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COMENTÁRIOS AO NOVO CRIME DE CONDICIONAMENTO DE

ATENDIMENTO MÉDICO-HOSPITALAR EMERGENCIAL

Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial (Incluído pela Lei


nº 12.653, de 2012).

Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o
preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o
atendimento médico-hospitalar emergencial: (Incluído pela Lei nº 12.653, de 2012).
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Incluído pela Lei nº 12.653,
de 2012).
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta
lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte. (Incluído pela Lei nº
12.653, de 2012).

Introdução

Já faz muito tempo que se transformou em um comportamento padrão, praticado


por hospitais, clínicas médicas e outros estabelecimentos de saúde, a exigência de
cheque-caução, nota promissória ou outra garantia para que alguém, em situação de
emergência, pudesse receber o necessário socorro.
No afã de se resguardar de uma eventual inadimplência do paciente, ou mesmo
de seus familiares, em caso de morte daquele, as instituições de saúde adotaram esse
procedimento, burocratizando, sobremaneira, o atendimento daquele que necessitava de
imediato socorro, ocasionando, muitas vezes, uma piora do quadro de saúde ou mesmo
a morte do paciente.1
Merece ser ressaltado que tal proibição de exigência2 já se encontrava prevista
na Resolução Normativa nº 44, de 24 de julho de 2003, da Agência Nacional de Saúde,
que dispõe sobre a proibição da exigência de caução por parte dos prestadores de
serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de
Planos de Assistência à Saúde, cujo art. 1º diz, verbis:

Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos


prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou
referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e
Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer
natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou
anteriormente à prestação do serviço.

1 Segundo noticiou a imprensa, a proposta do novo tipo penal foi apresentada pelo Governo Federal
aproximadamente um mês após a morte do secretário de Recursos Humanos do Ministério do
Planejamento, Duvanier Paiva Ferreira, que faleceu no mês de janeiro de 2012, aos 56 anos de idade, em
virtude de um infarto, após ter procurado socorro junto a dois hospitais privados em Brasília, que lhe
exigiram a entrega de cheque-caução para que pudesse ser levado a efeito o seu atendimento.

2 Os Estados de Minas Gerais e São Paulo já haviam editado leis específicas nesse sentido,
respectivamente, a Lei Estadual nº 14.790, de 20 de outubro de 2003, e a Lei Estadual nº 14.471, de 22
de junho de 2011, proibindo, em situação de urgência e emergência, a exigência de depósito prévio para
internação na rede privada.
O Código Civil e também o Código de Defesa do Consumidor, à sua maneira,
ou seja, mesmo que não enfrentando casuisticamente a situação prevista pelo artigo em
estudo, já vedavam essa prática.
Concluindo que as determinações contidas nos diplomas anteriormente citados
(Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Resolução Normativa) não eram
fortes o suficiente a fim de inibir o comportamento por elas proibido, entendeu por bem
o legislador em fazer editar a Lei nº 12.653, de 28 de maio de 2012, criando uma nova
figura típica e encerrando, com isso, também uma discussão anteriormente existente,
quando parte de nossos doutrinadores se posicionava pela possibilidade de configuração
do delito de extorsão indireta, tipificado no art. 160 do Código Penal, ou ainda pelo
delito de omissão de socorro, previsto no art. 135 do mesmo diploma repressivo.
A numeração recebida pelo tipo penal em estudo, vale dizer, 135-A, é
significativa no sentido de apontar que o condicionamento de atendimento médico-
hospitalar emergencial pode ser considerado como uma espécie de omissão de socorro,
já que o art. 135 do Código Penal cuida desta última figura típica, ambas inseridas no
Capítulo III, do Titulo I do Código Penal, que diz respeito à periclitação da vida e da
saúde.
Para efeitos de reconhecimento da infração penal tipificada no art. 135-A do
Código Penal, que recebeu o nomen juris de condicionamento de atendimento médico-
hospitalar emergencial, são necessários os seguintes elementos, a saber: a) o núcleo o
exigir; b) a entrega de cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem
como o preenchimento prévio de formulários administrativos; c) ser condição para o
atendimento médico-hospitalar emergencial.
Exigir, no delito sub examen, tem o significado de tornar necessário, impor,
ordenar, ou seja, a conduta do agente é dirigida finalisticamente no sentido de fazer com
que alguém cumpra, como requisito para o seu socorro, uma das exigências impostas
pelo estabelecimento de saúde, que supostamente garantirá o pagamento pelos serviços
prestados ao paciente.
A referida exigência diz respeito à confecção e entrega, pelo próprio paciente,
quando possível, ou por alguém por ele responsável (normalmente uma pessoa que
tenha com ele relação de amizade ou parentesco), de cheque-caução (cheque dado como
garantia de um pagamento futuro), nota promissória ou qualquer garantia, vale dizer,
qualquer documento que se traduza em um reconhecimento de dívida, que poderá
importar, posteriormente, em uma ação de cobrança ou mesmo em uma ação de
execução, a exemplo do que ocorre com os contratos.
Da mesma forma, configura-se na infração penal em estudo a exigência de
preenchimento prévio de formulários administrativos. Aqui, devemos ressalvar que a
instituição de saúde não está proibida de levar a efeito o preenchimento de tais
formulários que, na verdade, deverão ser produzidos para que os dados fundamentais do
paciente sejam por ela conhecidos. O que se proíbe, na verdade, é que se priorize esse
ato burocrático em detrimento do socorro que deve ser imediatamente prestado. Uma
vez atendido o paciente, ele próprio, ou as pessoas que lhe são próximas (amigos e
familiares), devem cumprir essa obrigação administrativa. Percebe-se, com clareza, que
o que se procura evitar é o agravamento da situação do paciente, que não pode esperar o
cumprimento de exigências burocráticas para que venha, efetivamente, a ser atendido.
Tais exigências devem servir como condição para que seja realizado o
atendimento médico-hospitalar emergencial. Assim, deverão ocorrer anteriormente ao
atendimento de que necessitava a vítima/paciente, que não pode ser socorrida em
virtude daquelas exigências.
O tipo penal faz menção a atendimento médico-hospitalar emergencial. Existe
diferença terminológica entre urgência e emergência médica.

A Resolução nº 1.451, de 10 de março de 1995, do Conselho Federal de


Medicina, estabelece, nos §§ 1º e 2º do seu art. 1º, as definições para os conceitos de
urgência e emergência, dizendo:

Artigo 1º Os estabelecimentos de Prontos-Socorros Públicos e Privados


deverão ser estruturados para prestar atendimento a situações de urgência-
emergência, devendo garantir todas as manobras de sustentação da vida e
com condições de dar continuidade à assistência no local ou em outro nível
de atendimento referenciado.

Parágrafo Primeiro – Define-se por URGÊNCIA a ocorrência imprevista
de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador
necessita de assistência médica imediata.

Parágrafo Segundo – Define-se por EMERGÊNCIA a constatação médica
de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente de vida
ou sofrimento intenso, exigindo portanto, tratamento médico imediato.

Como se percebe, em ambas as hipóteses existe a necessidade de tratamento


médico imediato, razão pela qual, embora o tipo penal do art. 135-A faça menção tão
somente ao atendimento médico-hospitalar emergencial, devemos nele também
compreender o atendimento médico de urgência.
Corroborando o nosso raciocínio, faz-se mister ressaltar as orientações contidas
no Manual de Regulação Médica das Urgências, que faz menção à necessidade de um
conceito ampliado de urgência, dizendo:

Segundo Le Coutour, o conceito de urgência difere em função de quem a


percebe ou sente:
Para os usuários e seus familiares, pode estar associada a uma ruptura de
ordem do curso da vida. É do imprevisto que tende a vir a urgência: “eu
não posso esperar”.
Para o médico, a noção de urgência repousa não sobre a ruptura, mas
sobre o tempo, relacionado com o prognóstico vital em certo intervalo: “ele
não pode esperar”.
Para as instituições, a urgência corresponde a uma perturbação de sua
organização, é “o que não pode ser previsto”.
No dicionário da língua portuguesa, lê-se que emergência é relativo a
emergir, ou seja, alguma coisa que não existia, ou que não era vista, e que
passa a existir ou ser manifesta, representando, dessa forma, qualquer
queixa ou novo sintoma que um paciente passe a apresentar. Assim, tanto
um acidente quanto uma virose respiratória, uma dor de dente ou uma
hemorragia digestiva, podem ser consideradas emergências.
Este entendimento da emergência difere do conceito americano, que
tem permanentemente influenciado nossas mentes e entende que uma
situação de “emergência” não pode esperar e tem de ser atendida com
rapidez, como incorporado pelo próprio CFM.
Inversamente, de acordo com a nossa língua, urgência significa aquilo que
não pode esperar (tanto que o Aurélio apresenta a expressão jurídica
“urgência urgentíssima”).
Assim, devido ao grande número de julgamentos e dúvidas que esta
ambivalência de terminologia suscita no meio médico e no sistema de
saúde, optamos por não mais fazer este tipo de diferenciação. Passamos a
utilizar apenas o termo “urgência”, para todos os casos que necessitem de
cuidados agudos, tratando de definir o “grau de urgência”, a fim de
classificá-la em níveis, tomando como marco ético de avaliação o
“imperativo da necessidade humana”.3

Merece ser ressaltado, por oportuno, que o estabelecimento de saúde, após o


efetivo socorro prestado àquele que necessitava de atendimento médico-hospitalar
emergencial pode confeccionar, por exemplo, um contrato de prestação de serviços, a
fim de garantir a cobrança futura de seus serviços prestados, caso não ocorra o
pagamento pelo paciente ou por aqueles que por ele são responsáveis.
O tipo penal não tem a função de instituir o “calote” nas instituições médicas,
mas sim de preservar a vida e a saúde daqueles que necessitam de imediato
atendimento, sem que sejam priorizadas as preocupações financeiras com o futuro
pagamento do tratamento utilizado. Nada impede que, no futuro, em caso de
inadimplemento, seja procedida a cobrança dos gastos efetuados. O que não se pode é
sobrepor os interesses financeiros à vida ou à saúde daquele que necessitava de imediato
atendimento.

Embora o tipo penal não faça menção expressa, é dirigido especificamente à


rede privada, uma vez que não é possível qualquer tipo de cobrança na rede pública, sob
pena de incorrerem os responsáveis pela cobrança indevida, por exemplo, nos delitos de
corrupção passiva, concussão etc.

Classificação doutrinária

Crime próprio (tanto com relação ao sujeito ativo, como ao sujeito passivo); de
perigo concreto (devendo ser demonstrado que a conduta do agente trouxe,
efetivamente, uma situação de perigo para a vítima); doloso; de forma vinculada (uma
vez que o comportamento deve ser dirigido no sentido de exigir cheque-caução, nota
promissória, ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários
administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial)
comissivo (podendo, no entanto, ser praticado via omissão imprópria, nos termos do art.
13, § 2º, do Código Penal); instantâneo; monossubjetivo; unissubsistente; transeunte
(como regra).

3Manual de Regulação Medica das Urgências, Módulo II, p. 47 e 48.


Objeto material e bem juridicamente protegido

Objeto material é a pessoa de quem é exigida a confecção do cheque-caução,


nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de
formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar
emergencial, como também o próprio paciente/vitima, que necessita do imediato
atendimento.

Bens juridicamente protegidos, de acordo com o Capítulo III do Título I do


Código Penal são a vida e a saúde.

Sujeito ativo e sujeito passivo

Sujeito ativo é aquele que determina que o atendimento médico-hospitalar


emergencial somente poderá ser realizado se houver a entrega do cheque-caução, da
nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de
formulários administrativos como condição para o atendimento médico-hospitalar
emergencial. Normalmente, quem estipula essas condições para efeitos de atendimento
é o diretor do estabelecimento de saúde, ou qualquer outro gestor que esteja à frente da
administração.

O problema surge quando o empregado, que trabalha no setor de admissão de


pacientes, cumpre as ordens emanadas da direção e não permite o atendimento daquele
que se encontrava em situação de emergência. Nesse caso, entendemos que haverá o
concurso de pessoas, devendo, ambos (diretor e empregado) responder pela infração
penal em estudo.

Sujeito passivo será tanto a vítima/paciente, que necessita do imediato


atendimento médico-hospitalar, quanto aquele de quem, em virtude de alguma
impossibilidade da vítima/paciente, foi exigida a entrega do cheque-caução, nota
promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários
administrativos como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial.

Consumação e tentativa
O delito se consuma no instante em que a exigência de cheque-caução, nota
promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários
administrativos, é levada a efeito como condição para o atendimento médico-hospitalar
emergencial, antes, portanto, do efetivo e necessário atendimento.

Tratando-se de um crime formal, a consumação ocorrerá mesmo que no


momento em que é feita a exigência, a vítima não tenha sua situação agravada. Não há
necessidade, assim, de qualquer produção naturalística de resultado (agravamento da
situação da vítima/paciente ou mesmo a sua morte) para que o crime reste consumado.
Basta, portanto, que o comportamento praticado tenha, efetivamente, criado uma
situação de perigo para a vida ou a saúde daquele que necessitava do atendimento
médico-hospitalar emergencial.

Entendemos, in casu, não ser admissível a tentativa, haja vista que não
conseguimos visualizar, ao contrário do que ocorre com o delito de concussão, que
contém o mesmo núcleo, ou seja, o verbo exigir, a possibilidade de fracionamento do
iter criminis.

Elemento subjetivo

O dolo é o elemento subjetivo exigido pelo tipo penal que prevê o delito de
condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial, não havendo previsão
legal para a modalidade de natureza culposa.

Modalidades comissiva e omissiva

O núcleo exigir pressupõe um comportamento comissivo por parte do agente.


No entanto, o delito poderá ser praticado via omissão imprópria quando o agente
garantidor, dolosamente, podendo, nada fizer para impedir a prática do delito em estudo,
por ele devendo responder nos termos preconizados pelo art. 13, § 2º, do Código Penal.

Causa especial de aumento de pena

Determina o parágrafo único do art. 135-A do Código Penal, verbis:


Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de
atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a
morte.

As causas de aumento de pena previstas no parágrafo único acima transcrito


somente poderão ser atribuídas ao agente a título de culpa, tratando-se, portanto, de um
crime preterdoloso, ou seja, dolo com relação à exigência de cheque-caução, nota
promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários
administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial, e
culpa no que diz respeito ao resultado: lesão corporal de natureza grave ou morte.

Pena, ação penal, competência para julgamento e suspensão condicional do


processo

A pena cominada no preceito secundário do art. 135-A do Código Penal é de


detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão


corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.

Tendo em vista a pena máxima cominada em abstrato, se não houver o resultado


morte, a competência será, ab initio, do Juizado Especial Criminal.

Em qualquer situação, mesmo se houver o resultado morte, como a pena mínima


não ultrapassará o limite previsto pelo art. 89 da Lei nº 9.099/95, será possível a
realização de proposta de suspensão condicional do processo.

A ação penal é de iniciativa pública incondicionada.

Destaque
Obrigação da afixação de cartaz ou equivalente em estabelecimentos de saúde que
realizem atendimento médico-hospitalar emergencial

O art. 2º da Lei nº 12.653, de 28 de maio de 2012, determina a afixação de cartaz


ou equivalente em estabelecimentos de saúde que realizem atendimento médico-
hospitalar emergencial, com a informação do tipo penal em estudo, dizendo:

Art. 2o O estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-


hospitalar emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou
equivalente, com a seguinte informação: “Constitui crime a exigência de
cheque-caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do
preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para
o atendimento médico-hospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

BIBLIOGRAFIA

Regulação Medica das Urgências, Módulo II. Serie A. Normas e Manuais Técnicos,
Brasília, DF, 2006.

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