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I – Relatório.
O arguido A... , entretanto mais identificado, foi submetido a
julgamento sob a aludida forma de processo comum singular[1],
porquanto alegadamente incurso nos termos da acusação deduzida pelo
Ministério Público, na prática de um crime de violência doméstica,
p.p.p. art.º 152.º, n.ºs 1, al. b), 2, 4, 5 e 6 do Código Penal, em concurso
efectivo de infracções com um crime de dano, este p.p.p. art.º 212.º, do
mesmo diploma.
II - Fundamentação.
2.1. A decisão recorrida deu como provados os factos seguintes:
Da acusação pública:
1. O arguido e a ofendida B... encetaram uma relação de namoro em
meados de 2014 até Novembro de 2016, mantendo o arguido a
residência na Rua X... e a ofendida a residência na Y... , em Z... .
2. Em dia não concretamente apurado, no Verão de 2015, quando a
ofendida se encontrava junto às traseiras do prédio onde reside, o
arguido, por motivos não concretamente apurados, desferiu-lhe um
murro nas costas.
3. Simultaneamente, o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo “sua puta,
sua cadela vadia, és pior do que as mulheres da estrada.”
4. Em dia não concretamente apurado de Julho de 2016, pelas 05h00,
quando ambos se encontravam num quarto de hotel na localidade de
W... , Espanha, o arguido, por motivos não concretamente apurados,
desferiu um murro na face do lado esquerdo da ofendida, fazendo com
que esta caísse e batesse com a cabeça na cama.
5. Simultaneamente, o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe “sai
deste quarto, sua puta, és pior que as mulheres da estrada” e “sai daqui,
fui eu que paguei este quarto, sai nunca mais te quero ver.”
6. No dia 19 de Dezembro de 2016, após a ofendida ter dito que iria
mostrar à polícia mensagens que o arguido lhe havia enviado, o arguido
enviou do seu telemóvel com o n.º 0 (...) para o telemóvel da ofendida
com o n.º 1 (...) uma mensagem com o seguinte teor: “Ui que medo. Tu
és muito amiga deles, quem sabe não esteja lá o teu futuro engate. Mas
diz-lhes que meteste os cornos ao teu ex comigo e que me encornaste a
mim com o teu ex e agora so tu sabes quem te anda a foder e a fazer os
dois de cornos. Que medo eu tenho dessa escumalha. Vai se quiseres
ate vou contigo sua vadia reles ate a C... e a D... são mais mulheres e
honestas que tu seu monte de merda, uma gaja que o dia que acaba uma
relação mete outro em casa é o quê? Uma gaja que mal acaba uma
relação vai para o ex é o quê? Sei que estas palavras são duras mas
mereces ouvi-las mesmo tu não sendo nenhuma puta ou vadia, mas que
és desonesta e falsa és.”
7. Nesse mesmo dia 19 de Dezembro de 2016, pelas 21h15, quando a
ofendida se encontrava na sua residência, o arguido dirigiu-se àquele
local e a ofendida desceu até à porta de entrada do prédio para falar
consigo.
8. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido pediu à ofendida a
cópia das chaves da residência daquele e quando a ofendida lhas
entregou e disse ao arguido para seguir com a sua vida, este respondeu
“eu sigo se eu quiser, a vida é minha e faço dela o que quiser e bem
entender.”
9. Acto contínuo, o arguido agarrou a ofendida pelo pescoço e puxou-a,
fazendo com que caísse no chão.
10. De seguida, enquanto esta estava no chão, puxou-a pelos cabelos e
arrastou-a num curto espaço, largando-a de seguida.
11. Como consequência da actuação do arguido, a ofendida sentiu dores
em todo o corpo e sofreu uma escoriação no cotovelo direito com
1,4cmx0,2cm.
12. Tais lesões determinaram 5 (cinco) dias para a consolidação
médico-legal, sem afectação da capacidade de trabalho geral e
profissional e sem quaisquer consequências permanentes.
13. O arguido agiu de forma livre, voluntária a consciente, bem
sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei penal,
não se abstendo de o praticar.
Apurou-se ainda que:
14. No início deste ano de 2017, arguido e ofendida retomaram o
relacionamento amoroso que tiveram, tendo entretanto terminado o
mesmo.
15. A ofendida declarou pretender desistir da queixa apresentada bem
como renunciou ao eventual arbitramento de reparação, tendo o arguido
manifestado a sua não oposição à desistência.
16. O arguido trabalha nas minas K... , auferindo cerca de € 800 por
mês.
17. Tem dois filhos com 20 e 14 anos, que residem com a mãe,
pagando a título de pensão de alimentos a quantia de € 200.
18. Habita em casa dos pais tendo estudado até ao 12.º na Suíça.
19. O arguido foi condenado no processo n.º l668/l2.0 PCSTB do
Tribunal Judicial de Setúbal, pela prática em 19.10.2012 de um crime
de ameaça agravada, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 6,00
por decisão transitada em julgado em 28.05.2014, pena esta já
declarada extinta.
2.2. Já no que concerne a factos não provados, consignou-se na peça
sindicada como tal:
Com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e
consciente, reiteradamente, com o propósito concretizado, de maltratar
física e psicologicamente a ofendida, sua namorada, bem como após
terminarem o relacionamento, causando-lhe medo e inquietação e
lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher, não se coibindo
de o fazer na residência da ofendida.
2.3. Por fim, tem o teor seguinte a motivação probatória constante da
decisão recorrida:
Fundou o Tribunal a sua convicção quer no conjunto da prova
testemunhal produzida em julgamento, quer nos documentos juntos aos
autos, conjugada com regras de experiência comum (cfr. art.º 127.º do
C.P.P.).
Baseou-se aquela convicção numa apreciação livre da prova
testemunhal, na qual se sobrelevou o conhecimento pessoal e directo
dos factos perguntados, a postura denotada pelo arguido e pelas
testemunhas, bem como a convicção e transparência do depoimento.
Quanto à prova documental, relevaram a perícia médico-legal de fls. 12
a 14, os fotogramas de fls. 66 a 70 bem como o crc de fls. 109 e 110,
para prova dos antecedentes criminais.
Depois o Tribunal ponderou as declarações do próprio arguido, que
embora tendo falado apenas na parte final e depois de ouvir a ofendida,
afirmou estar arrependido do seu comportamento.
Pareceu assumir como verdadeiro as declarações da ofendida.
Mesmo que assim não fosse, a verdade é que o grau de credibilidade no
depoimento da ofendida é máximo, dado que logo referiu não pretender
procedimento criminal contra o arguido.
Assim descreveu todos os factos descritos na acusação, narrando os
factos ocorridos no Verão de 2015, a visita a W... em Julho de 2016
(acrescentando que nessa ocasião foi expulsa do quarto onde ambos
estavam, tendo no entanto aguardado pelo arguido até de manhã para o
trazer de regresso a Portugal), e as sms recebidas em 19 de Dezembro
do mesmo ano com a agressão no mesmo dia.
De igual forma o teor das sms remetidas mostram-se espelhadas nos
fotogramas referidos supra, e as lesões causadas e descritas em 12
encontram-se na perícia médico-legal já evidenciada.
Neste quadro, naturalmente se deram como provados os factos
constantes da acusação, sendo que, repete-se, o arguido acabou por
assumir o desvalor da sua conduta, a final acrescentando o facto
referido em 14, em termos que se nos afiguram credíveis e com
desnecessidade de comunicação nos termos do artigo 358.º n.º 2 do
Código de Processo Penal.
Os restantes factos atinentes à conduta posterior do arguido e ao seu
enquadramento familiar e profissional actual resultam das declarações
do próprio.
Quanto ao facto não provado, não resultou das condutas descritas, face
à sua relativa baixa gravidade, grande dispersão temporal, e condutas
posteriores de ofendida e do arguido, que tivesse sido intenção deste
maltratar física e psicologicamente a ofendida, sua namorada,
causando-lhe medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal
e enquanto mulher, também não havendo qualquer facto descrito como
tendo ocorrido dentro da residência da ofendida.
2.4. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o
âmbito do recurso se afere e delimita através das conclusões
formuladas na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do
Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer,
oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os
vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma,
mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.
Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça, de
19 de Outubro de 1995, publicado no Diário da República, I.ª Séria A,
de 28 de Dezembro seguinte).
In casu, vista a invocação efectuada nesta instância pelo Exmo. PGA
das questões prévias; porque se não descortina emergir qualquer
nulidade e/ou vício de que caiba conhecer-se oficiosamente, e, ante o
teor das conclusões do recorrente Ministério Público, as questões
decidendas traduzem-se, por isso, em i) apurarmos se procede alguma
das primeiras (e, na afirmativa, corolário a extrair); sendo a resposta
negativa, ii) se deve alterar-se o acervo fáctico, tal como sufragado, e,
decorrentemente, também implicação daí adveniente.
Vejamos, então.
2.5. Contrariamente ao expendido pelo Exmo. PGA e ressalvado o
devido respeito, propendemos a considerar[3] que a alegada e operada
alteração da qualificação jurídica não carecia de prévia comunicação ao
arguido, nos termos do disposto no invocado art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, uma
vez que degradar a acusação por um crime de violência doméstica [do
citado art.º 152.º, n.ºs 1, al. b), 2, 4, 5, e 6] – cometido por meio de
condutas que traduzem ofensas à integridade física e injúrias – em dois
crimes de ofensas à integridade física simples [do art.º 143.º, n.º 1], e
três crimes de injúrias [do art.º 181.º, n.º 1], não implica a necessidade
de nova defesa: não sendo juridicamente relevante, não surgem
vulneradas as garantias de defesa do arguido.
O arguido recorrido, na verdade, foi acusado da prática de um crime de
violência doméstica, e, findo o julgamento, viu ser proferida sentença
convolando a sua conduta como integrante da prática de dois crimes de
ofensas à integridade física simples, e três crimes de injúria, como dito,
sucedendo ademais que por desistência da queixa da ofendida, foi a
mesma considerada como validamente operante.
Tendemos a considerar que importará distinguir, em função dos casos
concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede
a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal
omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do
arguido.
Existe uma razão lógica e substantiva para o legislador impor a
comunicação da alteração dos factos descritos na acusação ou na
pronúncia e a alteração da qualificação jurídica dos mesmos: está em
causa, fundamentalmente, assegurar elementares direitos de defesa do
arguido, evitando que ele seja surpreendido com uma condenação por
factos que não constavam da acusação (ou pronúncia) ou suportada por
uma qualificação jurídica distinta da que nela constava.
A própria Lei ressalva que a comunicação só tem lugar se a alteração
tiver “relevo para a decisão da causa” e se não tiver “derivado de factos
alegados pela defesa” [n.ºs 1 e 2 do citado art.º 358.º]. Compreende-se:
tanto num caso como no outro, a alteração (dos factos ou da sua
qualificação jurídica) não tem uma repercussão negativa na estratégia
de defesa do arguido.
É esse interesse de salvaguarda dos direitos de defesa do arguido que
justifica a imposição da comunicação. Não se trata, pois, de uma
obrigação formal e de funcionamento automático. Na constante procura
do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal
– mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos – e o direito
impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as
garantias de defesa vinga a leitura atenta e racional da Lei que dê
sentido útil à afirmação dos direitos consagrados e eficácia ao sistema
processual implantado. Decisivo para aferir da compatibilidade de uma
determinada interpretação normativa dos art.ºs 358.º e 359.º com a
Constituição é, como se concluiu no Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 674/99, saber se essa interpretação normativa impede
a possibilidade de uma defesa eficaz do arguido: “(…) erige-se assim
em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele
tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do
ponto de vista daquela defesa (...)”.
Deste modo, aos casos ressalvados na própria Lei, tem a jurisprudência
adicionado outros que com eles partilham a mesma irrelevância
negativa para os direitos de defesa do arguido. Referimo-nos, por
exemplo, aos casos em que a alteração resulta da imputação de um
crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da
pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime mas em forma mais
grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo
inicialmente imputado: entende-se que não há qualquer alteração
relevante para o efeito em causa, uma vez que o arguido se defendeu
em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por
diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia)[4].
Este entendimento é o que urge seguir in casu uma vez que o arguido,
acusado pela prática de um crime “composto” – na medida em que
integra condutas que em si mesmo já são consideradas crime mas que
obtêm uma cominação mais grave em resultado da qualidade especial
do autor ou o dever que sobre ele impende [violência doméstica] –, viu
a sua conduta ser integrada na previsão de dois crimes de ofensas à
integridade física simples e três crimes de injúrias.
Como se sabe, o crime de violência doméstica é um crime específico
impróprio, pois a qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele
impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes
que as condutas já integravam.
Ou seja, é a consideração da qualidade do autor e, particularmente, do
dever que sobre ele impende que fundamentam e justificam a criação
de um tipo de crime com uma cominação agravada. Quando, como no
caso presente, e se sufragou, a prova produzida não permite a
condenação pelo tipo “composto” [“agravado”], a defesa do arguido em
nada é prejudicada ou surpreendida com a condenação pelos tipos de
crime integrantes. E assim, à semelhança dos casos anteriormente
apontados, se entende que também aqui a não notificação do arguido da
alteração da qualificação jurídica dos factos não impediu a
possibilidade de uma defesa eficaz e, como tal, não determina a arguida
nulidade da sentença.
Improcede, consequentemente, este fundamento aduzido pelo Exmo.
PGA.
E, improcede igualmente a sua arguição segundo a qual por não
constarem da matéria de facto provada os elementos subjectivos dos
tipos para os quais foi realizada a convolação, incorreu a decisão
recorrida no vício constante da previsão do art.º 410.º, n.º 2, al. a), seja,
de insuficiência da matéria de facto provada.
Como se sabe, este vício tem de resultar do texto da decisão recorrida,
por si ou conjugada com as regras da experiência, e traduz-se em uma
exiguidade [insuficiência] dos factos provados para as conclusões
jurídicas que deles se extraem. Verifica-se quando a solução de direito,
seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro e bastante
nos elementos de facto dados como provados[5].
Percorrendo-se a factualidade provada, consta do ponto 13 que O
arguido agiu de forma livre, voluntária a consciente, bem sabendo que
o seu comportamento era proibido e punido por lei penal, não se
abstendo de o praticar.
Embora tratando-se de uma fórmula tabelar, que quiçá impusesse uma
melhor dilucidação, certo é que na situação concreta a ofendida já
expressara a sua desistência de queixa quanto à totalidade da matéria de
facto em ponderação, e o arguido a sua não oposição à mesma. Nesta
perspectiva, reenviar os autos à 1.ª instância como sufragado
redundaria na mera prática de um acto desnecessário pois que a final, e
mesmo concedendo-se a «reformulação» sugerida, sempre o resultado
se mostraria equivalente, isto é, redundarem os autos no não
prosseguimento da acção penal, tal como decidido.
Uma nota se impõe, porém, fazer:
Pese embora a não imperiosidade de acatamento do art.º 358.º, n.ºs 1 e
3, haverá nas hipóteses mencionadas que apurar se se verificam quanto
a esses crimes as necessárias condições objectivas de procedibilidade,
designadamente o exercício do direito de queixa relativamente a ilícito
de natureza semi-pública (pensamos nas ofensas à integridade física
simples visto o consignado pelo art.º 143.º, n.º 2, do Código Penal), e a
dedução de acusação particular relativamente aos ilícitos que assumam
tal natureza (mencionados crimes de injúrias e já indicado art.º 188.º,
n.º 1, do mesmo diploma substantivo).
Os autos iniciaram-se mediante denúncia da ofendida e foram
inicialmente autuados como inquérito atinente a ofensas corporais e
dano; tendo os factos ocorrido no dia 19 de Dezembro de 2016,
inquirida no dia 22 desse mesmo mês, a ofendida declarou
expressamente desejar procedimento criminal contra o arguido pelos
factos denunciados; subsequentemente (a 25 de Janeiro de 2017), por
despacho do competente Magistrado do Ministério Público procedeu-se
à sua requalificação para o crime da violência doméstica, de natureza
pública. Do exposto resulta então que quanto aos vislumbrados crimes
de ofensas à integridade física simples, tão-somente se mostra
exercitado o exigível direito de queixa no decurso do prazo de seis
meses cominado pelo art.º 115.º, n.º 1, do Código Penal reportadamente
ao ocorrido no referido dia 19 de Dezembro de 2016. Quanto ao
demais, mostra-se assim irrelevante a desistência de queixa
apresentada.
Também relativamente ao segmento respeitante aos crimes de injúrias
cabe fazer uma consideração.
Atribuída natureza particular a este crime pelo art.º 188.º, n.º 1 do
Código Penal, a dedução de acusação particular, imposta pelo art.º 50.º,
constitui pressuposto processual do procedimento criminal respetivo,
ou seja, condição positiva daquele mesmo procedimento que, do
mesmo modo, condiciona a responsabilidade penal.
Sendo a falta de acusação particular (com prévia constituição de
assistente) insusceptível de suprimento, a sua verificação na fase de
julgamento ou de recurso impede o prosseguimento do procedimento
criminal pelo crime respetivo se a questão se colocar até ao
encerramento da audiência ou a condenação do arguido nas hipóteses
em que a questão se coloque depois daquele, nomeadamente em
resultado da qualificação jurídica dos factos provados operada na
sentença, como no caso presente (ou, sendo a situação, em fase de
recurso).
Não sendo passível de suprimento a falta de acusação particular, carece
o Ministério Público de legitimidade para o prosseguimento do
processo pelo referido crime de injúrias, impondo-se o arquivamento
dos autos nessa parte.
In casu, a ofendida não se constituiu assistente, nem deduziu acusação
particular contra o arguido pelos factos susceptíveis de integrarem os
propalados crimes de injúrias; no que concerne impõe-se assim e antes
o simples arquivamento dos autos, que não, como se fez constar na
decisão recorrida, a homologação da desistência de queixa que
formulou no decurso da audiência.
2.6. Resta assim ponderar da segunda das questões elencadas.
E, desde logo, começando por averiguar se opera a nulidade
vislumbrada pelo Exmo. PGA no sentido de padecer a decisão
recorrida no que tange, de falta de apreciação crítica da prova, nos
termos e para os efeitos do disposto, conjugadamente, nos art.ºs 374.º,
n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a).
Com efeito, aduziu, o elemento subjectivo de qualquer infracção há-de
resultar em termos de normalidade com recurso aos princípios da lógica
e das regras da experiência comum dos elementos da matéria de facto
também provados em termos objectivos; ora, atento o concretamente
provados nos itens n.ºs 2 a 10, ambos inclusive, da matéria de facto
provada, no respeito de um raciocínio lógico efectuado de acordo com
o art.º 127.º, forçosamente se chegava à conclusão de que a matéria de
facto não provada, haveria de ser – isto ao invés do que sucedeu - dada
como provada, o que a decisão recorrida na fundamentação crítica da
prova não logrou infirmar em termos bastantes.
O direito à fundamentação da sentença consiste no terceiro sentido da
garantia de um julgamento equitativo (fair trial) estabelecido na
jurisprudência do TEDH[6].
Na estrutura da sentença penal e de entre os seus requisitos, determina
o apontado art.º 374.º, n.º 2, que ao relatório se segue a fundamentação,
que consta, nomeadamente, na indicação e exame crítico das provas
que serviram para formar a convicção do tribunal.
Este o segmento que se controverte tenha sido observado no Tribunal a
quo.
A prova produzida em julgamento é valorada de acordo com o
princípio geral do art.º 127.º, em cujos termos o tribunal forma
livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da
experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal -
nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e o princípio in
dúbio pro reo -.
O referido princípio concede ao julgador uma margem de liberdade na
formação do seu juízo decisório; no entanto, tal juízo decisório terá de
ser fundamentado de modo lógico e racional.
Essa liberdade está, assim, condicionada pela prudente convicção do
julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência humana
comum.
A formação da convicção exige uma atividade intelectual de análise
crítica da prova, baseada nos critérios legais, beneficiando da
imediação com a prova e tendo sempre presente que a dúvida
inultrapassável fará operar o princípio in dúbio pro reo. Tal
impossibilita que o julgador possa formar a sua convicção de um modo
puramente subjectivo e emocional.
No caso vertente, o Mmo. Juiz sindicado deu como não provado que
Com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e
consciente, reiteradamente, com o propósito concretizado, de maltratar
física e psicologicamente a ofendida, sua namorada, bem como após
terminarem o relacionamento, causando-lhe medo e inquietação e
lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher, não se coibindo
de o fazer na residência da ofendida, motivando que Quanto ao facto
não provado, não resultou das condutas descritas, face à sua relativa
baixa gravidade, grande dispersão temporal, e condutas posteriores de
ofendida e do arguido, que tivesse sido intenção deste maltratar física e
psicologicamente a ofendida, sua namorada, causando-lhe medo e
inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher,
também não havendo qualquer facto descrito como tendo ocorrido
dentro da residência da ofendida.
Dificilmente o poderia fazer noutros termos. Está em causa o elemento
subjectivo de uma das infracções por cujo cometimento o arguido foi
inicialmente acusado. Como sobressai da demais fundamentação, o
Mmo. Juiz a quo escalpelizou a globalidade da prova testemunhal e
documental produzida no decurso da audiência daí inferindo o que deu
por provado nos correspectivos itens. Depois num juízo por natureza
dedutivo, concluiu como consta do único item dado como não provado.
A não concordância com a conclusão extraída pelo Sr. Juiz na 1.ª
instância não integra a nulidade apontada; pese embora a discórdia, a
existir, mais do que a nulidade arguida, sempre propendemos a
considerar que o que estará verdadeiramente em causa será antes a
dissonância em termos de aplicação do direito aos demais factos
provados. Com efeito a sentença não poderá ser lida como peça
truncada, antes como um todo e o que se verifica então é que depois na
fundamentação de direito, o Sr. Juiz completou, podemos dizer, a ratio
da sua conclusão consignando após análise dos elementos
caracterizadores do tipo de crime em causa (e citamos):
Descendo imediatamente aos factos, a subsunção dos mesmos ao
direito resulta não se mostrarem verificados todos os elementos
integradores do crime de violência doméstica.
Com efeito, temos a considerar a enorme dispersão temporal das
condutas descritas, condensadas num único evento ocorrido nos verões
de 2015 e 2016 e depois no final de 2016. A relativa baixa gravidade
das condutas, apenas de uma agressão resultando ferimentos físicos
objectivos e de 5 dias de afectação. Mais resultou que a própria
ofendida parece ter desvalorizado a conduta do arguido conforme
provado em 14, não havendo qualquer contexto de onde se possa
extrair que as condutas pontuais descritas tenham tomado tamanho
desvalor que leve a considerar que a ofendida tenha sofrido maus tratos
físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da
liberdade e ofensas sexuais.
Naturalmente que para a verificação do crime de violência doméstica,
não se exige reiteração criminosa.
Porém é necessária alguma gravidade das condutas, de modo a
justificar, de acordo com a qualificação jurídica descrita na acusação, a
aplicação de uma pena de prisão cujo mínimo legal é de elevados
(tendo em conta a comparação com outros crimes contra a honra e
integridade física) dois anos.
Como tal no caso dos autos, estamos perante não um crime de violência
doméstica mas sim dois de ofensa à integridade física, p. e p. pelo
artigo 143.º do Código Penal e três crimes de injúria - ao apelidar a
arguida de puta por três vezes.
Arredada a emergência da nulidade apontada, indaguemos se se
impunha a reclamada alteração do acervo fáctico e, sendo o caso, seu
corolário.
Nos termos do elencado art.º 152.º, n.º 1, al. b), e para o que ora releva,
comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou
não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos
corporais, privações da liberdades e ofensas sexuais a pessoa de outro
sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de
namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem
coabitação.
III – Decisão.
Nos termos expostos, considera-se improcedente o recurso interposto
mantendo-se a decisão recorrida, embora em parte com os fundamentos
expendidos supra em 2.5. fine.
Sem custas, atenta a isenção subjectiva do recorrente.
Coimbra, 7 de Fevereiro de 2018
Brízida Martins (relator)
Orlando Gonçalves (adjunto)
[1] Isto no uso da faculdade concedida pelo art.º 16.º, n.º 3, do Código
de Processo Penal.
[2] Em cujo decurso foi homologada a desistência de queixa
apresentada pela ofendida quanto ao propalado crime de dano – cfr.
despacho de fls. 112 e v.º -.
[3] Com interesse, v.g., os Acs do TRP proferidos nos recursos n.ºs
208/07.8 PACDR.P1 e 1150/14.1 GAMAI.P1, ambos acessíveis em
www.dgsi.pt/jtrp.
[4] Cfr. Ac. STJ, de 7.11.2002.
[5] Nesse sentido, entre muitos, o Ac. do STJ, de 22/04/2004, in CJ–
STJ, Ano XII, tomo II, págs. 166/7.
[6] Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de
Processo Penal, 3.ª edição actualizada, pág. 941.
[7] In A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar,
12 (Especial), págs. 9/24.
[8] Vd. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra
Editora, pág. 132, e Conde Fernandes, in Violência Doméstica, Novo
Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código
Penal, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 305.