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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

TESTE ESCRITO DE DIREITO DO URBANISMO


3.º ANO TURMA A – 20.5.2022

A Assembleia Municipal de Almada aprovou o Plano de Pormenor da Trafaria, no


qual se prevê a demolição de um conjunto de edificações existentes na Cova do
Vapor, para dar cumprimento aos objetivos constantes do Programa da Orla
Costeira Sintra-Sado de recuperação da orla costeira e ao Plano Nacional de
Adaptação às Alterações Climáticas.
A deliberação de aprovação do Plano de Pormenor foi precedida de discussão
pública, na qual os moradores na Cova do Vapor se opuseram às medidas previstas
por se tratar de edificações existentes há largas décadas, sem que durante esse
período tenham sido impedidos pelo Município de as realizar. Na resposta às
participações dos moradores, a Câmara Municipal invocou a necessidade de
adoção de providências de combate ao avanço do mar por causa das alterações
climáticas e a circunstância de as edificações terem sido erigidas em terrenos do
domínio público.
Tendo sido, entretanto, publicado no Boletim Oficial do Município de Almada o
Plano de Pormenor, o Presidente da Câmara Municipal notificou os moradores
para abandonarem as suas edificações num prazo de 10 dias, findo o qual se
iniciariam de imediato as obras de demolição, sem prever qualquer tipo de
realojamento desses moradores.
Os moradores estão insatisfeitos com a medida que reputam de injustificada e
inválida.
António alega que a sua construção se encontra plenamente legalizada, uma vez
que a Câmara Municipal emitiu há 30 anos a correspondente licença
administrativa e autorização de utilização.
Por sua vez, Beatriz sustenta que, embora a sua construção inicial tivesse sido
realizada sem a necessária licença, existiu um procedimento de legalização e,
presentemente, as obras estão concluídas, faltando apenas a autorização de
utilização.
E Carolina invoca que a legalização da sua construção já envolveu a aprovação de
projeto de arquitetura, encontrando-se a ultimar a apresentação dos projetos de
especialidades.
Qualquer um dos referidos moradores pretende paralisar a ordem de demolição e
obter uma indemnização pelos danos resultantes da atuação municipal.
O Presidente da Câmara considera que nenhum dos moradores tem razão e
aproveitou para declarar a nulidade dos atos administrativos praticados a favor de
António, Beatriz e Carolina, não lhes reconhecendo qualquer direito a
indemnização.

Responda fundamentadamente às seguintes questões:

1. Qualifique quanto à natureza e vinculação jurídicas o Programa da Orla Costeira


Sintra-Sado e o Plano Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas. (2 valores)

2. Aprecie a ponderação efetuada pela Câmara das participações dos moradores na


discussão pública. (4 valores)

3. A publicação do Plano de Pormenor no Boletim Oficial de Almada confere-lhe


eficácia? (1 valor)

4. A ordem de demolição determinada pelo Presidente da Câmara é válida? (3


valores)

5. Analise separadamente as posições de António, Beatriz e Carolina e indique se as


mesmas merecem tutela jurídica, quer no plano da legalidade, quer no da
responsabilidade. (5 valores)

6. Aprecie a validade da declaração de nulidade prolatada pelo Presidente da


Câmara. (3,5 valores)

7. Caso os moradores tenham direito a ser indemnizados, qual a entidade a quem


deve ser imputado o dever de indemnizar? (1,5 valores)

Duração do teste escrito: 90 minutos, com mais 30 minutos de tolerância.


GRELHA DE CORREÇÃO DO TESTE ESCRITO DE DIREITO DO URBANISMO
3.º ANO TURMA A – 20.5.2022

Responda fundamentadamente às seguintes questões:

1. Qualifique quanto à natureza e vinculação jurídicas o Programa da Orla Costeira


Sintra-Sado e o Plano Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas. (2 valores)
O Programa da Orla Costeira é um programa especial (artigo 42.º, n.º 1 e 2, do
RJIGT) e o Plano Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas é um programa
setorial [artigo 39.º, n.º 2, alínea a) do RJIGT]. Ambos os programas territoriais
vinculam apenas as entidades públicas, mas não as entidades privadas (artigo 3.º, n.º
1, do RJIGT).

2. Aprecie a ponderação efetuada pela Câmara das participações dos moradores na


discussão pública. (4 valores)
O exercício de ponderação obriga a pesar e valorar, em termos relativos, os interesses
públicos e privados conflituantes. Existe um dever de justa ponderação que impende
sobre a Administração (artigo 6.º, n.º 4, do RJIGT). De um lado, encontramos os
interesses privados de defesa do direito de propriedade e do direito à habitação, com
assento nos artigos 62.º e 65.º, n.º 1, da CRP e do outro os interesses públicos de
defesa dos bens do domínio público, de proteção dos recursos e valores naturais
(artigo 12.º do RJIGT) e de defesa das áreas perigosas e das áreas de risco (artigo
13.º do RJIGT), bem como das áreas da estrutura ecológica (artigo 16.º). Cabia à
Câmara, no exercício da discricionariedade de planeamento municipal, realizar um
juízo de proporcionalidade que permitisse a máxima otimização dos interesses em
confronto.

3. A publicação do Plano de Pormenor no Boletim Oficial de Almada confere-lhe


eficácia? (1 valor)
Não. A eficácia do Plano de Pormenor depende da respetiva publicação em Diário da
República (artigo 191.º, n.º 1, e n.º 3, alínea f) do RJIGT], não bastando a mera
publicação no boletim municipal (artigo 192.º, n.º 3, do RJIGT).

4. A ordem de demolição determinada pelo Presidente da Câmara é válida? (3


valores)
A medida de demolição apenas deve ser adotada como ultima ratio, caso as outras
providências previstas no artigo 102.º, n.º 2, do RJUE não se revelarem suficientes. A
ordem de demolição só pode ser decretada após a audiência do interessado e o prazo
de pronúncia deste não pode ser inferior a 15 dias (artigo 106.º, n.º 3, do RJUE), pelo
que a decisão do Presidente se encontra ferida de vício de forma e de violação de lei.
A não previsão de realojamento viola o princípio da proporcionalidade e o direito
fundamental à habitação.

5. Analise separadamente as posições de António, Beatriz e Carolina e indique se as


mesmas merecem tutela jurídica, quer no plano da legalidade, quer no da
responsabilidade. (5 valores)
A posição jurídica subjetiva de António revela-se a que merece maior tutela, uma vez
que se encontra titulada em licença e autorização de utilização há um período longo
de tempo.
No caso de Beatriz, a legalização passou pela emissão de licença, faltando apenas a
autorização de utilização. A construção está legalizada, pelo que só falta o título
para a utilização.
Em contrapartida, Carolina não tem ainda uma licença, mas uma mera aprovação de
projeto de arquitetura (ato interlocutório ou endoprocedimental), pelo que ainda
não dispõe de um ato final que permita considerar legalizada a construção.
Todos beneficiam de atos constitutivos de direitos, mas esses atos podem ser postos
em causa por planos urbanísticos supervenientes, desde que as posições jurídicas
subjetivas dos particulares sejam acauteladas.
No plano da responsabilidade administrativa, à luz do princípio da aquisição gradual
de faculdades urbanísticas (artigo 15.º da Lei de Bases da Política Pública de Solos,
Ordenamento do Território e Urbanismo), os valores das indemnizações a que têm
direito por via do artigo 70.º do RJUE e do artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do RJIGT são
decrescentemente distintos entre António, Beatriz e Carolina. São indemnizáveis os
danos do plano e os danos da confiança (artigo 171.º, n.ºs 4 e 7, do RJIGT).

6. Aprecie a validade da declaração de nulidade prolatada pelo Presidente da


Câmara. (3,5 valores)
A declaração de nulidade pelo Presidente da Câmara teria sempre de ser precedida
de audiência dos interessados, nos termos gerais. E nunca poderia ser praticado o
ato, sem a necessária indemnização, de acordo com o princípio geral consagrado no
artigo 129.º, n.º 3, do RJIGT para os atos administrativos que violam o plano e que
aqui poderia ser aplicado por paralelismo. Sob pena de violação do princípio da
proporcionalidade, nas vertentes da necessidade e da proporcionalidade em sentido
estrito, não poderia a declaração de nulidade ser adotada sem ponderar as situações
jurídicas consolidadas a favor dos particulares.

7. Caso os moradores tenham direito a ser indemnizados, qual a entidade a quem


deve ser imputado o dever de indemnizar? (1,5 valores)
Na origem do sacrifício dos direitos dos particulares, determinado pelo plano de
pormenor, encontram-se os programas territoriais, especial e setorial, aprovados
pelo Estado, pelo que, em primeira linha, cabe-lhe assegurar a indemnização dos
particulares (artigo 171.º, n.º 8, do RJIGT). Mas considerando que o Presidente da
Câmara contribuiu para a situação através da prática de atos ilegais,
nomeadamente as invalidades de que padecem a ordem de demolição e a declaração
de nulidade dos atos anteriores favoráveis aos particulares, o município poderá ter
de responder solidariamente.

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