e ele dá uma
respirada profunda. Vejo o exato instante em que junta dois mais dois, pois
chega a balançar sobre os próprios pés, só se mantém de pé por causa da
parede, onde colocou a mão. — Não pode ser!
— Não só pode, como é — rosno, avançando para a frente de Felícia,
impedindo que continue encarando-a com o olhar de choque e pavor. —
Parabéns, papai — debocho, um sentimento amargo de prazer deslizando no
meu peito quando vejo seu rosto ficar branco.
— Esse filho não é meu. Não pode ser meu — nega, e preciso agir
rápido para segurar Felícia, que quase cai no chão, as pernas falhando com
o choque de escutá-lo dizer algo assim.
Eu mesmo também quase vou ao chão, o ar sumindo dos meus
pulmões enquanto meu leopardo ruge na minha cabeça, num misto de raiva
e tristeza ao escutá-lo rejeitar nossa cria. Pensei que isso poderia acontecer,
mas não estava preparado.
— Conheço vocês há 4 dias, pelo amor de Deus! — resmunga,
balançando a cabeça com força, conforme passa os dedos pelos grossos
cabelos castanhos. — Não podem realmente considerar que o feto dela é
meu.
Respiro fundo, tentando controlar minhas emoções conforme vejo os
olhos dele batalharem entre o azul e o dourado. A cor fria acaba ganhando e
o cheiro de pavor fica mais intenso no quarto.
— Você tem razão, esse filho não é seu. É apenas meu e da minha
esposa. — Felícia solta um soluço atrás de mim e me viro para pegá-la no
colo. — Vamos para casa, amor, a brincadeira acabou.
Ela nega com a cabeça, mas não foge do meu agarre. No momento
que encosta a face no meu peito, sinto as lágrimas molharem minha pele, e
é preciso muita força da minha parte para não deixar as lágrimas
acumuladas no meu olho caírem também.
Avanço até a porta, onde Orion continua parado, e viro o corpo para
que nenhum de nós o toque. O desgraçado bloqueia a saída com a mão.
— Onde acham que estão indo? — o azul é engolido de novo pelo
dourado, e me arrepio com o poder que suas palavras ecoam.
— Saia da frente e nos deixe passar — rosno, lutando contra o
domínio que ele exerce.
— Vocês não vão sair dessa casa, gatinho… — Orion nega
lentamente, dando um passo para frente. Me afasto, temendo tocá-lo e
perder a cabeça.
— Não pode nos prender aqui. Você não é nosso companheiro. Não
aceitou que nós o reivindicássemos! — quase caio ao bater com a perna
contra a cama, e Felícia solta um gritinho em meus braços, as mãos indo
imediatamente para a barriga. Os olhos de Orion se fixam lá.
— Estou protegendo vocês!
— Protegendo a gente do quê? — minha esposa questiona, a voz
quebrada pela tristeza, seu pequeno corpo tremendo em meus braços.
Orion não responde, preferindo olhar para a porra da janela. Aproveito
sua distração para correr para fora do quarto. Desço as escadas com pressa,
mas tomando um certo cuidado para não deixar minha esposa e filho
caírem. Estou quase chegando em uma das portas de vidro da sala de estar,
quando sinto a mão forte de Orion agarrar minha nuca e, praticamente, me
tirar do chão.
— Eu disse que vocês não têm permissão para saírem desta casa —
repete em meu ouvido, a respiração quente batendo no lóbulo da minha
orelha.
Começo a lutar contra seu agarre, mas o ronronar suave que ecoa do
seu peito adentra no meu sistema nervoso, e mesmo que minha mente berre
contra a calmaria que me domina, meu corpo cede ao transe do seu poder.
— Vocês dois vão voltar lá pra cima, onde é seguro, e me esperarão
do jeitinho que estavam fazendo até agora. — Ele solta minha nuca e dá um
tapa em minha bunda, me mandando de volta em direção às escadas — Não
vão sair da minha casa. O lugar de vocês é comigo.
Sem controle das minhas pernas, subo lentamente cada degrau de
madeira. Felícia está tão passiva quanto eu e, ao olhar para baixo, vejo que
seus olhos estão fechados, a boca entreaberta para respirar. O transe que
Orion nos lançou, foi tão forte que a fez cair no sono.
Sinto a presença dele atrás de nós e, assim que chegamos no quarto,
ele toca minhas costas suavemente. Não consigo desviar e uma lágrima
escapa dos meus olhos quando ele beija meu ombro.
— Você pode não entender agora, mas estou fazendo isso para o
nosso bem — murmura, se afastando em seguida.
Outra lágrima cai, pois, suas palavras são praticamente as mesmas que
Bethal disse quando me torturou na frente do bando.
No fim, Orion não é diferente do meu sogro. Ele não se importa com o
que a gente quer. É só mais um alfa que usa os outros ao seu bel-prazer.
20

ORION
Meu coração pesa no peito conforme saio do quarto, deixando Dalton
e Felícia para trás.
Quase me matou ver suas lágrimas e como estavam se sentindo
rejeitados por eu estar me mantendo longe. Eu queria contar para eles o
motivo da minha vigília incessante, mas sabia que iria deixá-los perturbados
e com medo, por isso mantive só para mim as suspeitas de que o outro alfa
estava rondando o território da minha casa, querendo fazer mal aos
pirralhos que invadiram fundo minha vida e coração, tornando tudo uma
bagunça que não sei se um dia conseguirei organizar.
Deus, vamos ter um bebê! Passo a mão no rosto, ainda sem acreditar.
Eu senti o cheiro novo em Felícia, mas não foquei nele, o animal em meu
peito me forçando a continuar atento ao lado de fora da mansão, em busca
dos invasores que deixavam pegadas na neve branca e macia, provocando-
me.
Até uma mensagem eles fizeram com sangue, que vi poucos minutos
atrás, dizendo: “Em breve a nevasca irá acabar e eu os terei”.
Isso já tinha me deixado no limite, e escutar Dalton me julgando, junto
com a notícia do bebê, me fez surtar de vez.
Estou arrependido por dizer que o filho não é meu. Sei que é. Sinto na
minha alma! Mas na hora foi tudo tão repentino, que deixei meu medo falar
mais alto que o bom senso.
Como vou fazê-los me perdoar?
Foram dois dias os ignorando para manter a atenção nos invasores, e
agora usei meu poder para obrigá-los a ficarem dentro da casa, onde sei ser
seguro. Além disso, o alfa em meu peito bloqueou o acesso dos dois a
minha cabeça, para que não soubessem de Bethal, algo que só aumentou o
sentimento de rejeição deles.
Estou fazendo de tudo para protegê-los, mas, no processo, estou
destruindo o relacionamento que criamos e que passei a adorar tanto!
— Que inferno! Por que esses imbecis tinham que aparecer justo
agora e acabar com minha felicidade? — resmungo, indo em direção à
poltrona que até ficou com o molde da minha bunda, de tanto tempo que
fiquei sentado nela nesses três dias.
Olho para as portas de vidro, em busca de mais vislumbres dos gatos
malditos, e forço minha audição a procura de respirações que não
pertencem aos meus companheiros. Tudo que escuto é o choro engasgado
de Dalton.
Suspiro e pego a arma de cima da mesa, verificando mais uma vez se
está carregada e pronta para uso. Evitei usá-la até agora, achando que iriam
nos deixar em paz, mas a mensagem com sangue que vi mais cedo deixou
bem claro o que eles querem e eu não deixarei ninguém os tirar de mim.
Dalton e Felícia são meus! Rosno, deixando a arma descansar na
minha coxa.
Observo os poucos flocos de neve que ainda caem do céu e, conforme
os segundos passam, vou sentindo uma ansiedade e falta de ar fora do
comum.
Me levanto, não conseguindo ficar parado, e boto a mão na garganta
para tentar melhorar a pressão. Puxo uma respiração profunda, mas a
sensação em meu peito só fica pior.
Sinto minha cabeça ficar leve e meio anuviada. Quando foco na
janela, quase não a vejo de tão embaçada que está minha visão. Meu corpo
bambeia e percebo que estou caminhando em direção as portas.
Tento me parar, o animal em minha cabeça berrando que não podemos
deixar nossos companheiros desprotegidos, provando que não é ele me
forçando a sair da casa, mas não consigo o controle do meu corpo.
O ar gelado do início da noite bate contra mim, mas o frio não me
incomoda mais desde que a sombra dourada se fez presente em minha vida.
É como se o pelo que, supostamente, o animal em mim tem, me esquentasse
por dentro, mantendo minha temperatura corporal normal.
Avanço em direção ao caminho que leva ao rio, e meu desespero
aumenta conforme as árvores ficam para trás, revelando a visão das águas
azuis acinzentadas, congeladas pelo inverno feroz.
Engulo em seco quando avanço até a margem do rio opaco, meu pé
desnudo parando na beirada do gelo. Olhando agora, o lugar parece pacífico
e inofensivo.
Perfeito para brincar de patinar e fazer uma guerra de bolas de neve,
como gostávamos de fazer…
— Peguei você! — Rosa grita ao soltar a bola de neve que fez quando
estava escondida atrás do tronco de árvore, que eu, convenientemente, fingi
não ver.
Urro e me jogo para trás quando sou atingido, fazendo um teatro
sobre estar sentindo fortes dores com o gelo que mal chegou a encostar em
mim.
Minha filha gargalha e corre em minha direção, os cabelos castanhos
voando por causa do vento forte, a touca que deveria proteger as orelhas
não mais na cabeça.
Um soluço escapa da minha boca quando a lembrança se esvai, e me
sento na neve fofa, minhas pernas não aguentando mais o peso do meu
corpo.
— Queria tanto que você ainda estivesse aqui. Que eu tivesse sido
forte o suficiente para abrir aquela porta… — nego com a cabeça, as
palavras travadas em minha garganta. — Eu não sei viver sem você, meu
Deus. Não sei como conseguirei criar o seu irmão, ou irmã, sabendo que
não fui capaz de te proteger e salvar!
As lágrimas caem no chão polvilhado de branco e, por vários
segundos, fico observando o padrão que formaram, sem coragem de encarar
novamente o rio congelado, cercado pelas sombras das árvores que nos
rodeiam e balançam suavemente com a brisa.
Fungo e passo a mão esquerda nas bochechas, limpando o resquício
das lágrimas e, quando estou prestes a limpar o nariz que escorreu, uma
mão pequena e clara estende um lenço de papel branco bem diante dos
meus olhos.
Levanto a cabeça assustado e me arrastro para trás, pavor puro me
percorrendo ao ver a pequena garotinha de cabelos castanhos, vestida com
um pijama amarelo de bolinhas. Há um brilho prateado ao seu redor, que se
move em minha direção quando ela avança, me estendendo novamente o
lenço claro.
— Rosa? — sussurro, esfregando com rapidez os olhos, sem saber se
isso é uma miragem ou não.
A garotinha não diz nada, apenas fica com a mão estendida, segurando
o lenço. Um pequeno sorriso fofo se abre em sua face redonda e rosada, e
meu coração dispara ao ver as sardas em suas bochechas e a covinha do
lado direito.
A mão treme quando puxo gentilmente o pano de suas mãos e minha
visão fica embaçada quando as lágrimas começam a cair sem parar.
— Ai, meu Deus, é você mesmo! — boto a mão na boca, tentando
ocultar os soluços, mas eles ecoam pela noite, junto com a risada engasgada
que me escapa.
Puxo-a em direção aos meus braços, apertando forte o pequeno
corpinho, sem acreditar que finalmente estou abraçando minha filha outra
vez. Choro com a boca pressionada em seus cabelos, sentindo o cheiro
suave do shampoo infantil de morango.
— E-eu sen-ti tanto a sua f-falta! — gaguejo, felicidade pura me
percorrendo. — Tanto! Tanto! Tanto! — deixo beijos estralados em sua
testa, apreciando o calor da sua pele contra a minha, as mãozinhas pequenas
apoiadas no meu ombro. — O papai tentou te salvar. Juro que tentei abrir
aquela maldita porta, mas não fui forte o suficiente. Não consegui, pequena
flor. Não consegui! — as palavras explodem para fora de mim como um
choramingo.
A abraço mais forte, do jeito que eu gostaria de ter feito naquela noite,
tão feliz que sinto minha cabeça rodar, como se a qualquer momento eu
fosse desmaiar.
A pequena mãozinha acaricia a lateral da minha barba, e rio de
emoção.
— Me desculpe por não conseguir impedir que te levassem, meu
amor! Eu dormi… Eu — busco as palavras certas, mas nada me vem à
mente, pois não importa o que eu diga, o que fiz foi imperdoável. Eu deixei
que eles a levassem no meio da noite, a botassem num carro com um
motorista bêbado, e depois não consegui tirá-la dele a tempo! — Será que
um dia você irá conseguir me perdoar?
— Ela já perdoou, Orion — a voz suave diz contra o meu ouvido e
sinto um arrepio na espinha ao perceber que não é a voz da minha
menininha. — Na verdade, não tem nem o que perdoar, pois a culpa não foi
sua. Não tinha como você lutar contra o sonífero que Cassandra botou no
seu jantar, justamente para que você não conseguisse acordar durante a
fuga.
Lentamente, afasto a criança dos meus braços e, pela primeira vez,
foco em seus olhos. Não é o verde perfeito que me cumprimenta, mas sim
um prateado brilhante, que faz meu estômago revirar.
— Você não é minha filha — sussurro, horror puro me percorrendo.
A criatura nega com a cabeça, me dando um sorriso triste.
A empurro para longe dos meus braços e me levanto, desesperado
para me afastar, mas mal dou três passos quando sinto aquele domínio
estranho sobre meu corpo, que me impede de ir para longe. Meus pés viram
contra a minha vontade, na direção da garotinha. Ao ver sua mão levantada,
finalmente entendo que é ela quem está me controlando.
— Quem é você? — rosno, minha boca ainda me obedecendo.
— Depende… — diz suave, começando a andar de um lado para o
outro. Percebo que seus pés não fazem pegadas na neve. — Alguns me
chamam de guardiã. Outros, de deusa. Há os incrédulos, que me chamam de
satélite e os fiéis, que me chamam de mãe. — Ela para e ergue novamente a
cabeça, me encarando. Não consigo entender como não percebi antes a cor
diferente dos olhos, pois eles são tão chamativos que chegam a me tirar o
ar! — Do que você irá me chamar, Orion?
— De farsante — cuspo, ódio me percorrendo. — Saia do corpo da
minha filha, você não é digna de usar a imagem dela!
— Sinto muito se lhe ofendi — diz, levando a mão ao peito, como se
estivesse triste. Ver o rostinho contorcido da minha garotinha, que não é
minha filha de verdade, só atiça mais minha raiva. — Escolhi a imagem de
Rosa porque você sempre disse que queria vê-la mais uma vez. Achei que
iria lhe dar paz.
— Achou errado. Meu desejo é ver minha garotinha viva, e não um
fantasma dela — rosno, fazendo força para libertar meu corpo, todo meu ser
exigindo ir até a maldita, que rasgou novamente as feridas da saudade.
— Infelizmente não posso lhe conceder esse pedido, Orion. Não tenho
poder suficiente para roubar uma alma da deusa dos mortos — sussurra, e
ela parece tão melancólica, que paro minha luta, esgotamento me tomando.
— Eu gostaria de ter, querido. Gostaria de ser forte o suficiente para lhe dar
um último vislumbre da sua filha.
Soluços explodem da minha boca e minha visão fica novamente
embaçada por conta da nova leva de lágrimas. Fecho os olhos, tentando
parar o choro e, mesmo com as pálpebras cerradas, vejo um brilho prateado
forte vindo da minha frente.
No lugar onde estava a cópia de Rosa, agora há uma mulher alta e
magra, com a pele cinza clara e longos cabelos pretos, tão escuros que dói
olhar. Suas feições são alongadas e serenas e, apesar dos seus olhos serem
completamente negros, eles me transmitem paz e consolo.
— Conheço você — murmuro, fazendo força para me lembrar de onde
já a vi antes, a sensação de reconhecimento forte demais para ignorar.
Minha cabeça lateja e solto um grunhido com a dor angustiante que
me toma, conforme me forço a lembrar do passado, que por muitos anos
escondi no fundo da mente.
Os barulhos de vozes e as luzes ofuscantes da ambulância e dos
carros de polícia me cercam, fazendo tudo ser demais para aguentar.
Meu corpo dói, a garganta está seca, e há uma pressão intensa atrás
dos meus olhos, das lágrimas que estou segurando com muito custo.
Observo a lataria preta do carro, completamente destruído pelo
caminhão que ultrapassou sua faixa e bateu contra nós e, sem controle dos
meus atos, desvio o olhar até os dois sacos pretos estendidos no chão,
cercado pelos policiais.
Engulo em seco quando foco nos óculos escuros de papai, que eles
deixaram ao lado do saco. Eles estão rachados bem no centro, e contra a
lente escura, dá para ver com perfeição o sangue vermelho vibrante.
Meu corpo começa a tremer e a pressão na minha cabeça se torna
demais para lidar.
— Querido, olhe para mim. — Meu rosto é puxado gentilmente na
direção contrária dos sacos, e demoro alguns instantes para assimilar o
rosto da mulher diante de mim. — Está tudo bem, Orion. Estou aqui,
cuidando de você. Sempre cuidarei de você…
Pisco para me livrar das imagens do dia do acidente, e preciso puxar
uma respiração profunda, pois sinto como se não tivesse ar suficiente nos
meus pulmões.
— Você e-estava lá — gaguejo, sem conseguir acreditar.
— Eu já estive em muitos lugares, então peço que seja mais
específico, por favor… — diz enquanto anda na beira do lago, a saia do seu
vestido branco longo rodopiando com o vento, que se intensificou.
— Você era a paramédica que me fez desviar os olhos dos cadáveres
dos meus pais. Disse que estava cuidando de mim. — Engulo em seco, uma
sensação estranha percorrendo minhas veias.
— E...? — murmura, fazendo um gesto com a mão, como se esperasse
mais coisa.
Abro a boca para questioná-la, mas o que sai é um grunhido com a dor
alucinante que toma minha cabeça. Enfio os dedos entre os cachos do meu
cabelo e os puxo, tentando diminuir a pressão, mas isso parece intensificá-la
ainda mais. Ao olhar para cima, para o céu escuro, a memória cegante me
toma e quase me leva ao chão.
Observo as sombras laranjas e rosas se espalharem pelo céu, que
começou a clarear após a pior noite de toda a minha existência. A imagem
é bonita, e em qualquer outro dia, seria uma benção de ver. Agora, porém,
tudo que ela me causa é dor e tristeza, pois me lembra que é o primeiro dia,
do resto da minha vida, sem Rosa do meu lado.
Uma lágrima cai do meu rosto, mas não me movo para limpá-la.
Ignoro as vozes ao meu redor, murmurando suas condolências e fazendo
perguntas. Tudo parece tão distante… Estou perdido num abismo de
angústia, vendo vez após vez o carro ser engolido pelas águas escuras do
rio, levando para longe minha pequena.
— Está tudo bem, querido — uma voz feminina suave murmura, e
sinto a mulher apertar o cobertor mais forte ao meu redor.
Ergo a cabeça com dificuldade e encaro o rosto delicado claro, com
um fundo tão acinzentado que me faz piscar, por achar que é uma
alucinação. A mulher está com os cabelos pretos presos num rabo de
cavalo longo, e está vestida como uma das paramédicas que vieram junto
com os bombeiros, após longas duas horas de espera.
Ela me dá um sorriso suave e, novamente, aperta o cobertor térmico
contra mim, bloqueando o vento gelado, que bate contra meu corpo
molhado.
Sinto vontade de empurrá-la e jogar o tecido no chão, mas meus
braços estão sem força, todo meu corpo tomado pela exaustão e tristeza
profunda que me sufocam.
— Não está nada bem — rebato, minha voz quase não saindo.
A moça me dá outro sorriso, dessa vez triste e, por um segundo, sinto
que a conheço de algum lugar. Suas feições não me são estranhas…
— Mas um dia irá ficar. Prometo para você.
A dor para quando a lembrança some e percebo que estou de joelhos
no chão. Foco na neve branca abaixo de mim, puxando respirações rasas e
rápidas. Em um momento de loucura, pego um punhado de gelo e esfrego
no rosto e nuca, precisando sentir o frio para recobrar a consciência.
— Fico feliz que está conseguindo suas lembranças de volta, Orion —
ela diz assim que consigo me erguer novamente, meu corpo ainda meio
bambo.
A encaro, franzindo as sobrancelhas em confusão.
— Conseguindo minhas lembranças? Como assim?
— Elas estavam escondidas dentro da sua cabeça por muitos anos —
explica, dando alguns passos em minha direção. Ergo o braço no
automático e ela para. A expressão triste em seu rosto aperta meu peito.
— Quem as escondeu? Você?
A mulher nega, fazendo os cabelos negros balançarem suavemente.
— Foi você mesmo, querido. — Engulo em seco ao escutá-la, mais
uma vez, me chamar de querido. O modo como fala é tão… familiar! — Foi
a forma que encontrou para se proteger um pouco da dor. Infelizmente, no
processo você escondeu uma parte importante de si mesmo, que só agora
conseguiu subir de volta para a superfície.
Toco meu próprio peito, sabendo que ela fala da sombra dourada.
A deusa ri baixinho, atiçando minha curiosidade.
— O que foi?
— O seu pai chamava o kaylak dele da mesma forma, sabia? Sombra
dourada… — ela inclina a cabeça para o lado e abre um sorriso largo. —
Vocês são tão parecidos que chega a ser enervante!
— Conheceu meu pai?
— Eu quase me casei com o seu pai — a confissão me faz arregalar os
olhos e dar um passo para trás. — Ele foi o único mortal que um dia já me
chamou a atenção. Era forte. Bonito. Amoroso e atencioso. Muito leal!
Mesmo que seus olhos sejam completamente pretos e opacos, ainda
assim sei que ela está perdida em pensamentos.
— Até hoje não acredito que o perdi para uma humana — nega com a
cabeça, soltando uma risada sem graça. Não sinto ódio em suas palavras,
apenas uma tristeza fraca. — Sua mãe, no caso.
— É por isso que anda me seguindo? — questiono, tentando entender.
— Sente uma espécie de atração bizarra por mim, pois lembro o meu pai?
— Claro que não — bufa e sinto um empurrão forte no meu peito que
me leva ao chão. Ela não está perto de mim, por isso a encaro chocado. —
Você é presunçoso igual a ele, pelo amor dos céus!
Boto a mão na boca para evitar rir.
— E só para deixar claro, a palavra certa não é seguindo… Estou
cuidando de você — afirma, apontando com os dedos compridos,
completamente pretos, em minha direção. — E, apesar de Dalton achar que
não, estou cuidando dele e de Felícia também.
— Por quê?
— Você é uma pessoa muito especial, Orion. Acho que não faz ideia
do quanto! É o primeiro mestiço que veio a vida. Uma benção minha para
duas mulheres fiéis.
Engulo em seco, pois a palavra especial não soa de forma muito
positiva.
— Humanas não podem dar à luz a shifters. Ou pelo menos era assim
38 anos atrás. Tudo mudou quando sua mãe me orou com fervor, desejando
ter um filho com o amor da vida dela, seu pai.
— E você a atendeu? Mesmo sendo apaixonada por ele? — ergo a
sobrancelha, incrédulo.
— Não era apaixonada por ele. Eu o amava! — minha expressão deve
demonstrar minha confusão, pois ela revira os olhos e novamente bufa. —
Meu amor era puro. Eu queria a felicidade dele, e sabia que Ava o
completava com perfeição. Eles eram companheiros, afinal… Duas almas
separadas na hora do nascimento, e se juntaram em vida.
— Espera aí. — Esfrego a nuca, minha cabeça rodando com tantas
informações. — Primeiro você diz que humanas não podiam dar à luz a
shifters, mas agora você disse que eles eram companheiros perfeitos, duas
metades da mesma alma. Se você quem junta os companheiros, por que eles
não poderiam ter filhos? Não faz sentido!
— Nem sempre as coisas fazem sentido…
Que explicação vagabunda.
Uma pequena risada escapa de sua boca, mas ela rapidamente a
controla e me lança um olhar de falsa censura.
— Os deuses não podem fazer tudo, querido. A magia tem certas
regras que são muito difíceis de descumprir — explica, balançando o dedo
indicador como se estivesse me dando uma palestra escolar. — Nosso poder
vem de sacrifícios e fé, e para realizarmos pedidos, precisamos atingir uma
certa… cota de poder. E as orações incessantes da sua mãe, junto com as de
Alba, fizeram com que fosse possível eu realizar o milagre que fez com que
você nascesse.
— Quem é Alba? — pergunto, cada vez mais confuso.
— Alba é uma ômega que, infelizmente, foi dada em casamento para
um homem cruel e tirano — responde, toda alegria e divertimento sumindo.
— Desde o momento em que soube que seria forçada a casar com ele, aos
19 anos, até hoje, aos 41, ela ora para ser livre.
Um aperto se forma em minha garganta e esfrego o lugar para
desfazê-lo.
— E o que tenho a ver com isso? — não pergunto com a intenção de
ser insensível, apenas não consigo ver como posso estar conectado com
uma mulher que nunca nem escutei falar na vida.
— É você que irá realizar o pedido dela, matando seu marido.
A risada que eu solto é uma mistura de choque com incredulidade.
Espero que ela me acompanhe, dizendo que tudo não passa de uma
pegadinha, mas a deusa me encara com o rosto tão sério que a risada morre,
entalada em minha garganta.
— Eu não vou matar ninguém, ficou maluca? — grito, desconcertado.
— Não matei ninguém nem quando estava no exército, quem dirá agora!
Não quero ser preso justo quando encontrei Felícia e Dalton. Estou com um
filho a caminho!
— Um filho que você disse não ser seu… — ela toca na ferida,
erguendo a sobrancelha esquerda com um certo deboche que me faz querer
esganá-la.
— Eu estava em estado de choque — murmuro uma desculpa boba,
balançando a cabeça, tentando organizar os pensamentos. — Nunca pensei
em ter mais filhos além de Rosa, principalmente depois do que aconteceu.
— Eu sei — responde, me dando um pequeno sorriso que faz meu
peito se apertar. — Mas você precisa, Orion. É seu destino interromper o
reinado tirano de Bethal!
O nome desliza pela minha espinha como uma faca quente, e perco o
ar quando finalmente entendo o que, e de quem, ela está falando.
— A mãe de Felícia quer a morte do próprio companheiro? —
questiono, sem entender como isso é possível.
— Bethal não é o companheiro de Alba. Eles foram forçados a se
casar, pois Alba era filha de outro alfa, que a deu em casamento para criar
um vínculo de poder. Era o que iria acontecer com Felícia, mas ela fugiu e
se casou com Dalton, interrompendo os planos do pai.
A explicação faz meu estômago revirar. Um sentimento horrível
domina meu peito, uma ansiedade sem fim, e viro o rosto para encarar a
estrada que leva até minha casa.
— Você me forçou a vir até aqui. Por quê?
— Eu tinha que te explicar as coisas, Orion. Você ficou tanto tempo
preso no meio da dor, que não permitiu que sua onça saísse. Não se
desenvolveu como o restante dos shifters… Você é poderoso, mas precisa
aprender a se transformar, senão, não terá chances para vencer Bethal!
— Não quero vencer Bethal, só quero que ele pare de rondar meu
território e deixe eu e meus companheiros em paz! — digo, mesmo que a
sombra dourada em meu peito diga o contrário.
Ele quer derramar sangue para vingar as cicatrizes que Dalton e
Felícia têm na pele.
— Isso não irá acontecer, querido — murmura, me dando um sorriso
triste. — Bethal jamais te deixará em paz, pois te vê como uma ameaça. Ele
sabe que você é um alfa.
— Como? Eu nunca nem o vi antes!
— Mas falou com ele. Ou melhor, deu seu recado com o rugido que
soltou dois dias atrás. — Ela ergue as sobrancelhas e pisco ao me lembrar
do som que saiu da minha boca quando pulei para longe de Felícia e Dalton,
justo quando eles iriam me reclamar. — Mas mesmo se você não fosse um
alfa, ele ainda não te deixaria em paz. Bethal quer algo que você mantém
sobre seu teto.
— Felícia. — Suspiro, entendendo finalmente o que é o sentimento de
pavor que está me dominando lentamente. — Ele quer Felícia.
— A moeda de troca dele, em busca de mais poder… — é a última
coisa que escuto antes de sair correndo em direção à casa.
Meu coração bate forte no peito, o som do sangue correndo nas veias
invade meus ouvidos e fico sem ar quando chego diante da velha mansão,
que se ergue no meio da escuridão da noite.
A primeira coisa que vejo são as pegadas que vão em direção as portas
de vidro, que estão todas abertas. Não preciso entrar para saber que as
pessoas que rodearam a propriedade nos últimos dois dias levaram meus
companheiros. A mensagem escrita com o sangue de Dalton, bem diante de
mim, me diz isso muito bem:
“Eu avisei”.
21

FELÍCIA
Abro os olhos devagar, sentindo um cheiro estranhamente familiar que
me embrulha o estômago. Me deparo com um teto pintado de preto, a tinta
desbotada pelo tempo, fazendo com que eu consiga ver com perfeição por
causa da visão noturna, mesmo com a escuridão do quarto.
Pisco, sabendo que conheço aquele teto, mas não consigo me lembrar
de onde. Minha mente está meio lenta, o corpo pesado dos efeitos colaterais
do poder que Orion usou em mim e Dalton, quando nos impediu de sair de
casa.
A lembrança me deixa triste, pois nunca achei que ele fosse capaz de
fazer algo assim conosco. Levanto lentamente a mão em direção ao peito,
esfregando o lugar que pulsa como uma ferida aberta e sangrenta, em
seguida deslizo o toque até minha barriga, onde cresce o filho que tanto
desejei.
Ele é menor que um grãozinho de arroz, mas eu já o amo tanto que me
tira o fôlego! Infelizmente, sua vinda não está sendo do jeito que sempre
imaginei. As palavras de Orion me magoaram muito, de um jeito que não
sei se conseguirei superar.
A felicidade que senti assim que o cio sumiu do meu íntimo,
indicando que o óvulo foi fecundado, foi tomada pela angústia desde os
primeiros segundos, e após ontem, sinto apenas tristeza.
Esse era para ser o nosso bebê. Meu, de Dalton e Orion. O início da
família que sempre desejei e orei para a deusa da lua. Agora, sinto como se
ele fosse o motivo para o meu relacionamento ter findado.
Sei que não é. Dalton diz que o culpado é Orion, mas acho que nós
dois também temos culpa por termos nos entregado tão rápido. Sabíamos
que ele cresceu como humano e não entendia as tradições shifters… No
fim, não adianta jogar a culpa de um para o outro. Meu coração está partido,
tenho um filho na barriga e não sei onde estou.
Forço meu corpo a se erguer e pisco para limpar a visão, encarando as
paredes cor-de-rosa, cheias de porta-retratos sem fotos. Observo a
escrivaninha branca e limpa, colocada de frente para a janela, coberta por
uma cortina longa creme, as memórias finalmente voltando, fazendo meu ar
sumir.
Estou no meu antigo quarto, na casa dos meus pais!
Pulo da cama de casal estreita e corro até a porta, mas assim que toco
a maçaneta, solto um grito de dor, minha mão parecendo pegar fogo ao
entrar em contato com o que quer que colocaram ali, para que eu não
pudesse fugir.
Caio no chão, choramingando com a agonia que percorre meu
membro, e olho com ódio para a madeira. Respiro fundo e percebo que
aquele cheiro familiar é de Lunáfida, a mesma planta que meu pai usou nas
garras quando torturou a mim e Dalton. É uma planta conhecida entre os
shifters, pois em uma quantidade minúscula, misturada com Erva-de-São-
João, pode interromper o cio, evitando que a mulher tenha que engravidar.
A planta pura, porém, causa uma reação alérgica intensa, e impede a nossa
cicatrização. Um corpo que demoraria algumas horas para curar, se entrar
em contato com ela, pode demorar meses!
A vontade de lamber a mão machucada é forte, mas não o faço, pois
sei que se o veneno entrar na boca, atacará o corpo por dentro, causando
uma dor ainda pior, que pode levar a morte.
Me forço a levantar, tomando cuidado para não esbarrar em lugar
nenhum o ferimento que arde e pulsa, já criando bolhas purulentas na pele.
Vou até a janela, não preciso abrir as cortinas para saber que a área
está toda lambuzada com Lunáfida. O cheiro é forte e me causa náuseas,
por isso volto para a cama, minha barriga revirando como se eu estivesse
numa montanha-russa.
Eu não lembro de ter sido sequestrada. Minha última memória é de
Orion dizendo que não tínhamos permissão de sair da casa. Desmaiei assim
que começou a usar o transe. Pela pouca luz que passa pelas cortinas claras,
dá para perceber que ainda está de noite, então não estou há muito tempo
aqui. Algumas horas, talvez?
Procuro a conexão com meu marido, mas só encontro o absoluto
vazio, algo que aumenta meu pânico. Nosso laço estava desbotado, por
conta da adição recente de Orion, e por ficarmos focados nele, esquecemos
que tínhamos que fazer a cerimônia da mordida de novo, permitindo assim
que pudéssemos conversar estando longe um do outro.
Será que Dalton está ferido? Também foi sequestrado? E Orion? Ele
ainda está aprendendo sobre ser um metamorfo. Mesmo sendo poderoso,
não deve ter conseguido lutar contra meu pai e suas sentinelas! As dúvidas
e medos vão se acumulando em meu peito, me deixando com falta de ar,
encosto a testa nos meus joelhos, tentando não ceder ao pavor congelante
que desliza por minhas veias.
— Preciso sair daqui. Preciso encontrar meus companheiros. Preciso
deixar meu filho seguro — sussurro na tentativa de não perder de vez minha
sanidade, lágrimas grossas caindo em meu colo, tanto pelo medo quanto
pela dor da minha mão.
Me concentro em puxar respirações profundas pela boca, evitando o
cheiro horrível da planta venenosa e, quando a sensação de falta de ar
diminui um pouco, aguço minha audição para saber quem está na casa junto
comigo.
Escuto uma chaleira no fogo e o borbulhar de algo cozinhando. Algo
de cerâmica se choca com uma superfície dura, a bancada de mármore da
cozinha, talvez. O fogo da chaleira se apaga e o líquido é despejado. A
colher arranha o fundo do que acho ser uma xícara, e bate suavemente na
beirada dela.
Alguém suspira e sei que é minha mãe por causa do arrastar dos seus
pés no chão de madeira.
Ajeito minha postura quando a escuto subir as escadas.
Os passos avançam pelo corredor de maneira lenta e, por causa da luz
ligada no corredor, vejo a sombra do seu corpo pela fresta da porta, quando
para diante dela.
A porta range ao se abrir e, por meus olhos estarem adaptados a
escuridão, demora alguns segundos até eu conseguir enxergar minha mãe.
Quando a vejo, porém, ofego em completo horror.
Mamãe sempre foi uma mulher baixa e extremamente magra. Sua pele
era de um marrom-claro com fundo quente, um pouco mais escura que a
minha, que combinava com os cabelos ruivo-acastanhados, cortados acima
dos ombros e modelados em cachos perfeitos. Apesar de miúda, ela tinha
uma força no olhar que deixava claro que não era alguém para se irritar.
Estava sempre com a postura impecável, usando roupas com cores fortes e
chamativas. Vivia de salto, mesmo dentro de casa, e nunca ficava sem seus
brincos de ouro, um presente que ganhou do meu pai quando se casaram.
Não é essa a mulher que vejo parada no batente da porta, segurando
uma xícara de chá.
A pele marrom está cheia de machucados escuros arroxeados, os
cabelos presos num coque bagunçado, parecendo que não são lavados há
meses! Ela usa um vestido cinza-claro, que está tão largo em seu corpo, que
me choca! Não há brinco em suas orelhas, e nos pés ela usa um chinelo
velho, revelando que até seus dedos estão feridos.
— Mamãe, o que aconteceu? — questiono, me levantando da cama.
Ela ergue a mão, me mandando ficar onde estou, e olha para trás,
parecendo apavorada. Quando parece decidir que é seguro, ela entra no
quarto. Chego a estremecer quando vejo ela botar a mão na maçaneta para
fechar a porta atrás de si.
Seu rosto não demonstra dor, apenas medo e abatimento, fazendo meu
estômago torcer.
— Não temos muito tempo. Bethal irá voltar a qualquer momento —
sua voz sai tão baixa que, mesmo com a audição aguçada na minha lince,
sinto dificuldade para escutá-la.
— O que está acontecendo? Quem fez isso com você? — pergunto,
abrindo espaço na cama para que ela possa se sentar, após deixar a xícara
que segurava em cima da escrivaninha.
Seu corpo balança de um modo perigoso e num ato impensado, agarro
seu braço com minha mão ferida. Ela abafa meu grito tampando minha
boca.
Meus olhos enchem de lágrimas e, por um segundo, nossas íris se
fixam e vejo tanta dor ali que meu coração se parte.
Ela deixa uma única lágrima cair, que desliza por sua bochecha, onde
há um grande hematoma, no formato perfeito da mão do meu pai. Ele lhe
deu um tapa! Percebo, horrorizada.
— Eu senti tanta a sua falta, minha filha amada… — murmura, no
mesmo tom baixo, cheio de emoção.
Ela balança a cabeça e sei que está fazendo forças para não
desmoronar, por conta do lábio inferior que começa a tremer. Mamãe perde
a batalha e lágrimas grossas escapam dos seus olhos, assim como soluços
sufocados, que emanam tanta dor e tristeza que também começo a chorar.
Me jogo nos seus braços, agarrando seu corpo machucado com
desespero. Há saudade sobre mim e choro no seu ombro, percebendo como
estava necessitada do seu toque e carinho.
— Me desculpe, filha. Me d-desculpe! — gagueja enquanto tremores
fortes a percorrem. Seu corpo se encolhe contra o meu, como se buscasse
proteção, e um nó se forma em minha garganta ao perceber que a mulher
que eu sempre considerei inabalável, não era nada disso. — T-tentei lut-tar
contra isso. J-juro que fi-z tu-tudo que p-pude, m-mas eu não c-consegui su-
superá-lo! — ela balança a cabeça com força, completamente perturbada.
A abraço mais forte, tentando transmitir todo o amor que sinto por ela.
Deixo que desabafe apoiada em meu peito, do mesmo modo como fiz com
ela diversas vezes durante minha infância.
Conforme os segundos passam e as lágrimas findam, sinto meu
coração mais leve, pois a mágoa que guardei dela nestes dois anos, por não
ter apoiado meu casamento e não ter feito nada quando meu pai me puniu,
finalmente se foi.
— Isso sempre aconteceu? — pergunto quando se afasta. Observo-a
limpar o rosto com a barra do vestido, e minhas sobrancelhas quase somem
na entrada dos cabelos, tamanho meu choque.
Mamãe não responde. Nem sequer ergue o olhar para me encarar.
Seguro sua mão, com a minha não ferida, e lhe dou um aperto suave. Ela
permanece com os olhos baixos por vários segundos e, quando os ergue,
percebo que está com vergonha.
Seu balançar positivo de cabeça é tão rápido que, se eu não estivesse
com os olhos fixos nela, teria perdido.
— Por que você nunca me disse nada? Por que não me deixou ajudar?
— E como você me ajudaria? Antes, era só uma menina. E agora, tem
seus próprios problemas para lidar — rebate, fazendo eu me encolher com a
verdade. — Além disso, esse é o meu fardo para suportar. Se a deusa está
permitindo que tudo isso ocorra, é por alguma razão.
Um sentimento amargo desliza pela minha corrente sanguínea, e não
posso deixar de me lembrar das palavras de Dalton. Para que serve a deusa,
se ela nunca nos ajuda em nada? Ela não impediu que fôssemos feridos e
perseguidos, nem impediu que minha mãe apanhasse por anos. Ela não
existe. É uma história que os mais velhos contaram para nos manter na
linha.
— Mamãe, eu preciso saber onde está o meu marido — digo,
decidindo focar no que realmente importa agora. — Faz quanto tempo que
me trouxeram para cá?
— Pouco menos de 1 hora — revela, desviando o olhar para a xícara
que trouxe. Dou uma fungada, achando o cheiro do chá estranho, mas suas
próximas palavras desviam minha atenção. — Não sei onde Bethal deixou
Dalton. Elijah te deixou aqui e mandou que eu ficasse de olho em você. Há
outras sentinelas guardando o território, então não tem como você fugir. Ele
disse que em breve seu pai viria te buscar…
— Para quê? Por que ele sequestrou a gente, para começo de
conversa? — questiono, sem conseguir entender o que meu pai pode querer
conosco. Foi ele que nos manteve afastados nesses últimos dois anos!
— Vocês desobedeceram às regras, Felícia — murmura, mas seu
coração está disparado, assim como as mãos agitadas remexendo na barra
do vestido, revelam sua mentira.
— Mãe, o que está acontecendo? — repito, meu tom se enchendo de
raiva.
Ela demora para me encarar, mas quando o faz, meu coração também
dispara. Medo puro invade minhas veias e minha cabeça começa a rodar
quando escuto suas palavras.
— Taiga e seu pai fizeram um novo acordo. O alfa terá você como
esposa e, em troca, irá votar a favor do projeto do seu pai no Conselho… —
seu tom pesaroso adentra minha mente, se acumulando as dezenas de outras
emoções angustiantes que já ocupam o espaço.
— Que projeto? — respondo no automático, não conseguindo sequer
pensar nas outras palavras que disse.
— Bethal acha que já está na hora dos shifters ocuparem seu lugar no
topo da cadeia alimentar. Ele precisa de mais um alfa o apoiando para o
projeto ser aceito, e Taiga se tornou recentemente um dos membros do
Conselho dos Shifters.
Engulo em seco e a saliva desce rasgando, como se tivesse engolido
um quilo de areia.
— Eu já sou casada — murmuro, não conseguindo compreender qual
é a ideia maluca do meu pai. — Ainda mais do que isso, sou acasalada por
sangue e magia!
— Em breve não será mais — quase não a escuto, de tão baixo que
fala. Seu tom de voz transmite pena e me ergo do colchão, não aguentando
ficar parada, uma onda de adrenalina me dominando, exigindo que eu saia
dali e encontre meu marido. — Seu pai conversou com os anciãos, quando
descobriu que você tinha um novo companheiro. Eles descobriram que é
possível destruir o laço já criado num ritual antigo.
— Que ritual? — rosno, a um passo de perder a cabeça para a fúria.
— Eu… não sei direito os detalhes. Escutei por alto quando seu pai
falava com as sentinelas. — Ela se encolhe quando chego perto dela e,
apesar do movimento me deixar triste, estou preocupada demais com
Dalton para me impedir de agarrar seus ombros e sacudi-la.
— Abre logo a boca e fale o que você sabe! — ordeno, desespero puro
me percorrendo.
— O r-ritual tem que acont-tecer numa noite de lua cheia, exatamente
meia-noite — gagueja e um arrepio me percorre ao lembrar que hoje é noite
de lua cheia. — Uma estaca de prata besuntada com Lunáfida vai ser
colocada no coração dele, matando o vínculo de união entre vocês.
— E o matando no processo — sussurro, caindo na cama, minhas
pernas não sustentando mais meu peso ao perceber o plano horrível que
meu próprio genitor fez.
Mamãe se levanta cambaleante e vai até a escrivaninha, onde deixou a
xícara de chá. Suas mãos tremem ao levantar a porcelana e o cheiro
estranho adentra novamente minha cabeça.
— Tome, isso vai te acalmar. — Ela tenta demonstrar confiança, mas
escuto seu coração bater mais rápido, indicando a mentira.
— O que tem aí dentro?
— São apenas ervas calmantes — mente de novo, colocando
praticamente a xícara contra minha boca. — Beba tudo, filha, por favor.
Tento desviar a cabeça, mas mamãe agarra meu queixo com tamanha
força que não consigo evitar abrir a boca em choque. Ela aproveita o
momento para inclinar o recipiente e despejar o chá dentro.
No momento que sinto o gosto amargo, sei o que é.
— Me desculpe, filha — implora quando ergo os olhos para ela,
completamente horrorizada ao perceber que minha própria mãe me deu
Selvaroma, a planta usada para provocar abortos.
22

DALTON
O cheiro de mofo, fezes e sofrimento agridem minhas narinas, me
deixando pior do que já me sinto.
Meu corpo dói, pois lutei com as sentinelas de Bethal quando
invadiram a casa para nos sequestrar. Mesmo meu leopardo tendo mais
forças que eles separadamente, não tive chances com o grupo tão grande.
Pelo que vi, na hora da luta, havia pelo menos uns 9 betas na casa. Eu
senti o cheiro deles segundos antes de entrarem, mas meu corpo estava com
os efeitos do transe de Orion, e não consegui pegar Felícia no colo e pular a
janela.
— Se não fosse por ele, eu teria conseguido fugir — resmungo pela
terceira vez, numa tentativa vã de não focar na dor em meus pulsos, que
foram presos em correntes de prata besuntadas em Lunáfida.
Vovô tosse do outro lado da cela, e o som úmido do sangue e saliva
batendo no chão me faz estremecer.
— E iria se esconder onde, Khishig? — questiona vários momentos
depois, a voz ofegante e lenta pela dor.
Sua respiração está desnivelada e ao encará-lo, apoiado de qualquer
jeito na parede suja, sinto vontade de chorar, principalmente por ele me
chamar de Khishig, um apelido que significa felicidade, em mongol.
Algo que com certeza eu não trouxe para a sua vida nos últimos
meses.
Ele está coberto de machucados verdes e roxos, que se estendem na
sua pele amarela enrugada. Suas roupas estão rasgadas e sujas de sangue, os
olhos inchados por causa dos murros dados por algum dos filhos da puta
que seguem Bethal.
Quando acordei suspenso e amarrado na parede, a primeira coisa que
vi foi vovô. Eles o deixaram preso na parede oposta a mim, justamente para
me baquear, e prenderam minha mãe e avó na cela ao lado, permitindo que
eu escutasse os choramingo das duas todas as vezes que uma sentinela
passa, fazendo a ronda de meia em meia hora.
Não quero nem imaginar o que elas sofreram para ficar com medo da
mera presença delas.
Evito responder à pergunta de vovô, no meu inconsciente sei que ele
está certo. Eu sairia da casa, mas seria pego na floresta. Eles estavam em
maior número e parecem ter se organizado para nos pegarem.
Esse sequestro foi planejado. Estavam rondando a casa desde o dia
que Orion fez a ligação para a polícia, pois quebramos as regras ao nos
relacionar com um humano. E após meu telefonema para vovô, onde eu
disse que meu companheiro era um possível alfa, ganhamos a atenção total
de Bethal.
Eles o pegaram logo depois da ligação, o acusando de traição por falar
comigo, e trouxeram mamãe e vovó juntas. Mas sei que a causa real para a
prisão deles é o preconceito de Bethal.
O alfa sempre deixou claro que não gostava de nós, por sermos de fora
do Alasca. Minha fuga com Felícia só fomentou o ódio.
Ainda não sei direito o que ele quer comigo, mas nem me importo.
Minha preocupação está em Felícia e nosso filhote.
Eles a arrancaram das minhas mãos momentos antes de me apagarem
e, desde que acordei, não a sinto em meu peito.
— Você precisa parar de se remexer. O veneno vai corroer seus pulsos
com maior rapidez — vovô alerta, mas a compulsão para tentar fugir é mais
forte que o bom senso.
— Preciso sair daqui e encontrar minha mulher! — rosno,
desesperado para encontrar Felícia.
— Você vai encontrá-la em breve. Poupe suas forças. — O suspiro
que ele solta, me faz parar e encará-lo. Quando nossos olhos se encontram,
ele faz o movimento com a boca, completando a frase, mas sem dizer nada
— Para o momento certo.
— Que momento certo? — digo, também sem som.
Ele aponta, com a cabeça, para o lado de fora e aguço minha audição.
É difícil não focar nos soluços de vovó e nos dentes de mamãe,
batendo de medo, mas faço um esforço, buscando o que quer que vovô ache
que preciso encontrar. A voz de Miranda chega até mim, bem distante, mas
ainda compreensível:
— Falta menos de 1h para dar meia-noite.
— Graças a deusa que meu expediente acaba daqui a pouco! Não
quero ver… — Uma voz masculina, que acho ser de Begay, o shifter que
tirou Felícia dos meus braços, diz. Ele não completa a frase, atiçando minha
curiosidade.
— Não tem isso de expediente. O alfa exigiu que todas as sentinelas
estejam presentes na cerimônia. Ele quer mostrar força para Taiga —
Miranda responde, ríspida.
— Mostrar forças… — uma outra voz masculina, que eu não consigo
identificar, bufa. — Ele está é com medo do alfa de quem invadimos a casa.
Nunca senti um poder igual.
A afirmação é seguida por um grito agudo e o som de carne sendo
cortada. Algo bate no chão e líquido é derramado.
— Traidor maldito — Miranda rosna, cuspindo em seguida. — Não
existe nenhum alfa mais poderoso que meu Bethal.
Ergo as sobrancelhas diante do uso do “meu” e vovô movimenta a
boca para murmurar:
— Eles se descobriram companheiros. Faz quase um ano.
Arregalo os olhos, sem acreditar.
Por não podermos nos comunicar com ninguém, na única reunião
mensal que nos é permitido ir, não ficamos sabendo das fofocas, como os
outros membros do bando.
— E Alba?
Vovô dá de ombros, ou o mais perto de um “dar de ombros” que
consegue, dado seu estado acorrentado e ferido.
— Eles já eram amantes antes, então não tem muita diferença. Em
breve ele irá matá-la também. Miranda está louca para ocupar o posto como
Luna do bando — mamãe que responde, na outra cela.
Começo a questionar como que ela ouviu nossa conversa, se nem
palavras estávamos usando, mas escuto a voz do meu sogro, e minha mente
se enche de um ódio tão forte que tudo que consigo focar é no meu desejo
de arrancar a sua cabeça e jogar peteca com ela.
— O que aconteceu? — Bethal questiona, a voz suave como mel.
— Tinha um traidor entre nós, meu alfa. — Se eu não estivesse numa
situação tão deplorável, riria do quão ofegante e feminina Miranda soa.
— O que ele fez?
— Ousou dizer que você está com medo.
— E você o matou só por isso? — mordo o lábio inferior para conter o
sorriso, com seu tom de desagrado.
Ver Miranda se ferrando é uma das maiores alegrias da minha vida. A
mulher é uma vadia, e não me esqueço das risadas que deu quando Felícia
estava sendo torturada.
Um dia ainda irei me vingar…
— Ele te ofendeu, meu senhor! — repete, demonstrando choque.
— Ele era meu homem mais capaz, sua imbecil — rosna, e escuto o
barulho de um corpo caindo no chão, junto com um choramingo. — Limpe
essa bagunça antes que Taiga apareça! Vocês sabem como ele é todo
certinho — Bethal resmunga, e tento forçar minha mente para me lembrar
do alfa de Auke Bay, mas acho que nunca o vi.
Mesmo quando ele era o “noivo” de Felícia, não veio visitar a matilha.
A única coisa que sei dele, é que ele virou alfa há poucas décadas,
após a morte do pai. Uma morte que, dizem as más línguas, foi ele mesmo
quem provocou.
Poucos shifters, principalmente os alfas, morrem de velhice natural. A
maioria morre por causa do poder. E já que a matilha de Auke Bay é a
segunda maior do Estado, e era a 7° mais poderosa dos EUA na época em
que fomos banidos, não duvido que o filho tenha matado o próprio pai.
É por causa do poder dela que Bethal queria tanto a ligação com eles.
Ele já tem várias matilhas menores comendo em sua mão e se acrescentar
Auke Bay a lista, terá todo o território do Alasca sobre seu comando
indireto.
Um poder que ele com certeza não merece.
As próximas palavras de Bethal faz com que o alarme em minha
cabeça dispare, e meu estômago revira num mau presságio.
— Já estamos nos arriscando com a mentira de que Felícia está o
aceitando de boa vontade. Inclusive, precisamos nos apressar com a
primeira cerimônia, pois ele não pode ver Dalton de maneira nenhuma!
— Mas a lua ainda não está no centro do céu, alfa. Faltam uns 40
minutos — Begay responde.
— Não importa. A cerimônia de separação precisa ser completada
antes que Taiga venha buscar Felícia. Vamos fazê-la antes, pois não sei se
terá consequências para o corpo dela.
Encaro meu avô com os olhos arregalados e movimento os lábios para
questioná-lo:
— Do que ele está falando?
Vovô finge não entender, mas vejo seu olhar abatido. Ele sabe do que
Bethal está falando, mas não quer me dizer, o que só pode indicar que é
muito ruim.
— E o bebê dela? — Miranda pergunta, a voz saindo xoxa por causa
da bronca anterior.
Escuto os passos de Bethal se aproximando e uma porta se abrindo.
Ele diz quando está no topo da escada que desce para a área das celas, onde
estamos:
— Alba já cuidou disso. O feto não será mais um problema.
É como se gelo se espalhasse por minhas veias.
— Tem certeza? — Miranda questiona e, por um mísero momento, o
mundo entra em estado de pausa, todo meu ser implorando para que Bethal
diga que não.
— Sim. Deixei bem claro para Alba que a filha dela iria morrer se ela
não matasse o feto. Mas só por garantia, deixei-a em estado de semitranse,
para que forçasse Felícia a beber. William me confirmou, antes de eu
chegar, que tudo ocorreu de acordo com meu planejamento.
Por alguns segundos, sequer consigo encher meus pulmões de ar, puro
desespero e tristeza me percorrendo ao entender o que fizeram com o filho
que Felícia e eu desejamos por tanto tempo.
Ele se foi. Nosso lindo bebezinho se foi.
Bethal desce os degraus de pedra lentamente, assoviando num ritmo
animado, uma afronta e deboche que só me enche com mais raiva e dor.
Quando chega diante da minha cela, penso no quão injusto é o mundo por
um homem tão maligno ter a aparência do que muitos diriam ser de um
“deus grego”.
Apesar de já ter uns 80 e tantos anos, meu sogro tem o físico de um
homem de 40. Alto, forte e bem trajado, seu terno creme destoa do
ambiente nojento em que nos encontramos, e realça o tom de sua pele, um
marrom escuro, com subtom neutro. Os cabelos cacheados estão cortados
rente, lhe dando uma aparência confiante e formal, e o bigode cheio e bem
cuidado, em conjunto com os olhos dourados intensos e maliciosos, o fazem
parecer um daqueles mafiosos dos filmes, pelos quais as mocinhas se
apaixonam.
Muitos dizem que Felícia é o pai na forma feminina, mas eu não acho.
Apesar de compartilharem muitos traços, como os olhos alongados e a
altivez na forma de andar e agir, Felícia tem uma pureza que Bethal jamais
terá, e isso lhe torna completamente diferente do genitor. Ele exala uma
aura maligna e tensa, ficar perto dele é sufocante e vai matando a nossa
felicidade.
— Já acordado, Dalton? — o desgraçado diz, abrindo um sorriso
largo, mostrando os dentes afiados.
— Claro. Eu tinha que te dizer “boa noite”, sogrinho. Gostaria de
dizer que tive uma recepção maravilhosa, mas, infelizmente, isso seria
mentira, pois você é um péssimo anfitrião — provoco, sem conseguir conter
a língua. A queda na sua expressão de felicidade faz valer a pena a surra
que eu com certeza receberei.
— Sabe Dalton, eu vou ficar muito contente quando for a hora de eu
arrancar a sua língua — diz longos momentos depois, recobrando a postura
orgulhosa.
— Só não vai ficar mais feliz do que eu, quando for a hora de eu
arrancar o seu coração — continuo com a pose de tranquilidade, mesmo que
por dentro esteja tremendo de pavor, pois ficar perto dele me recorda das
dores terríveis que senti dois anos atrás.
O som da sua gargalhada ecoa pelas celas vazias, tornando tudo mais
macabro, e quando ele começa a bater palmas, não consigo evitar pular de
susto, um ato que não escapa do seu olhar afiado.
Meu sogro coloca a mão no bolso para pegar a chave da fechadura, e
engulo em seco quando a trava gira e ele entra no pequeno recinto.
Bethal passa por meu avô, o olhando com nojo, e quando para diante
de mim, estremeço com a raiva que vejo em seus olhos dourados.
— Sabe, garoto… — começa, girando lentamente a chave nos dedos
compridos. — Pode não acreditar, mas gosto de você. É um garoto esperto e
forte. Dedicado. — Ele concorda com a cabeça, uma expressão tão bem
fingida no rosto que, se eu não tivesse visto a raiva em sua íris, iria acreditar
nas suas palavras. — Você tinha tudo para ser um dos meus melhores betas!
— Menos a linhagem — completo seu pensamento, abrindo um
sorriso cheio de rancor.
— O seu lugar não é aqui — afirma, pressionando dolorosamente a
ponta da chave no meu peito. — Você é um estrangeiro que veio roubar os
bons alasquianos. Roubar nossas casas. Nossos trabalhos. Nossas mulheres
— a cada palavra que diz, ele afunda mais a chave na minha carne, até que
estou contendo um grito de angústia, quase que seu dedo inteiro enfiado
dentro do meu peito.
Bethal aproxima a boca da minha orelha e solta um risinho que me
deixa louco de raiva.
— Achou mesmo que eu deixaria a minha filha ficar acasalada com
um mongol? — seu cuspe cai sobre meu olho e o fecho no automático. Ele
escolhe este momento para descer com a porra da chave, rasgando do peito
até pouco acima do umbigo.
Berro com a dor repentina, sem conseguir me conter, e o desgraçado ri
com mais força, sendo acompanhado por Miranda, que está observando do
lado de fora das grades.
Ódio e humilhação batalham dentro de mim, e quando encaro os olhos
de Bethal, entendo finalmente o que irá acontecer comigo.
— Eu te disse que iria encontrar um jeito de tirar Felícia de você,
Dalton. Ela sempre foi de Taiga — fala, suave, puxando lentamente a chave
para fora da minha carne, aumentando minha angústia e dor. — Agora, vou
devolvê-la a ele, como deveria ter sido desde o início. A sua morte é apenas
uma consequência que me agrada muito. — Dá de ombros, abrindo um
sorriso que me revira o estômago.
— Esta-tamos ligados. Se e-eu morrer, ela também mo-rre — engasgo
ao dizer, as palavras saindo com dificuldade por causa da dor aguda em
minha carne.
— Por enquanto, é verdade. Mas depois do ritual, o laço de vocês irá
desaparecer, tornando Felícia uma noiva adequada para Taiga — a frieza
em sua voz me arrepia. — O bebê era a única coisa que impedia a
separação. Agora que o feto se foi, vou destruir esse maldito vínculo, matar
você e dá-la a Taiga, que, por algum motivo maluco, ainda a quer.
Começo a me mover, desesperado para fugir e encontrar minha
mulher, mas Bethal inicia o ronronar de transe e meu corpo cede ao seu
poder.
— Espero que você tenha aproveitado bastante esse cio, Dalton, pois
foi o primeiro e único da sua vida — afirma sorrindo, antes de usar a chave
manchada com meu sangue para abrir as algemas que me prendiam na
parede.
Caio no chão com um baque que machuca, e odeio a sensação de
humilhação que me toma ao perceber que estou curvado na frente dele, sem
poder me mexer.
Uma lágrima desliza pelo rosto ao lembrar que pouco tempo atrás
estava sentindo a mesma coisa, só que era Orion quem estava no controle.
Pela deusa, se eu pudesse voltar no tempo… faria qualquer coisa
para ser controlado novamente pelo meu companheiro traumatizado, e não
pelo meu sogro psicopata!
As sentinelas de Bethal me arrastam para fora do calabouço, não me
dando uma oportunidade de me despedir da minha família, que chora e
soluça de tristeza, sabendo que meu fim está próximo.
O brilho da lua me ilumina conforme sou arrastado pelo chão irregular
da floresta dominada pela neve, e enquanto passamos pelos abetos
carregados, meu mal-estar vai aumentando, pois reconheço o lugar para
onde estamos indo.
Desespero me toma e tento fugir novamente, mas meus membros não
me obedecem, o ronronar de Bethal sendo forte demais para superar. Minha
respiração engata, o coração disparado ecoa pelos meus ouvidos, tão alto,
que mal escuto as palavras que ele diz em seguida:
— Achei apropriado que a cerimônia ocorresse onde lhe torturei pela
primeira vez. Naquele dia eu quis matá-lo, mas não pude. Hoje não terá
nenhum ancião intrometido para me parar, e nem a possibilidade de eu
perder o poder que Felícia pode me proporcionar — a voz de Bethal soa
alegre e não consigo impedir meus olhos de se encherem de lágrimas
quando o palanque de madeira surge.
Toda a área em volta da madeira, num círculo perfeito, está limpa da
neve. A visão é estranha e me causa arrepios, principalmente quando
percebo que o arco de madeira que passa por cima do palanque, onde fui
amarrado dois anos atrás, para ser torturado, está cheio de Lunáfida, uma
flor de aparência bela e chamativa, com pétalas de um roxo suave, largas e
delicadas.
Quando encontrada na natureza em sua forma completa, ela não
apresenta grandes riscos para os shifters, mas após ser batida numa pasta,
ela se torna mortal!
— O prendam no arco — ele orienta, e as sentinelas me levam para
cima do palanque.
O desespero me cega e tudo se torna um borrão ao meu redor,
conforme amarram uma corda grossa nos meus pulsos e me erguem até eu
ficar na ponta dos pés.
Meu sogro também sobe na madeira, e o som dos seus passos ecoa
pela noite conforme ele anda até a pequena mesa que tem na ponta oposta
de onde estou. Demoro alguns segundos para perceber que há uma estaca de
prata em cima dela e um pote feito com um crânio humano. O cheiro que
exala de dentro deixa claro que é veneno.
— Sabe, Dalton, foi uma sorte imensa que vocês tenham encontrado
outro companheiro na mesma época em que descobri que é possível
desfazer o vínculo — diz, agarrando o pote e a estaca, trazendo-os para
perto de mim. Vejo que o crânio está abarrotado de Lunáfida em forma
líquida, que é onde ele insere o objeto de prata. — Vocês facilitaram muito
meu trabalho, pois o laço já está naturalmente desbotado. Eu só vou
terminar de apagá-lo.
— Orion vai matar você, quanto te encontrar — consigo dizer,
ofegante pela dor que percorre meus membros, principalmente meus pulsos,
que estão em carne viva.
A gargalhada de Bethal se junta com as das outras sentinelas. O som é
tão alto que faz um bando de aves voarem para longe, e machuca meus
ouvidos.
— Aquele cara? O rugido dele é bonitinho, não vou negar — debocha
e meu leopardo rosna em meu peito, pois sua lealdade já é 100% do nosso
companheiro. — Mas tem que ser muito ingênuo para achar que um shifter
que nunca se transformou, poderia lidar comigo, o alfa supremo do Alasca.
Ele estende as mãos, como se estivesse esperando aplausos e quase rio
quando seus betas, de fato, começam a bater palmas.
— Como você é ridículo — cuspo, sem entender como ele conseguiu
tanto poder.
O tapa que me dá é forte, mas mal o sinto diante das outras dores que
me percorrem.
— Seu moleque… — Ele agarra meu queixo com brusquidão,
cravando as garras na carne, e me lembro que não muito tempo atrás eu fiz
a mesma coisa com Felícia.
Pela deusa, parece que já se passaram anos desde os dias em que eu e
minha mulher sofríamos pela falta de cio!
Sempre escutei dizer que quando estamos perto da morte, um filme de
tudo que fizemos durante a vida passa na nossa cabeça. Não é isso que
acontece agora.
Minha mente está vazia. Eu não consigo pensar em nada, pois Bethal
voltou a ronronar, me botando num transe ainda mais profundo do que
antes.
— Eu iria esperar Felícia aparecer, mas acho que será melhor se você
já estiver morto quando ela chegar. Tenho o sangue dela para a parte do
ritual, de qualquer maneira — murmura, aceitando um pequeno frasco
cheio de um líquido vermelho espesso, que Begay lhe entrega.
Não perco a encarada que o beta me dá, e ver a pena em seu olhar
quebra a falsa paz que estava me dominando por causa do transe.
— Sinto muito — ele molda as palavras em seus lábios antes de se
afastar rapidamente de Bethal e Miranda, que também subiu no palanque e
me observa com óbvio deleite.
Meu sogro abre o pote com o sangue da minha esposa, e sorvo o ar
com desespero, o cheiro doce de Felícia provocando lágrimas em meus
olhos, pois ela ainda cheirava como grávida quando o recolheram.
O desgraçado ainda me provoca, aproximando o frasco, deixando-o
bem abaixo do meu nariz.
— Respire bem fundo, Dalton, pois vai ser o último resquício da
minha filha que terá, antes de morrer.
Miranda ri quando começo a chorar, observando Bethal jogar o sangue
dentro do crânio cheio de Lunáfida. A estaca de prata resplandece com a luz
da lua, que está quase que totalmente em cima do arco, onde estou preso, e
meu estômago torce de pavor quando o vejo mergulhar metade do metal no
líquido, que perde a cor prateada para se tornar um roxo profundo, com
aparência assustadora.
— Últimas palavras, garoto? — questiona, um sorriso tão grande no
rosto que só me faz chorar mais forte. Eu até tento abrir a boca para xingá-
lo, mas o transe me impede, o seu olhar risonho deixando claro que fez isso
de propósito. — Nada? Que pena, estava ansioso para saber qual piadinha
você iria soltar.
Ele encosta o punhal no meu peito desnudo e o veneno arde,
corroendo a camada superficial da pele. Tento me preparar para a dor e na
hora que vejo seu olho brilhar de malícia, prendo a respiração.
— Espere! — um grito corta o silêncio de expectativa que se criou na
pequena ravina em que estamos.
Bethal vira a cabeça e se afasta para falar com uma das suas
sentinelas. Não consigo escutar o que ele diz, de tão alto que meu coração
está batendo em meus ouvidos, ansiedade e pavor lutando em meu peito,
tentando me dominar.
Meu sogro rosna irritado, e o som chega até mim como choques
elétricos, me fazendo estremecer e choramingar.
— Todos vocês, vão recepcionar Taiga, para que ele não estranhe a
falta de guardas. Irei finalizar aqui, pegar Felícia e depois vou encontrá-los
— ordena, apontando para as sentinelas que formaram um círculo ao nosso
redor.
— Não sei se é prudente você ficar sozinho, meu alfa — Miranda diz,
tocando o ombro de Bethal.
Ele a afasta com um empurrão e ela quase cai do chão.
— Não perguntei o que você acha. Suma daqui junto com os outros —
resmunga, revirando os olhos, olhando para ela com tanta repulsa que não
consigo compreender como eles podem ser companheiros.
— E se o outro alfa aparecer? — ela tenta se aproximar de novo, e
dessa vez Bethal usa seu transe para que lhe obedeça.
— Então vou acabar com ele antes do previsto — se gaba, soltando
uma risadinha que me faz cerrar os dentes. — Ele é um shifter não
transformado. É pouco melhor que um mero ser humano. Não tem a
mínima chance contra o alfa supremo do Alasca!
Todos as sentinelas começam a bater palmas, igual a robôs
sincronizados, e me permito observar melhor Begay, que está próximo a
mim.
Seus olhos dourados parecem meio opacos e sua expressão é de
abatimento.
Eles estão sendo controlados por transe. Percebo com um misto de
frustração e pena.
Se Bethal é tão forte ao ponto de controlar tantas pessoas, que chances
Orion tem? Quero acreditar que meu companheiro é forte o suficiente para
vir me salvar, mas preciso ser realista.
Orion nunca se transformou na vida e, apesar de poderoso, não tem
nem um porcento da experiência do meu sogro. Se um milagre não ocorrer,
minha morte jamais será vingada.
Uma lágrima cai e o triste fato recai sobre mim.
Quando todos as sentinelas se afastam, Bethal volta a se aproximar.
Ele está com um sorriso fingindo, as mãos relaxadas ao lado do corpo.
Caio na sua armadilha e solto um suspiro, abaixando por um mero segundo
a guarda. É quando ele ataca.
Bethal não faz cerimônia para cravar o punhal no meu peito. É tão
repentino, que demoro alguns segundos para sentir o corte profundo.
Quando minha mente o processa, porém, uma sensação congelante me
toma, se espalhando por minhas veias com rapidez.
Não é fogo que me percorre, é gelo. Domina meu peito e cabeça, me
deixando entorpecido. A visão embaça, como se eu estivesse olhando por
um vidro muito sujo e escuro, e a cada segundo que passa, menos luz
consigo ver.
Sinto os pulmões pararem de trabalhar, sendo afetados pelo efeito da
Lunáfida, mas só me desespero quando o veneno chega na alma.
O rastejar do gelo se aproxima daquele lugar belo e frágil, onde fica
meu laço com Felícia e Orion, e é como se eu sentisse os cristais da neve
percorrendo o espaço, matando tudo que tocam.
Não tenho certeza se o som que sai da minha boca é um grito de raiva
ou lamento, mas enquanto sinto o veneno matar o vínculo que lutei tanto
para ter com o amor da minha vida, uma fraqueza pesada me domina.
Meus olhos se fecham e o ar deixa de existir. Deixo de existir, pois
sem Felícia e Orion eu não sou nada.
A última coisa que escuto, antes da escuridão me levar, é um rugido
que balança a terra.
23

ORION
Um pouco antes…

Ódio é uma palavra fraca para descrever a emoção que percorre


minhas veias, fazendo meu coração retumbar em meus ouvidos e a vista
embaçar.
Os invasores que rodeavam meu território roubaram meus
companheiros e, por conta disso, a ideia sobre não matar ninguém
desapareceu totalmente de dentro de mim.
Agora eu quero vingança. Sangue. Morte.
Uma dor aguda retumba por meus ossos e ranjo os dentes conforme a
sinto se espalhar por minha carne, tão forte que meus joelhos falham e caio
no chão.
O ar escapa dos meus pulmões, me fazendo sufocar, mas antes que eu
possa me desesperar, a voz da sombra dourada ecoa em minha cabeça:
Me deixe sair, para podermos trazer nossos companheiros de volta.
Jogo a cabeça para trás, acolhendo a dor enquanto os ossos se partem
e a pele rasga. Urro para a lua enorme e brilhante no céu escuro, cheio de
estrelas, aceitando a mudança que, apesar de agonizante, também é
estranhamente satisfatória.
Minhas mãos se fincam no chão coberto de neve e, ao encará-las,
observo o pelo dourado tomar o lugar da pele clara. As unhas se tornam
garras. O nariz, um focinho. Minha visão se estreita e aguça.
Os cheiros e sons invadem minha cabeça conforme meu corpo deixa
de ser humano para se tornar a onça-pintada que por tantos anos escondi no
fundo da alma.
Quando a transformação se encerra e sinto as enormes presas
encherem minha boca, rujo para o céu escuro, um aviso para aqueles que
roubaram minha família.
Matarei todos vocês!

A floresta escura, mas nem um pouco silenciosa, passa por mim como
um borrão conforme sigo a trilha de cheiros que ficou no ar.
Por conta da minha nova audição apurada, escuto cada piar dos
passarinhos que se escondem nos galhos cobertos por neve. Cada respiração
dos esquilos e coelhos. O farfalhar das agulhas dos abetos, que balançam
com a brisa noturna, e até mesmo o som dos flocos de gelo caindo no chão.
É tudo demais para lidar. A sensação é avassaladora, mas também
maravilhosa. Nunca me senti mais livre e vivo.
Magia pura percorre minhas veias conforme corro, pulando os
obstáculos ocultos pela camada branca da neve, coisas que se eu estivesse
na forma humana, jamais conseguiria ver.
Porém, apesar do poder que sinto, não me esqueço do meu foco
principal. Eu não me transformei porque queria. Eu o fiz para pegar de volta
o que me roubaram.
Felícia e Dalton, meus companheiros.
A angústia no meu peito aumenta a cada segundo que passa, e quando
me encontro numa encruzilhada, os cheiros indo para direções distintas,
rujo de fúria, sem saber o que fazer.
Meu cérebro e coração lutam entre si, pois tenho que escolher quem
resgatarei primeiro. Dalton, o gatinho cheio de medo, que se esconde atrás
da língua afiada? Ou Felícia, a mulher doce e insegura, que leva nosso
filhote no ventre?
Me parte o coração seguir para o lado esquerdo, mas percebo que as
chances de Felícia estar numa situação mais delicada e perigosa são maiores
do que de Dalton, que é um homem alto e forte, com um animal poderoso.
Voltarei para te buscar. Prometo, querendo sentir novamente dentro
do peito aquele vínculo frágil e belo, que fiz com o pirralho. Desde que eles
saíram da minha casa, não os sinto na minha alma, e este é outro motivo
para eu estar tão desesperado.
Não sei se isto é normal, por causa da distância, ou se significa que
algo horrível aconteceu. Espero que não seja a última opção…
A trilha avança pela floresta, até se abrir para uma área com algumas
casas, onde é possível enxergar a montanha Gastineau Peak no horizonte.
Preciso parar por alguns segundos para tentar reencontrar o cheiro de
Felícia, que se perdeu na multidão de todos os outros.
Quando o acho, sigo por trás das árvores, passando pelas poucas casas
que ainda tem alguma luz acesa. O rastro me leva até o final da rua, onde há
uma casa grande de dois andares, em formato de chalé, com as paredes de
madeira expostas.
Respiro fundo e me concentro, tentando encontrar minha mulher.
Quando escuto seus soluços, uso todo meu autocontrole para não rugir e
invadir de uma vez.
Há betas por perto — a sombra dourada diz, me forçando a retirar os
olhos da janela escura, de onde vem o choro, e observar meus arredores.
Mal tenho tempo de me virar antes de escutar o estalo, vindo de trás de
mim, sentindo um corpo bater no meu.
O pequeno felino é ágil e rápido, por isso consegue me dar alguns
arranhões. Porém, na hora que deixo o instinto me guiar e bato com a pata
em sua cabeça, o som dos ossos quebrando deixa claro que tenho muito
mais forças do que pensei que tinha.
O corpo do lince voa para longe, parando apenas quando se choca
num dos abetos. Ao cair no chão, é quase que imediatamente coberto pela
neve, que estava acumulada nos galhos.
Menos um. Minha onça conta, sua sede de sangue sendo brevemente
satisfeita com a morte recente de um dos capangas de Bethal. Sinto o cheiro
de mais dois.
Escuto as folhas farfalharem e o ar a minha volta fica elétrico, como
se sentisse o perigo eminente. Rolo no instante em que o lince se joga em
cima de mim, as garras expostas para o ataque.
Abro a boca no automático e minhas presas se fecham contra o flanco
vermelho, parando os movimentos bruscos que o animal estava tendo, ao
perceber que se jogou para a própria morte. O gosto de sangue explode em
minha língua e um prazer perverso me domina ao perceber como eu adoro a
sensação da carne e ossos cedendo à força da minha mordida.
O terceiro e último beta nem tenta me atacar. Escuto o barulho das
suas patas correndo para longe e, após uma breve perseguição, o pego com
um salto, as presas perfurando sua jugular com uma facilidade que deveria
me assustar, mas não o faz.
Não fico parado tempo suficiente para apreciar o sabor e a quentura do
sangue. Assim que o coração do shifter para de bater, corro em direção à
casa, pronto para pegar minha mulher e ir atrás de Dalton.
A transformação de volta para humano é rápida e menos dolorosa do
que eu previa, e assim que abro a porta, me deparo com uma sala simples e
aconchegante.
O cheiro de Bethal está forte no ar, mas não parece ser recente. Ainda
assim, não abaixo a guarda conforme ando silenciosamente pelo térreo do
chalé, procurando qualquer sinal de perigo.
O som de um soluço, diferente dos da minha companheira, leva minha
atenção até a cozinha e, ao passar pelo vão em formato de arco, me deparo
com uma mulher que de imediato sei ser a mãe de Felícia.
— Alba? — minha pergunta a faz pular e berrar, e o medo explicito
em seu rosto me faz dar um passo involuntário para trás e erguer as mãos,
para lhe mostrar que não sou uma ameaça.
O tempo parece parar enquanto nos encaramos, e um misto de pena,
tristeza e raiva se fixam em meu peito ao ver sua pele ferida.
— Você sabe quem eu sou? — questiono, mantendo a voz suave e
calma, mesmo que o desespero para achar Felícia esteja me corroendo por
dentro.
Está mulher passou anos da sua vida sendo abusada, orando para a
deusa lhe libertar. Ela está ferida física e emocionalmente — me lembro,
tentando não fazer movimentos bruscos para não lhe assustar mais.
— Por favor, não me mate — seu sussurro partido corta meu coração.
— Não vim para matar você. Só quero minha mulher e filho — digo,
um aperto estranho tomando meu peito quando a observo esconder o rosto
com as mãos, seus soluços ficando mais altos e desesperados.
— E-eu só qu-ueria prot-tege-la. E-le me o-obrigou a da-dar o ven-eno
— suas palavras saem gaguejadas, por isso demoro um pouco para
compreendê-las. Quando o faço, porém, não fico na cozinha para escutar o
que mais tem a dizer.
Subo os degraus correndo, pulando-os de dois em dois, e sigo a trilha
do cheiro de Felícia, com o coração retumbando em meus ouvidos, puro
pânico correndo nas veias.
Ao abrir a porta do quarto, o cheiro acre invade minhas narinas, mas
não foco nele, e sim na minha gatinha que está caída em cima da pequena
cama de solteiro, o corpo enrolado em posição fetal.
— Puta que pariu! — ofego assim que vejo o sangue em suas coxas, e
preciso segurar na parede para não cair de choque.
Felícia ergue a cabeça, e ver seus olhos inchados pelo choro, o rosto
tomado de dor e luto, corta fundo minha alma.
— Ah, querida… Venha cá. — Abro os braços quando me aproximo e
ela pula da cama e me encontra no meio do caminho.
Seu corpo se encaixa no meu com perfeição, e ter seu cheiro, mesmo
que modificado pelo veneno que lhe deram, acalma uma parte minha que
estava queimando de angústia.
— Ele se foi, Orion. Se foi totalmente! — chora, afundando o rosto no
meu peito, a tristeza que sente chegando até mim pelo frágil laço que
compartilhamos.
A seguro mais apertado contra o peito, minha dor sendo eclipsada pelo
desejo de confortá-la e protegê-la.
— Sinto muito, amor. Sinto mesmo — sussurro contra seus cachos
ruivos, uma única lágrima caindo ao perceber que cheguei tarde demais e,
mais uma vez, não pude salvar minha família.
Todas as pessoas que um dia já amei, morreram. Estou amaldiçoado.
— Isso não é verdade, Orion — a voz suave da deusa ecoa pelo quarto
e Felícia estremece de pavor em meus braços, sem saber de onde o som está
vindo.
— Como não é verdade? — questiono, lágrimas grossas deslizando
por minhas bochechas quando as emoções finalmente me quebram. —
Meus pais morreram. Em seguida minha avó. Deixei que levassem Rosa
embaixo do meu nariz, o que ocasionou na sua morte. Agora permiti que
pegassem meus companheiros e meu segundo filho morreu, sem nem ter se
desenvolvido no ventre! ISSO NÃO É A PORRA DE UMA MALDIÇÃO?
— termino berrando, a visão totalmente embaçada pelo choro.
Fecho os olhos, sentindo a dor me percorrer, e só os abro novamente
quando escuto Felícia ofegar, suas unhas cravando dolorosamente na carne
dos meus braços.
A deusa está bem na nossa frente, emitindo uma luz prateada tão forte
que não é possível lhe encarar por mais de alguns segundos.
— Nenhuma dessas situações foi culpa sua, Orion! — ela diz em tom
de repreensão. — Seus pais morreram por conta de um motorista bêbado,
não por você ter começado a se transformar. Sua avó morreu de ataque
cardíaco e, mesmo que ela não tivesse ido até aquele navio, Morana ainda
viria buscá-la, pois sua hora tinha chegado. Rosa foi levada enquanto você
estava dopado, e se não tivesse sido naquela noite, seria em outra, pois
Cassandra já havia decidido fugir e desaparecer. Pare de ficar se lamuriando
por um passado que não pode mudar e comece a focar no presente, pois
enquanto você chora e grita igual uma criança mimada, seu companheiro
está prestes a morrer!
O choque de realidade que ela joga em cima de mim me faz
estremecer e perder o ar, uma mistura de negação e aceitação girando em
minha mente.
A raiva e a dor cedem lugar para uma urgência que adentra até meus
ossos, e me afasto de Felícia, pensando como chegarei até Dalton antes que
seja tarde demais.
Eu não posso perdê-lo também!
— Bethal está fazendo a separação dos laços. É por isso que ele
precisava que o bebê fosse eliminado — a deusa explica, apontando para a
barriga de Felícia, onde minha mulher está com a mão apoiada, numa
proteção vã. — Com duas vidas no corpo de Felícia, o ritual não daria certo.
— O meu bebê se foi. Estou sangrando sem parar desde que minha
mãe me obrigou a tomar o chá — Felícia diz com a voz embargada, dando
passos bambos para trás, até encostar as costas no meu peito.
Um ódio profundo me toma ao processar finalmente a informação de
que Alba participou do processo para a morte do meu filhote, e o desejo por
sangue retorna com força total.
— Vou matá-la! — rosno, sem controle do meu corpo, que já está se
movimentando, indo em direção à porta.
Mal dou dois passos e me vejo obrigado a parar e, lentamente, se
voltar para a deusa no meio do quarto.
— Não vai, se quiser que eu traga o bebê de volta — seu alerta faz eu
perder a capacidade de raciocinar.
— O quê?
— Alba não teve culpa. Ela estava sobe efeito do transe de Bethal e
queria apenas proteger Felícia — explica e, apesar de uma parte minha ter
percebido isso na cozinha, quando escutei a mulher dizer que foi obrigada a
dar o veneno, o ódio em meu peito não desaparece.
Quando a deusa percebe, solta um bufo de frustração e aponta para
Felícia, que permanece parada onde a deixei, como se estivesse congelada
pelo choque. Seu rosto é uma mistura de dor, pavor e esperança.
— Se mostrar misericórdia a Alba, eu trago o bebê de volta.
A promessa me encanta e seduz, maravilhosa demais para ser verdade,
e apesar de eu ser tentado a aceitar de imediato, por conta da felicidade
pulsante que minha mulher está sentindo, não o faço.
— Você não é poderosa o suficiente para tomar uma alma das mãos da
deusa da morte — relembro a informação que me disse, quando pedi que
me trouxesse Rosa de volta.
— É verdade. Normalmente eu não tenho poder para trazer uma alma
que já nasceu de volta a vida — diz, e meu coração dá um salto de tristeza.
— Mas o filho de vocês é novo, tem pouco mais de dois dias. Eu o trago de
volta com uma barganha simples.
— E o que está barganha irá nos custar? — questiono, me lembrando
da fala de um personagem da série Once Upon a Time, que dizia que toda
magia exige um preço.
A deusa solta uma pequena risadinha ao ler meu pensamento e o olhar
que me dá se parece muito com orgulho.
Após alguns segundos, ela responde.
— Alma por alma — a frase ecoa no quarto, me deixando sem ar. —
Este é o pagamento preferido de Morana, a deusa da morte.
— De quem? — pergunto, me referindo a alma.
— De um alfa. Se será a sua ou de Bethal, as suas ações que
determinarão.
Respiro fundo e encaro Felícia. São seus olhos dourados, tomados de
expectativas, que me fazem balançar a cabeça em concordância.
— Com a alma de Bethal, eu posso trazer qualquer pessoa de volta?
— questiono, a ideia adentrando em minha mente quando observo o quarto
cor-de-rosa onde estamos, vendo os detalhes infantis pela primeira vez.
— Ele é um ser muito poderoso… — a deusa diz de forma lenta e
volto a encará-la, um sentimento muito parecido com esperança enchendo
meu peito. — Acho que Morana pode aceitar fazer a troca da alma dele pela
de Rosa.
O nome da minha filha ecoa pelo quarto e engulo em seco, mais uma
vez colocado numa encruzilhada.
Trago de volta a filha que perdi 8 anos atrás, ou o bebê que nem se
formou no ventre de Felícia?
— Você terá que decidir isso depois, Orion. Dalton está sendo levado
neste instante, e não podemos mais perder tempo — a deusa diz, fazendo
todos os outros pensamentos em minha mente desaparecerem.
— Onde eles estão? — questiono, ajeitando a postura, a angústia
voltando a me dominar.
— Onde os traidores são punidos.
Felícia não fica no quarto para me explicar onde é. Ela se transforma
no pequeno felino de pele vermelha e sai correndo do quarto, me obrigando
a ir atrás.
Escuto o ofego de Alba quando desço as escadas, mas não paro,
mesmo que ainda esteja com raiva do que ela fez ao meu filhote.
Ao sair para a noite gelada, deixo a dor me dominar, quebrando e
remodelando os ossos.
Leva menos de meio minuto, mas é o suficiente para eu ter que
procurar Felícia pelo cheiro, pois seu animal sumiu no meio da neve branca.
Minhas patas batem rapidamente no chão, comendo a distância que
havia entre nós, e quando chego ao seu lado, sou obrigado a diminuir o
ritmo.
Até tento encontrar Dalton de novo pelo cheiro, mas o vento levou a
trilha embora, me obrigando a permanecer atrás de Felícia, que desvia e
pula dos galhos habilmente, mas não rápido o suficiente para me satisfazer.
Leva torturantes minutos até chegarmos numa área alta, onde é
possível ver uma boa parte da floresta abaixo de nós.
Meus olhos deslizam pelo amontoado de pinheiros pintados de branco,
se erguendo contra o céu escuro, iluminado apenas pela lua gorda e
brilhante. Seria uma bela visão se eu não tivesse encontrado a área sem
árvores e neve, onde um palanque de madeira se ergue.
Meu corpo trava de horror ao entender a cena e sem que eu possa
fazer nada, observo uma estaca ser enfiada no peito do homem que
conquistou metade do meu coração e o pegou para si.
Cheguei tarde de novo.
— Ainda não! — a voz da deusa explode em minha mente e sinto meu
corpo ser dominado por seu poder.
Rujo minha fúria enquanto corro o mais rápido que posso, puro ódio
me percorrendo, o desejo de sangue mais forte do que nunca.
A floresta passa por mim como um borrão e, quando chego na
clareira, estou pronto para matar Bethal, que permanece parado em frente a
Dalton, como se estivesse admirando meu companheiro com o coração
perfurado.
Dor me toma quando não consigo escutar a pulsação do meu gatinho,
mas não permito me afundar no luto.
Meu animal quer vingança. Ele está com tanta raiva que mal enxergo a
clareira, todo meu foco ficando no homem alto e bem trajado, como se
estivesse prestes a ir para um casamento, depois de assassinar cruelmente
um dos amores da minha vida.
Amores da minha vida. Tomar consciência disso enquanto o corpo de
Dalton está pendurado num madeiro e Felícia ainda cheira ao veneno que
matou nosso bebê é como um murro no estômago, que fortalece ainda mais
meu rancor.
Vou arrancar a garganta dele! — minha onça ruge, partindo para
cima de Bethal, que finalmente notou minha presença.
— Olha só, não é que Miranda tinha razão? — murmura divertido,
instantes antes das minhas patas baterem no seu peito, fazendo-o cair no
chão.
Filho da puta! Xingo mentalmente, rosnando em seu rosto, saliva indo
para todos os lados.
Ergo minha pata esquerda, pronto para arrancar a cabeça dele, mas
uma dor aguda toma minha barriga e pelo meu momento de desconcerto,
ele toma a vantagem e nos vira, subindo em cima de mim.
O movimento acaba virando ao meu favor, pois consigo bater com a
pata traseira na sua nuca, jogando-o em direção a minha boca.
Ele bota o braço na frente do rosto, num gesto automático, e aproveito
para morder a carne, o gosto do sangue explodindo em minhas papilas
gustativas, deixando-me mais feroz e enlouquecido.
Bethal grita com a dor e vejo seus olhos brilharem com a mesma fúria
que corre em minhas veias.
— Vou te transformar num casaco de peles — jura, enfiando um dos
dedos no meu olho, o que me desestabiliza tempo suficiente para ele sair de
cima de mim.
Num segundo, ele é humano, no outro, há um lince na minha frente,
pouca coisa maior do que Felícia, mas com um poder muito diferente. O ar
entorno de Bethal é pesado e sufocante, como se a sua maldade chegasse a
mudar até a atmosfera.
Corro em sua direção, as garras raspando na terra, prontas para fatiá-lo
e assim terminar esse embate de uma vez só, para que eu possa ir pegar meu
companheiro, ou o que sobrou dele; mas assim que chego onde ele está,
minha cabeça fica turva, os olhos embaçados.
Golpeio com as patas dianteiras, mas não pego nada, pois ele não está
em lugar algum.
Uma dor forte percorre meu flanco direito e rosno, me virando para
arranhá-lo, mas a única coisa que minha pata pega é o ar. Outra fisgada vem
da minha coxa traseira esquerda e rujo para a lua, pois ele morde no
músculo, enviando uma agonia profunda por todo meu corpo.
Sua risada explode em minha mente conforme eu continuo tentando
golpear e me defender dos seus ataques incessantes e, mesmo que eu esteja
cheio de ódio e me esforce muito, não consigo me livrar da confusão em
minha cabeça.
O cheiro do meu sangue enche o ar, e meu coração dispara de medo
quando o sinto rasgar a parte delicada da minha barriga. A agonia é demais
e caio no chão, me encolhendo num gesto automático de proteção, que ele
usa para me atacar mais forte.
Por um mero segundo meus olhos focam e me permitem ver Felícia.
Isso me deixa ainda mais desestabilizado e Bethal usa o momento para me
jogar contra uma árvore.
A batida é dolorosa e me tira o pouco ar que ainda tinha nos meus
pulmões.
Tento me recuperar e erguer, mas não adianta. Minha onça está
acabada, mal conseguindo se manter acordada.
Quão tolo fui por achar que poderia vencê-lo e salvar meus
companheiros!
— Que bom que você sabe — ele diz assim que se transforma em
humano, me dando um sorriso que deixa claro que eu não tenho nenhuma
chance de sair deste campo vivo, com meus companheiros do lado.
24

FELÍCIA
Não consigo acompanhar o ritmo intenso de Orion e, quando chego na
clareira, vários minutos depois, o observo numa luta intensa com meu pai.
Apesar da chocante diferença de tamanho, pois meu companheiro é
uma onça-pintada de quase dois metros e meio, a batalha não está sendo
fácil para ele, que toma golpe atrás de golpe.
Bethal é um shifter experiente, e tem muitos outros poderes além da
força física. Sinto que está usando o controle mental em Orion, confundindo
sua cabeça para ter tempo de retalhar o pelo dourado com manchas pretas,
que está ficando vermelho com o sangue dos diversos ferimentos
espalhados por seu corpo.
A dor que Orion sente me percorre, mas me obrigo a manter meu
corpo firme e em movimento, percebendo que ele não é meu companheiro
em maiores dificuldades no momento.
Dalton está pendurado no madeiro, as mãos presas com cordas
grossas, o corpo tomado por machucados que já começaram a arroxear.
A visão da estaca de prata em seu peito me faz ter náuseas, e quando
subo no palanque e vejo como a pele em volta do ferimento está preta, não
consigo me impedir de vomitar, lágrimas grossas escorrendo pelas minhas
bochechas.
— Alm-ma minha — gaguejo, tocando seu rosto ainda quente e
molhado pelo choro.
Tento encontrar o nosso laço, chamá-lo por ele, mas não há nada em
meu peito.
— Por favor, Dalton, me responde — imploro apoiando as mãos em
seu peitoral, ao lado de onde a estaca está enfiada, tentando sentir sua
pulsação.
A dor na minha mão não é nada comparada a dor cegante do luto que
me percorre, quando não sinto nada.
Seu coração não está batendo.
— Não faz isso comigo, amor. Eu não posso existir num mundo em
que você não está! — choro, minhas pernas falhando, toda a energia se
esvaindo de mim ao perceber que não importa o que eu fale ou faça, Dalton
não irá voltar.
Ele se foi. A certeza cai em cima de mim como um maremoto,
destruindo tudo em seu caminho.
Caio no chão, o meu redor desaparecendo, sendo engolido pela
escuridão cegante da dor e do luto. Minha audição some, assim como a
visão. Me perco no vazio, onde não existe felicidade e amor, apenas
sofrimento e agonia.
Meus pulmões falham e me vejo sufocando, mas não me importo. Não
tenho motivos para lutar pela minha vida. Uma parte da minha alma se foi,
e não posso viver sem ela.
Não posso e nem quero existir num mundo onde não tenho Dalton me
enchendo a paciência. Dizendo que irá botar a louça na máquina de lavar,
mas só o fazendo quando eu solto uns berros. Esquecendo a toalha molhada
em cima da cama. Reclamando que botei sal demais na comida. Mentindo
que não quer fazer amor comigo na forma animal.
A dor de perder a criança que eu tanto queria não é nada comparada a
perder o homem que lutou cada segundo de sua vida para me ter do lado, e
usou todos eles para mostrar como me amava profundamente.
Oh, mãe de todos os shifters, por que tinha que levar justo ele? Por
que o amor da minha vida? Por que me punir de uma forma tão cruel?
Estou despedaçada. O buraco no peito de Dalton se transferiu para o
meu, pois sinto a ferida aberta me consumir. Roer minha carne até chegar
aos ossos.
A dor me estrangula e eu a recebo de braços abertos, desejando mais
do que nunca receber o doce abraço de Morana, a deusa dos mortos.
Não. Eu desejo é entregá-lo a Morana. A voz da minha lince toma
minha cabeça e me fortaleço na raiva, dor e luto que me percorrem.
Puxo uma respiração profunda, tomando coragem para fazer o que eu
preciso.
Ele tirou tudo de mim e antes de ir, retirarei tudo dele!
Puxo a estaca de prata do peito de Dalton e a aperto firme com a mão
machucada, apreciando a dor, usando-a como combustível do meu ódio.
Me viro para observar meu pai golpear novamente o único
companheiro que me sobrou, e engulo em seco quando o corpo de Orion
voa e bate numa das árvores.
Meu companheiro não se levanta.
— Você realmente achou que era páreo para mim, garoto? — papai se
transforma de volta em humano para zombar de Orion, que arfa de angústia
com todos os ferimentos espalhados por sua pele. — Estou vivo há quase
um século, acumulando poder e forças. Um mestiço que mal aprendeu a se
transformar jamais poderia vencer o grande Alfa do Alasca!
Meu pai cospe no chão, em escárnio, e travo a mandíbula ao me
lembrar como fez a mesma coisa comigo, apenas algumas semanas atrás.
Ele se aproxima de Orion, que até tenta se levantar, mas está sem
forças. O chute que dá na barriga do meu companheiro quase me faz gritar,
e mordo a língua para impedir o choro quando o olhar de Orion se choca
com o meu, e vejo quão triste e humilhado ele está se sentindo.
— Sinto muito, minha gatinha — seu pensamento chega até mim e o
uso para alimentar minha determinação de acabar com isso de uma vez por
todas.
Ando lentamente pela neve, sabendo que a única chance que tenho é
se meu pai não me vir. A prata pesa em minha mão, assim como a
determinação queima meu peito. Quando consigo ficar por trás do homem
que me gerou, não hesito.
— Isso é pela minha família! — rosno, cravando o punhal nas suas
costas, minha mão inteira adentrando na sua carne, para garantir o máximo
de estragos.
Seu rugido faz meu corpo convulsionar e caio no chão, me
contorcendo de dor com o transe pesado que ele joga sobre mim.
— Sua puta desgraçada! — ele grita, levando a mão no peito para
agarrar a parte do punhal que ultrapassou para o outro lado.
Observo com um misto de horror e espanto, ele puxar o metal, como
se não fosse nada demais, e joga-o no chão. O buraco em seu peito começa
a se fechar de imediato e ofego, sem acreditar.
— Como isso é possível? — murmuro, me arrastando para trás,
quando ele começa a avançar em minha direção.
Meu pai ri, um som cheio de veneno e desdém cruel.
— Felícia, você realmente foi tola o suficiente para achar que poderia
me matar com uma mera estaca de prata? Um metal que nem é venenoso
para os shifters? — questiona, erguendo a sobrancelha do mesmo modo
como fazia quando eu era uma garotinha e lhe fazia uma pergunta estupida.
— Eu enfiei essa droga no seu coração! — rosno, parando de fugir.
Ele chega até mim rapidamente e bota o pé em cima da minha barriga,
pressionando dolorosamente.
Meu impulso é afastá-lo e proteger o ventre, mas me lembro que não
tem mais nada lá dentro para proteger. Contenho um soluço de tristeza, não
querendo lhe dar o gosto de ver quanto me destruiu.
— Você é só uma ômega. Não tem o poder suficiente para matar um
alfa como eu — debocha, passando a mão por cima da carne recém-curada.
Papai se agacha ao meu lado, ronronando para me impedir de sair de
perto. Minha cabeça fica turva e suas palavras deslizam por mim,
penetrando no oceano de dor, medo e luto que ainda me envolvem, minando
a pouca determinação que eu havia conquistado.
— Tenho me alimentado do poder de outros alfas por décadas,
absorvendo a energia deles e dos membros de seu bando — revela, fazendo
meu sangue gelar. — Em breve, terei Taiga sobre meu controle e, então,
nem mesmo o Conselho dos Shifters terá poder para me parar. Botarei os
metamorfos no lugar deles: o topo da cadeia alimentar, e governarei sobre
todos.
— Você é maluco — rio de choque, vendo como suas íris douradas
estão desfocadas, perdidas na loucura.
Como nunca percebi quão desequilibrado meu próprio pai era?
— Não sou maluco. Sou visionário. — Ele dá uma leve batidinha no
meu nariz, igual fazia quando eu era pequena, e isso enche meus olhos de
lágrimas. — E se você tivesse sido uma boa ômega e me obedecido desde o
início, eu te teria como minha segunda no comando. Você sempre foi
inteligente, minha filha! Tinha todo o potencial do mundo, mesmo sendo
mais fraca!
— Eu não sou fraca! — rosno, sentindo o choro molhar minhas
bochechas.
— Sim, você é.
Ele dá de ombros, como se fosse um fato e, por um mísero segundo,
penso que talvez ele esteja certo.
Sou fraca.
Sou uma ômega má.
Não fui leal a Orion e lhe exigi respostas, por isso ele e Dalton
brigaram. Agora meu marido está morto, assim como meu filho, e meu
outro companheiro está ferido.
Uma ômega nunca deve querer nada.
— Irei lhe entregar a Taiga e você vai parar com esta loucura de
companheiros e liberdade. Dalton já se foi e agora Orion também irá. Você
não tem mais nada, Felícia, apenas a mim. — Me embrulha o estomago ver
como ele parece um robô falando.
Não há emoção. Amor. Carinho. Ele é apenas um homem querendo
poder, disposto a matar qualquer um para obtê-lo.
— Quer saber de uma coisa, pai? Você tem razão… — murmuro,
deslizando lentamente a mão pelo chão, em busca de alguma coisa afiada,
aproveitando que seu ronronar parou.
Quando acho uma pedra, a seguro com força.
— Eu não tenho mais nada, então não há mais sentido em lutar. —
Dou de ombros, respirando fundo para obter coragem.
Ele abre um sorriso arrogante.
— Isso mesmo, não tem como você me vencer.
Concordo com a cabeça, sentindo minha última lágrima cair por cima
da minha perna desnuda.
— Posso não conseguir te vencer, mas também não vou permitir que
me use — rosno, puxando a pedra em direção ao meu peito, disposta a
acabar com isso de uma vez por todas.
Minha pele não chega a ser ferida, apenas arranhada, pois minha mão
para a meros segundos da carne, uma força como nunca senti dominando
meu corpo.
Uma luz prateada intensa domina a clareira e cubro meus olhos com
rapidez, temendo ficar cega.
Um rugido alto ecoa pela floresta e escuto um grito, que sei ser do
meu pai. Me forço a abrir as pálpebras, e minha boca se abre em choque
quando vejo Orion de pé, ainda em formato de onça, com a boca travada na
jugular de Bethal.
Ele balança a cabeça e o som nauseante de carne rasgando e sangue
escorrendo faz a bile encher minha boca.
Me curvo no chão, vomitando enquanto o som do corpo sendo
despedaçado continua a invadir meus ouvidos, um misto de tristeza, raiva e
felicidade dominando meu peito.
— Tome, querida — uma voz feminina suave diz, e quando ergo os
olhos, me deparo com a mesma mulher que estava antes no meu quarto.
A deusa da lua, minha mente finalmente processa, observando seu
porte delicado, mas poderoso.
Ela me estende um lenço de um branco tão puro, que parece até uma
miragem. Meus dedos tremem quando os estendo para pegar o tecido e ela
sorri para mim com compaixão.
Uma emoção intensa de vergonha me domina e me curvo no chão,
implorando seu perdão ao lembrar do que pensei mais cedo, sobre ela não
existir.
— Eu nun-ca deveria ter d-duvidado! — gaguejo, sem conseguir
conter as emoções, que formam um nó apertado em minha garganta.
— Está tudo bem, querida. Você estava com raiva e não tinha todas as
informações — murmura, passando os dedos delicadamente pelos meus
cachos. Sinto tanto amor em suas palavras, que meu choro se torna mais
intenso. — Escutei todas as suas preces, Felícia, desde que você era uma
pequena garotinha, e apesar de você não me ver, sempre estive do seu lado,
te guiando para a felicidade que você merece ter.
A palavra felicidade parece estranha em meus ouvidos, principalmente
ao me lembrar que Dalton não está mais entre nós.
— Como posso ser feliz sem metade da minha alma? — murmuro, a
dor aguda do luto retornando com força total, arrancando meu ar.
Orion se aproxima, seus olhos dourados brilham de forma intensa,
tanto poder ecoando por seu corpo que estremeço. O rosto enorme está sujo
com o sangue do meu pai, mas não desvio quando ele esfrega a face na
lateral do meu rosto, demonstrando carinho.
— Pensei que iria te perder também — sussurro, a voz embargada de
medo e amor.
Abraço o corpo musculoso, passando as mãos no pelo macio, e
quando não encontro nenhum ferimento, encaro a deusa, sabendo que só
pode ter sido ela a fazer este milagre.
— Na verdade, foi você.
— Eu? — questiono perplexa, sem entender.
— Não exatamente você, mas foi por sua causa. Orion é poderoso por
si próprio, mas precisava de um tempo para conseguir recobrar as forças e
sair do transe. Você tirou a atenção de Bethal de cima dele, permitindo que
respirasse. Eu só dei a energia final para o ataque. — Dá de ombros, soando
tão humilde que minha boca cai em choque.
Sinto meu companheiro mudar nos meus braços e, de repente, não
estou mais segurando uma onça, e sim um homem.
— VOCÊ FAZ NOÇÃO COMO ME ASSUSTOU, QUANDO
TENTOU SE MATAR? — Orion berra, me fazendo pular. Ele não permite
que eu vá para longe, pressionando meu corpo firmemente contra o seu. —
EU NEM SEI O QUE VOU FAZER COM VOCÊ, QUANDO SAIRMOS
DAQUI!
Se estivéssemos em qualquer outro momento, eu riria, mas toda essa
situação é desoladora, pois quando sairmos desta floresta, meu marido não
estará do nosso lado.
— Não quero viver num mundo sem Dalton — murmuro, balançando
a cabeça numa tentativa vã de conter a nova leva de lágrimas que invadem
meus olhos, a dor da falta do meu marido retornando com força total,
partindo meu peito ao meio, tirando meu ar.
Como posso continuar minha vida sem ele ao meu lado? Como
poderei olhar para o filho que a deusa irá nos devolver, e saber que nosso
filhote jamais irá conhecer um dos pais?
Levo o punho a boca, tentando segurar os soluços, mas eles escapam,
ecoando minha dor pela floresta tomada de neve, onde há apenas alguns
dias, nós corremos e caçamos juntos.
Caio sobre o corpo de Orion, as pernas falhando, e choro sobre seu
peito, me sentindo destroçada agora que o sentimento de vingança se foi.
— Gatinha, respire fundo — Orion orienta, mas não consigo fazê-lo.
O ar parece não adentrar meus pulmões, que estão se contraindo, tomados
pela agonia. Como posso respirar, se metade da minha alma se foi?
Suas mãos seguram meu queixo e ele me força a encará-lo. Seu
ronronar começa suave, mas aumenta de intensidade quando não surte o
efeito esperado em mim.
Minha tristeza é tão grande, que nem magia é capaz de contê-la agora.
— Amor, nós não vamos viver num mundo sem ele — afirma com a
voz baixa e rouca.
É difícil acreditar nele quando vejo seus olhos azuis cheios de lágrima,
e a força que faz para não as derramar.
— Me escutou? Não vamos viver sem ele — repete, desta vez com
mais ênfase, aumentando o aperto em minha pele, o tom frio de suas íris se
mesclando com o quente do dourado.
— Ele se f-foi, Orion — gaguejo, apontando cegamente para o lugar
horrendo onde ainda está pendurado. — O cora-ção não p-pulsa! Não tem
c-como trazê-lo de volta!
— Tem sim — ele diz com tanta seriedade e certeza, que minha
pulsação acelera, uma esperança tão forte correndo em minhas veias que
chego a ficar tonta.
Orion tira os olhos dos meus e encara a deusa, que ainda está atrás de
nós.
Sua postura se ajeita e o poder que começa a emanar faz meu animal
estremecer.
— Matei Bethal, agora quero meu companheiro de volta!
O silêncio se instaura na clareira após sua ordem e prendo a respiração
com a expectativa aguda que eletrifica o ar ao nosso redor.
— O nosso acordo foi pelo bebê, Orion. Não por Dalton — a deusa
murmura de forma lenta, vários segundos depois.
Toda a esperança que eu estava sentindo morre num instante.
— Não se faça de louca pra cima de mim! — Orion rosna, fazendo
meu coração disparar com a intensidade de sua raiva. — Você disse no
quarto que era uma alma por outra. Devolva nosso companheiro!
Desta vez o silêncio é tão completo que até o vento para de chacoalhar
as agulhas dos pinheiros. O brilho ao redor da deusa da lua se tornando
ardente.
— Você está me dando uma ordem? — questiona, a voz ecoando pelo
espaço de um modo que me arrepia e me faz querer se esconder, pois parece
que é a própria noite falando dentro das nossas almas.
— Não. Estou falando para você ser mulher e cumprir sua palavra.
Você disse que era uma alma por outra. Deu a entender que eu podia até
mesmo trazer Rosa de volta. Pois bem, estou escolhendo trazer Dalton!
Orion encara a deusa de frente, não demonstrando medo ou hesitação.
Fico pasma com seu atrevimento e, ao mesmo tempo, grata e
emocionada por ver que ele enfrentaria até uma deusa por nós.
Esse homem pode não ter falado que nos amava, mas tem prova maior
do que esta?
Me ergo para ficar atrás de Orion, lhe dando forças, querendo mais
que tudo ter meu marido de volta.
Quando, após longos e agonizantes minutos, a deusa ri, meu coração
dispara.
— Queria eu ter encontrado alguém com a sua coragem, Orion… —
ela murmura, soando divertida. Até um pouco orgulhosa, eu diria. — Pegue
seus companheiros e suma daqui, antes que Morana surja para tirar
satisfações.
Ela faz um gesto com a mão e, no mesmo instante, eu sinto algo se
encaixar dentro de mim.
Levo uma mão ao coração e a outra ao ventre, sentindo não apenas o
laço de Dalton de volta ao lugar onde deveria estar, mas também aquele
pequenos choques elétricos, deslizando por minha espinha e se acumulando
em minha barriga.
Uma alegria tão forte me percorre que meus joelhos falham, quase me
levando ao chão. Orion agarra minha cintura, impedindo a quebra, e vejo
em seus olhos azuis a mesma felicidade que pulsa na minha alma.
— O nosso bebê — murmuro, começando a gargalhar, num misto de
incredulidade com êxtase.
Orion me acompanha, um sorriso largo na face.
— Sim, o nosso bebê — concorda, tocando minha barriga com uma
devoção que me faz querer chorar.
O encanto, porém, é quebrado quando sentimos um empurrão forte,
que nos manda em direção ao palanque onde Dalton ainda está amarrado.
— Vamos, saiam logo! — a deusa nos apressa e Orion sobe as escadas
com rapidez, indo pegar nosso companheiro.
Ele rasga as cordas grossas com a unha afiada e pega Dalton antes que
ele caia no chão. Fico aliviada ao não ver mais o buraco em seu peito, nem
os diversos ferimentos em sua pele.
Coloco o dedo embaixo do seu nariz, só para garantir, e, ao sentir sua
respiração, começo novamente a chorar de emoção.
Uma pressão estranha domina o ar, a nossa volta e sinto a deusa nos
empurrando para longe, forçando nossos pés a correrem mais rápido, sem
me dar tempo de aproveitar a felicidade latente de ter meu filho e marido de
volta.
A escuridão da noite fica mais intensa, pesada. Algo poderoso está
vindo e, com certeza, não quero estar aqui quando chegar.
Porém, antes de sair totalmente da clareira, paro e me viro para a
deusa que permanece no centro dela, uma bola luminosa no meio das
sombras.
— Obrigada — sussurro e sei que ela ouviu, pois levanta a cabeça e
me encara, um pequeno sorriso nos lábios.
Ela me empurra para longe, praticamente me jogando nos braços de
Orion, que me pega no colo e me joga sobre o ombro contrário onde Dalton
está.
A voz da deusa explode em minha cabeça quando saímos da clareira:
— Nunca mais acredite que você não é uma boa ômega, ou que é
fraca. Hoje você provou que não só é leal aos seus companheiros, como
também é a mulher mais corajosa que eu já conheci. Você enfrentou um
alfa, e teria vencido se não fosse pela energia que Bethal consumiu dos
outros. Que a filha crescendo em seu ventre tenha a mesma bravura e força
que você, Felícia Batbold!
Um vento gelado bate contra meu corpo e ofego quando o sinto
ultrapassar minha pele, se fixando em meus ossos e carne.
Uma filha. Minha mente só foca nessas palavras, que ficam se
repetindo em minha cabeça sem parar, não me permitindo focar no quão
grandioso é o fato de minha bebê e eu termos sido abençoadas pela deusa.
Eu só percebo que estamos de volta na mansão, quando Orion me
coloca em cima da cama king size, encostada em Dalton, que respira
suavemente em seu sono profundo.
Encaro meu marido, tanta felicidade em meu peito que sinto que a
qualquer momento explodirei.
— Sabe de uma coisa, Felícia? — Orion diz, puxando minha atenção
para cima.
Ele está parado ao lado da cama, encarando a mim e a Dalton. Há
tantas emoções em seus olhos, uma mistura linda de dourado com azul, que
perco o ar.
— O quê? — murmuro, estendendo a mão para que ele se aproxime.
Orion hesita por alguns instantes, como se estivesse com medo, mas
toma minha mão e se senta no colchão, puxando uma respiração trêmula.
— Amo vocês. Amo mais do que já amei qualquer outra coisa no
mundo! — confessa, lágrimas grossas caindo dos seus olhos, que fazem as
minhas também ressurgirem.
— Eu também amo você — afirmo, sentindo que ele precisa escutar
as palavras de volta.
Seus sentimentos me dominam, enchendo meu peito com um amor e
carinho tão fortes que, por vários segundos, esqueço todas as coisas ruins
que aconteceram.
— E-eu também am-mo vocês — chego a pensar que foi minha
imaginação, mas quando encaro Dalton, vejo que ele está com os olhos
entreabertos, nos observando.
Felicidade plena me invade e grito quando me jogo sobre ele, tão grata
por vê-lo consciente que minha cabeça roda e é quase demais para eu lidar.
— Pela deusa, você faz noção como me assustou? — choro, colando o
rosto no seu pescoço, enchendo meus pulmões com seu cheiro, precisando
sentir o calor da sua pele na minha para fazer aquela memória horrenda
desaparecer de minha cabeça. — Como eu me senti sem você?
Meu marido tosse e geme de dor, e Orion me puxa para cima,
permitindo que Dalton respire. Quando seus arquejos se acalmam e ele abre
novamente os olhos, alívio lavra sobre mim.
— Se serve de consolo, você com certeza não se sentiu pior do que eu.
Bufo, sem saber se rio, lhe beijo, o xingo, ou estapeio.
Acabo decidindo beijá-lo. Um mero toque de lábios, mas que é
suficiente para acalmar de uma vez por todas a minha alma traumatizada.
— Nunca mais faça isso de novo, senão juro pela deusa que te faço
dormir no quintal pelos próximos 90 anos! — resmungo, encostando a testa
na sua, sentindo seu calor e respiração contra a minha pele.
— Pode deixar. Morrer não está nos meus planos futuros.
— Que bom, pois eu não quero ter que enfrentar mais nenhuma deusa
para te trazer de volta — Orion brinca e levanto a cabeça para encará-lo.
— Só de saber que você o faria por nós, meu amor, já me deixa
lisonjeada.
Suas bochechas ficam vermelhas e puxo seu braço para também lhe
dar um selinho.
— Desculpa por ter dito que o bebê não era meu — sussurra quando
nos afastamos, a voz quebrada de tristeza e arrependimento.
— Eu te perdoo. Só não faça de novo.
— Nunca mais farei — promete, se debruçando para deixar um beijo
em meu ventre.
Ele aproveita que está inclinado para beijar Dalton e pedir o perdão
dele também.
— Vou passar o resto da minha vida garantindo que algo assim nunca
mais volte a acontecer.
— Que bom. Senão eu que te boto pra dormir no quintal! — rio da
palhaçada de Dalton e me enfio entre os dois, precisando sentir o calor dos
meus dois companheiros para garantir que isso é real. Que eles estão vivos
e seguros. Que não vão me deixar. — Nunca, alma minha! — responde ao
meu pensamento, me encarando sério.
Orion segura meu rosto, me fazendo encará-lo. O amor que vejo ali
me faz começar a chorar de novo.
— Sou seu, gatinha. Meu corpo, alma e mente — afirma, colocando
minha mão em seu peito. Ele puxa a de Dalton também, colocando-a acima
da minha, para podermos sentir seu coração disparado. — Tudo pertence a
vocês. E mesmo que um dia vocês decidam que não me querem mais, ainda
assim não conseguirão se livrar de mim.
— A gente não quer se livrar de você, seu idiota — Dalton resmunga,
e rio com a careta que Orion faz.
— Vou relevar dessa vez, porque você quase morreu, gatinho — o alfa
ronrona, fazendo meu marido estremecer e soltar uma risadinha que me
enche de felicidade.
No meio dos dois, sentindo os pequenos choques que deslizam por
meu ventre, indicando que minha filha cresce saudável, faço um último
agradecimento e súplica para a deusa, que me deu dois companheiros tão
maravilhoso.
Sei que ainda teremos muita coisa para enfrentar, e que não será fácil.
As sentinelas de Bethal ainda estão lá fora, e precisamos lidar com o bando,
que ficou sem um alfa. Os problemas aumentaram, mas não me preocupo
com eles.
Minha família está unida e viva, e isso é a única coisa que me importa.
Epílogo

ORION
Outubro de 2024…

Meu coração bate descompassado no peito, os segundos se estendendo


diante de mim como se o tempo tivesse parado.
Minha audição está focada em Felícia e, a cada grito e choramingo
que solta, meu pânico aumenta, assim como a sensação de enjoo.
— Esse vai ser o nosso primeiro e único filho! — murmuro para
Dalton, que está tão pálido quanto eu, sentado na beirada da cama,
agarrando os cabelos.
Ele ergue a cabeça para me encarar e solta um misto de risada com
soluço.
— Puta merda, como as mulheres sobrevivem a isso e depois
escolhem ter mais filhos? — sussurra, apontando com o dedo trêmulo para
a porta fechada do banheiro.
Nós estávamos lá dentro, dando apoio a Felícia, que decidiu ter o
parto na banheira, mas nos desesperamos quando começou a gritar com as
contrações, por, isso Alba e Enali, a mãe de Dalton, nos expulsaram.
Eu senti pânico quando Rosa estava prestes a nascer, mas não foi
nesse nível, pois eu não sentia as dores de Cassandra, como sinto as de
Felícia. Eu também não escutei seus gritos, pois ela ganhou nossa filha no
hospital, enquanto Felícia decidiu ter dentro de casa, sem nenhum médico
capacitado para nos socorrer em caso de emergência!
— Ela está com duas curandeiras que são muito mais capacitadas do
que os médicos humanos, Orion — Dalton responde meu pensamento, e
não sei se é para me tranquilizar, ou a si próprio.
— Não tenho tanta certeza — rosno, meu animal desesperado para
socorrer nossa fêmea, que está utilizando toda a sua potência vocal nesse
instante.
— SERÁ QUE OS DOIS IDIOTAS PODEM CALAR A BOCA? — a
mãe de Dalton grita na outra sala, me fazendo pular de susto. — VOCÊS
NÃO ESTÃO TRANQUILIZANDO FELÍCIA!
Abaixo a cabeça, com vergonha, e observo Dalton fazer a mesma
coisa.
— Vou buscar uma água — murmuro, decidindo pegar um ar também,
para não enlouquecer.
Sinto Dalton atrás de mim conforme desço as escadas e aperto sua
mão quando outro grito corta o silêncio sufocante da casa.
— Com certeza vai ser o único filho — o gatinho murmura,
arrancando uma risada do senhor Jargal, que está sentado na sala junto com
dona Naran.
A família de Dalton estava nos visitando quando Felícia entrou em
trabalho de parto, e decidiram ficar para prestigiar o nascimento da nossa
filha.
É bom tê-los por perto, principalmente o avô de Dalton, que está me
ajudando muito nesses últimos meses a lidar com os novos desafios de ser
um alfa. Sem ele para me guiar, eu já teria enfiado Felícia e Dalton no meu
hidroavião e fugido daqui!
Após a morte de Bethal, tive que lidar com muita coisa ao mesmo
tempo.
Havia vários betas que seguiam o antigo alfa, não por estarem em
transe, ou sentirem medo. Eles eram leais e apoiavam a ideia louca de
escravizar humanos, por isso tive que matá-los. Também precisei lidar com
o tal Taiga, que descobri estar tão perdido no meio desta loucura quanto eu.
O alfa de Alk Bay não fazia ideia do plano de Bethal!
A informação que ele tinha era que Felícia nunca havia se acasalado,
apenas fugiu para a América do Sul para curtir a juventude, e agora havia
voltado e decidido que estava pronta para construir uma família. Ele não a
esperou, como Bethal havia sugerido, apenas estava procurando uma
esposa, e ele havia achado Felícia bonita pelas poucas fotos que lhe foram
mostradas. Então decidiu que valia a pena encontrá-la e ver se havia
química entre os dois, além de que a proposta que Bethal tinha lhe dado era
muito tentadora e ajudaria seu bando.
O homem ganhou meu respeito quando chamou meu relacionamento
de vínculo sagrado, e se afastou de imediato, inclusive pedindo desculpas
por ter causado um possível mal-estar entre nós.
Os outros desafios não foram tão fáceis de resolver.
O bando não me aceitou de imediato como alfa, pois nunca tinham me
visto. Descobri que shifters são extremamente reservados e apegados
aqueles que conhecem por longos séculos, e ter um novo líder era uma
mudança difícil de aceitar, principalmente pela grande maioria estar
traumatizada com os tratamentos bruscos de Bethal.
Não fora só meus companheiros que sofreram torturas e outras formas
de punição. Parecia que todos os metamorfos de Juneau tinham uma
história horrível ou problema para contar, e queriam que eu resolvesse.
Passei a separar discussões, lidar com roubos e sequestro de bodes,
realizar casamentos e separações, proteger o território da cidade, punir
shifters jovens e inconsequentes que gostavam de pregar peças nos mais
velhos, e fazer reuniões semanais onde eu tinha que rugir o mais alto que
conseguia para manter a cabeça de todo mundo em ordem. Tudo isso
enquanto eu me mantinha trabalhando como piloto, para sustentar minha
família. Além disso, ainda tendo que lidar com meus companheiros e fazer
nosso relacionamento dar certo.
Até agora não sei como não enlouqueci!
Na verdade, sei sim. A nova família que ganhei me ajudou muito.
Alba e Felícia são um poço sem fundo de conhecimento sobre como não
gerir um bando, pois conviveram durante muitos anos com Bethal.
Jargal se tornou meu conselheiro pessoal e, junto com Dalton, me
ajudaram a tomar o controle do meu kaylak e entrar em acordo com ele.
Enali, minha sogra, meio que me adotou como dela, e a maioria das broncas
que tomo, vem dela e de Naran, a avozinha de Dalton que, apesar de ser
pequena e magrinha, não tem medo nenhum de sentar um cabo de vassoura
nas minhas costas e mandar eu tomar juízo.
No fim, a deusa estava certa quando me disse que um dia tudo iria
ficar bem.
Tenho uma nova família agora e, apesar de jamais conseguir superar a
morte de Rosa, consigo dizer que estou feliz.
— Como estão as coisas lá em cima? — Jargal questiona, vendo nós
dois parados na porta.
— Barulhentas — Dalton responde, estremecendo quando outro grito
de Felícia chega até nós.
Eles estão mais intensos e rápidos agora, o que acredito que signifique
que não irá demorar muito mais tempo para nossa garotinha nascer.
— Olha só vocês, dois machos grandes com medo de uma mulher
parindo. Se estão assim na primeira, quero nem ver como será nos
próximos! — Dona Naran resmunga, balançando o dedo magro e enrugado
em nossa direção.
— Não vai ter nenhum outro além deste! — afirmo, experimentando
uma versão mais leve, e ainda assim agonizante, das dores agudas que
percorrem Felícia, pois ela se manteve afastada de nós nesse último mês
final da gravidez.
A gargalhada que Jargal solta é ocultada por um berro muito alto, que
chega a estremecer as paredes da mansão. Troco um olhar apavorado com
Dalton antes de correr de volta para o andar de cima, querendo saber o que
diabos houve com a nossa mulher.
Estamos prestes a arrombar a porta do banheiro quando o som mais
lindo e apavorante deste universo ecoa por meus ouvidos.
Um choro de bebê.
Meus olhos se enchem de lágrimas e boto a mão na boca para não
gritar de felicidade quando minha sogra abre a porta de repente, um grande
sorriso no rosto e os olhos marejados.
— Mas que neta linda vocês dois me deram — murmura, dando um
tapinha no ombro de cada um antes de se afastar, pequenos soluços de
felicidade saindo de sua boca.
— Ela é perfeita, meus filhos! — Enali diz logo em seguida, dando
um beijo breve nas nossas bochechas antes de seguir Alba para fora do
quarto.
Minha mente grita para eu avançar e entrar no banheiro, encontrar
minha esposa e filha, mas meu corpo não me obedece. Está travado no
lugar, em choque com todas as emoções que me percorrem.
Estou apavorado e emocionado, pois agora é real. Nossa filha está a
apenas alguns passos, esperando para nos conhecer.
— Vamos, amor. — Dalton puxa minha mão, me forçando a segui-lo,
e bambeio sobre meus próprios pés, precisando me apoiar em seus ombros
para não ir ao chão.
Felícia solta uma risadinha cansada ao me ver, e quando meus olhos se
fixam nos dela, um amor tão grande explode em meu peito que perco o ar.
— Então vocês sobreviveram ao parto — brinca, nos fazendo rir,
envergonhados. — Venham cá. A filha de vocês não vai morder. Ela ainda
não tem presas.
Dalton toma novamente a dianteira e sou arrastado até a banheira.
Quando meus olhos se abaixam para encarar o serzinho apoiado no peito de
Felícia, sinto minha cabeça rodar.
— Pela deusa, olha só a nossa filha! — Dalton exclama, se ajoelhando
no chão molhado para ficar mais próximo da pequena bebezinha de pele
marrom clara.
Observo embasbacado o formato monólido dos seus olhos, os mesmos
de Dalton, e a boquinha delicada, que parece um coração. A testa e o
formato do rosto são de Felícia, mas o nariz se parece muito com o meu.
— Ela é uma mistura perfeita de nós três, né? — minha esposa diz,
passando o dedo delicadamente pela bochecha ainda manchada de sangue e
vérnix da nossa filha.
— Como isso é possível? — questiono, encantado, sentado ao lado de
Dalton, sem me importar em molhar as calças.
— Somos vinculados por magia — a explicação de Dalton não explica
nada, mas ainda assim é suficiente para me deixar profundamente satisfeito.
— Vocês querem pegá-la? — Felícia questiona e concordo rápido com
a cabeça, ansioso para ter minha filhote nos braços pela primeira vez.
Com um cuidado extremo, seguro nossa filha, e a felicidade que sinto
é tão forte que me faz chorar, as lágrimas gordas embaçando a visão da
garotinha que em poucos segundos já conquistou metade do meu coração.
— Olá, filha — digo baixinho, observando sua boquinha curvar para
cima, no que se parece muito com um sorriso. — Sou o Orion, um dos seus
papais.
Felícia solta uma risadinha chorosa e a encaro, também emocionado.
— E esse aqui do meu lado é seu outro papai, o Dalton — apresento,
movimentando o braço para que Dalton possa tocar na mãozinha delicada
dela. — E você já conheceu sua mamãe, a Felícia.
A bebê faz um barulhinho com a boca que dispara meu coração, e
Dalton ri ao meu lado, esfregando suavemente minhas costas.
— E você é... — Dalton deixa a frase no ar, olhando para Felícia em
busca do nome.
Durante a gestação, tivemos ideia de vários, mas Felícia nunca achava
que eles eram certos, por conta disso, fomos deixando esse assunto de lado,
para ser resolvido depois. Agora, não dá mais para adiar.
— Você encontrou algum nome que goste, gatinha? — questiono,
balançando a neném com cuidado, para mantê-la tranquila.
— Não. Eu tô tentando, mas… nada parece se encaixar com ela.
Quero algo especial. Que tenha um significado! — ela bufa, se remexendo
na banheira.
Solto um ronronar suave e baixinho, apenas para mantê-la tranquila
enquanto penso numa forma de resolver nosso problema.
Os nomes se acumulam em minha mente, vários significados
diferentes, mas tudo desaparece quando olho para baixo e me deparo com
minha filha de olhos abertos, me encarando.
Verdes.
A cor dos olhos dela são verdes iguais às agulhas dos abetos, quando
a neve começa a derreter.
O choro explode para fora de mim e Felícia e Dalton se inclinam em
minha direção, apavorados.
Sinto a mãos deles no meu corpo, tentando entender o que aconteceu,
mas não consigo formar palavras, pois minha mente está tomada pelo verde
que pensei que nunca mais veria na vida.
O mesmo tom dos olhos de Rosa, mamãe e vovó. Uma cor que todas
as mulheres da minha família têm.
— Ah, amor… — Dalton murmura, pegando meus pensamentos. Ele
me abraça por trás, me dando forças enquanto choro, um misto de saudade e
felicidade em meu peito.
— D-desculpa — gaguejo, olhando para nossa filha ainda sem
acreditar. — Eu só não estava preparado. Nunca imaginei que ela herdaria
isso da minha família!
— É algo do seu lado materno? — Felícia questiona, acariciando meu
braço, mostrando que também está ali me apoiando.
Concordo com a cabeça, um nó tendo se formado em minha garganta.
— Minha avó sempre me disse que todas as mulheres da família
nascem com olhos verdes, e os meninos com olhos azuis. Isso aconteceu
com Rosa, mas não achei que a fala de vovó era verdade…
— Acho que você nunca falou da sua avó para nós — Dalton
murmura e Felícia solta um grunhido de concordância.
Pisco, confuso por eles estarem querendo saber dela justo agora, mas
aceito lhes contar o que querem saber.
— Foi ela que me criou depois que meus pais morreram. Vivi com ela
dos 13 até os 18 anos. Foi quando eu me casei e ela decidiu viajar pelo
mundo, pois não queria ficar aqui e ver eu destruir minha vida — murmuro,
soltando uma risadinha sem graça. — Ela teve um ataque cardíaco
fulminante quando estava num navio de cruzeiro.
— Sinto muito, Orion — Dalton diz, apertando meu ombro.
— Obrigada. Foi difícil lidar com a falta dela. Éramos muito
próximos… E depois, ao ver que o que ela falou era verdade, que Cassandra
não prestava, sua ausência ficou ainda mais difícil de suportar.
— Qual era o nome dela? — Felícia pergunta vários momentos
depois, quando minhas lágrimas já cessaram.
Demoro alguns segundos para raciocinar, tendo que buscar nas
memórias que mantive escondidas no fundo da mente.
— Hortênsia — digo, tentando repetir a pronúncia com que ela falava.
— É o nome de uma flor em português. Eu queria dar o nome para Rosa,
uma forma de homenagear vovó, mas Cassandra não aceitou.
— Hortênsia… — Felícia ecoa, testando o nome nos lábios.
— É bonito — Dalton diz, e a troca de olhar que ele dá com nossa
mulher faz meu coração disparar.
Ele se inclina sobre meu ombro para olhar nossa filha, que ainda está
me encarando, e faz um carinho no queixo pequeno, chamando sua atenção.
— Bem-vinda ao mundo, Hortênsia — a voz que ecoa pelo banheiro
não é do meu companheiro. Reconheço imediatamente como sendo a voz
da deusa da lua, e meu coração se enche de gratidão por sua presença neste
momento especial. — Um nome perfeito, para uma bebê perfeita.
Um vento forte, surgindo do absoluto além, domina o banheiro,
soprando meus cabelos para longe do rosto e balançando os fios pretos lisos
da nossa filha, que se remexe em meus braços, resmungando, sem ter
nenhuma ideia de que acabou de ser abençoada pela mãe de todos os
shifters.
Obrigado. Ecoo em minha mente e estremeço quando sinto um
carinho em minhas costas.
— Cuidarei dela, igual fiz com você.
Eu sei, e é por isso que agradeço. Você me guiou até que eu
encontrasse a família que eu tanto sonhei em ter. Não posso desejar nada
além desta felicidade para minha filha.
— E ela o terá, Orion. Prometo a você.
O vendaval se finda e a presença da deusa some, mas a sensação de
alívio, por saber que ela estará de olho na minha filha, permanece.
Dou Hortênsia para Dalton segurar, enquanto retiro nossa
companheira da banheira. E quando nos acomodamos na cama, todos
olhando encantados para o pequeno serzinho que fizemos juntos, não posso
deixar de pensar que eu também fui abençoado.
Apesar de todas as dores, no fim encontrei meu final feliz ao lado das
duas pessoas mais incríveis que já conheci, que me amam e apoiam sem
medidas.
— Acho que nunca agradeci a vocês dois — digo, encarando meus
companheiros, o peito cheio de amor.
— Pelo quê? — Dalton questiona, esfregando o pé suavemente em
minha coxa.
— Por invadirem a minha casa e meu coração.
Felícia ri e se inclina para me beijar.
— Acho que a gente que deve agradecer por aquele inverno
deliciosamente pecaminoso — murmura contra minha boca, de um jeitinho
que faz meu estômago torcer.
— Sossega esse facho mulher. Você acabou de parir! — Dalton
resmunga, nos fazendo rir.
A gatinha se recosta no meu peito e a abraço com cuidado, deixando
beijos carinhosos em seus cabelos.
— Estou muito sossegada… — afirma, deixando a frase solta no ar.
Ela só o completa vários momentos depois, quando Hortênsia fecha os
olhos, finalmente caindo no solo.
— Mas é melhor vocês se preparem, porque quando o inverno chegar,
vamos fazer meus dois garotinhos!
— Misericórdia! — Dalton e eu exclamamos juntos, e é impossível
não escutar as gargalhadas que vem do andar de baixo, do resto da família
que a deusa me permitiu encontrar.
— Eu não terei nenhuma!
Fim.
Agradecimentos

Felicia, Dalton e Orion surgiram do nada em minha mente no final de


dezembro, quando eu estava num dos momentos mais loucos e incríveis da
minha carreira.
Eu não iria escrever o livro deles para lançar em 2024, pois já tinha
estipulado meu cronograma de lançamentos, mas Inverno Pecaminoso
adentrou fundo na minha alma e exigiu ser contado ao público. Claro que
obedeci rsrs
Era para ser apenas um conto de 10 mil palavras, mas esse trisal me
conquistou tanto que acabou ganhando um livro de mais de 75 mil palavras,
cheio de emoções, erotismo, magia e claro, muito amor.
Não sei o que vocês acharam do livro. Foi um projeto bem diferente do que
estou acostumada a escrever, mas quero agradecer a cada um de vocês que
deu uma chance ao meu trisal doidinho e me apoiou para escrevê-lo.
Também preciso agradecer a Núria e a Bia, minhas leitoras críticas
incríveis, por aceitarem participar de mais um lançamento louco e corrido.
Juro que um dia eu escrevo um livro com calma e não jogo prazos malucos
pra cima de vocês rsrs
E claro, como já é meu costume, agradeço a minha eu do passado, que num
momento de crise decidiu que valia a pena colocar esse projeto no papel.
Outros livros

Se você gostou desta história, que tal conferir meus


outros livros já lançados? A seguir terá a capa, sinopse e
tropes de todos eles!
SANGUE NO CRISTAL
Releitura da cinderela com vampiros │Romance Proibido │
Deuses e monstros
https://a.co/d/92frZPi

Ella sempre foi inexplicavelmente atraída pelo rei dos


vampiros, apesar dele ter sido responsável pela morte de seus pais
e toda a dor que suportou ao longo da vida.
O homem invade seus fumegantes sonhos noturnos, deixando-
a atormentada e questionando sua própria sanidade, enquanto as
lembranças aterrorizam suas manhãs junto com as notícias dos
ataques cruéis que assolam a cidade.
A situação fica ainda pior quando um baile é anunciado, e o
reino é trancado, tornando impossível sua fuga.
Agora, Ella se vê em uma encruzilhada, dividida entre o
desejo proibido que a consome e o medo avassalador que a
domina.
Em um reino governado por criaturas monstruosas, onde o
perigo é constante, a mestiça terá que enfrentar seu próprio
coração conflitante e lutar pela sobrevivência, mesmo a linha entre
a vida e a morte sendo tênue demais para distinguir.
Uma única coisa é certa: haverá um baile e não dá para fugir
dele sem ter sangue derramado.
UM ACORDO NATALINO COM MEU
CHEFE
Fake dating │ Só tem uma cama │ Chefe e empregada │ Ele se
apaixona primeiro.
https://a.co/d/31xDycp

Às vésperas do Natal, Lea se vê em uma enrascada. Traída e


incapaz de cumprir a promessa de levar um namorado para
conhecer sua família, ela recorre a uma solução arriscada:
implorar para que seu ex vá na viagem e finja que ainda estão em
um relacionamento.
Acontece que após beber duas garrafas de vinho, Lea troca
os nomes e manda os áudios humilhantes para seu chefe babaca.
Ela tem certeza de que será demitida, mas Isaque, por
incrível que pareça, aceita seu plano doido!
Agora, os dois precisarão manter as aparências de casal
apaixonado, enquanto lidam com a família maluca de Lea, com os
segredos que parecem esconder e com os sentimentos que existem
entre eles.
Será que essa farsa natalina se transformará em um conto de
amor real, ou é apenas uma ilusão, destinada a desmoronar
quando a verdade vier à tona?
UMA ESTER EM MINHA VIDA
MORENO MISTERIOSO + GRAVIDEZ INESPERADA +
CRIANÇA FOFA + APROXIMAÇÃO FORÇADA.
https://a.co/d/4bNXE0Y

Quando Lucia decide deixar sua casa para provar aos pais
que pode se virar sozinha, ela não esperava se afundar em dívidas,
passar fome e receber um diagnóstico de câncer pelo Google.
Desesperada, ela falsifica seu currículo para conseguir um
emprego como babá de Ester, filha de um empresário bem-
sucedido em Nova York, com o plano de juntar dinheiro e usar o
seguro saúde para tratar sua suposta doença.
No entanto, há dois problemas: seu chefe é o mesmo homem
que ela abandonou quatro meses atrás em um hotel após roubá-lo,
e o "câncer" em seu estômago é, na verdade, um bebê, resultado de
uma rápidinha na boate com seu atual patrão!
Sem saída, Lucia se vê mentindo cada vez mais para Rafael, e
acaba numa verdadeira confusão quando se apega a pestinha e
precisa descobrir como contar ao seu patrão quando o seu bebê
nascer.
UMA SURPRESA PARA O CHEFE
Final surpreendente │ Chefe e Secretária │ Brincadeira com
algemas │ História curta
https://a.co/d/9LjnxVl

É o último dia de Mirella na empresa que trabalha, e depois


de aturar quatro meses de intensa vibração sexual vinda do seu
chefe, Alexandre Garcia Reis, o CEO do conglomerado de
alimentos AGR, ela decide botar em prática o plano ousado que
tem sonhado desde que o viu pela primeira vez.
É imoral? Sim. Ilegal? Talvez. Vai lhe dar problemas? Com
certeza!
E isso só faz com que ela queira ainda mais dar essa
surpresinha para o seu chefe....
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— 28 °C
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— 3 °C
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Olhos que não tem muitas rugas, e a superfície é plana.
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23 °C
[5]
Do filme A bela e a Fera, da Disney.
[6]
Modelo de hidroavião versátil, de médio porte, que é frequentemente utilizado para transporte em
regiões remotas.

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