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Jiddu Krishnamurti

Apontamentos
de
Krishnamurti
Tr ad u ção de Sônia Café

Pr ef ácio de Mary Lutyens

L.s Terra sem caminho


d a i C K - In st i t u içã o Cu lt u r a l Kr i sh n a m u r t i

I a Edição
2014
Tít u lo Or igin al: Kr ish n am u r t i's Jo u r n al
Co p yr igh t © 1982 Kr ish n am u r t i Fo u n d at io n Tr u st - KFT
Br ockw ood Park, Br am dean , Ham p sh ir e SO 24 OLQ, in giat er r a.

Tr ad u zid o da ed ição in d ian a de 1 9 98


da Krishnam urt i Fo u n d at io n in d ia -
KFI 64/ 65 Greenw ays Road - Ch en n ai, 6 0 0 02 8, In d ia.
J. KRISHN AM U RTI

N ascid o em M ad an ap alle, Jid d u Kr ish n am u r -


(1895 - 1986) t in h a q u at o r ze an o s q u an d o
p asso u a v iv e r so b a t u t ela da Sr a. An n ie Besan t , so cialist a,
r ef o r m ist a e Pr esid en t e da So cie d ad e Teo so f ica In t er n a­
cio n al, em Ad yar , sit u ad a n as ce r can ias d e Ch en n ai. Ela e
o seu co lega, C. W . Lead b eat er , acr e d it avam q u e Kr ish n a-
m u r t i er a o v e ícu lo p ar a o M essias, cuja vin d a h avia sid o
p r ed it a p elo s Teo so f ist as.
A Or d em da Est r ela no Or ien t e, um a o r gan ização d e ­
d icad a a p r e p ar ar a h u m an id ad e p ar a a vin d a d o In st r u t o r
do M u n d o , f o i f u n d ad a em 1911 t e n d o Kr ish n am u r t i sid o
co lo cad o co m o seu p r esid en t e. N esse m esm o ano, ele
foi levad o p ar a a In glat er r a, de m o d o a ser p r ivad am e n t e
ed u cad o e t r e in ad o p ar a sua f u t u r a t ar ef a.
Co n t u d o , em 1929, ele d isso lveu a Or d em e. r en u n cio u
ao d in h eir o e às p r o p r ie d ad e s acu m u lad as em seu n o m e.
Ele d eclar o u , en t ão , q u e a ver d ad e não p o d e ser r evelad a
por in t er m éd io d e seit as ou r eligiõ es, m as ap en as q u an d o
o ser h u m an o se lib er t a de t o d as as f o r m as de co n d icio ­
n am en t o s. " Vo cês p o d em cr iar o u t r as o r gan izaçõ e s e e s­
p er ar p ela vin d a d e o u t r em " - ele d isse. " Já não m e p r e o ­
cu p o m ais co m isso e n em em cr iar n o vas p r isõ es... O m eu
ú n ico in t er esse é a lib er t ação ab so lu t a e in co n d icio n al d o
ser h u m an o ."

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Re co n h e cid o m u n d ialm en t e co m o um in st r u t o r e sp i­
r it u al d o s m ais e xt r ao r d in ár io s, Kr ish n am u r t i d ed ico u sua
vid a a f aze r p alest r as p o r t o d o o m u n d o . Se m p e r m an e ­
cer m ais q u e algu n s m eses n o s lu gar es q u e visit ava, ele se
co n sid er ava co m o n ão p e r t e n ce n d o a u m a d et er m in ad a
r aça ou n ação . Co m o p assar d o s an o s, o s seu s en co n t r o s
an u ais at r aiam m ilh ar es de p esso as de d if er en t es n acio ­
n alid ad es, p r o f issõ es e visõ es de m u n d o em M u m b ai,
Ch en n ai e Ben ar es na ín dia, em Ojai na Calif ó r n ia, em
Saan em na Su íça, e em Br o ckw o o d Park, Ham p sh ir e, na
In glat er r a.

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V SUMÁRIO

p r ef ácio ............................................................................... 11

Set embr o , 1973


dia 14 A t ent at iva de m edit ar não é m e d it ação ............... 13
diais É bom est ar só .......................... .............................. 15
dia 16 M ed it ação acont ece n at u r alm e n t e .......... ............ 17
dia 17 Essa est ran ha at ivid ad e............. 20
dia 18 Qu alqu er exp licação não sign if ica m uit a co isa........23
dia 19 A m ort e est á em t oda p a r t e ....................................26
dia 20 O que é san id ad e?.................................................... 29
dia 2i Só assim a m ent e fica em r e p o u so .......................... 32
dia 22 Nada disso é silê n cio ................................................ 35
dia 23 A co n sciên cia é seu próprio co n t e ú d o .................... 38
dia 24 É preciso que cada um seja a luz para si m esm o .... 41
dia 25 Ent ão isso pode vir a v o cê ........................................ 44
dia 27 A religião se t r an sf o r m o u em su p er st ição ............... 47
dia 28 A d o r est á sem p r e a l i ............................................... 50
dia 29 A o r t o d o xia e a t r ad ição pr oibiam que t ive sse ........ 53
q u alq u er t ip o de co n t at o
dia 30 O que é sagr ad o ?...................................................... 56

Out ubr o , 1973


dia 2 A lib er d ad e não est á co nt ida nos lim it e s................ 59
da co n sciên cia
dia 3 Sem as palavras, im agens e p en sam en t o s,..............62
exist e o p ensador?
dia 4 Tudo p recisa de e sp aço ............................................ 65
dia 6 A palavra não é a c o i sa ............................................ 68
dia 7 Lib er d ad e é o pr im eir o e últ im o p asso ..................... 71
dia 8 Fr agm ent ar é o t r ab alh o do p e n sam e n t o ................74
dia 9 Por que so m o s ed u cad o s?........................................77

7
dia io A vio lên cia est á em t oda p a r t e ................................80
dia 12 A r ealidade não é para ser e xp er im en t ad a......... 83
dia 13 0 eu é um a f ab r icação do p en sam en t o .............. 86
dia 17 ■As lágr im as da h um anidade não l a v a r a m .......... 89
o d esejo hum ano de m at ar
dia i 8 A paz não é o in t er valo ent re o f im e o com eço . . . 92
de um co nf lit o
dia 19 O cérebr o precisa de segu r an ça e o r d e m .............. 95
para f u n cio n ar
dia 20 O ser hum ano é m oldad o na f o r m a do p r a ze r ....... 98
dia 21 Ed u cação é o m odo aceit o para se co n d icio n ar .... 101
a m ent e
dia 22 M ed it ação é o esvaziam en t o da co n sciên cia........ 104
do co n h ecid o
dia 24 Ser ab so lu t am en t e nada é ser im e n su r áve l..........107
dia 25 A ent r ega d o eu não é um at o da vo n t ad e, ..........110
pois a vo n t ade é o eu
dia 29 M at er ialism o é a p r evalen t e e p er sist en t e .......... 113
at ivid ad e dos ser es h um ano s

Abr il ,1975
dia i Sem espaço não exist e a b e l e za ............................ 116
dia 2 Quant o m ais pobre você é, m aior a d e m an d a..... 118
por co n h ecim en t o
dia 3 A beleza nunca é a exp r essão do p en sam en t o ..... 1 2 1
dia 4 Se você perde o co n t at o com a n at u r e za,............ 1 2 3
vo cê p er de o co nt at o com a h u m an idade
dia 6 Som en t e o hom em t r az d eso r d em ...................... 1 2 6
para o u niver so
dia 8 Você não pode co n vid ar a a l e g r i a ......................... 1 2 9
d i a io Exp er iên cia é a m or t e do m ist ér io in co m u n icável. 1 3 2
dia 14 A b on dad e não é o o po st o do m al......................... 1 3 4
dia 17 Exist e um espaço de vazio cujo volu m e n ã o ........ 1 3 6
per t en ce ao t em po
dia 23 O vazio não é um a coisa co n cr e t a ,........................ 1 3 8
m as é a verd ad e
dia 24 O t em p o cr iou a co n sciên cia co m seus co n t eúd o s 141

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A p o n t am e n t o s
de
Kr ish n am u r t i
PREFÁCIO

Rep en t in am en t e, em set em b r o de 1973, Kr ish n am u r -


t i co m eço u a e scr e ve r um d iár io . Por ap r o xim ad am e n t e
seis sem an as, ele f ez an o t açõ e s d iár ias em um cad er n o .
No p r im eir o m ês d aq u ele p er ío d o , ele est ava viven d o em
Br o ckw o o d Par k, Ham p sh ir e, e o r est o do p er ío d o p asso u
em Ro m a. Ele co m p let o u o d iár io d ezo it o m eses m ais t ar ­
de q u an d o est ava na Calif ó r n ia.
Qu ase t o d as as an o t açõ es co m eçam co m a d e scr ição
de um even t o na n at u r eza, a qu al ele co n h ecia in t im am e n ­
t e, em b o r a em ap en as t r ê s o casiõ es essas n ar r at ivas se
r ef er em ao lu gar o n d e ele est ava n aq u ele in st an t e. Sen d o
assim , a p r im eir a p ágin a da p r im eir a an o t ação d e scr e ve
o b o sq u e no p ar q u e, em Br o ckw o o d , p o r ém , na se gu n d a
p ágin a, ele est á se im agin an d o na Su íça. So m e n t e q u an d o
vai p ar a a Calif ó r n ia, em 1975, é q u e ele co m eça d e n o vo
a d e scr e ve r o am b ie n t e cir cu n d an t e o n d e e f et ivam en t e
se en co n t r ava. No r est an t e da n ar r at iva ele se r eco r d a
de lu gar es o n d e viveu , co m u m a clar eza q u e m o st r a q u ão
vívid a er a a sua lem b r an ça dos cen ár io s na n at u r eza, a
em er gir da n it id ez e p r ecisão de su as o b se r v açõ e s. Esses
ap o n t am en t o s t am b ém r evelam o q u an t o os seu s en sin a­
m en t o s se in sp ir avam em sua p r o xim id ad e co m o m u n d o
n at u r al.
Po r t o d a a n ar r at iva, Kr ish n am u r t i se r ef er e a si m es­
m o na t e r ce ir a p esso a co m o " ele" e in cid e n t alm e n t e n o s
r evela algo d e si m esm o q u e n ão h o u ver a f eit o an t er io r ­
m en t e.
M. L.
BROCKW OOD PARK

11
: 14 d e Setembro d e 1973

Um dia d esses, vo lt an d o d e u m a b oa cam in h ad a, p as­


san d o p elo s cam p o s e ár vo r es, at r av e ssam o s o bosque*
q u e f ica p er t o d o casar ão b r an co . Ao cr u zar o p o r t al q u e
leva p ar a d en t r o d o b o sq u e, vo cê sen t iu im e d iat am e n t e
u m a se n sação de p az e q u iet u d e. Nada se m o via. Cam i­
n h ar p o r ali p ar ecia um sacr ilégio , assim co m o p isar aq u e ­
le ch ão ; f alar era p r o f an o ou at é m esm o r esp ir ar . As im e n ­
sas seq u o ias, na m ais ab so lu t a q u iet u d e, são ch am ad as
p elo s n at ivo s n o r t e -am e r ican o s de ser es d o silen cio e, n a­
q u ele in st an t e, elas p er m an eciam r ealm en t e sile n cio sas.
At é m esm o o cach o r r o não p er segu ia o s co elh o s. Dian t e
de um a q u ie t u d e t ão p en e t r an t e era q u ase u m a o u sad ia
r esp ir ar ; vo cê se sen t ia um in t r u so , q u e an t es ria e t a g a ­
r elava e, ao ad e n t r ar aq u e le b o sq u e, sem sab e r o q u e o
agu ar d ava, v ia-se d ian t e d e u m a su r p r e sa e d e um ch o q u e
- o ch o q u e de u m a b ên ção in esp er ad a. O co r ação b at ia
m ais len t am en t e, sem p alavr as d ian t e d aq u ela m ar avilh a.
Ali er a o cen t r o d e t o d o est e lu gar . Desd e en t ão , t o d a v e z
q u e vo cê en t r a ali, vai ao en co n t r o d aq u ela b eleza, d aq u e ­
la q u iet u d e, d aq u ela est r an h a q u iet u d e . Ven h a q u an d o
v ie r e t u d o isso est ar á ali, r ico, p len o , in o m in ável.
Q u alq u e r f o r m a d e m ed it ação co n scien t e n ão é a co isa
real: n u n ca p o d er á ser. A t e n t at iva d elib er ad a d e m e d it ar

* M uit as á rvo re s ra ra s, inclu indo as se quoias, cre sce m n e sse b osque


em Bro ckw ood.

13
não é m ed it ação . Ela p r ecisa aco n t e ce r p o r si m esm a; n ão
p o d e ser co n vid ad a. M e d it ação n ão é um j o go da m en t e
nem d o d esejo e do p r azer . Te n t ar m ed it ar é o m esm o q u e
n egar a p r ó p r ia m ed it ação . Ap e n as se d ê co n t a do que
est á f aze n d o e p en san d o e nad a m ais é n ecessár io . O ver,
o escu t ar já é o f aze r sem r e co m p e n sa nem p u n ição . A
h ab ilid ad e do f azer est á na h ab ilid ad e de ver e ouvir. To d a
f o r m a de m ed it ação leva in e vit ave lm e n t e ao en gan o , à
ilu são , p ois o d esejo cega. Era um a n o it e ad o r ável e a luz
su ave da p r im aver a co b r ia a t er r a.

14
IJpT 15 de setembro de 1973

É b o m e st ar só . Ficar lo n ge d o m u n d o e ain d a assim


cam in h ar p o r su as r u as é est ar só. Est ar só e cam in h an d o
pet as t r ilh as nas m o n t an h as o n d e co r r e,o rio ap r e ssad o e
r u id o so , ch eio d as águ as da p r im aver a e da n eve d e r r e ­
t id a, cien t e d aq u ela ár v o r e so lit ár ia, so zin h a e.m sua b e­
leza. O iso lam en t o d e um h o m em na r u a é a d o r da vid a;
ele n u n ca est á só , d ist an ciad o , in t act o e vu ln er ável. Est ar
ch eio d e co n h e cim e n t o p r o vo ca um so f r im e n t o sem f im .
A s exigê n cias p ar a q u e se exp r e sse , co m su as d o r e s e f r u s­
t r açõ es, p er d u r a n aq u ele h o m em q u e cam in h a p elas r u as;
ele n u n ca est á só . O so f r im e n t o é o m o vim en t o p r esen t e
n aq u ele iso lam en t o .
Aq u e le rio n as m o n t an h as est ava ch e io e v o lu m o so
p or cau sa da n eve d er r e t id a e d as ch u vas d o co m eço da
p r im aver a. Er a p o ssível o u vir gr an d e s b lo co s de p ed r a
sen d o e m p u r r ad o s e le vad o s p ela f o r ça d as águ as. Um p i­
n h eir o alt o , co m seu s cin q u e n t a an o s o u m ais, h avia t o m ­
b ad o so b r e as águ as; a est r ad a est ava se n d o lavad a p elas
águ as. O rio t o m ava u m a co lo r ação lam acen t a co m o se
f o sse d e ar d ó sia. As en co st as acim a se r evest iam de f lo r e s
do cam p o . 0 ar est ava p u ro e ch eio de en can t am en t o . N o s
m o r r o s m ais alt o s, ain d a h avia n eve e as ge le ir as e os p ico s
m ais elevad o s su st e n t avam a neve f r esca; elas p e r m an e ­
cer ão b r an cas p o r t o d o o ver ão .
Era u m a m an h ã m ar avilh o sa e a cam in h ad a p o d er ia
t er d u r ad o p ar a se m p r e sem q u e f o sse p r eciso sen t ir as

15
lad eir as m ais ín gr em es. Havia no ar um p er f u m e clar o e
f o r t e. N in gu ém d escia ou su b ia p o r aq u ela t r ilh a. Era p o s­
sível e st ar só e na p r esen ça d aq u eles p in h eir o s escu r o s e
d as águ as ap r essad as. O céu assu m ia as co r es de um azul
t ão ch o can t e q u e só as m o n t an h as co n se gu e m t er. Tu d o
isso sen d o vist o p or en t r e f o lh as e p in h eir o s er et o s. Não
h avia n in gu ém co m q u em f alar n em t agar e lice na m e n ­
t e. Um a ave, b r an ca e p r et a, alço u vo o e d esap ar ece u na
f lo r e st a. A t r ilh a se d ist an cio u do rio r u id o so e o silen cio
t o r n o u -se ab so lu t o . Não er a o silen cio ap ó s o b ar u lh o : não
er a o silen cio q u e vem co m o p o r d o so l, n em aq u ele si­
len cio q u an d o a m en t e se am o r t e ce . Não er a o silen cio d e
m u seu s e de igr ejas, m as algo t o t alm e n t e livr e d o t e m p o
e d o esp aço . Não era o silen cio q u e a m en t e cr ia p ar a si
m esm a. 0 sol est ava q u en t e e as so m b r as agr ad áveis.
Só r ecen t em en t e ele d esco b r iu q u e n ão h avia um ú n i­
co p en sam en t o d u r an t e e ssas lo n gas cam in h ad as, n as
r u as ch e ias de gen t e ou em t r ilh as so lit ár ias. Desd e gar o ­
t o t in h a sem p r e sid o assim ; n en h u m p en sam en t o en t r ava
em su a m en t e. Ele o b se r vava e escu t ava e nada m ais. O
p en sam en t o co m su as asso ciaçõ e s n u n ca su r giam . Não
h avia a co n st r u ção de im agen s. Cer t o dia, ele d esco b r iu de
r ep en t e o q u an t o isso er a ext r ao r d in ár io ; f r e q u e n t e m e n t e
ele t en t ava p en sar , m as os p en sam en t o s não vin h am . N es­
sas cam in h ad as, co m ou sem p esso as, os m o vim en t o s d o
p en sam en t o est avam au sen t es. Isso é e st ar só .
So b r e o s p ico s n evad o s, n u ven s p esad as e n egr as es­
t avam se f o r m an d o ; p r o vavelm en t e ch o ver ia m ais t ar d e,
m as n aq u ele in st an t e as so m b r as est avam m u it o b em d e­
f in id as e o so i clar o e b r ilh an t e. Ain d a p er d u r ava aq u ele
ch eir o agr ad ável no ar e a ch u va t r ar ia um ch eir o d if e r e n ­
t e. 0 cam in h o ser ia u m a lo n ga d escid a at é o ch alé.

16
16 de setembro de 1973

N aq u ela h or a da m an h ã, as r u as d o v ilar e jo est avam


vazias, p o r ém , além d elas, o cam p o est ava ch eio de ár ­
vo r es, p r ad o s e b r isas su ssu r r an t e s. A ú n ica rua p r in cip al
est ava ilu m in ad a e t o d o o r est o p er m an ecia na e scu r i­
dão. O sol su r gir ia em t r ês h o r as. Ser ia um a m an h ã clar a
e ilu m in ad a p ela est r ela. Os p ico s n evad o s e as gele ir as
aind a est avam na escu r id ão e q u ase t o d o s d o r m iam . As
est r ad as e st r e it as da m o n t an h a t in h am t an t as cu r vas q u e
não er a p o ssível ir m u it o r áp id o ; o car r o er a n o vo e sen d o
am aciad o . Era um b elo car r o , p o t en t e e m u it o bem d e ­
sen h ad o . N aq u ele ar m at in al o m o t o r f u n cio n ava m u it o
ef icien t em en t e. Na e st r ad a, er a b o n it o d e se ve r co m o o
car r o su b ia e vir ava em cad a cu r va, f ir m e co m o um a r o ­
cha. O am an h e ce r e st ava ali, assim co m o o co n t o r n o d as
ár vo r es e a lo n ga e xt e n são d o s m o r r o s e d as vid eir as; se ­
ria u m a m an h a d elicio sa; est ava f r io e agr ad áv e l p o r en t r e
os m o r r o s. O so l se elevar a e o o r v alh o p o u sava so b r e os
cam p o s e as f o lh as.
Ele se m p r e go st o u d e m áq u in as; d e sm o n t av a o m o t o r
de u m car r o e q u an d o esse v o lt ava a f u n cio n ar p ar ecia q u e
era n o vo . Qu an d o vo cê est á d ir igin d o , a m ed it ação aco n ­
t ece t ão n at u r alm en t e. Vo cê p er ceb e a p aisagem r u r al,
as casas, o s t r ab alh ad o r e s no cam p o , as m ar cas d o s car r o s
q ue p assam e o céu azu l p o r en t r e a f o lh agem . Vo cê nem
m esm o p er ceb e q u e a m ed it ação est á aco n t ecen d o , essa
m ed it ação q u e co m eço u há m ilên io s e q u e p er m an ece r á

17
in d ef in id am en t e. 0 t em p o não é um f at o r na m ed it ação ,
n em a p alavr a, q ue é o m ed it ad o r . Não exist e um m ed it a-
d o r a m ed it ar . Se exist ir , en t ão não é m ed it ação . O m e d i­
t ad o r é a p alavr a, o p en sam en t o e o t e m p o e, p o r t an t o ,
su jeit o à m u d an ça, à ap ar ecer e d esap ar ecer . Não é co m o
um a f lo r q u e f lo r e sce e m o r r e. Tem p o é m o vim en t o . Se n ­
t ad o à b eir a do r io, vo cê o b ser va o f lu xo das águ as, as co i­
sas b o ian d o e sen d o ar r ast ad as pela co r r en t eza. Q u an d o
vo cê est á na águ a n ão há um o b ser vad o r . Beleza n ão est á
em u m a m er a exp r essão ; b eleza est á no ab an d o n o d a p a­
lavr a e d a exp r e ssão , da t ela e d o livr o .
Q u an t a p az há n o s m o r r o s, n o s p r ad o s e n essas á r v o ­
r es: t u d o sen d o b an h ad o p ela lu z d e um a m an h ã em m o ­
vim en t o . Do is h o m en s d iscu t iam ao s b er r o s, ge st icu lan d o
e en r u b e sce n d o su as f aces. A est r ad a co n t in u a p o r um a
lo n ga aven id a ar b o r izad a e a t er n u r a do am an h e ce r co ­
m eça a se d issip ar .
A visão d o m ar e st e n d ia-se p o r t o d a p ar t e e o p e r f u m e
de eu calip t o im p r egn ava o ar. Ele er a um h o m em b aixo ,
m agr o e m u scu lo so : ele t er ia v in d o de u m a t er r a d ist an t e,
sua p ele b r o n zead a p elo so l. Dep o is d e u m a b r eve sau ­
d ação , ele d isp ar o u em t o m de cr ít ica. Co m o é f ácil cr i­
t icar q u an d o não se t em o co n h e cim e n t o real d o s f at o s.
Ele d isse: " Vo cê p o d e ser livr e e r ealm en t e viver se gu n d o
o seu d iscu r so , m as f isicam e n t e vo cê est á n u m a p r isão ,
co n f o r t ave lm e n t e p r o t e gid o p elo s seu s am igo s. Vo cê não
sab e o q u e est á aco n t e ce n d o ao seu r ed o r . As p esso as
assu m em a au t o r id ad e , em b o r a vo cê n ão d e m o n st r e se r
au t o r it ár io " .
Não t e n h o cer t eza se vo cê t em r azão q u an t o a e sse as­
su n t o . Par a se d ir igir um a esco la ou q u alq u er o u t r a co isa é

18
N e ce ssár io q u e se t en h a r e sp o n sab ilid ad e e isso p o d e se r
f èit o sem im p licaçõ e s au t o r it ár ias. A u t o r id ad e e co o p e ­
r ação não se co m p le m e n t am , n em a id eia d e co n v e r sar
;òu d iscu t ir as co isas em co n ju n t o . É isso o q u e se p r o cu r a
f azer em t o d o o t r ab alh o em q u e nos en vo lvem o s. Esse é
um f at o real. Q u alq u e r um p o d e n o t ar q u e n ão há in t er ­
m ed iár io s en t r e eu e o o u t r o .
" O q u e vo cê est á d izen d o é da m aio r im p o r t ân cia.
Tudo que vo cê f ala e escr eve d ever ia ser im p r esso e cir cu lar
peias p esso as sé r ias e d e d icad as d esse p eq u en o gr u p o . O
m undo est á e xp lo d in d o e vo cê n em est á p er ceb en d o ."
M ais u m a vez, n ão m e p ar ece que vo cê est á p e r ce ­
b en d o o q u e aco n t ece. Ho u ve um m o m en t o em q u e u m
p eq u en o gr u p o assu m iu a r e sp o n sab ilid ad e d e cir cu lar o
que est ava sen d o d it o . Ago r a, d e n o vo , um p eq u en o g r u ­
po assu m iu a m esm a r esp o n sab ilid ad e . E, m ais um a vez,
é p r eciso q u e se d iga, vo cê n ão est á p e r ce b e n d o o q u e
aco n t ece.
Ele f ez v ár ias cr ít icas, m as t o d as se b aseavam em p r e ­
m issas e o p in iõ e s p assageir as. Sem assu m ir a d ef en siva,
ap o n t am o s p ar a o q u e est ava r ealm en t e aco n t ecen d o .
M as — .
Co m o o s se r e s h u m an o s são est r an h o s.
Os m o r r o s d e sap ar eciam e o s r u íd o s do co t id ian o se
f aziam p r esen t es, o ir e vir, o p r azer e a t r ist e za. Um a ár ­
vo r e so lit ár ia so b r e u m o u t eir o er a a b eleza d a p aisagem .
Nas p r o f u n d e zas d o v ale h avia u m r egat o e ao seu lad o
um a est r ad a. É p r eciso d e ixar o m u n d o d e lad o p ar a v e r a
b eleza d aq u ele r egat o .

19
17 de setembro de 1973

N aq u ela t ar d e, ao cam in h ar p elo p ar q u e, h avia a p r e ­


sen ça de u m a am eaça. O so l se p u n h a e as p alm e ir as e le ­
v av am -se so lit ár ias co n t r ast an d o co m o d o u r ad o d aq u e ­
le céu o cid en t al. Na f igu e ir a, o s m acaco s se p r ep ar avam
p ar a a ch e gad a da n o it e. Dif icilm en t e algu ém u sar ia aq u e ­
le cam in h o e m u it o r ar am en t e se en co n t r ar ia o u t r o ser
h u m an o . Havia m u it o s ce r v o s a d e sap ar e ce r t im id am e n t e
na f o lh agem d en sa. Co n t u d o , a am eaça est ava ali, p esa­
da e p en et r an t e: ela o en vo lvia p o r in t eir o e era p o ssível
o lh ar p ar a ela p o r so b r e o o m b r o . Não h avia an im ais p e ­
r igo so s; eles se m u d ar am d ali, er a m u it o p er t o d o v ilar e jo
em exp an são . Se n t ia-se u m a alegr ia ao se af ast ar d ali e ca ­
m in h ar d e vo lt a e at r avés d as r u as ilu m in ad as. Po r ém , na
n o it e segu in t e, o s m acaco s ain d a e st avam lá, assim co m o
o s ce r v o s e o sol p o r t r ás d as ár vo r e s m ais alt as; a am e a­
ça h avia d e sap ar e cid o . Dessa vez, as ár vo r es, o s ar b u st o s
e as p lan t in h as est avam ali p ar a o f e r e ce r as b o as vin d as.
Vo cê est ava en t r e am igo s, e se sen t ia co m p le t am e n t e se ­
gu r o e m u it o b em vin d o . Os b o sq u e s o aceit avam ; er a um
p r azer cam in h ar ali a cad a n o it e.
A s f lo r e st as são d if er en t es. Há um p er igo f ísico ali, n ão
só p o r cau sa das ser p en t es, m as t am b ém p o r cau sa d o s
t igr es q u e h ab it am essa ár ea. Cer t a vez, cam in h an d o p o r
ali n u m a t ar d e, h o u ve um sile n cio an o r m al e r ep en t in o ; os
p ássar o s se caiar am , o s m acaco s f icar am ab so lu t am e n t e
q u iet o s e t u d o p ar ecia t e r p ar ad o de r esp ir ar . Vo cê f ico u

20
íünóvel. Em segu id a, r ep en t in a m en t e, t u d o vo lt o u a viver ;
òs m acaco s vo lt ar am a b r in car e a p r o vo car u n s aos o u ­
t r os, os p ássar o s r et o m ar am a su a algazar r a vesp er t in a e
era p o ssível n o t ar q u e o p er igo h avia p assad o .
Nos b o sq u es e f lo r e st as o n d e o h o m em m at a co elh o s,
f aisõ es, esq u ilo s, há u m a at m o sf er a b em d if er en t e. A d e n ­
t r a-se u m m u n d o o n d e o ser h u m an o e st eve co m a su a
arm a ou co m a su a f o r m a p e cu liar de v io lê n cia. E assim ,
os b o sq u es p er d em a su a t er n u r a, o se n so d e b o as vin d as
d esap ar ece, assim co m o algo d e sua b eleza e aq u ele su s­
su r r o d e f elicid ad e.
Vo cê só se t em u m a cab eça, cu id e d ela, p o is é um a co i­
sa m ar avilh o sa. N ão há m áq u in as ou co m p u t ad o r e s q u e
p o ssam se r co m p ar ad o s a ela. Tão v ast a e co m p lexa, t ão
in cr ivelm en t e cap az, su t il e p r o d u t iva. A cab e ça h u m an a
e seu cé r eb r o gu ar d am em si exp e r iê n cias, co n h e cim e n ­
t o, m em ó r ias. O at o d e p en sar co m eça ali. E t u d o q u e o
p en sam en t o h u m an o in ven t o u é f an t ást ico : os d an o s
e as b r in cad eir as d e m au go st o , as co n f u sõ e s, as t r ist e ­
zas, as gu er r as, as co r r u p çõ es, as ilu sõ es, o s id eais, a d o r
e a in d igên cia, as gr an d es cat ed r ais, as b elas m esq u it as
e os t e m p lo s sagr ad o s. É f an t ást ico aq u ilo q u e a cab eça
hu m ana t em f e it o e o q u e ain d a p o d e f azer . Co n t u d o , há
um a co isa q ue, ap ar en t em en t e, ela n ão p o d e f azer : m u ­
d ar co m p le t am e n t e o seu co m p o r t am e n t o na sua r elação
co m o u t r a cab eça, co m u m a o u t r a p esso a. N em p u n ição
ou r eco m p en sa p ar ecem m u d ar o seu co m p o r t am e n t o ; o
co n h ecim en t o n ão p ar ece t r an sf o r m ar a sua co n d u t a. O
eu e o vo cê p er m an ece m . Ela n u n ca p e r ce b e q u e o eu é
o vo cê, q u e o o b se r v ad o r é a co isa o b se r vad a. Seu am o r
é sua d e ge n e r ação ; seu p r aze r é sua ago n ia; o s d eu ses

21
de seu s id eais são seu s d e st r u id o r e s. Su a lib er d ad e é sua
p r ó p r ia p r isão ; é ed u cad a par a viver n essa p r isão , ap e n as
t o m an d o o cu id ad o p ar a t o r n á-la m ais co n f o r t ável, m ais
p r azer o sa. Vo cê só t em u m a cab e ça, cu id e d ela, n ão a d e s­
t r u a. É t ão f ácil e n ven en á-la.
Ele sem p r e t eve essa est r an h a f alt a d e d ist an ciam e n t o
en t r e ele m esm o e as ár vo r e s, r ios e m o n t an h as. Não er a
algo cu lt ivad o : n ão é p o ssível cu lt ivar ou p r at icar algo d e s­
sa n at u r eza. N u n ca h o u ve um a p ar ed e en t r e ele e o o u t r o .
O q u e f aziam a ele ou o q u e lh e d iziam , n u n ca p ar ecia m a­
go á-lo ; t am p o u co o elo gio ou a b aju lação o af et avam . De
algu m m o d o , ele p ar ecia ser t o t alm e n t e in t o cad o o u não
in f lu en ciad o . Ele não er a r et r aíd o , iso lad o , m as p ar ecid o
co m as águ as de um rio. Ele t in h a t ão p o u co s p e n sam e n ­
t os; e n en h u m p en sam en t o q u an d o est ava so zin h o . Seu
cér eb r o f icava at ivo q u an d o f alava o u escr e via, caso co n ­
t r ár io f icava q u iet o e at ivo sem m o vim en t o . M o vim en t o é
t e m p o e at ivid ad e n ão é.
Essa est r an h a at ivid ad e, sem d ir e cio n am e n t o , p ar ece
co n t in u ar o t em p o t o d o , no so n o ou na vigília. Ele se m ­
p r e d e sp e r t a co m essa at ivid ad e da m ed it ação ; na m aio r
p ar t e d o t em p o , algo d essa n at u r eza est á sem p r e aco n ­
t e ce n d o . Ele n u n ca a r ejeit a o u a co n vid a. N u m a cer t a
n o it e, ele aco r d o u e f ico u co m p le t am e n t e aco r d ad o . Ele
d eu -se co n t a d e q u e algo co m o u m a b o la d e f o go , luz, es­
t ava sen d o co lo cad o d en t r o d e su a cab eça, b em no ce n t r o
d ela. Ele o b ser vo u isso o b je t ivam e n t e p o r um t e m p o co n ­
sid er áve l, co m o se aq u ilo e st ivesse aco n t e ce n d o à o u t r a
p esso a. Não er a u m a ilu são , algo co n ju r ad o p ela m en t e.
A m ad r u gad a se ap r o xim ava e at r avés d e ab e r t u r as nas
co r t in as ele p o d ia v e r as ár vo r es.

22
l8 de setembro de 1973

Ain d a é um d o s vale s m ais lin d o s. Est á in t eir am en t e


r o d ead o d e m o r r o s e p r e e n ch id o de lar an jais. Há m u it o s
ano s at r ás, h avia p o u cas casas en t r e as ár v o r e s e p o m a­
res, m as ago r a há m u it o m ais; as e st r ad as est ão m ais lar ­
gas, há m ais t r áf e go e m ais b ar u lh o , e sp e cialm e n t e no
lad o o est e d o vale. M as o s m o r r o s e o s p ico s m ais e le ­
vad o s p er m an ecem o s m esm o s, in t o cad o s p ela ação d o
h o m em . Há m u it as t r ilh as q u e levam p ar a as p ar t es m ais
elevad as n as m o n t an h as e m u it o se cam in h o u p o r elas.
Ur sos, cascavé is, ce r v o s e at é m esm o um lin ce f o r am
en co n t r ad o s p elo cam in h o . O lin ce est ava m ais à f r en t e,
segu in d o na t r ilh a e st r e it a r o n r o n an d o e se e sf r e gan d o
co n t r a as r o ch as e o s t r o n co s d as ár vo r es. A b r isa so p r ava
num a d ir e ção q u e p er m it ia um a ap r o xim ação m aio r d ele.
Ele r ealm en t e se d ive r t ia e se d eleit ava co m o seu m u n d o .
Co m su a cau d a cu r t a e le van t ad a, o r elh as p o n t u d as, r et as
e vo lt ad as p ar a f r en t e, seu p elo aver m elh ad o b r ilh an t e e
lim p o, ele est ava t o t alm e n t e alh eio ao f at o de q u e h avia
algu ém cam in h an d o em su a t r ilh a e n ão m u it o d ist an t e.
Cam in h am o s j u n t o s p ela t r ilh a p o r m ais d e um q u iló m e ­
t ro, sem f aze r m o s q u alq u e r r u íd o . Era r ealm en t e um b elo
an im al, en vo lt o na gr acio sid ad e d e seu p o d e r n at u r al. H a­
via um est r eit o r egat o à f r e n t e e, não q u e r e n d o assu st á-
-lo d ian t e d essa ap r o xim ação , um su ave su ssu r r o se r vir ia
co m o u m a sau d ação . Ele n ão co git o u d e o lh ar em vo lt a,
t er ia sid o um d esp e r d ício d e t em p o , ap e n as d esap ar ece u

23
co m p le t am e n t e em f r ação d e segu n d o . Um a am izad e q u e
p er d u r ar a p o r um t e m p o co n sid er ável.
O v ale est á im p r egn ad o co m o p e r f u m e d as lar an jeir as
em flor, e sp e cialm e n t e ao am an h e cer e ao en t ar d ecer . 0
p er f u m e est ava no q u ar t o , no vale e p o r t o d o s o s can t o s
da t er r a e o d e u s d as f lo r e s ab e n ço ava o vale. O ve r ão
ser ia m u it o q u en t e e isso t er ia as su as p r ó p r ias p e cu lia­
r id ad es. Há m u it o s an o s at r ás, em um a d e ssas visit as, n o ­
t ava-se um a at m o sf er a m ar avilh o sa; at é cer t o p o n t o , ela
ain d a est á aq u i. Os ser es h u m an o s est ão d an if ican d o essa
at m o sf er a, assim co m o p ar ecem d an if icar m u it as o u t r as
co isas. Algo ser á co m o sem p r e f oi. Um a f lo r p o d e m u r ch ar
e m o r r er , m as r egr essar á co m a sua b eleza e gr aça.
Vo cê j á se p er gu n t o u p o r q u e o s ser es h u m an o s f r a ­
cassam ou p o r q u e se t o r n am co r r u p t o s, in d ecen t es, v io ­
len t o s, ar d ilo so s e o p o r t u n ist as? Não ad ian t a cu lp ar o
m eio am b ie n t e, a cu lt u r a ou o s p ais. Q u e r em o s co lo car
a r e sp o n sab ilid ad e d essa d e gen e r ação n o s o u t r o s ou em
algu m aco n t ecim en t o . Exp licaçõ e s e cau sas são saíd as
f áceis. Os an t igo s h in d u s ch am avam isso d e car m a, vo cê
co lh e o q u e p lan t o u . Os p sicó lo go s co lo cam o p r o b lem a
no co lo dos p ais. 0 q u e as p esso as ch am ad as de r eligio sas
d izem so b r e essa q u est ão , est á b asead o em seu s d o gm as
e cr en ças. M as a q u e st ão p e r m an e ce sem r esp o st a.
Po r o u t r o lado , exist em aq u eles q u e n ascem ge n e r o ­
so s, b o n d o so s e r esp o n sáveis. Não são af et ad o s p elo m eio
am b ie n t e nem p o r q u alq u er t ip o de p r essão . Eles p e r m a­
n ecem o s m esm o s, ap e sar d e t o d o o clam o r . Po r q u ê?
Q u alq u e r e xp licação q u e se t en h a, n ão sign if icar á m u i­
t a co isa. To d as as e xp licaçõ e s são f u gas p ar a e v it ar a r e­
alid ad e d aq u ilo q ue é. Isso é a ú n ica co isa qu e im p o r t a.

24
0 q u e é p o d e se r co m p le t am e n t e t r an sf o r m ad o co m a
ener gia q u e se gast a co m e xp licaçõ e s e co m a b u sca de
cau sas, O am o r n ão est á no t e m p o nem em an álises, n ão
est á no ar r e p e n d im e n t o n em nas r ecr im in açõ es. O am o r
est á p r esen t e q u an d o o eu en gan o so e ast u t o e o d esejo
por d in h eir o e p o sição n ão est ão .

25
19 de setembro de 1973

Era o t e m p o d as m o n çõ es. So b as n u ven s escu r as e


p esad as, o m ar t in gia-se de n egr o e o ven t o d ilacer ava as
ár vo r e s. Ch o ver ia d u r an t e algu n s d ias, ch u vas t o r r en ciais,
co m u m a p au sa de um ou d o is d ias, p ar a co m e çar t u d o
o u t r a vez. Sap o s co axavam em t o d as as p o ças e o ar se
en ch ia d o ch e ir o agr ad ável t r azid o p eia ch u va. A t e r r a es­
t ava lim p a o u t r a vez e em p o u co s d ias se t o r n ar ia su r p r e ­
e n d e n t e m e n t e ver d e. A s co isas cr esciam a o lh o s vist o s; o
sol ap ar ecer ia e t o d as as co isas so b r e a t e r r a r e sp lan d e ce ­
r iam . De m an h ã ced o , h aver ía cân t ico s e o s e sq u ilo s p e­
q u en in o s est ar iam p o r t o d a p ar t e. As f lo r es est avam em
t o d o s os lu gar es, as se lvage n s e as cu lt ivad as, o jasm im , a
r osa e a m agn ó lia.
Ce r t o d ia, na est r ad a q u e leva at é o m ar, cam in h an d o
so b as p alm e ir as e as ár vo r e s p esad as p ela ch u va, o lh an ­
d o p ar a m ilh ar es d e co isas, um gr u p o d e cr ian ças en t o ava
cân t ico s. Elas p ar eciam t ão f elizes, in o ce n t e s e ab so lu ­
t am e n t e alh eias ao m u n d o . Um a d elas n o s r eco n h eceu ,
ap r o xim o u -se so r r in d o e cam in h am o s de m ão s d ad as p o r
algu n s in st an t es. Cam in h am o s em silen cio e, ao ch e gar ­
m o s p er t o da casa, ela f ez u m a sau d ação e d esap ar ece u
d en t r o da casa. O m u n d o e a f am ília ir ão d e st r u í-la e ela
t am b é m t er á f ilh o s, ch o r ar a p o r eles e, p o r in t er m éd io da
ast ú cia d o m u n d o , eles t am b é m se r ão d e st r u íd o s. M as,
n aq u ele f im d e t ar d e, ela e st ava f eliz e ch eia de vid a ao
co m p ar t ilh ar um cam in h ar j u n t o s d e m ão s d ad as.

26
Qu an d o as ch u vas p ar ar am e, vo lt an d o p ela m esm a
est r ad a n u m dia d e u m e n t ar d e ce r d o u r ad o , p assam o s
p o r um jo ve m q u e car r e gava u m a ch am a num vasilh am e
de cer âm ica. Ele est ava sem in u , u san d o ap e n as um p an o
lim po q u e en vo lvia o s se u s q u ad r is, aco m p an h ad o de o u ­
t ros d o is h o m en s q u e car r e gavam o co r p o d e um m o r t o ,
Eram t o d o s b r âm an es, r ecém -b an h ad o s, lim p o s, er et o s.
0 jo vem car r e gan d o o f o go d ever ia ser f ilh o d o h o m em
m or t o: eles cam in h avam r ap id am en t e. 0 co r p o ser ia cr e ­
m ado em algu m lu gar r e se r vad o so b r e as ar eias. Era t u d o
t ão sim p les, b em d if er en t e d e car r o s m o r t u ár io s e lab o r a­
dos, ch eio d e f lo r e s, se gu id o s p o r um a f ila de o u t r o s car ­
ros p o lid o s e d e p esso as e n lu t ad as cam in h an d o at r ás do
caixão: o o b scu r o n egr u m e da co isa t o d a. Ou p o d er ia se
ver um co r p o m o r t o , d e ce n t e m e n t e co b er t o , sen d o le v a­
do peia t r ação d e u m a b iciclet a at é o r io sagr ad o o n d e
seria cr em ad o .
A m o r t e est á em t o d a p ar t e e n u n ca sab e m o s co m o
viver co m ela. Ela é u m a co isa o b scu r a e t e m e r o sa a
ser evit ad a a t o d o cu st o e n u n ca d eve se r m en cio n ad a.
M an t en h a-a d ist an t e da p o r t a f e ch ad a. M as ela vai e st ar
sem p r e ali. A b eleza d o am o r é a m o r t e e n in gu ém o s co ­
nhece. M o r t e é d o r e am o r é p r azer e o s d o is n u n ca se
en co n t r am ; o s d o is d evem se r m an t id o s se p ar ad o s e essa
d ivisão é a d o r e a ago n ia h u m an as. Isso é assim d esd e o
co m eço d o t em p o , a d ivisão e o co n f lit o et er n o . Haver á
sem pr e a m o r t e p ar a os q u e n ão p er ceb em q u e o o b se r ­
vado r é a co isa o b se r vad a, o e xp e r im e n t ad o r é o e xp e r i­
m en t ad o . É co m o um v ast o rio n o qu al o ser h u m an o f o i
ap an h ad o , j u n t am e n t e co m t o d o s o s seu s b en s m at er iais,
suas v aid ad e s, d o r es e co n h e cim en t o . A m en o s qu e ele

27
ab an d o n e t o d as as co isas q u e acu m u lo u no r io e n ad e em
d ir eção à co st a, a m o r t e est ar á se m p r e à su a p o r t a, e sp e ­
r an d o e o b ser van d o . Qu an d o ele ab an d o n a o rio, não há
m ais co st a, a m ar gem é a p alavr a, o o b ser vad o r . Ele d e i­
xou t u d o p ar a t r ás, o r io e as m ar gen s. Pois o r io é o t em p o
e as m ar gen s são o s p e n sam e n t o s d o t em p o : o r io é o m o ­
v im e n t o d o t e m p o e o p e n sam e n t o é d o t em p o . Q u an d o
o o b se r v ad o r ab an d o n a t u d o q u e ele é, en t ão não há m ais
o b ser vad o r . Isso n ão é a m o r t e. Isso é o at e m p o r al. Não
há co m o sab e r o q u e é isso . Vo cê n ão co n h e ce isso , pois
o q u e é co n h e cid o é co isa d o t em p o ; vo cê n ão t em co m o
e xp e r im e n t ar isso: r e co n h e cim e n t o é co isa d o t em p o . A
lib e r t ação d o co n h e cid o é a lib er t ação da p r isão do t e m ­
po. Im o r t alid ad e n ão é a p alavr a, o livr o ou a im agem que
vo cê co n st r u iu . A alm a, o 'eu', a in d iv id u alid ad e é f ilh a do
p en sam en t o o q u al é t em p o . Q u an d o o t e m p o n ão exist e
n ão exist e a m o r t e. A m o r é o q u e é.
O céu d o p o en t e p er d er a a sua co r e na linh a do h o r i­
zo n t e a íua n o va su r gia jo ve m , t ím id a e t er n a. Na est r ad a,
as co isas p assavam : o casam en t o , a m o r t e, as gar galh ad as
d e cr ian ças e algu ém so lu çan d o . Ao lad o d a lua, b r ilh ava
u m a e st r e la so lit ár ia.

28
f 2 0 d e se t e m b r o d e 19 73

O rio est ava p ar t icu lar m en t e b elo essa m an h ã; o so l


co m eçava a ap ar e ce r p o r cim a d as ár vo r e s e da vila e sco n ­
dida at r ás d elas. Na q u iet u d e sem so p r o de ven t o a águ a
era um esp elh o . O dia ser ia b em q u en t e, m as ain d a est ava
f r esco e o m acaco so lit ár io se b an h ava ao so l. Gr an d e e
p esad o , ele sem p r e est ava ali co n sigo m esm o . Du r an t e o
dia, ele d esap ar ecia, m as vo lt ava de m an h ã ced o e f icava
no t o p o do pé de t am ar in d o : q u an d o esq u e n t av a, a ár -
sVore p ar ecia en go li-lo . Os p ap a-m o scas esver d ead o s se
■assen t avam na b alau st r ad a j u n t am e n t e co m as p o m b as e
■os ab u t r es e st avam em p o le ir ad o s e q u iet o s so b r e o s g a ­
lhos m ais alt o s d e o u t r o t am ar in d e ir o . A lh e io ao m u n d o , a
q u iet u d e er a im en sa ao sen t ar -se n aq u ele b an co .
Vo lt ávam o s d o ae r o p o r t o p o r u m a est r ad a so m b r e a­
da e ch eia de p ap agaio s, n as co r e s v e r d e e ver m elh a, a
gr it ar em t o r n o d as ár vo r es, q u an d o vim o s o q u e p ar ecia
ser um a gr an d e t r o u xa lar gad a na est r ad a. Qu an d o o car r o
se ap r o xim o u , a t r o u xa r eve lo u -se co m o se n d o o co r p o
d eit ad o e q u ase nu de um h o m em . O car r o p ar o u e d e sce ­
m os. 0 co r p o d aq u ele h o m em er a im en so e a cab e ça m u i­
t o p eq u en a; ele o lh ava par a o céu esp an t o sam e n t e azu l
:po r en t r e a f o lh agem . Olh am o s t am b ém par a d e sco b r ir
: o que ele est ava co n t e m p lan d o e vim o s q u e o céu e st a ­
va r ealm en t e azul assim co m o as f o lh as er am r ealm en t e
:ver des. Ele er a d ef icien t e e co n sid e r ad o um d o s id io t as
fdo vilar ejo . Ele p er m an eceu im ó vel e o car r o f oi co n d u -

29
zid o m u it o cu id ad o sam e n t e n aq u ele t r ech o . Os cam elo s
co m su as car gas e as cr ian ças a gr it ar p assavam p o r ele
sem lhe p r est ar a m en o r at en ção . Um cach o r r o p asso u
a um a larga d ist an cia. Os p ap agaio s est avam o cu p ad o s
co m o b ar u lh o q ue f aziam . Os ald eõ es, o s cam p o s seco s,
as ár vo r e s e as f lo r e s am ar e las e st avam t o d o s o cu p ad o s
co m su as p r ó p r ias exist ên cias. Aq u ela p ar t e d o m u n d o era
su b d esen vo lvid a e n ão h avia o r gan izaçõ e s ou in d ivíd u o s
p ar a cu id ar d e p esso as n aq u ela co n d ição . Havia esgo t o s a
céu ab er t o , su jeir a e m u lt id õ es h u m an as, en q u an t o o rio
sagr ad o segu ia o seu cam in h o . A t r ist e za da vid a est ava
em t o d a p ar t e e no céu azul, b em lá n as alt u r as, o s ab u ­
t r es d e asas p esad as p lan avam em cír cu lo s co m as asas
p ar ad as, cir cu lan d o e esp er an d o e o b ser van d o , ao p assar
d as h o r as.
O q u e é san id ad e? E in san id ad e? Qu em é lú cid o e
q u em é lo u co ? Ser iam o s p o lít ico s lú cid o s? E o s r eligio so s,
ser iam eles in san o s? E o s q u e est ão co m p r o m e t id o s co m
id eo lo gias, ser iam eles lú cid o s? So m o s co n t r o lad o s, m o l­
d ad o s e co n d u zid o s p o r p esso as n essas p o siçõ es e ser á
q ue so m o s lú cid o s e sad io s?
E o q u e é san id ad e? Ser in t eir o , sem f r agm e n t ação na
ação , na vid a e em t o d o s o s r elacio n am e n t o s - essa é a
p r ó p r ia essên cia da san id ad e. San id ad e sign if ica se r ín t e ­
gr o , sau d ável e sagr ad o . Ser in san o , n eu r ó t ico , p sicó t ico ,
d eseq u ilib r ad o , esq u izo f r ên ico , n ão im p o r t a o t er m o q u e
se q u eir a u sar, é ser f r agm e n t ad o e d isp er so na ação e no
m o vim en t o d e se r elacio n ar co m a p r ó p r ia exist ên cia. Cu l­
t iv ar an t ago n ism o e d ivisõ e s, q u e são os o b jet o s de t r o ca
d o s p o lít ico s q u e r ep r esen t am o s cid ad ão s, é cu lt ivar e
su st e n t ar a in san id ad e p o r in t er m éd io d o s d it ad o r e s ou

30
dos-que assu m em o p o d e r em n o m e da p az ou de algu m a
id eo lo gia. E o sacer d o t e: o lh e m o s para o m u n d o do sace r
dócio. O sace r d o t e se in t er p õ e en t r e v o cê e aq u ilo q u e
eje e vo cê co n sid er am co m o sen d o a ver d ad e, a salvação ,
Deus, o céu, o in f er n o . Ele é o in t ér p r et e e o r ep r esen t an t e
Ji sso t u d o; car r ega co n sigo as ch aves d o céu; co n d icio n a
jó íser h u m an o p o r in t er m éd io da cr en ça, d o d o gm a e d o
■ritual; ele é o v e r d ad e ir o p r o p agan d ist a. E ele co n segu e
{do n dicio n á-lo, p o r q u e v o cê q u er o co n f o r t o , a segu r an ça
íè: m o r r e de m ed o d o am an h ã. E o s ar t ist as, o s in t e le ct u ­
ais, o s cie n t ist as t ão ad m ir ad o s e b aju lad o s - ser iam eles
p c i d o s e sad io s? Ou ser á q u e vivem em d o is m u n d o s d if e ­
r ent es - o m u n d o d as id eias e o da im agin ação co m su as
éxp r essõ es co m p u lsivas, t o t alm e n t e se p ar ad o s da su a
vida d iár ia d e p r azer e d o r?
O m u n d o q u e o cir cu n d a é f r agm e n t ad o e su a e xp r e s­
são é o co n f lit o , a co n f u são e a m isér ia: vo cê é o m u n d o
e o m u n d o é vo cê. San id ad e é vid a vivid a na ação sem
co nf lit o . Ação e id eia são co isas co n t r ad it ó r ias. O at o d e
ver já é o f aze r e n ão a id eia d e p r im eir o p e n sar em algo
para d ep o is p r o gr am ar a ação a p ar t ir d e um a co n clu são .
Isso ger a co n f lit o . O an alisad o r é o an alisad o . Qu an d o o
an alisad o r se sep ar a e se co n sid er a algo d if er en t e do q u e
est á sen d o an alisad o , ele cr ia o co n f lit o q u e p r o d u z o d e ­
seq u ilíb r io . O o b se r v ad o r é o o b se r v ad o e n isso r esid e a
san id ad e e a t o t alid ad e sagr ad a q u e é o am o r .

3?
É m u it o b o m aco r d ar sem um ú n ico p en sam en t o e
sem o s p r o b lem as q u e eles cr iam . Só assim a m en t e f ica
em r ep o u so e cria u m a o r d em in t er io r q u e r evela a im p o r ­
t ân cia do so n o . A m en t e p o d e cr iar o r d em nos r e lacio n a­
m en t o s e açõ es d u r an t e o est ad o de vigília, o qu e vai f aze r
co m q ue r ep o u se co m p le t am e n t e en q u an t o vo cê d o r m e
ou, d u r an t e o so n o , ela t en t ar á o r gan izar os seu s assu n t o s
d iár io s segu n d o o q u e lh e p ar eça sat isf at ó r io . Du r an t e
o dia, h aver á d eso r d em cau sad a p o r m ú lt ip lo s f at o r es
e d u r an t e a n o it e a m en t e t en t ar á se livr ar de t o d a essa
co n f u são . A m en t e e o cé r eb r o só p o d em f u n cio n ar e f i­
cien t e e o b je t ivam e n t e q u an d o há o r d em . O co n f lit o d e
q u alq u e r n at u r eza é o m esm o q u e d eso r d em . Co n sid er e
o q u e a m en t e e xp er im en t a t o d o s o s d ias d e sua vid a: a
t e n t at iva de cr iar o r d em d u r an t e o so n o e a d eso r d em
q u e aco n t ece d u r an t e o t e m p o em q u e vo cê est á aco r ­
d ad o . Dia ap ó s dia, esse é o co n f lit o da vid a. O cér eb r o
só f u n cio n a q u an d o est á em se gu r an ça e n ão d ian t e da
co n t r ad ição ou da co n f u são . E assim , ele t en t a e n co n t r ar
essa se gu r an ça em algu m a f o r m a n eu r ó t ica, m as isso só
f az p io r ar o co n f lit o . A o r d em é a t r an sf o r m ação d e t o d a
essa co n f u são . A o r d em é co m p let a q u an d o o o b se r v ad o r
é o p r ó p r io o b ser vad o .
Ao lad o da casa, no p eq u en o b eco so m b r ead o e sile n ­
cio so , um a m en in a ch o r ava alt o e aos gr it o s, do j e it o q u e
as cr ian ças sab em f azer . Ela d evia t er cin co o u seis an o s,

32
m as m iú da p ar a sua id ad e. Se n t ad a no ch ão , as lágr im as
esco r r iam pela sua f ace. Ele se sen t o u p er t o d ela e lhe
p er gu n t o u o q u e est ava aco n t ecen d o , m as ela não co n ­
segu ia f alar , p o is os so lu ço s em b ar gavam sua r esp ir ação .
Ela d evia t e r ap an h ad o ou o seu b r in q u ed o f avo r it o t in h a
se q u eb r ad o ou algo q u e ela m u it o q u er ia lhe t in h a sid o
n egad o co m r isp id ez. A m ãe ap ar eceu , sacu d iu a cr ian ça
e a levo u p ar a d en t r o . Ela m al o lh o u p ar a ele, p o is er am
est r an h o s. A lgu n s d ias d ep o is, cam in h an d o p elo m esm o
beco, a cr ian ça saiu da casa, ch eia de so r r iso s, e cam in h o u
com ele u m a cu r t a d ist an cia. A m ãe lh e d er a a p e r m is­
são de cam in h ar co m um est r an h o . Ele p asso u a cam in h ar
com f r eq u ên cia p o r aq u e le b eco e a m en in a, seu ir m ão
e irm ã saiam p ar a cu m p r im e n t á-lo . Ser á q u e um dia eles
esq u ecer ão su as m ágo as e f er id as, ou co n st r u ir ão para si
r esist ên cias e escap es? M an t er e ssas m ágo as p ar ece se r
da n at u r eza h u m an a e, a p ar t ir d isso , su as açõ es se t o r ­
nam d ist o r cid as. Ser á q u e a m en t e h u m an a p o d e n u n ca
ser f er id a ou m ago ad a? N ão ser m ago ad o é ser in o cen t e.
Se vo cê n ão f o i m ar cad o p ela m ágo a, vo cê n at u r alm en t e
não m ago ar á n in gu ém . Ser á qu e isso é p o ssível? A cu lt u ­
ra em q u e v iv e m o s m ago a p r o f u n d am e n t e a m en t e e o
co r ação . O b ar u lh o e a p o lu ição , a agr e ssão e a co m p e ­
t ição, a v io lê n cia e a e d u cação - t u d o isso e m u it o m ais
co n t r ib u em co m esse e st ad o d e ago n ia. Co n t u d o , t em o s
de viver n esse m u n d o d e b r u t alid ad e e r esist ên cia: n ó s
som os o m u n d o e o m u n d o é o qu e so m o s. E o q u e é
isso a q u e ch am am o s d e m ágo a? A im agem q u e cad a um
co n st r ó i p ar a si m esm o , ser á isso o q u e p o d e m o s ch am ar
de f er id a? Est r an h am en t e, essas im agen s são sem p r e as
m esm as p o r t o d o o m u n d o , co m algu m as m o d if icaçõ es. A

33
essên cia d a im agem q u e u m a p esso a t em aq u i é a m esm a
q u e a im agem de o u t r a p esso a a m ilh ar es d e q u ilô m e t r o s
d e d ist an cia. E assim , cad a um é co m o aq u ele h o m em ou
aq u ela m u lh er. As f e r id as d e um são as f e r id as d e t o d o s:
vo cê é o o u t r o .
Ser ia p o ssível n u n ca ser m ago ad o ? On d e há m ágo a
n ão há am or . On d e há f er id a, en t ão o am o r é m er o pr azer.
Qu an d o se d esco b r e p o r si m esm o a b eleza d e n u n ca t er
sid o m ago ad o , só assim d e sap ar e ce m t o d as as f e r id as do
p assad o . Na t o t alid ad e d o p r esen t e, o p assad o d eixa de
ser um p eso .
Ele n u n ca se sen t iu f er id o , em b o r a m u it as co isas t e ­
n h am aco n t ecid o a ele, elo gio s e in su lt o s, am eaças e
se gu r an ça. Isso n ão sign if icav a q u e ele er a in sen sível,
d e sco n e ct ad o : ele n ão t in h a n en h u m a im agem d e si m es­
m o, n en h u m a co n clu são , n en h u m a id eo lo gia. Im agem é
r esist ên cia e q u an d o não há isso, exist e vu ln e r ab ilid ad e ,
m as não há m ágo a. Não se p o d e b u scar a co n d ição d e ser
vu ln e r áve l ou d e se r e xt r e m am e n t e sen sível, p o is aq u ilo
q u e é b u scad o e e n co n t r ad o t o r n a-se u m a o u t r a f o r m a da
m esm a im agem . Co m p r e e n d a esse m o vim en t o p o r in t ei­
ro, não só v er b alm en t e , m as co m a visão in t er io r d e um
exp er im en t o . Per ceb a a est r u t u r a co m p let a d isso , sem
r e se r vas. Veja q u e a v e r d ad e d isso é o f im d o co n st r u t o r
d e im agen s.
A f o n t e t r an sb o r d ava e at r aia m ilh ar es de r ef lexo s. A
n o it e ch ego u e escan car o u o f ir m am en t o .

34
2 2 d e se t e m b r o d e 19 73

Um a m u lh er can t ava na sala ao lado: ela t in h a um a vo z


m ar avilh o sa e os p o u co s qu e a escu t avam est avam e xt a ­
siados. O sol se p u n h a p o r en t r e as m an gu eir as e p alm eir as
em t o n s f o r t e s d e d o u r ad o e ver d e. Ela can t ava can çõ es
d evo cio n ais e su a vo z ia f ican d o m ais in t en sa e ad o cicad a.
Escu t ar é u m a ar t e. Qu an d o v o cê escu t a m ú sica clássica
o cid en t al ou a essa m u lh er sen t ad a no ch ão, p o d e su r gir
um est ad o r o m ân t ico ou le m b r an ças de co isas do p assa­
do, co m su as asso ciaçõ e s q u e r ap id am e n t e vão m u d an d o
os h u m o r es ou e vo can d o o f u t u r o . Ou vo cê escu t a sem
q u alq u er m o vim en t o d o p en sam en t o . Vo cê e scu t a a p ar t ir
de um a ab so lu t a q u iet u d e, de um t o t al silen cio .
Escu t ar p en sam en t o s ou o can t o d e um p ássar o so b r e
um galh o ou aq u ilo q u e est á sen d o d it o , sem a r esp o st a d o
p en sam en t o , t r az co n sigo um sign if icad o co m p le t am e n t e
d if er en t e d aq u ilo q u e vem co m o m o vim en t o d o p e n sa­
m ent o. Essa é a ar t e de escu t ar , e scu t ar co m t o t al at en ção
e sem u m cen t r o q u e est eja escu t an d o .
O silên cio d as m o n t an h as t em um a p r o f u n d id ad e n ão
en co n t r ad a n o s vales. Cad a um t em seu p r ó p r io silên cio ;
o silên cio en t r e as n u ven s e en t r e as ár vo r e s é co m p le ­
t am en t e d if er en t e; o silê n cio en t r e d o is p en sam en t o s é
in finit o ; o silên cio do p r aze r e d a d o r é t an gíve l. O silê n ­
cio ar t if icial q u e p o d e ser f ab r icad o p elo p en sam en t o é a
m or t e; o silên cio en t r e d o is r u íd o s é au sên cia d e b ar u lh o ,
m as não é silên cio , assim co m o a au sên cia da gu er r a n ão

35
é a paz. Exist e o silên cio escu r o de cat ed r ais e t em p lo s,
p er m ead o de id ad e e b eleza, esp e cialm e n t e co n st r u íd o
p elo ser h u m an o ; há o silên cio do p assad o e do f u t u r o ,
o silên cio d o m u seu e d o cem it ér io . M as n ad a d isso é si­
lên cio .
O h o m em est ava se n t ad o ali, im ó vel, às m ar gen s d o
b elo rio; ele f icar a ali p o r m ais d e u m a h o r a. Ele vin h a t o ­
das as m an h ãs, t en d o se b an h ad o , p ar a can t ar em sân s-
cr it o e, n aq u ele in st an t e, ele p ar ecia p er d id o em seu s
p en sam en t o s; o sol n ão o p er t u r b ava, p elo m en o s o sol
m at u t in o . Um d ia ele ch ego u e co m eço u a f alar so b r e
m ed it ação . Ele não p er t en cia a n en h u m a esco la d e m e d i­
t ação , p o is as co n sid er ava sem u t ilid ad e e sem q u alq u e r
sign if icad o ver d ad eir o . Ele est ava só, n ão t in h a se casa­
do e há m u it o t e m p o h avia d eixad o p ar a t r ás as co isas do
m u n d o . Ele t in h a co n t r o lad o seu s d e sejo s, m o ld ad o seu s
p en sam en t o s e vivid o um a vid a so lit ár ia. Não er a am ar go ,
vaid o so ou in d if er en t e; ele t in h a e sq u ecid o e ssas co isas
há algu n s an o s at r ás. M ed it ação e r ealid ad e er am a sua
vid a. En q u an t o ele f alava e t at eava em b u sca d as p alavr as
ce r t as, o so l se p u n h a e um silên cio p r o f u n d o p air o u so b r e
t o d o s. Ele p ar o u d e f alar . Dep o is de algu m t em p o , q u an ­
d o as est r elas e st avam b em p r ó xim as à t er r a, ele d isse:
" Esse é o sile n cio q u e eu est ive b u scan d o em t o d a p ar t e:
nos livr o s, n o s in st r u t o r es e em m im m esm o . En co n t r ei
m u it as co isas, m as ain d a não h avia e n co n t r ad o isso. Veio
sem ser co n vid ad o , sem ser b u scad o . Ser á qu e d esp er ­
d icei a m in h a vid a em co isas sem im p o r t ân cia? Vo cê não
f az id eia d as co isas p elas q u ais p assei, o s jeju n s, as p r i­
vaçõ e s e as p r át icas. Já h avia v ist o a f u t ilid ad e d isso t u d o
há m u it o t em p o , m as n u n ca p r e se n ciad o a vin d a d esse

36
silên cio . O q u e f aze r p ar a p e r m an e ce r nele, co m o su st e n ­
t á-lo e p r e se r v á-lo em m eu co r ação ? Su p o n h o q u e v o cê
diria p ar a n ão f aze r n ad a, p o is n ão se p o d e in vo cá-lo . Ser á
que d evo co n t in u ar vagan d o p o r esse m u n d o , r ep et in d o as
co isas, e xe r ce n d o o co n t r o le? Sen t ad o aq u i m e d o u co n ­
t a d esse silê n cio sagr ad o ; p o r in t er m éd io d ele co n t e m p lo
as est r elas, e ssas ár vo r es, o rio. Em b o r a veja e sin t a t u d o
isso, ain d a n ão e st o u lá, r ealm en t e. Co m o vo cê d isse u m
dia d esses, o o b se r v ad o r é o o b ser vad o . Ago r a vejo o q u e
isso sign if ica. A b em aven t u r an ça q u e eu b u scava n ão est á
na ação d e b u scá-la. Ch ego u a h o r a de p ar t ir ."
O r io en e gr ece u e as e st r e las se r ef let ir am em su as
m ar gen s. Gr ad u alm e n t e o s b ar u lh o s do d ia f o r am se e n ­
cer r an d o e o s su aves r u íd o s da n o it e co m e çar am . Vo cê
co n t em p lava as est r elas, a t er r a escu r a e o m u n d o d ist an ­
te. A b eleza, q ue é o am or , p ar ecia d e sce r so b r e a t er r a e
t odas as co isas t er r est r es.

37
2 3 d e se t e m b r o d e 1 9 7 3

Na p ar t e b aixa d a m ar gem d o rio, ele est ava d e pé e


so zin h o ; n ão er a u m r io m u it o lar go e ele p o d ia ve r al­
gu m as p e sso as na o u t r a m ar gem . Se est ivessem f alan d o
alt o , ser ia q u ase p o ssível o u vi-las. Na e st ação ch u vo sa, o
rio ia ao en co n t r o d as águ as ab e r t as d o m ar. Ch o via há
vár io s d ias e o rio r o m p er a as m ar gen s ar en o sas p ar a se
en t r egar ao m ar. Po r cau sa d as ch u vas p e sad as as águ as
est avam lim p as d e n o vo e er a segu r o n ad ar ali. O r io era
su f icie n t e m e n t e lar go p ar a co n t e r u m a ilh a lo n ga, e st r e i­
t a e ver d e p ela v e ge t ação , algu m as ár vo r e s b aixas e um a
p eq u en a p alm eir a. Qu an d o a águ a n ão e st ava m u it o p r o ­
f u n d a, o gad o at r avessava n ad an d o p ar a p ast ar ali. Era um
rio am igável e agr ad ável e essas v ir t u d e s est avam p ar t i­
cu lar m e n t e p r esen t es n aq u ela m an h ã.
Ele est ava ali sem n in gu ém p o r p er t o , só, d esap egad o
e d ist an t e. Ele d evia t er q u at o r ze an o s ou m en o s. Fazia
p o u co t e m p o q u e eles h aviam d e sco b e r t o seu ir m ão e ele
e t o d o aq u ele r eb o liço e r ep en t in a im p o r t ân cia at r ib u íd a
a eles o rondava* . Ele er a um cen t r o de r esp eit o e d evo ção
e n o s an o s segu in t es ser ia co lo cad o ch ef e de um a o r ga­
n ização e d e gr an d e s p r o p r ied ad es. A d isso lu ção de t u d o
isso ain d a est ava n u m f u t u r o d ist an t e. Ficar d e p é ali so zi­
n h o , p er d id o , e e st r an h am e n t e d ist an t e f o i a sua p r im eir a

* Kr ish n am u r t i se r ef er e à su a p r ó p r ia in f ân cia, em Ad yar ,


p er t o d e Ch en n ai.

38
e m ais d u r ad o u r a lem b r an ça d aq u ele s d ias e even t o s. Ele
m ão se r eco r d a de sua in f ân cia, das esco las e d as su r r as.
An o s m ais t ar d e, o p r ó p r io p r o f esso r q u e lhe b at er a, co n ­
t o u -lh e q u e co st u m ava f aze r isso q u ase t o d o s o s dias; ele
cho r ava e era levad o p ar a u m a var an d a at é q u e a esco la
f ech asse e o p r o f e sso r saísse e lh e m an d asse ir par a casa,
pois at é q u e o f izesse, o jo vem f icava ali na var an d a q u iet o
e p er d id o . O p r o f esso r d isse q u e b at ia n ele p o r q u e ele n ão
co n segu ia e st u d ar nem se le m b r ar de nad a d o q u e lia ou
do q ue lhe er a dit o. An o s d ep o is, aq u ele m esm o p r o f e sso r
não p od ia acr e d it ar q u e aq u ele m en in o er a esse h o m em
que havia p r o f er id o a p alest r a q u e acab ar a d e ouvir. Su a
r eação f oi f icar im en sam e n t e su r p r e so e d e sn e ce ssar ia­
m ent e r esp eit o so . To d o s aq u eles an o s se p assar am sem
d eixar cicat r izes e m em ó r ias em sua m en t e; se u s af et o s
e am izad es, at é m esm o aq u eles an o s p assad o s co m as
p esso as q u e o m alt r at ar am - p o r algu m a r azão , n en h u m
d esses even t o s, af e t u o so s o u b r u t ais, d e ixar am m ar cas.
M ais r ecen t em en t e, um e scr it o r lh e p er gu n t ar a se ele
podia se le m b r ar de t o d o s esses even t o s t ão est r an h o s,
co m o ele e seu ir m ão t in h am sid o d e sco b e r t o s e v ár io s
o u t r os aco n t ecim en t o s, e q u an d o ele r esp o n d eu q u e n ão
co n segu ia se lem b r ar , m as ap en as r ep et ir as co isas q u e
lhe f o r am co n t ad as, o h o m em , num t o m d e sar casm o e
ir onia, af ir m ar a q u e ele est ar ia f in gin d o e d issim u lan d o .
Co n scien t em en t e, ele n u n ca b lo q u eo u q u alq u er aco n t e ­
cim en t o , agr ad ável, d o lo r o so ou p r azer o so d e en t r ar em
sua m en t e. Os aco n t ecim en t o s ch e gavam e p ar t iam sem
d eixar m ar cas.
A co n sciên cia é o seu p r ó p r io co n t eú d o : o co n t eú d o
p r o d u z a co n sciê n cia. Os d o is são in d ivisíveis. Não exist e

39
vo cê e o o u t r o , ap en as o co n t e ú d o q u e p r o d u z a co n sciê n -
cia d o q u e é 'eu ' e o d o q u e n ão é 'eu'. Os co n t e ú d o s v a­
riam de aco r d o co m a cu lt u r a, co m as acu m u laçõ e s r aciais
e co m as t é cn icas e cap acid ad e s ad q u ir id as. Essas co isas
se f r agm en t am n aq u ilo q u e é do ar t ist a, do cien t ist a e
assim p o r d ian t e. A s id io ssin cr asias são r esp o st as d ad as
p elo s co n d icio n am e n t o s e esses, p o r sua vez, são o f at o r
co m u m no se r h u m an o . Os co n d icio n am e n t o s são o co n ­
t eú d o o u a co n sciên cia e essa ú lt im a se b ip ar t e em co n s­
cien t e e o q u e se m an t ém esco n d id o , in co n scien t e. O qu e
se m at em e sco n d id o se t o r n a m ais im p o r t an t e, p o r q u e
n u n ca o lh am o s p ar a isso em sua t o t alid ad e . Essa f r agm e n ­
t ação se in st ala q u an d o o o b se r v ad o r n ão é o o b ser vad o ,
q u an d o o e xp e r im e n t ad o r é vist o co m o algo d if er en t e da
exp er iên cia, O e sco n d id o é o m esm o q u e o r evelad o ; a o b ­
se r vação - o e scu t ar do qu e é r evelad o - é o m esm o q u e
ver o q ue est á esco n d id o . Ver não é o m esm o qu e an alisar .
Ao an alisar , cr ia-se o an alist a e o o b je t o an alisad o , um a
f r agm e n t ação q u e co n d u z à in ação , à p ar alisia. Na ação
de ver, o o b se r v ad o r d esap ar ece e f ica só a ação im ed iat a;
não há m ais um in t er valo en t r e a id eia e a ação . A id eia
ou a co n clu são é o o b se r vad o r - aq u ele q u e vê sep ar ad o
d aq u ilo q ue est á sen d o vist o . A id e n t if icação é um at o do
p en sam en t o e p en sar é f r agm e n t ação .
A ilha, o r io e o m ar ain d a e st ão ali, assim co m o as
p alm eir as e as co n st r u çõ e s. O so l su r gia r o m p en d o um
am o n t o ad o de n u ven s, co m p r im id o , m as galgan d o o f ir ­
m am en t o . Vest id o s em t an gas, o s p e scad o r e s lan çavam
su as r ed es p ar a p egar u n s p e ixin h o s p in t ad o s. A p o b r e ­
za in vo lu n t ár ia é u m a d egr ad ação . No f in al da t ar d e, er a
m u it o agr ad áve l e st ar p o r en t r e as m an gu e ir as e as f lo r es
p er f u m ad as. Co m o a t er r a é b ela.

40
24 de setembro de 1973

Um a n o va co n sciê n cia e u m a m o r alid ad e in t eir am en t e


:ri ova são n e ce ssár ias p ar a p r o v o car um a m u d an ça r ad ical
ha cu lt u r a e na e st r u t u r a so cial at u ais. Isso é ó b vio , co n ­
t udo, a esq u er d a e a d ir eit a e o s r e vo lu cio n ár io s p ar ecem
ign o r ar isso. A velh a co n sciên cia é co m p o st a d e d o gm a,
f ó r m u las ou id eo lo gias. Esses são o s e le m e n t o s f ab r ica­
dos p eio p en sam en t o , cu ja at ivid ad e é a f r agm e n t ação - a
d ir eit a, a esq u er d a, o cen t r o . Essa at ivid ad e levar á in e v i­
t avelm en t e ao d e r r am am e n t o d e san gu e da d ir eit a, da
esq u er d a ou do t o t alit ar ism o . É isso o qu e vem o s aco n t e ­
cer à n o ssa vo lt a. Pe r ce b e -se a n e cessid ad e de m u d an ças
so ciais, e co n ô m icas e m o r ais, m as a r esp o st a é dad a p ela
velha co n sciê n cia, aq u ela em q u e o p e n sam e n t o é o f at o r
p r in cip al. A d eso r d em , a co n f u são e a m isér ia em que o s
h u m an o s se m et er am são p ar t e in t egr al da velh a co n sci­
ên cia e sem um a m u d an ça p r o f u n d a de t u d o isso , cad a
at ivid ad e h u m an a, seja ela p o lít ica, eco n ô m ica ou r e ligio ­
sa, só n o s co n d u zir á à d e st r u ição u n s d o s o u t r o s e da t e r ­
ra. Isso é t ão ó b vio p ar a q u em é lú cid o .
É p r eciso q u e cad a um seja a lu z p ar a si m esm o ; essa
luz é a lei. N ão há o u t r a lei. To d as as o u t r as leis são cr iad as
pelo p en sam en t o e, p o r t an t o , t ão f r agm e n t ad as e co n t r a­
d it ó r ias. Se r um a íu z p ar a si m esm o n ão é se gu ir a luz d e
o u t r o , n ão im p o r t a q u ão r azo ável, ló gica, h ist ó r ica e co n ­
vin cen t e ela p o ssa ser. Vo cê n ão p o d e se r um a luz p ar a
si m esm o se e st ive r na so m b r a escu r a da au t o r id ad e, d o

41
d o gm a e da co n clu são . A m o r alid ad e n ão p o d e se r o r ga­
n izad a p elo p en sam en t o ; ela não é o r esu lt ad o da p r essão
im p o st a p elo am b ie n t e em q u e se vive; t am p o u co p e r t e n ­
ce ao o n t em ou à t r ad ição . A m o r alid ad e é f ilh a d o am o r
e o am o r n ão é n em d esejo n em p r azer . Pr azer sen su al ou
sexu al n ão é am o r .
Nas p ar t es m ais elevad as d as m o n t an h as q u ase não
h avia p ássar o s; h avia algu m as gr alh as, ce r v o s e, t alvez, ur­
so s. A s im en sas seq u o ias, gr an d es ser es sile n cio so s, e st a­
vam p o r t o d a p ar t e, f aze n d o as o u t r as ár vo r e s p ar ecer em
anãs, Era u m a p aisagem m agn if icen t e e ab so lu t am en t e
p acíf ica, p o is a caça er a p r o ib id a. Cad a an im al, cad a ár­
vo r e, cad a f lo r est ava p r o t egid o . Ao sen t ar -se so b u m a
d essas p o d e r o sas se q u o ias, p e r ce b ia-se a h ist ó r ia d o ser
h u m an o e a b eleza d a t e r r a. Um e sq u ilo r e ch o n ch u d o e
v e r m e lh o p asso u e le gan t e m e n t e p o r ali, p ar o u um p o u co
ad ian t e, o b se r van d o e in d agan d o o q u e vo cê est ar ia f a ­
zen d o ali. A t er r a est ava seca, ap esar do r egat o q u e p assa­
va ali p er t o . Nem um a f o lh a se m exia e a b eleza d o sile n cio
p asseava p o r en t r e as ár vo r es. Segu in d o v agar o sam e n t e
pela t r ilh a est r eit a, n u m a cu r va est ava um a ur sa co m seu s
q u at r o f ilh o t es, d o t am an h o de gat o s gr an d es. Eles se
ap r essar am em su b ir n as ár vo r e s e a m ãe o en car o u , sem
q u alq u er m o vim en t o ou so m . A lgu n s m et r o s d e d ist an cia
os sep ar avam ; ela er a en o r m e, m ar r o m e est ava p r e p ar a­
da. Im ed iat am en t e, v o cê lh e vir o u as co st as e f o i em b o r a.
Cad a um en t en d eu q u e não h avia m ed o nem in t en ção de
f er ir, m as m esm o assim vo cê est ava co n t en t e po r v o lt ar
p ar a a p r o t eção d as ár vo r es e f icar en t r e os esq u ilo s e a
r aíh ação d o s p ássar o s.

42
Lib er d ad e é se r u m a luz p ar a si m esm o ; isso n ão é u m a
ab st r ação nem u m a co isa en gen d r ad a p elo p e n sam e n ­
t o. Lib er d ad e ver d ad eir a é lib er d ad e da d ep e n d ên cia, d o
ap ego e da n ecessid ad e de t er exp er iên cias. A lib er d ad e
da p r ó p r ia est r u t u r a d o p en sam en t o é se r um a luz par a si
m esm o. To d a ação aco n t e ce d en t r o d essa luz e, p o r t an ­
t o, a ação n u n ca é co n t r ad it ó r ia. A co n t r ad ição só exist e
q u an d o essa lei, a luz, est á sep ar ad a da ação , q u an d o o
at or est á se p ar ad o d o at o . O id eal, o p r in cíp io , é o m o v i­
m ent o in f ér t il d o p en sam en t o e não p o d e co e xist ir co m
essa luz; um n ega o o u t r o . Essa luz, essa lei n ão p o d e co e ­
xist ir co m o eu; o n d e h o u ver um o b ser vad o r , essa luz, e sse
am or, não p o d e est ar p r esen t e. A est r u t u r a do o b se r v ad o r
é en gen d r ad a p elo p en sam en t o q u e n u n ca é n o vo n em
üvre. Não há um 'co m o ', n ão há um sist em a, n ão há u m a
p r át ica. Só há ver, q u e é f azer . É p r eciso ver, m as n ão p o r
in t er m éd io d o s o lh o s d o o u t r o . Essa luz, essa lei, n em é
sua n em d o o u t r o . Só exist e luz. Isso é am o r .

43
At r avés da jan ela, ele o lh ava p ar a o s m o r r o s ver d es,
ar r e d o n d ad o s, e p ar a o b o sq u e escu r o q u e co m eçavam
a r e ce b e r a luz do sol n ascen t e. Era u m a m an h ã b ela e
agr ad ável, co m n u ven s b r an cas e m agn íf icas se f o r m an d o
p ar a além d o b o sq u e, co m o se f o sse m o n d as em m o vi­
m en t o . Talvez p o r isso , os an t igo s d iziam q u e o s d eu ses
h ab it avam en t r e as n u ven s e as m o n t an h as. Essas n u ven s
im en sas est avam p o r t o d a p ar t e e co n t r ast avam co m o
azu l d eslu m b r an t e do céu . Ele n ão t in h a um ú n ico p en ­
sam en t o e ap en as co n t em p lava a b eleza d o m u n d o . Ele
d evia t er est ad o ali n aq u ela jan e la p o r algu m t em p o , at é
q u e algo in e sp e r ad o e su r p r e e n d e n t e aco n t eceu . Vo cê
não p o d e d esejar ou co n vid ar algo assim , seja de m o d o
co n scien t e ou in co n scie n t e m e n t e . Tu d o p ar eceu d esa­
p ar ecer d an d o lu gar so m en t e àq u ilo , o in o m in ável. Vo cê
não en co n t r a isso em n en h u m t em p lo , m esq u it a ou igr eja
nem em n en h u m a p ágin a im p r essa. Vo cê não en co n t r ar á
isso em p ar t e algu m a e o q u e q u er qu e vo cê e n co n t r e não
é isso.
Co m t an t as p esso as d en t r o d aq u ela im en sa est r u t u r a
p er t o d o Go ld en Ho r n (Ist am b u l), ele se sen t o u p r ó xim o
a um m en d igo co m as vest es r asgad as, cab eça in clin ad a
a p r o n u n ciar u m a o r ação . Um h o m em co m eço u a can t ar
em ár ab e. O can t o r t in h a um a vo z m ar avilh o sa q u e p r e e n ­
ch eu t o d o o im en so esp aço co m a sua cú p u la, p ar ecen d o
q u e t u d o r eve r b er ava. A vo z p r o vo co u um ef eit o esp ecial

44
em t o d o s os q u e est avam ali; eles escu t avam as p alavr as
e a vo z co m gr an d e r esp eit o , ao m esm o t e m p o em q u e
p ar eciam en can t ad o s. Ele er a um e st r an h o en t r e eles; eles
o o lh ar am e d e p o is o e sq u e ce r am . 0 vast o esp aço est ava
ch eio e sile n cio so n aq u ele in st an t e; t o d o s iam co m p le t an ­
do o seu r it u al e saiam , um a um . So m e n t e ele e o m en d igo
f icar am ; d ep o is o m en d igo t am b ém se f o i. 0 im en so d o m o
f ico u silen cio so , o ed if ício vazio e os r u íd o s da vid a co t id ia­
na est avam lo n ge dali.
Se vo cê já cam in h o u so zin h o p elas m o n t an h as, e n t r e
p in h eir o s e r o ch as, d eixan d o t u d o p ar a t r ás no vale ab ai­
xo, q u an d o n ão há um ú n ico su ssu r r o p o r en t r e as á r v o ­
res e cad a p en sam en t o d esap ar ece u , en t ão isso p o d e vir
a vo cê, o in o m in ável. Se vo cê t en t a m an t ê-lo , isso jam ais
vo lt ar á o u t r a vez; o q u e vo cê m an t ém é a m em ó r ia d isso ,
m o r t a e acab ad a. O q u e vo cê m an t ém n ão é o real; su a
m en t e e seu co r ação são p eq u en o s d em ais e só p o d em
co n t er em si as co isas d o p en sam en t o e e ssas são est ér e is.
Af ast e -se d o vale, vá p ar a b em lo n ge, d eixe t o d as as co i ­
sas lá em b aixo . Vo cê p o d e v o lt ar e p e gá-las o u t r a vez se
quiser, m as elas t e r ão p er d id o su a gr avid ad e. Vo cê jam ais
ser á o m esm o .
Dep o is d e u m a lo n ga su b id a de algu m as h o r as, p ar a
além da linh a d as ár vo r es, ele est ava ali en t r e as r o ch as
e na p r esen ça d o silê n cio q u e só as m o n t an h as p o ssu em ;
h avia algu n s p o u co s p in h eir o s m alf o r m ad o s. N ão ven t ava
e t u d o e st ava ab so lu t am en t e silen cio so . Fazen d o o ca ­
m in h o de vo lt a, p assan d o p o r en t r e r o ch as, ele o u viu de
r ep en t e o r u íd o de um ch o calh o e deu um salt o . Go r d a e
q u ase p r et a, a ser p en t e est ava ali bem p er t o . Co m o ch o ­
calh o no m eio d o co r p o esp ir alad o , ela est ava p r o n t a p ar a

45
at acar . A cab eça t r ian gu lar co m a su a lín gu a b if u r cad a a
t r e m u lar p ar a d en t r o e p ar a f o r a, o lh o s n egr o s e agu ça­
d o s o b se r van d o , ela est ava p r o n t a p ar a at acar se ele ch e ­
gasse m ais p er t o . Du r an t e aq u ela m eia h or a ou m ais, ela
não p isco u um m o m en t o seq u er , m an t en d o o o lh ar f ixo
e d e sp r o vid o de p est an as. De se n r o lan d o -se len t am en t e,
m an t en d o a cab eça e o ch o calh o vo lt ad o s par a ele, ela
co m eço u a f aze r m o vim en t o s o n d u lad o s e q u an d o ele
f ez u m ge st o par a se ap r o xim ar , ele vo lt o u a se en r o lar ,
in st an t an eam en t e, p r o n t a p ar a at acar . Jo gar am esse jo go
p o r algu n s in st an t es; ela est ava co m e çan d o a f icar can sa­
da e ele d eixo u q u e ela segu isse seu p r ó p r io cam in h o . Era
r ealm en t e u m a co isa am e d r o n t ad o r a, go r d a e m o r t al.
Vo cê t em q u e est ar so zin h o co m as ár vo r es, cam p o s
e r egat o s. Vo cê n u n ca est á so zin h o se car r ega co n sigo
as co isas d o p en sam en t o , su as im agen s e p r o b lem as. A
m en t e n ão p r ecisa e st ar ch eia d as r o ch as e d as n u ven s da
t er r a. Ela p r ecisa est ar vazia, co m o se f o sse um vaso q u e
acab o u de ser f eit o . Só assim vo cê ver ia algo em su a t o t a­
lid ad e, algo n u n ca v ist o an t er io r m en t e . E vo cê não p o d er á
ver isso se e st ive r ali; par a ver vo cê p r ecisa m o r r er . Vo cê
p o d e p en sar q u e vo cê é a co isa m ais im p o r t an t e do m u n ­
do, m as vo cê n ão é. Vo cê p o d e t e r t u d o q u e o p e n sam e n ­
t o já p r o d u ziu , m as t u d o isso q u e o p en sam en t o p r o d u ziu
est á d ecr ép it o , gast o e cain d o ao s p ed aço s.
No vale, o ar est ava su r p r e e n d e n t e m e n t e f r e sco e,
p er t o d as cab an as, o s esq u ilo s já esp er avam p o r su as n o ­
zes. Eles est avam sen d o alim e n t ad o s t o d o s o s d ias, na ca­
bana e so b r e a m esa. Eles se t o r n ar am m u it o am igáveis e
se vo cê n ão e st ive sse aii na h o r a ce r t a, eles co m eçavam
a r eclam ar , en q u an t o o s gaio s azu is esp er avam r u id o sa­
m en t e do lad o de f o r a.

46
; I 27 d e se t e m b r o d e 19 73

Era um t em p lo em r u ín as, co m seu s co r r e d o r e s d e s­


t elh ad o s, p o r t õ es, e st át u as sem cab eça e q u ad r as d e se r ­
t as. Tin h a se t r an sf o r m ad o num san t u ár io p ar a p ássar o s
e m acaco s, p ap agaio s e p o m b o s. Algu m as d as est át u as
d ego lad as ain d a co n se r vavam u m a só lid a b eleza. Elas
p r eser vavam u m a d ign id ad e sile n cio sa. O lu gar est ava
su r p r een d en t em en t e lim p o e er a p o ssível sen t ar -se ao
chão p ar a o b se r v ar o m o vim en t o d o s m acaco s e a ch ilr a­
da d o s p ássar o s. Um a vez, há m u it o t e m p o at r ás, o t e m ­
plo d eve t e r sid o um lu gar p r ó sp er o , co m m ilh ar es de d e ­
vo t o s e su as gu ir lan d as, in cen so e o r açõ es. A at m o sf er a
cr iad a p o r esses d evo t o s ain d a est ava ali, assim co m o as
su as e sp e r an ças, m ed o e r ever ên cia. O san t u ár io sagr ad o
já h avia d e sap ar e cid o , há m u it o t em p o at r ás. À m ed id a
que e sq u e n t ava, o s m acaco s f o r am d esap ar ece n d o , m as
os p ap agaio s e o s p o m b o s t in h am f e it o seu s n in h o s n o s
b u r aco s e f r e st as, n o alt o d as p ar ed es. Esse velh o t e m p lo
em r u ín as e st ava m u it o d ist an t e d o p o vo ad o e p r e se r v ad o
de u m a m aio r d est r u ição . Se os ald e õ e s o f r e q u e n t asse m
já t er iam p r o f an ad o aq u ele vazio .
A r eligião se t r an sf o r m o u em su p e r st ição e ad o r ação
de im agen s, cr en ça e r it u al. Per d eu a b eleza da ver d ad e;
o in cen so t o m o u o lu gar da r ealid ad e. Mo lu gar da p e r ce p ­
ção d ir et a, t em o s ago r a a im agem escu lp id a p ela m ão ou
pela m en t e. A ú n ica p r e o cu p ação da r eligião é a t r an sf o r ­
m ação co m p le t a d o se r h u m an o . E o cir co m o n t ad o em

47
t o r n o d isso t u d o é um ab su r d o t o t al. E p o r essa r azão a
ve r d ad e não é en co n t r ad a d en t r o de t em p lo s, igr ejas ou
m esq u it as, n ão im p o r t an d o q u ão b elo s eles p o ssam ser.
A b eleza da v e r d ad e e a b eleza f eit a d e p ed r a são d u as
co isas d if er en t es. Um a ab r e a p o r t a p ar a o im en su r ável e
a o u t r a p ar a o ap r isio n am e n t o d o se r h u m an o ; u m a ab r e
p ar a a lib er d ad e e a o u t r a p ar a a e scr avid ão d o p e n sa­
m en t o . 0 r o m an t ism o e se n t im e n t alism o n egam a p r ó p r ia
n at u r eza da r eligião e est a ú lt im a n ão é um b r in q u ed o
p ar a o in t elect o . 0 co n h e cim e n t o na ár ea da ação á n eces­
sár io par a o f u n cio n am e n t o o b jet ivo e ef icaz d as co isas,
m as o co n h e cim e n t o n ão é o m eio p ar a a t r an sf o r m ação
d o ser h u m an o ; o co n h e cim e n t o é a p r ó p r ia est r u t u r a do
p en sam en t o e o p en sam en t o é a r ep et ição est ú p id a d o
co n h ecid o , n ão im p o r t an d o o q u an t o isso seja m o d if icad o
ou am p liad o . Não há lib er d ad e nos cam in h o s q u e p assam
p elo p en sam en t o , ou seja, p elo co n h ecid o .
A lo n ga ser p en t e p er m an ecia im ó vel ao lo n go da m ar ­
gem seca d o s cam p o s de ar r o z, sen su alm en t e v e r d e s e
b r ilh an t es ao so í m at in al. Pr o vavelm en t e, est ar ia ali d e s­
can san d o ou e sp e r an d o p o r u m a rã d escu id ad a. Rãs e st a­
vam sen d o e xp o r t ad as p ar a a Eur o p a p ar a ser em co m id as
co m o u m a igu ar ia. A ser p en t e era co m p r id a, am ar elad a
e m u it o q u iet a; ela er a q u ase da co r da t er r a seca, d if í­
cil de ver, m as a luz d o dia est ava em seu s o lh o s escu r o s.
A ú n ica coisa q u e se m ovia, par a d en t r o e par a f o r a, era
a sua lín gu a p r et a. Ela n ão p o d ia p er ceb er o o b se r v ad o r
q ue est ava p o sicio n ad o po r t r ás de sua cab eça. A m o r t e
est ava em t o d a p ar t e n aq u ela m an h ã. Era p o ssível o u vi-la
na ald eia; o s gr it o s e so lu ço s, en q u an t o o co r p o en r o lad o
num p an o est ava sen d o levad o ; o f alcão lan çava-se em

48
d ir eção a um p ássar o ; algu m an im al est ava sen d o m o r t o e
era p o ssível o u vir seu s gr it o s de ago n ia. E assim aco n t ece,
dia ap ó s dia: a m o r t e est á sem p r e em t o d a p ar t e, assim
co m o o so f r im en t o .
A b eleza da v e r d ad e e su as su t ile zas n ão est ão na cr e n ­
ça nem no d o gm a; elas n u n ca est ão o n d e o ser h u m an o
pode en co n t r á-las, p o is n ão há um cam in h o para essa b e ­
leza; n ão é um p o n t o f ixo nem um r ef ú gio id ílico . Ela t em
a sua p r ó p r ia t er n u r a, cu jo am o r n ão p o d e ser m ed id o ,
p o ssu íd o ou exp e r im e n t ad o . Não t em üm v alo r d e m e r ca­
do p ar a se r u sad o e d ep o is d e scar t ad o . Essa b eleza est á
ai q u an d o a m en t e e o co r ação est ão vazio s das co isas do
p en sam en t o . O m o n ge e o h o m em p o b r e n ão e st ão p er t o
dela, nem o h o m em rico; t am p o u co o in t elect u al ou o t a ­
len t o so p o d em t o cá-la. Aq u e le q u e d iz q u e co n h e ce a b e ­
leza da v e r d ad e n u n ca ch ego u p er t o d ela. Fiq u e d ist an t e
do m u n d o e, ain d a assim , viva isso .
N aq u ela m an h ã, os p ap agaio s gr it avam e vo avam em
t o r n o d o p é d e t am ar in d o ; eles co m e çar am ced o sua at i­
vid ad e in can sável, co m o s seu s ir e vir. Eles t in h am um
ver d e b r ilh an t e e b ico s ve r m e lh o s, cu r v ad o s e f o r t es.
Nu n ca p ar eciam v o ar em lin h a r et a, p o is e st avam se m p r e
zigzagu ean d o e gr it an d o em p len o vo o . Ocasio n aim e n t e ,
p o u savam n o p ar ap eit o d a var an d a; en t ão , er a p o ssível
o b se r vá-lo s, m as p o r p o u co t em p o ; lo go vo ar iam o u t r a
vez, e n v o lv id o s co m a algazar r a d e seu v o o b ar u lh en t o .
Seu s ú n ico s in im igo s p ar ecem se r o s ser es h u m an o s. Eles
o s e n gaio lam .

49
0 can zar r ão p r et o acab ar a de m at ar um a cab r a; ele
f o r a se v e r am e n t e p u n id o e am ar r ad o e ago r a lat ia e la­
m en t ava-se. A casa t in h a um m u r o alt o à su a vo lt a, m as a
cab r a, p o r algu m a r azão , co n se gu ir a p e r am b u lar p o r ali,
q u an d o o cach o r r o a p er segu iu e a m at o u . O d o n o da casa
co r r igiu o d elit o co m p alavr as e d in h eir o . Era um a casa
gr an d e, r o d ead a d e ár v o r e s e o gr am ad o n u n ca f icava t o ­
t alm e n t e ver d e, n ão im p o r t ava o q u an t o f o sse e r egad o .
O sol er a cr u elm e n t e f o r t e e t o d as as f lo r e s e ar b u st o s t i­
n h am d e ser r egad o s d u as vezes ao dia; o so lo er a p o b r e e
o calo r d o dia q u ase m at ava t u d o q u e er a ver d e. Co n t u d o ,
as ár vo r e s gr an d e s o f e r e ciam um a so m b r a acale n t ad o r a
e era p o ssível se se n t ar ali, de m an h ã ced in h o , q u an d o o
sol ain d a est ava b em at r ás das ár vo r es. Era um bom lu gar
par a se sen t ar em sile n cio e m ed it ação , m as não t ão bom
p ar a se so n h ar aco r d ad o ou se p er d er em algu m a ilu são
gr at if ican t e. Aq u ela so m b r a er a sever a d em ais, exigen t e
d em ais, p o is o lu gar t o d o est ava à se r v iço d aq u ela co n ­
t e m p lação silen cio sa. Se algu ém q u isesse at é p o d er ia
p er segu ir seu s d evan e io s f avo r it o s, m as logo d esco b r ir ia
q ue o lu gar não co n vid ava as im agen s cr iad as pelo p en ­
sam en t o .
Ele est ava sen t ad o co m um p an o so b r e a cab eça, ch o ­
r an d o ; sua m u lh er t in h a acab ad o d e m o r r er . Ele não q u e ­
ria m o st r ar su as lágr im as ao s f ilh o s; eles t am b ém est avam
ch o r an d o , m as sem en t en d er bem o que havia aco n t ecid o .

50
Aq uela m ãe de m u it o s f ilh o s n ão est eve b em e, n o s ú lt i­
m os t em p o s, f ico u m u it o d o en t e. O pai est ava sen t ad o à
beira da cam a. Par ecia q u e ele n ão q u er ia sair d ali e, u m
dia, d ep o is d e algu m as cer im ô n ias, a m ãe f o i levad a dali.
A casa t in h a f icad o e st r an h am en t e vazia, sem o p e r f u m e
que a p r esen ça da m ãe t r azia ao lu gar ; e a casa n u n ca m ais
seria a m esm a, p o is a t r ist eza ago r a m o r ava ali. 0 pai sab ia
disso; os f ilh o s t in h am p er d id o algu ém p ar a sem p r e, m as
at é aq u ele in st an t e ain d a não co n h eciam o sign if icad o
da dor.
A d o r est á se m p r e ali, vo cê n ão p o d e sim p lesm en t e
esq u ecê-la, vo cê n ão p o d e d isf ar çá-la co m algu m a f o r ­
ma de e n t r e t e n im e n t o r eligio so ou d e q u alq u e r o u t r o
t ip o . Vo cê p o d e f u gir d ela, m as ela est ar á ali p r o n t a par a
r een co n t r á-lo . Vo cê p o d e en t r egar -se a algu m a f o r m a de
ad o r ação , o r ação ou a um a cr en ça r e co n f o r t an t e , m as a
d or vo lt ar á sem t er sid o co n vid ad a. O f lo r e scim e n t o da
d or co n ve r t e -se em am ar gu r a, cin ism o ou em co m p o r t a­
m ent o s n eu r ó t ico s. Vo cê p o d e t er um a co n d u t a agr e ssiva,
vio len t a e d esagr ad ável, m as a d o r est á bem ali o n d e vo cê
est á. Vo cê p o d e t er po der , p o sição e os p r azer es q u e o d i­
n h eir o co m p r a, m as ela est ar á no seu co r ação , esp e r an d o
e p r e p ar an d o -se . Faça o q u e vo cê q u ise r f azer , m as n ão
escap ar á d ela. O am o r q u e vo cê t em acab a em d o r ; d o r é
t em p o , d o r é p en sam en t o .
A ár v o r e é co r t ad a e u m a lágr im a é d er r am ad a; um
an im al é m o r t o p ar a at e n d e r ao seu go st o ; a t e r r a est á
sen d o d est r u íd a p ar a se r v ir ao seu p r azer ; vo cê est á se n ­
do e d u cad o p ar a m at ar , d est r u ir e d isp o r o ser h u m an o
co n t r a o ser h u m an o . As n o vas t e cn o lo gias e as m áq u in as
assu m em cada vez m ais a labut a hu m ana, m as vo cê, t alvez,

51
n ão p o d e p ô r f im à d o r at r avés d as co isas q u e o p e n sa­
m en t o cr io u. Am o r n ão é pr azer.
Ela ch ego u t r aze n d o co n sigo o d esesp er o da d o r ; ela
f alava e d esp ejava t o d as as co isas qu e t in h a vivid o : a m or ­
t e, as f u t ilid ad e s de seu s f ilh o s, su as at it u d e s p o lít icas,
seu s d ivó r cio s, su as f r u st r açõ e s, am ar gu r as e a t o t al n u li­
d ad e de um a vid a sem q u alq u er sen t id o . Ela já não er a t ão
jo vem ; na ju ve n t u d e , t in h a ap r o ve it ad o a vid a, t in h a t id o
um leve in t er esse p ela p o lít ica, um d ip lo m a em eco n o m ia
e m ais ou m en o s o m esm o t ip o d e vid a q u e t o d o m u n d o
d eseja. Seu m ar id o t in h a f ale cid o r ecen t em e n t e e t o d a
d o r do m u n d o p ar ecia t er d escid o so b r e eia. Ela f ico u em
silen cio e n q u an t o f alávam o s.
Q u alq u e r m o vim en t o do p e n sam e n t o se r ve p ar a ap r o ­
f u n d ar o so f r im en t o . O p en sam en t o , co m su as m em ó r ias,
co m su as im agen s d e p r azer e dor, co m seu iso lam en t o e
lágr im as, co m su a au t o p ie d ad e e r em o r so é o so lo f ér t il
p ar a o so f r im en t o . Escu t e o q u e est á sen d o dit o. Ap en as
escu t e - d iga n ão ao s eco s do p assad o , ao q u er er su p e r ar
o so f r im e n t o e ao co m o e scap ar da t o r t u r a - ap en as e scu ­
t e co m o co r ação , co m o ser in t eir o ao q u e est á sen d o d it o
ago r a. Sua d e p e n d ên cia e ap ego p r ep ar o u o so lo par a o
so f r im en t o . Ao n eglige n ciar o co n h e cim e n t o d e si m esm a
e a b eleza q u e isso t r az, vo cê alim en t o u seu so f r im en t o ;
t o d as as at ivid ad e s ce n t r ad as em si m esm a a co n d u zir am
at é esse so f r im en t o . Ap e n as escu t e o q u e est á sen d o d it o :
f iq u e co m isso , n ão se p er ca d isso . Q u alq u e r m o vim en t o
do p e n sam e n t o é o f o r t ale cim e n t o do so f r im en t o . Pe n sa­
m en t o não é am o r. Am o r não t em so f r im en t o .

52
29 d e setembro de 19 73

As ch u vas est avam q u ase no f im e o h o r izo n t e f lu ía


com o m o vim en t o de gr an d es n u ven s b r an cas e d o u r ad as;
elas ascen d iam em d ir eção ao céu azu l em o ld u r ad o de
ver d e, As f o lh as de cad a ár vo r e e ar b u st o e st avam lav a­
das e lim p as, r ef let in d o o b r ilh o d o u r ad o do sol m at in al.
Era um a m an h ã de d eleit e, a t er r a se r eju b ilava e p ar ecia
h aver um a b en d ição f lu t u an d o no ar. Do alt o d aq u ele ap o ­
sen t o er a p o ssível ver o m ar azul, o rio co r r e n d o em sua d i­
r eção e as p alm eir as e m an gu eir as. Era d e f icar sem f ô le ­
go est ar d ian t e d aq u elas m ar avilh as da t er r a e d as n u ven s
im en sas. O dia est ava co m eçan d o e o silê n cio ain d a n ão
t inh a se e n co n t r ad o co m o s r u íd o s do d ia; so b r e a p o n ­
t e não h avia t r áf ego , ap en as um a lo n ga f ila d e car r o s d e
boi car r egad o s de f en o . An o s m ais t ar d e, vir iam o s ô n ib u s
com sua p o lu ição e alvo r o ço . Er a um a m an h ã ad o r ável,
cheia de so n s m elo d io so s e b e m -aven t u r an ça.
Os d o is ir m ão s est avam in d o d e car r o p ar a a ald eia
m ais p r ó xim a p ar a ver o pai, a q u em n ão t in h am v ist o
p or u ns q u in ze an o s ou m ais. Eles t iver am q u e cam in h ar
um a p eq u en a d ist ân cia d evid o à m á co n se r v ação da e s­
t r ad a. Ch egar am p er t o de um t an q u e ou um r e se r v at ó r io
de águ a; t o d o s o s seu s lad o s t in h am d egr au s d e p ed r as
q ue levavam at é a águ a lim pa. Em um d o s lad o s, havia u m
p eq u en o t em p lo , co m um a p eq u en a t o r r e q u ad r ad a q u e
ia se est r eit an d o no t o p o ; h avia m u it as im agen s d e p ed r a
ao seu r edo r. Na var an d a d o t em p lo , vo lt ad a p ar a aq u ele

53
r eser vat ó r io , p esso as m ed it avam em t o t al silê n cio e p a­
r eciam co m aq u elas im agen s na t o r r e. Para além da água,
b em at r ás d e algu m as casas, f icava a casa o n d e o pai m o ­
r ava. Ele saiu q u an d o os d o is ir m ão s se ap r o xim ar am e o
sau d ar am , p r o st r an d o -se co m p le t am e n t e e t o can d o -lh e
o s p és. Eles er am t ím id o s e esp er ar am at é q u e o pai lh es
f alasse, co m o er a o co st u m e. An t e s d e d izer q u alq u e r co i­
sa, ele vo lt o u p ar a d en t r o e lavo u o s p és q u e h aviam sid o
t o cad o s p elo s d o is r ap azes. Ele era um b r âm an e o r t o d o xo
e n in gu ém p o d ia t o cá-lo , a n ão ser um o u t r o b r âm an e e
os seu s d o is f ilh o s t in h am sid o p o lu íd o s, ao se m ist u r ar em
co m o u t r o s q u e n ão er am da sua cast a e p o r t e r e m co m i­
d o alim e n t o s q u e n ão f o r am p r e p ar ad o s p o r b r âm an es.
Sen d o assim , ele lavo u os p és e sen t o u -se ao ch ão , m as
não m u it o p er t o d o s seu s f ilh o s p o lu íd o s. Eles co n v e r sa­
ram d u r an t e um t e m p o e se ap r o xim o u o m o m e n t o em
q u e a co m id a ser ia ser vid a. O pai o s d isp en so u , p o is não
p o d er ia co m e r ju n t o co m eles; n ão er am m ais b r âm an es.
Ele d ever ia sen t ir algu m a af eição , um a vez qu e os r ap azes
er am f ilh o s a q u em o pai não via p o r t an t o s an o s. Se a m ãe
est ivesse viva, ela os t er ia alim en t ad o , m as t am b é m n ão
co m er ia co m o s seu s f ilh o s. Eles d eviam t e r u m a gr an d e
af eição p elo s f ilh o s, m as a o r t o d o xia e a t r ad ição p r o ib iam
q u e t ivessem q u alq u e r t ip o de co n t at o co m eles. A t r ad i­
ção é m u it o f o r t e , m ais f o r t e q u e o am o r .
A t r ad ição da gu er r a é m ais f o r t e q u e o am o r ; a t r a­
d ição de m at ar par a co m er e m at ar os assim ch am ad o s
in im igo s n ega a af eição e a t er n u r a h u m an a; a t r ad ição
d e lo n gas h o r as d e t r ab alh o é a o r igem da cr u e ld ad e e f i­
cien t e; a t r ad ição d o casam en t o lo go se t r an sf o r m a em
escr avid ão ; as t r ad içõ e s do r ico e d o p o b r e o s m an t êm

54
sep ar ad o s; cad a p r o f issão t em a sua p r ó p r ia t r ad ição e a
sua p r ó p r ia elit e q u e ser ve m p ar a cr iar in veja e in im izad e.
Por t o d o o m u n d o , as ce r im ô n ias e r it o s t r ad icio n ais em
Socais d e cu lt o r eligio so , ser ve m p ar a se p ar ar o ser h u m a­
no u ns dos o u t r o s e as p alavr as e o s ge st u ais est ão d e sp r o ­
vid o s de sign if icad o s. Os m ilh ar es d e d ias p assad o s, n ão
im p o r t am q u ão r ico s e b elo s, n egam o am o r .
Cr u zam o s um a p o n t e r aq u ít ica e f r ágil p ar a o o u t r o
lado do r egat o est r eit o e lam acen t o q u e se ju n t av a ao
gr an d e rio; ch e gam o s a um p eq u en o vilar e jo d e lam a e
t ijo lo s secad o s ao so l. Havia um a q u an t id ad e de cr ian ças
gr it an d o e b r in can d o ; os m ais velh o s est ar iam n o s cam ­
pos ou p escan d o ou t r ab alh an d o na cid ad e m ais p r ó xim a.
Num a sala escu r a, a ab er t u r a na p ar ed e d ever ia ser co n si­
d er ad a co m o jan ela; as m o scas não se sen t ir iam at r aíd as
p o r aq u ela escu r id ão . Est ava f r esco ali d en t r o . N aq u ele
p eq u en o esp aço est ava um t e ce lão co m um t e ar en o r m e;
ele não sab ia ler, m as t in h a sid o e d u cad o , do seu p r ó p r io
jeit o , a ser p o lid o e in t eir am en t e ab so r v id o em seu t r a ­
balho. Ele p r o d u zia t e cid o s e xt r ao r d in ár io s co m b elo s p a­
d r õ es em o u r o e p r at a. Q u alq u e r q u e f o sse a co r do t e ­
cid o , de algo d ão o u sed a, ele o t ecer ia co m o s p ad r õ es
t r ad icio n ais, da m an eir a m ais d elicad a e b ela. Ele er a f ilh o
d essa t r ad ição ; d e est at u r a p eq u en a e am ável, est ava d is­
p o st o a n o s m o st r ar o seu t ale n t o m ar avilh o so . Co m am o r
n o co r ação , f icam o s a ad m ir á-lo e a o b se r vá-lo , en q u an t o
ele p r o d u zia co m f io s de sed a o m ais d elicad o d o s t e cid o s.
Ali est ava t ecid a u m a p eça d e gr an d e b eleza, n ascid a da
t r ad ição .

55
l 30 de setem bro de 1973
'l 'r N

Era u m a ser p en t e lo n ga e am ar ela at r avessad a na es­


t r ad a e so b a f igu eir a de b en gala. Ele e st ava v o lt an d o de
u m a lo n ga cam in h ad a q u an d o a viu . Co m e ço u a o b se r v á-
-la co m at en ção de cim a de um m o r r o ; a ser p en t e e xam i­
n ava o s b u r aco s p o r o n d e p assava, sem p er ceb er qu e es­
t av a se n d o o b se r vad a b em de p er t o . Go r d a, ela t in h a um a
p r o t u b e r ân cia no m eio de t o d a a su a ext e n são . Os ald eõ es
q u e est avam vo lt an d o par a casa p ar ar am d e f alar p ar a o b -
se r vá-ía; um d eles lhe d isse q u e er a um a naja e p ar a ele
t o m ar cu id ad o . A n aja d esap ar ece u em um b u r aco e ele
t er m in o u sua cam in h ad a. Co m a id eia d e ve r a naja o u t r a
vez, ele vo lt o u ao m esm o lo cal, no dia segu in t e. A se r p e n ­
t e n ão est ava m ais aii, m as os ald eõ es t in h am co lo cad o
um p r at o r aso ch eio d e leit e, algu n s cr av o s-d e -d e f u n t o ,
um a p ed r a gr an d e co b e r t a d e cin zas e m ais algu m as f lo ­
r es. Aq u ele lu gar se t r an sf o r m o u num esp aço sagr ad o e
t o d o s o s d ias f lo r e s f r e scas ser iam co lo cad as ali; t o d as as
p esso as d aq u ele vilar e jo já sab iam q u e o lu gar t in h a se
t o r n ad o sagr ad o . Vár io s m eses m ais t ar d e, ele vo lt o u ali
e h avia leit e f r esco , f lo r e s f r e scas e a p ed r a t in h a acab ad o
de ser r ed eco r ad a. E a f igu eir a d e b en gala est ava um p o u ­
q u in h o m ais velh a.
O t e m p lo est ava vo lt ad o p ar a o M e d it e r r ân e o e seu
m ar azul; em r u ín as, ap en as as su as co lu n as d e m ár m o ­
re b r an co p er m an eciam de pé. Fo r a d est r u íd o d u r an t e
um a gu er r a, m as co n t in u ava sen d o um san t u ár io sagr ad o .

56
Du r an t e o en t ar d ecer , co m o d o u r ad o do sol r ef let id o no
^ m ár m o re, vo cê sen t ia essa at m o sf er a sagr ad a; vo cê e s­
t ava só, sem o s visit an t e s ao r ed o r co m su as in f in d áveis
t agar elices. A s co lu n as se t r an sf o r m ar am em o u r o pu ro
e o m ar ab aixo er a in t en sam en t e azul. Um a est át u a da
id e u sa e st ava ali, p r eser vad a e t r an cad a; só er a p o ssível
vê-la d u r an t e d et er m in ad o s p er ío d o s de t em p o e ela e st a­
va p er d en d o a b eleza d e sua sacr alid ad e. M as o m ar azul
p er d u r ar ia.
Era u m a casa d e cam p o m u it o b o n it a e co m um gr a ­
m ado q u e, d u r an t e m u it o s an os, est ava sen d o cu id ad o ,
: ap ar ad o e lib er ad o d as er vas d an in h as. A p r o p r ie d ad e er a
m uit o b em cu id ad a, p r ó sp er a e alegr e; at r ás da casa h avia
um a h o r t a; er a um lu gar ad o r ável, co m um r egat o su ave
e silen cio so q u e p assava p o r ali. Qu an d o a p o r t a est ava
ab er t a, er a su st e n t ad a p o r um p eso co m a f o r m a d e Buda
q ue er a ch u t ad o p ar a cu m p r ir su a f u n ção . O d o n o da casa
não p er ceb ia o q u e est ava f azen d o ; p ar a ele, aq u ilo er a
um p eso d e p o r t a. Ser ia p o ssível in d agá-lo se ele f ar ia o
m esm o co m a est át u a d e algu ém qu e ele r ever en ciasse,
pois ele er a cr ist ão . N ega-se o q u e é sagr ad o par a o o u t r o ,
m as co n se r v a-se aq u ilo q u e é sagr ad o p ar a si m esm o ; as
cr en ças d o o u t r o são su p e r st icio sas, m as as p r ó p r ias cr e n ­
ças são r azo áveis e r eais. O q u e é sagr ad o ?
Ele d isse q u e a en co n t r ar a nu m a pr aia; era u m a p eça
de m ad eir a d e lei, lavad a e p o lid a p elo m ar e no f o r m at o
de u m a cab eça h u m an a. A s águ as d o m ar a escu lp ir am e
a p u r if icar am d u r an t e m u it as est açõ es. Ele a t r o u xe p ar a
casa, co lo co u -a n u m a p r at eleir a so b r e a lar eir a, d e m o d o
a co n t e m p lá-la e ad m ir ar -se do q u e t in h a f eit o . Um d ia,
et e co lo co u f lo r e s em vo lt a da p eça e p asso u a f aze r isso

57
t o d o s o s d ias; ele sen t ia um d e sco n f o r t o se n ão h o u ves
se f lo r e s f r e scas, d iar iam en t e, e aq u ela p eça de m adeira
escu lp id a f oi se t r an sf o r m an d o n u m a co isa m u it o im p o r ­
t an t e em su a vid a. Só ele p o d ia t o car na p eça, p o r receie
d e q u e o u t r a p esso a p o d er ia p r o f an á-la e su as m ão s era nr
b em lavad as an t es de t o cá-la. Aq u ela p eça de m ad eir a t i­
nha se t r an sf o r m ad o n u m a en t id ad e sagr ad a, d ivin a, t en
d o ele co m o o seu su m o sacer d o t e. Ele a r ep r esen t ava; ele
lh e d izia co isas q u e ele jam ais p o d er ia sab er so zin h o . Sus
vid a est ava p r een ch id a co m a p r esen ça d aq u ela ent idad e
e ele se sen t ia in d izivelm en t e f eliz.
O q u e é sagr ad o ? A s co isas f e it as p ela m en t e ou p e­
las m ão s ou p elo m ar? O sím b o lo n u n ca é a co isa real; a
p alavr a 'cap im ' não é o cap im q u e n asce n o s cam p o s; s
p alavr a 'd eu s' não é Deu s. A p alavr a n u n ca t r az em si a t o ­
t alid ad e , n ão im p o r t an d o q u ão p r ecisa e in t eligen t e seja a
d escr ição . A p alavr a ' sagr ad o ' n ão t r az em si q u alq u e r sig­
n if icad o ; ela só se t o r n a sagr ad a na su a r elação co m algo
ilu só r io o u r eal. O q u e é r eal n ão est á co n t id o nas p alavr as
da m en t e; a r ealid ad e e a v er d ad e não p o d em se r t o ca­
d as p elo p en sam en t o . On d e est á o p er ceb ed o r , a ver d ad e
n ão est á. O p en sad o r e o seu p en sam en t o d evem ch egar
ao f im par a q ue a ver d ad e seja. Só en t ão , aq u ilo q u e é se
t o r n a sagr ad o - aq u ele m ár m o r e an t igo co m o b r ilh o do
sol d o u r ad o , aq u ela ser p en t e e o ald eão . O n d e n ão exist e
o am or , n ão exist e n ad a sagr ad o . A m o r é t o t alid ad e sem
f r agm e n t ação .

58
Í' ií
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2 de o u t u b r o de 1973

A co n sciên cia é o seu p r ó p r io co n t eú d o ; o co n t e ú d o é


co n sciên cia. To d a ação é f r agm e n t ad a q u an d o o co n t e ú d o
da co n sciên cia est á d esin t egr ad o . A at ivid ad e q u e su r ge
daí gera co n f lit o , d o r e co n f u são ; o so f r im en t o é in evit ável.
Daq u elas alt u r as er a p o ssível ver o s cam p o s ver d es,
cad a um se p ar ad o d o o u t r o e co m f o r m at o s, t am an h o s
e co r es d if er en t es. Um r io ia ao en co n t r o do m ar ; b em
d ist an t e d e t u d o isso e st avam as m o n t an h as co b er t as d e
neve. Esp alh ad as p o r t o d a a t er r a v iam -se cid ad e s gr an ­
des e v ilar e jo s em exp an são ; n o s m o r r o s, havia cast elo s,
igr ejas e casas e, b em d ist an t e de t u d o isso , o s gr an d es
d eser t o s m ar r o n s, d o u r ad o s e b r an co s. E en t ão , lá est ava
o m ar azu l o u t r a vez e m ais t er r a co m d en sas f lo r est as. A
t er r a in t eir a er a r ica e bela.
Ele f o i at é ali e sp er an d o en co n t r ar -se co m um t igr e e
assim o f ez. Os ald e õ e s ch egar am par a co n t ar ao seu an ­
f it r ião q u e, na n o it e an t er io r , o t igr e t in h a m at ad o u m a
n o vilh a e vo lt ar ia n aq u ela n o it e par a m at ar o u t r a vez.
Ser á q u e eles go st ar iam de ir ver ? Eles co n st r u ir iam u m a
p lat af o r m a so b r e u m a ár vo r e, de o n d e ser ia p o ssível v e r
o gr an d e m at ad o r , e t am b ém am ar r ar iam um a cab r a à
ár vo r e, de m o d o a asse gu r ar q u e o t igr e viesse. Ele d is­
se q u e n ão go st ar ia d e v e r a cab r a sen d o m o r t a para o
seu p razer. E assim o assu n t o f oi can celad o . Co n t u d o ,
m ais t ar d e, n aq u ele m esm o dia, q u an d o o sol já se e sco n ­
dia at r ás d o s m o r r o s, seu an f it r ião d esejo u d ar u m a vo lt a

59
de car r o , esp er an d o q u e o acaso os co n d u zisse ao t igr e
q u e h avia m at ad o a n o vilh a, Dir igir am algu n s q u ilô m et r o s
p ar a d en t r o da f lo r est a; f o i f ican d o escu r o e os f ar ó is já
est avam ligad o s q u an d o vo lt ar am . Tin h am p er d id o t o d as
as e sp e r an ças d e v e r o t igr e n esse r egr esso , m as, no m o ­
m en t o em q u e f izer am u m a cu r va, lá est ava ele, ap o iad o
n o s q u ad r is, no m eio da est r ad a, im en so , list r ad o , o s o lh o s
b r ilh an d o d ian t e d os f ar ó is. O car r o p ar o u e ele veio na
d ir eção d eles, r u gin d o e b alan çan d o o car r o co m os seu s
r u gid o s; o t igr e er a su r p r e e n d e n t e m e n t e gr an d e e a sua
lo n ga cau d a co m a p o n t a p r et a, se m o via d e um lad o par a
o o u t r o . Est ava ab o r r ecid o . A jan e la est ava ab e r t a e q u an ­
d o o gr an d e f e lin o p asso u r u gin d o , ele co lo co u a m ão para
f o r a, d e m o d o a t o car essa gr an d e en er gia da f lo r e st a, m as
seu an f it r ião ap r e ssad am e n t e p u xo u seu b r aço de vo lt a
par a d en t r o do veícu lo , exp lican d o q u e o t igr e p o d er ia t er
ar r an cad o o seu b r aço . Era um an im al m agn íf ico , ch eio de
m aje st ad e e p od er .
Lá em b aixo , n aq u ela t er r a, h avia t ir an o s n egan d o a li­
b er d ad e ao s h u m an o s, id eó lo go s m o d elan d o as m en t es
d e h o m en s e m u lh er es, sace r d o t e s co m seu s sécu lo s de
t r ad ição e cr e n ças e scr avizan d o ser es h u m an o s; os p o lít i­
co s co m su as p r o m essas in f in d áveis e st avam cr ian d o co r ­
r u p ção e d ivisõ e s. Ali em b aixo , o se r h u m an o é ap an h ad o
nas ar m ad ilh as d o s co n f lit o s e d o s so f r im en t o s sem f im
e d as lu zes b r ilh an t es d o p r azer . Tu d o p ar ece se r in t e ir a­
m en t e sem sen t id o - a dor, a lab u t a e as p alavr as d o s f iló ­
so f o s. M o r t e e in f elicid ad e e t r ab alh o ár d u o , o ser h u m a­
n o co n t r a o se r h u m an o .
Essa v ar ie d ad e co m p lexa, as m o d if icaçõ e s nos p ad r õ es
d e p r azer e d or , são o co n t e ú d o da co n sciên cia h u m an a,

60
m o d eiad o e co n d icio n ad o pela cu lt u r a q u e o n u t r iu , co m
suas p r essõ es r e ligio sas e eco n ô m icas. A lib er d ad e n ão
est á co n t id a n o s lim it es da co n sciên cia; na r ealid ad e, o
que é aceit o co m o lib er d ad e é um a p r isão ap ar e n t e m e n ­
t e su p o r t ável, p o r co n t a d o d e se n vo lvim e n t o da t e cn o lo -
gia. Nessa p r isão há gu er r as q u e se t o r n am cad a vez m ais
íd e st r u t iv as co m o ap o io da ciên cia e do lu cro . A lib er d ad e
f n ão se en co n t r a ao se m u d ar de p r isão n em ao se t r o car
; de gu r u , co m a su a au t o r id ad e ab su r d a. A u t o r id ad e não
/ t raz a san id ad e da o r d em . Ao co n t r ár io , p r o m o ve a d e -
; so r d em e é n esse so lo qu e cr esce a au t o r id ad e. Lib er d ad e
f n ão exist e em f r agm e n t o s. Um a m en t e não f r agm e n t ad a,
f u m a m en t e q u e é um t o d o é livre. Ela n ão sab e q u e é li-
; vre; o q u e é co n h e cid o est á co n t id o no t em p o , do p assad o
; para o p r esen t e e o f u t u r o . To d o m o vim en t o é t e m p o e o
t em p o não é um f at o r da lib er d ad e. Lib er d ad e d e esco lh a
nega a lib er d ad e; só há esco lh a o n d e há co n f u são . Clar e ­
za de p er cep ção é est ar livr e da d o r da esco lh a. A o r d em
t o t al é a luz da lib er d ad e. Essa o r d em n ão é f ilh a d o p en ­
sam en t o , p ois a t o d a a at ivid ad e do p en sam en t o cu lt iva a
f r agm en t ação . O am o r não é um f r agm e n t o do p en sam en ­
t o nem d o p r azer . A p er cep ção d isso é in t eligên cia. A m o r e
in t eligên cia são in sep ar áveis e d aí f lu i a ação qu e n ão ger a
dor. Or d em é a su a b ase.

61
Fazia f r io no ae r o p o r t o àq u ela hora da m an h ã. O sol
co m eçava a ap ar ecer . To d o s est avam agasalh ad o s e os
p o b r es car r e gad o r e s t r em iam d e f r io ; havia os b ar u lh o s
r o t in eir o s de um ae r o p o r t o , o r u íd o e n su r d e ce d o r d o s j a ­
t o s, p esso as f alan d o alt o, as d esp ed id as e as d eco lagen s.
O avião est ava ch eio de t u r ist as, h o m en s de n egó cio s e
o u t r as p esso as in d o p ar a a cid ad e sagr ad a, co m a su a su ­
j eir a e su p e r p o p u lação . N aq u ele in st an t e, o sol m at inal
t in gia de r osa a vast a ext e n são d o s Him alaias; vo ávam o s
p ar a o su d e st e e p o r cen t en as de q u ilô m et r o s esses pi­
co s im e n so s p ar eciam est ar su sp e n so s no ar, ir r ad ian d o
u m a m aje st o sa b eleza. O p assage ir o ao lad o est ava ab so r ­
t o em seu jo r n al; no o u t r o lad o d o co r r ed o r , u m a m u lh er
co n ce n t r ava-se em seu r o sár io ; o s t u r ist as f alavam alt o
e t ir avam f o t o s u n s d o s o u t r o s e das m o n t an h as d ist an ­
t es; cad a u m est ava o cu p ad o co m seu s p r ó p r io s assu n t o s
e n ão t in h am t e m p o p ar a o b se r v ar e m ar avilh ar -se com
a t er r a e seu rio sin u o so e sagr ad o nem co m a b eleza
su t il d aq u ele s p ico s elevad o s qu e iam se t in gin d o de co r
de r o sa.
Num assen t o m ais at r ás, se n t av a-se um h o m em que
est ava sen d o t r at ad o co m co n sid er ável r esp eit o ; ele n ão
er a jo vem , p ar ecia se r um acad ê m ico , ágil e b em v e st i­
do . Era de se in d agar se ele já t er ia vist o a gló r ia d essas
m o n t an h as. N aq u ele in st an t e, ele se levan t o u e veio em

62
d ir eção ao p assage ir o ao n o sso lad o , p er gu n t an d o -lh e se
/ poderia t r o car de assen t o co m ele. Em segu id a, sen t o u -se,
ap r ese n t o u -se e p er gu n t o u se p o d er ia f alar co n o sco . Ele
f alava um in glês h esit an t e e esco lh ia as p alavr as cu id ad o ­
sam en t e, d an d o a e n t en d er q u e n ão est ava m u it o f am ilia­
r izad o co m o id io m a; sua vo z er a clar a e su ave e er a m u it o
agr ad ável em seu s m o d o s. Ele co m eço u d izen d o q u e er a
um a p esso a af o r t u n ad a po r est ar viajan d o n aq u ele avião
e pela o p o r t u n id ad e d aq u ela co n ver sa. " É clar o , q u e eu
ouvi f alar d o se n h o r na m in h a j u v e n t u d e e só r e ce n t e m e n ­
t e o u vi a sua ú lt im a p alest r a, a m ed it ação e o o b ser vad o r .
Eu so u um acad êm ico , um p u n d it , p r at ican d o o m eu p r ó ­
prio t ip o d e m ed it ação e d iscip lin a."
As m o n t an h as co m eçavam a se d ist an ciar no h o r izo n t e
o r ien t al e ab aixo d e n ó s o rio co m eçava a d esen h ar p a­
d r õ es am p lo s e am ist o so s.
" O sen h o r d isse q ue o o b se r vad o r é o o b ser vad o , o
m ed it ad o r é a m ed it ação e só há m ed it ação q u an d o n ão
há o o b ser vad o r . Eu go st ar ia de e n t e n d e r isso . Par a m im a
m ed it ação t em sid o o co n t r o le do p en sam en t o , f ixan d o a
m en t e n o ab so lu t o ."
0 co n t r o lad o r é o co n t r o lad o , não é assim ? O p e n sa­
do r é os seu s p en sam en t o s. Sem as p alavr as, im agen s e
p en sam en t o s, exist e um p en sad o r ? O e xp e r im e n t ad o r é
a exp e r iê n cia; sem e xp e r iê n cia n ão há e xp er im en t ad o r . O
co n t r o lad o r do p en sam en t o é f eit o de p en sam en t o ; ele é
um d o s f r agm e n t o s do p en sam en t o , ch am e -o do q u e q u i­
ser ; o agen t e sep ar ad o , n ão im p o r t a q u ão su b lim e p ar eça
ser, ain d a é u m p r o d u t o d o p en sam en t o ; a at ivid ad e d o
p en sam en t o é sem p r e 'de f o r a', sep ar ad a, se m p r e p r o d u z
f r agm e n t ação .

63
" Ser á q u e a vid a p o d e se r vivid a sem o exer cício do
co n t r o le? Ele é a essên cia da d iscip lin a."
Qu an d o é vist o q ue o co n t r o lad o r é o co n t r o lad o , um
f at o ab so lu t o , de ver d ad e, só en t ão su r ge um t ip o de
en er gia t o t alm e n t e d if er en t e qu e t r an sf o r m a o q u e é. 0
co n t r o lad o r jam ais p o d e m u d ar o q u e é; ele p o d e co n t r o ­
lar, su p r im ir , m o d if icar ou f u gir d o q u e é, m as j am ais po d e
ir além ou se co lo car acim a do qu e é. A vid a p o d e e d eve
ser vivid a sem o exer cício d o co n t r o le. Um a vid a co n t r o la­
da n u n ca é sau d ável; isso ger a co n f lit o , m isér ia e co n f u são
in f in d áveis.
" Esse é um co n ce it o ab so lu t am e n t e n o vo ."
Deve-se r essalt ar q u e isso n ão é um a ab st r ação , um a
f ó r m u la. Só exist e o qu e é. O so f r im e n t o n ão é um a ab s­
t r ação ; algu ém p o d er á ext r air um a co n clu são do q u e acha
q u e ele seja ou cr iar um co n ce it o e u m a est r u t u r a ver b al,
m as n ad a d isso ser á o q u e o so f r im e n t o é. Id eo lo gias não
t r at am d o q u e é r eal; só exist e o q u e é. E isso j am ais p o d e
ser t r an sf o r m ad o q u an d o o o b se r v ad o r se se p ar a do o b ­
se r vad o .
" Essa é a sua exp e r iê n cia d ir et a d isso ?"
Ser ia e xt r e m am e n t e in ú t il e e st ú p id o se isso f o sse
m er a est r u t u r a ver b al d o p en sam en t o ; f ala r so b r e isso se­
r ia h ip o cr isia.
" Eu go st ar ia m u it o d e d e sco b r ir j u n t o co m o sen h o r
o q u e é a m ed it ação , m as ago r a n ão há m ais t e m p o e já
v am o s at er r issar ."
Havia gu ir lan d as na ch egad a e o céu in ver n al est ava
in t en sam en t e azul.

64
4 de outubro de 1973

Qu an d o er a m en in o , eie go st ava de se sen t ar so b um a


im en sa ár vo r e, p er t o d e um lago o n d e cr esciam ló t u s
cujas f lo r e s er am co r -d e -r o sa e t in h am um ch eir o f o r t e.
Ab r igad o na esp aço sa so m b r a d aq u ela ár vo r e, ele podia
: o b ser var as co b r as ver d es e f in as, os cam aleõ es, os sap o s
e as co b r as-d ' águ a. Seu ir m ão , ju n t am e n t e co m o u t r o s, vi-
^ nham para levá-lo p ar a casa4. Em b aixo da ár vo r e er a um
: lu gar agr ad ável, co m o rio e o lago p o r p er t o . Tu d o p ar e-
. cia ser t ão esp aço so e, ali m esm o , a ár vo r e co n q u ist ar a
o seu p r ó p r io esp aço . Tu d o p r ecisa d e esp aço . N u m a t ar ­
de calm a, t o d o s aq u eles p ássar o s so b r e o s f io s elét r ico s,
sim et r icam en t e e m p o le ir ad o s em seu s lu gar es, ab r iam o
esp aço p ar a aco lh e r o f ir m am en t o .
Os d o is ir m ão s se sen t avam , j u n t am e n t e co m m u it o s
o u t ro s, n aq u ele q u ar t o ch eio d e q u ad r o s; h avia um cân t i­
co em sân scr it o e d ep o is o co m p let o silên cio ; er a h o r a da
m ed it ação v e sp e r t in a. O ir m ão m ais jo vem d o r m ia, vir an -
d o -se de lad o e só aco r d an d o q u an d o t o d o s os o u t r o s se
levan t avam p ar a sair. O q u ar t o n ão er a m u it o gr an d e e em
suas p ar ed es h avia p in t u r as, as im agen s d o sagr ad o . No
:■co nf ina m en t o est r eit o de um t e m p lo ou d e um a igr eja, o
/ ser h u m an o d á f o r m a ao vast o m o vim en t o d o esp aço . Isso
é assim em t o d a p ar t e; na m esq u it a, o esp aço é su st e n t a-

: * Krishnam urt i est á descrevendo sua própria infância.

65
do nas lin h as gr acio sas de p alavr as d esen h ad as. O am o r
p r ecisa d e gr an d es esp aço s.
' Se r p e n t e s e o casio n alm e n t e p esso as vin h am at é aq u e­
le lago ; h avia d e gr au s de p ed r a q u e levavam at é a água
o n d e cr esciam os ló t u s. O esp aço q u e a m en t e cr ia é m en ­
su r ável e, p o r t an t o , lim it ad o ; cu lt u r as e r eligiõ es são p r o ­
d u t o s d essa lim it ação . A m en t e se p r een ch e co m o p en ­
sam e n t o e é f eit a d e p en sam en t o s; sua co n sciên cia é a
est r u t u r a d o p en sam en t o e d en t r o d ela há p o u q u íssim o
esp aço . Co n t u d o , esse esp aço é o m o vim en t o do t em p o ,
d aq u i p ar a lá, d o ce n t r o p ar a a p er if er ia da co n sciên cia,
e st r e it an d o ou exp an d in d o . O esp aço q u e o cen t r o cria
p ar a si m esm o é a su a p r ó p r ia p r isão . Os seu s r elacio n a­
m en t o s em er gem d essa est r eit eza, em b o r a seja n e ce ssá­
r io o esp aço p ar a se viver ; m as o esp aço da m en t e n ega o
viver . Viv e r no co n f in am e n t o e na est r eit eza d o cen t r o é
lu t a, d o r e t r ist eza e isso n ad a t em a ve r co m viver .
O esp aço , a d ist ân cia en t r e vo cê e a ár vo r e, é a p alavra,
o co n h e cim e n t o , co isas q u e p er t en cem ao t em p o . O t e m ­
p o é o o b se r v ad o r q u e cr ia a d ist ân cia en t r e ele m esm o e
as ár vo r e s, en t r e ele m esm o e o q u e é. Sem o o b ser vad o r
cessa a d ist ân cia. A id en t if icação co m as ár vo r e s, com o
o u t r o ou co m u m a f ó r m u la é a ação do p en sam en t o em
seu d e se jo d e se se n t ir segu r o e p r o t egid o . A d ist ân cia é
en t r e u m p o n t o e o u t r o e, p ar a p er co r r ê-la, o t e m p o é n e­
ce ssár io ; a d ist ân cia só exist e o n d e h o u ver d ir eção , para
d en t r o o u p ar a f o r a. O o b se r v ad o r cr ia o sen t id o d e se p a­
r ação , a d ist ân cia en t r e ele m esm o e o q u e é; e d isso su r ge
o co n f lit o e a dor. A t r an sf o r m ação d o q u e é só aco n t ece
q u an d o n ão há se p ar ação e n ão há t em p o en t r e o q u e vê
e o q u e é vist o . O am o r n ão t em d ist ân cia.

66
0 ir m ão m ais n o vo m o r r eu e n ão h avia q u alq u e r m o vi-
(m ent o , em n en h u m a d ir eção p ar a lo n ge da dor. Esse n ão
/ m o vim en t o é o f im do t em p o . O rio co m eçava p o r en t r e
/ os m o n t es, p er co r r ia so m b r as e sve r d e ad as e co m um r u -
ygido ia ao en co n t r o do m ar e seu s h o r izo n t es in f in it o s. O s
ser es h u m an o s vivem em caixas co m gavet as, em im en sas
/ p r o p r ied ad es e d izem n ão t er esp aço ; eles são vio len t o s,
b r u t ais, agr e ssiv o s e p er n icio so s; eles sè sep ar am e se
í d est r o em u n s ao s o u t r o s. O rio é a t er r a e a t er r a é o r io;
; um n ão p o d e exist ir sem o o u t r o .
As p alavr as p o d em n ão t er f im , m as a co m u n icação
/ / pode ser ver b al e n ão ver b al. Escu t ar a p alavr a é um a co i­
sa e escu t ar o silên cio sem p alavr a é o u t r a co isa; a p r i-
: m eira é ir r elevan t e, su p e r f icial e leva à in ér cia; a o u t r a é
ação sem f r agm e n t ação e o f lo r e scim e n t o da b o n d ad e. A s
p alavr as er igem b elíssim as p ar ed es, m as n en h u m esp aço .
Lem b r an ças, im agin açõ es são a d o r do p r azer e o am o r
não é pr azer.
A ser p en t e ver d e, lo n ga e d elgad a est ava ali n aq u ela
m anhã; er a d elicad a e q u ase cam u f lad a p elas f o lh as; f ica ­
ra ali, im ó vel, o b se r van d o e esp er an d o . A cab eça gr an d e
do cam aleão est ava à m o st r a, o co r p o ap o iad o so b r e u m
galho , su as co r es a m u d ar f r eq u en t em en t e.

67
Na gr an d e ext e n são de um cam p o ver d e, havia um a
ú n ica ár vo r e; ela era an t iga e ext r em am e n t e r esp eit ad a
p elas o u t r as ár vo r es, ao lo n go de um a co lin a. Sua so lid ão
er a m ais p o d er o sa q ue o r egat o r u id o so , as co lin as em
vo lt a e o ch alé d o o u t r o lado da p o n t e de m ad eir a. Era im ­
p o ssível n ão ad m ir á-la ao p assar p o r ela, m as ao r egr essar ,
p o d ia-se o lh ar p ar a ela m ais d e m o r ad am e n t e . Seu t r o n co
era b ast an t e gr o sso , p r o f u n d am e n t e en r aizad o na t er r a,
só lid o e in d est r u t ível. Seu s galh o s er am lo n go s, escu r o s e
sin u o so s e sua so m b r a era ab u n d an t e. Ao en t ar d ecer , ela
se r eco lh ia em si m esm a, in ab o r d ável, m as d u r an t e o dia,
ela se ab r ia em ab r aço s d e b o as vin d as. Era um a ár vo r e
ín t egr a e in t o cad a p o r um m ach ad o o u u m a ser r a. Num
dia en so lar ad o , vo cê se sen t ava à su a so m b r a, sen t ia sua
id ad e ven er ável e, p o r q u e vo cê est ava so zin h o co m ela,
vo cê p er ceb ia sua p r o f u n d id ad e e a b eleza da vid a.
O ald eão id o so e can sad o p asso u , en q u an t o vo cê e st a­
va ali a co n t e m p lar o p o r do sol so b r e a p o n t e. Ele est ava
q u ase cego , m an cava e car r egava um a t r o u xa em um a das
m ãos; na o u t r a, t in h a um a b en gala. Era um a d essas t ar d es
q u an d o as co r es d o p o r do sol f icavam im p r essas em cada
p ed r a, ár vo r e e ar b u st o ; era co m o se a gr am a e os cam p o s
t ivessem a sua p r ó p r ia luz in t er io r . O sol d esap ar eceu p or
t r ás d e um m o r r o ar r e d o n d ad o e no m eio d essa e xt r av a­
gân cia d e co r es, h avia o n ascim en t o da est r ela vesp er t in a.
O ald eão p ar o u , o lh o u para aq u ela exu b er ân cia de co r es

68
è para vo cê. Ot h ar am -se m u t u am en t e e, sem d ize r p ala­
vra, o ald eão ar r ast o u -se p en o sam e n t e ad ian t e. N aq u ela
co m u n icação h o u ve af et o , t e r n u r a e r esp eit o , n ão aq u ele
r esp eit o t o lo , m as o r esp eit o d o s ver d ad e ira m en t e r e ligio ­
sos. N aq u ele in st an t e, o t em p o e o p en sam en t o d eixar am
;de exist ir . Vo cê e ele er am t o t alm e n t e r eligio so s e n ão co r ­
r o m p id o s pela cr en ça, im agem , p alavr a o u p o b r eza. Co m
f r eq u ên cia, p assavam um p elo o u t r o n aq u ela est r ad a la­
deada p o r m o r r o s d e p ed r a e, t o d as as vezes q u e se o lh a­
vam , h avia a alegr ia da p e r ce p ção p len a e t o t al.
Ele vin h a d o t e m p lo q u e f icava do o u t r o lad o da r u a,
aco m p an h ad o d e su a esp o sa. Est avam em silen cio , p r o ­
f u n d am en t e t o cad o s p elo s cân t ico s e p elo cu lt o . Por aca­
so vo cê est ava cam in h an d o at r ás d eles, e vo cê p er ceb eu
neles os se n t im e n t o s d e r eve r ên cia e a f o r ça da d e t e r m i­
nação em levar um a vid a r eligio sa. M as isso lo go p assar ia,
q u an do f o ssem levad o s a e n car ar a r e sp o n sab ilid ad e p e ­
los f ilh o s, f ilh o s esses q u e já vin h am co r r e n d o em d ir eção
a eles. Ele d ever ia t er um a boa p r o f issão e d evia ser u m a
pessoa co m p et en t e, po is t in h a um a casa gr an d e. O p eso
da exist ên cia o af o gar ia e, em b o r a f r e q u e n t asse assid u a­
m ent e o t em p lo , a b at alh a co n t in u ar ia.
A p alavr a não é a co isa; a im agem o u o sím b o lo n ão é
o real. Realid ad e, ver d ad e, não são p alavr as. Exp r essar o
real em p alavr as acab a co m ele, a ilu são t o m a seu lugar. O
in t elect o p o d e r eje it ar t o d as as e st r u t u r as da id eo lo gia e
da cr en ça e t am b ém as ar m ad ilh as e o p o d e r q u e as aco m ­
panham ; co n t u d o , a r azão p o d e j u st if icar q u alq u e r cr en ça
ou id eação . A r azão é a o r d em do p en sam en t o e o p e n sa­
m ent o é a r esp o st a d o m u n d o ext er io r . Po r ser d o m u n d o
^ ext erior, o p en sam en t o cr ia o m u n d o in t er io r . N in gu ém

69
p o d e viv e r u n icam en t e do m u n d o e xt e r io r e o m u n d o in ­
t e r io r se t r an sf o r m a nu m a n ecessid ad e. Essa d ivisão é o
cam p o o n d e a b at alh a en t r e o " eu" e o " não eu " é t r avad a.
O m u n d o e xt er io r é o d eu s das r eligiõ es e d as id eo lo gias; o
m u n d o in t er io r t en t a se ad ap t ar a e ssas im agen s e o co n ­
f lit o é o r esu lt ad o d e t u d o isso .
Não há in t er io r n em ext er io r , m as u n icam en t e a t o t a­
lid ad e. O e xp e r im e n t ad o r é o exp e r im e n t ad o . Fr agm en t a­
ção é in san id ad e. Essa t o t alid ad e n ão é u m a m er a p alavr a;
a t o t alid ad e é q u an d o a d ivisão en t r e in t er io r e ext er io r
d eixa de exist ir , co m p let am en t e. 0 p en sad o r é o p en sa­
m en t o .
Rep en t in am en t e, en q u an t o vo cê cam in h a, sem um
ú n ico p en sam en t o , m as ap en as o b se r van d o sem um o b ­
ser vad o r , vo cê se dá co n t a de um a sacr alid ad e qu e o p en ­
sam en t o n u n ca f oi cap az de co n ceb er . Vo cê p ar a, o b ser va
o s p ássar o s, as ár vo r es, os p assan t es; aq u ilo n ão é um a
ilu são ou algo co m o qu al a m en t e se ilu d e a si m esm a.
Aq u ilo est á ali n o s seu s o lh o s, no seu ser in t eir o . A co r da
b o r b o let a é a b o r b o let a.
A s co r es im p r essas p elo sol co m eçavam a d esap ar ece r
e, an t es q u e escu r e cesse , um a t ím id a lua n o va m o st r o u -se
a si m esm a, an t es de d e sap ar e ce r p o r t r ás do m o r r o .

70
T'A'' 7 de outubro de 1973

Era u m a d aq u elas ch u vas na m o n t an h a, q u e d u r am


t r ês o u q u at r o d ias e t r azem co n sigo um clim a m ais f r io .
A t er r a e st ava en ch ar cad a e p esad a e t o d o s os cam in h o s
esco r r egad io s; p eq u en as cascat as esco r r iam d as en co st as
ín gr em es e o t r ab alh o no cam p o h avia sid o in t er r o m p id o .
As ár vo r es e as p lan t açõ es d e ch á já se r essen t iam d aq u e ­
le en ch ar cam en t o ; o sol n ão t in h a ap ar e cid o p o r m ais d e
um a sem an a e est ava f ican d o m u it o f r io . As m o n t an h as,
com seu s p ico s n evad o s e gigan t e sco s, f icavam m ais ao
no rt e. As b an d eir as em vo lt a d o s t e m p lo s est avam p e sa­
das pela ch u va; elas t in h am p er d id o o seu d eleit e e su as
co r es v ib r an t e s ao f lu t u ar na b r isa. Havia t r o võ e s e r e lâm ­
p ago s e o s est r o n d o s er am le vad o s d e vale em vale; u m a
d en sa n eb lin a esco n d ia o s lam p ejo s af iad o s da luz.
Na m an h ã segu in t e, a clar eza e a t e r n u r a d e um céu
azul est avam alí e os gr an d es p ico s, sile n cio so s e et er n o s,
su r giam ilu m in ad o s p elo so l m at in al; um v aie p r o f u n d o
se co lo cava en t r e a ald eia e as elevad as m o n t an h as; u m a
n eb lin a azu l escu r a o p r een ch ia. Bem à f r en t e, agigan t an ­
d o -se n aq u ele céu clar o , est ava o segu n d o m ais elevad o
p ico d o s Him alaias. Ser ia q u ase p o ssível t o cá-lo , em b o r a
est ivesse a m ilh as d e d ist ân cia; er a f ácil e sq u e ce r a d is­
t ân cia, p o is ele e st ava ali, em t o d a su a m ajest ad e, t ão
ab so lu t am en t e p u r o e im en su r ável. Ao f in al da m an h ã, já
h avia d esap ar ecid o , e sco n d e n d o -se n as n u ven s e scu r as
que p ar t ir am do vale. Ele só se m o st r o u d e m an h ã ced o e

71
d e sap ar e ce u algu m as h o r as m ais t ar d e. Não é d e se e st r a­
n h ar q u e o s an t igo s b u scavam seu s d eu ses n essas m o n t a­
n has, no t r o vão e nas n u ven s. A d ivin d ad e de su as vid as
an co r av a-se na b en d ição o cu lt a e in ab o r d ável d essas n e ­
ves d ist an t es.
Os d iscíp u lo s vier am co n vid á-lo par a ir ver o seu gur u;
u m a r ecu sa p o lid a lh es er a se m p r e o f er ecid a, m as eles
sem p r e vo lt avam , e sp e r an d o q u e vo cê m u d asse d e ideia
ou ace it asse p co n vit e, can sad o d aq u ela in sist ên cia. A s­
sim , f ico u d ecid id o q u e o gu r u vir ia co m algu n s d o s seu s
d iscíp u lo s esco lh id o s.
Era u m a rua p eq u en a e b ar u lh en t a; as cr ian ças j o g a ­
vam cr íq u et e ali; elas segu r avam o s b ast õ es e u savam
velh o s t ijo lo s p ar a f aze r as m ar caçõ es. Gr it an d o e r in do ,
j o gav am ale gr e m e n t e sem n en h u m a p r essa, so m e n t e p a­
r an d o p ar a u m car r o q u e p assava, p o is o m o t o r ist a r e s­
p eit ava a b r in cad eir a. Dia ap ó s d ia, as cr ian ças b r in cavam
e, n aq u ela m an h ã, est avam e sp e cialm e n t e b ar u lh en t as,
q u an d o o gu r u ch ego u car r e gan d o u m a b en gala p eq u en a
e p o lid a.
Est ávam o s sen t ad o s num co lch o n et e f in o so b r e o
ch ão q u an d o ele en t r o u e n o s le van t am o s p ar a lhe ced er
o lugar . Ele se sen t o u co m as p er n as cr u zad as, co lo can d o
a b en gala à su a f r en t e; aq u ele co lch o n e t e f in o p ar ecia lhe
co n ce d e r um lu gar d e au t o r id ad e. Ele h avia en co n t r ad o a
ver d ad e, exp e r im e n t an d o -a e, p o r t an t o , er a algu ém q u e
sab ia e est ava ab r in d o a p o r t a p ar a n ó s. O q u e ele d izia
era lei p ar a si m esm o e par a os o u t r o s; o o u t r o er a um
b u scad o r , ao p asso q u e ele j á e n co n t r ar a a ver d ad e. Se
algu ém est ivesse p er d id o em sua b u sca, ele o aju d ar ia ao
lo ngo d o cam in ho , m as er a pr eciso o bed ecer . Calm am en t e,

72
d issem o s a ele q u e t o d a a b u sca e r ealização n ão f azia
q u alq u er sen t id o , a m en o s q u e a m en t e e st iv e sse livr e de
t o d o s seu s co n d icio n am e n t o s; a lib er d ad e é o p r im eir o e o
ú lt im o p asso ; a o b ed iên cia a q u alq u er au t o r id ad e, no q u e
diz r esp eit o à m en t e, é ser ap r isio n ad o pela ilu são e p ela
ação q u e ger a ,o so f r im en t o . Ele sen t iu p en a de nós, m o s­
t r o u -se p r eo cu p ad o e co m um a p o n t a d e ab o r r e cim e n t o ,
co m o se f o sse m o s levem en t e d em en t e. Em segu id a d isse:
"A m aio r d e t o d as e a d er r ad eir a exp er iên cia m e foi co n ­
cedida e n en h u m b u scad o r p o d e r ecu sar isso."
Se a r ealid ad e ou ver d ad e é p ar a se r e xp e r im e n t ad a,
ent ão eia é ap en as um a m er a p r o jeção da m en t e. O q u e é
exp er im en t ad o não é a ver d ad e, m as u m a cr iação da p r ó ­
pria m en t e.
Os d iscíp u lo s d o gu r u co m eçar am a f icar agit ad o s e
n er vo so s. Se gu id o r e s d est r o em seu s in st r u t o r e s e a si
m esm o s. O gu r u se levan t o u e f o i e m b o r a, se gu id o p elo s
seus d iscíp u lo s. A s cr ian ças ain d a b r in cavam na rua, al­
guém acer t o u a b o la e f o i o vacio n ad o co m gr it o s e p alm as.
Não há u m cam in h o par a a ver d ad e, h ist ó r ica ou r e li­
gio sam en t e. Eia n ão é par a ser exp er im en t ad a ou d e sco -
aert a po r in t er m éd io da d ialét ica; não é p ar a ser vist a em
Fugazes o p in iõ es e cr en ças. Vo cê ch ega à v e r d ad e q u an d o
a m en t e é livr e d e t o d as as co isas q u e ela m esm a cr io u .
A q u e le p ico m aje st o so é um m ilagr e da vid a.

73
Os m acaco s est avam por t o d a p ar t e n aq u ela calm a
m an h ã; na var an d a, so b r e o t elh ad o e na m an gu eir a -
u m a t r o p a d eles; er am d aq u ela var ie d ad e de p elo am ar -
r o n zad o e car as ver m elh as. Os p eq u en in o s f icavam p er ­
segu in d o uns ao s o u t r o s por en t r e as ár vo r es e n ão m u it o
d ist an t es d e su as m ães; o gr an d e m ach o est ava por ali,
se n t ad o e so zin h o , su p e r v isio n an d o t o d a a t r o p a. Deviam
ser u n s vin t e m acaco s. Eles er am bem d est r u t iv o s e à
m ed id a q u e o sol ia esq u en t an d o , d esap ar eciam na m at a
m ais d en sa, lo n ge d as h ab it açõ es h u m an as; o m ach o era
o p r im eir o a p ar t ir e o s o u t r o s o segu iam silen cio sam en t e .
E en t ão , o s p ap agaio s e o s co r vo s ch egavam , co m a co s­
t u m e ir a algazar r a, an u n cian d o su as p r esen ças. Havia um
co r vo q u e ch am ava o u f azia o q u e co r vo s f azem , co m um a
vo z r o u ca, à m esm a h o r a d o d ia, r ep et in d o sem p ar ar esse
ch am ad o , at é q u e algu ém o t o casse dali. Dia ap ó s d ia, ele
r ep et ia o seu d esem p en h o ; o seu ch am ad o r o u co p en e t r a­
va p r o f u n d am e n t e na sala e isso f azia p ar ecer q u e t o d o s
o s o u t r o s r u íd o s h aviam se calad o . Esses co r vo s evit am
iu t as v io le n t as en t r e si, são r áp id o s, m u it o o b se r v ad o r e s e
e f icie n t e s q u an t o à p r ó p r ia so b r e vivê n cia. Par ecia q u e os
m acaco s n ão go st avam d eles. Aq u ele ser ia um b elo dia.
Ele er a um h o m em m agr o , rijo, co m u m a cab e ça bem
f o r m ad a e o lh o s q u e n ão sab iam so rr ir . Est ávam o s se n ­
t ad o s em u m b an co vo lt ad o p ar a o rio e à so m b r a d e um

74
t am ar in d eir o , o lar d e m u it o s p ap agaio s e de um casal de
co r u jas q u e se b an h ava ao sol m at in al.
Ele d isse: " Passei m u it o s an o s m ed it an d o , co n t r o lan ­
do m eus p en sam en t o s, je ju an d o e co m en d o ap en as um a
r ef eição p o r d ia. Eu t ive um em p r ego de assist e n t e so cial,
m as d esist i d ele, há m u it o t em p o at r ás, p o is d esco b r i q u e
era um t ip o d e t r ab alh o q u e não r eso lvia o p r o b lem a m ais
p r o f u n d o da h u m an id ad e. Há m u it as p esso as q u e co n t i­
nuam f aze n d o esse t ip o de t r ab alh o , m as não é m ais u m a
at ivid ad e p ar a m im . O m ais im p o r t an t e p ar a m im ago r a é
co m p r e en d er o t o t al sign if icad o e a p r o f u n d eza da m ed i­
t ação . To d as as esco las de m ed it ação ad vo gam algu m t ip o
de co n t r o le; eu t e n h o p r at icad o sist em as d if er en t es, m as
p ar ece n ão h aver um f im pra t u d o isso."
Co n t r o le sign if ica d ivisão , o co n t r o lad o r e a co isa a se r
co n t r o lad a; essa d ivisão , co m o t o d a d ivisão , t r az co n sigo o
co n f lit o e a d ist o r ção , no co m p o r t am e n t o e na ação . Essa
f r agm e n t ação é o t r ab alh o d o p en sam en t o , um f r agm e n t o
t en t an d o co n t r o lar as o u t r as p ar t es, p o d en d o v o cê ch a ­
m ar esse f r agm e n t o de " o co n t r o lad o r " ou d ar -lh e q u al­
q u er o u t r o n o m e q u e lhe co n ven h a. Essa d ivisão é ar t if i­
cial e m alévo la. Na ver d ad e, o co n t r o lad o r é o co n t r o lad o .
Em sua p r ó p r ia n at u r eza, o p en sam en t o é f r agm e n t ad o e
isso cau sa co n f u são e so f r im en t o . O p en sam en t o d ivid iu o
m u n d o em n acio n alid ad es, id eo lo gias e seit as r eligio sas,
as gr an d es e as p eq u en as. O p en sam en t o é a r esp o st a da
m em ó r ia, e xp e r iê n cia e co n h e cim en t o ar m aze n ad o s n o
cér eb r o e e le só p o d e f u n cio n ar ef icien t e e sad iam en t e ,
q u an d o t em se gu r an ça e o r d em . Para so b r e v iv e r f isica­
m ent e, o p e n sam e n t o se p r o t ege de t o d o s os p er igo s; a
n ecessid ad e d e u m a so b r evivê n cia ext er n a é b em f ácil

75
d e en t en d er , m as a so b r e vivê n cia p sico ló gica é algo in ­
t e ir am e n t e d if er en t e, é a so b r evivê n cia da im agem que
o p en sam en t o cr io u . O p en sam en t o d ivid iu a exist ên cia
em in t e r io r e e xt e r io r e d essa se p ar ação su r ge m o co n f lit o
e o co n t r o le. Cr en ças, id eo lo gias, d eu ses, n acio n alid ad es
e co n clu sõ e s são e ssen ciais p ar a a so b r e vivê n cia d essa
e xist ên cia in t er io r , além de cr iar em gu e r r as in en ar r áveis,
vio lê n cia e so f r im en t o . 0 d esejo de q u e so b r e viva essa
exist ên cia in t er io r , co m su as in co n t áveis im agen s, é um a
d o e n ça, é d esar m o n ia. O p e n sam e n t o é d esar m o n ia. To­
d as as su as im agen s, id eo lo gias e ve r d ad e s são co n t r ad it ó ­
r ias e d est r u t ivas. In d ep en d en t em en t e d e su as co n q u ist as
t e cn o ló gicas, o p en sam en t o cr io u o cao s e os p r azer es que
lo go se t r an sf o r m am em d esesp er o , t an t o in t er n a q u an t o
ext e r n am e n t e . Ser cap az de n o t ar isso na sua vid a d iária,
v e r e o u vir o m o vim en t o d o p e n sam e n t o é a t r an sf o r m a­
ção q u e a m ed it ação r ealiza. Essa t r an sf o r m ação n ão é a
d o 'eu ' se t o r n an d o um 'eu su p e r io r ' , m as é a t r an sf o r ­
m ação d o co n t e ú d o da co n sciên cia; a co n sciê n cia é o seu
co n t eú d o . A co n sciê n cia do m u n d o é a su a co n sciên cia;
vo cê é o m u n d o e o m u n d o é vo cê. M ed it ação é a t r an s­
f o r m ação co m p let a do p en sam en t o e d e su as at ivid ad es.
A h ar m o n ia n ão é um f r u t o do p en sam en t o ; ela vem com
a p e r ce p ção da t o t alid ad e.
A b r isa m at in al t in h a ido em b o r a e n em um a f o lh a se
m o via; o rio t in h a f icad o q u iet o e o s r u íd o s vin d o s da o ut r a
m ar gem at r ave ssavam su a am p lit u d e. At é o s p ap agaio s si­
len ciar am .

76
9 de outubro de 1973

Era um t r em de b it o la est r eit a que p ar ava em q u ase


: t o d as as est açõ es, o n d e ven d ed o r es d e caf é e ch á, co b e r ­
t o r es e f r u t as, d o ces e b r in q u ed o s gr it avam o s n o m es d e
suas m er cad o r ias. Do r m ir er a q u ase im p o ssível e, p ela
m an hã, t o d o s o s p assageir o s t o m ar am um b ar co qu e cr u -
• zava as águ as r asas d o m ar at é a ilha. Aíi, um t r em est ava
V esp er an d o p ar a levar t o d o s os p assageir o s par a a cap it al,
at r avessan d o a p aisagem ver d e de m at as e p alm eir as,
p lan t açõ es de ch á e vilar ejo s. Um a t er r a agr ad ável e f eliz.
Era q u en t e e ú m id a à b eir a-m ar , m as n o s m o r r o s, o n d e
est avam as p lan t açõ es d e ch á, er a m ais f r e sco e se n t ia-se
no ar o ch eir o d e um t e m p o an t igo , v iv id o co m sim p lici­
d ad e e p o u ca gen t e. M as na cid ad e, co m o em t o d as as
cid ad es, h avia b ar u lh o , su jeir a, a so r d id ez da p o b r eza e a
vu lgar id ad e d o d in h eir o ; no p o r t o , h avia n avio s d e t o d as
as p ar t es d o m u n d o .
A casa f icava n u m a p ar t e iso lad a e h avia um f lu xo
co n st an t e d e p esso as q u e vin h am par a sau d á-lo co m gu ir -
lan d as e f r u t o s. Um dia, um h o m em lh e p er gu n t o u se ele
q uer ia ir v e r um b eb ê eief an t e e f o m o s vê-lo , n at u r alm e n ­
t e. Ele t in h a d u as sem an as de vid a e n o s foi d it o q u e a
m ãe est ava n er vo sa e er a m u it o p r o t et o r a. O car r o n o s
levo u p ar a f o r a da cid ad e, p assan d o p ela esq u alid ez e su ­
jeir a d e um r io am ar r o n zad o e p elo vilar ejo em su as m ar ­
gen s. Á r vo r e s alt as e p esad as cir cu n d avam o lu gar . A m ãe
im en sa e escu r a, j u n t am e n t e co m o seu b eb ê est avam ali.
Ele f ico u p o r ali d u r an t e vár ias h o r as, at é q u e a m ãe se

77
aco st u m asse co m a su a p r esen ça; ele t in h a d e ser ap r e ­
sen t ad o , de m o d o a t e r a p e r m issão de t o car em su a t r o m ­
ba e alim en t á-la co m algu m as f r u t as e can a d e açú car . A
p ar t e sen sível ao f in al da t r o m b a est ava p ed in d o m ais e
m açãs e b an an as iam d ir et o p ar a sua b o ca. O b eb ê r ecém -
-n ascid o est ava d e pé, b alan çan d o sua p eq u en a t r o m b a
p o r en t r e as p er n as da m ãe. Ela er a um a p eq u en a r ép lica
de su a m ãe im en sa. Fin alm en t e, a m ãe lhe d eu p er m issão
p ar a t o car o b eb ê; su a p ele n ão er a t ão ásp er a e su a t r o m ­
ba est ava em co n st an t e m o vim en t o , m u it o m ais at iva do
q u e o r est o d o co r p o . A m ãe o b ser vava co n t in u am en t e e
o t r at ad o r t in h a d e asse gu r á-la, de vez em q u an d o , de que
t u d o est ava b em . Era um b eb ê b r in calh ão .
A m u lh er en t r o u na p eq u en a sala p r o f u n d am e n t e an ­
gu st iad a. Seu f ilh o t in h a m o r r id o na gu er r a: " Eu o am a­
va m u it o e er a m eu ú n ico f ilh o ; ele t in h a t id o um a boa
e d u cação e p r o m et ia ser um a p esso a t ale n t o sa e d e bo m
car át er . Ele f oi m o r t o e p o r q u e isso t in h a q u e aco n t e ce r
a ele e a m im ? Havia um af et o r eal e am o r en t r e n ó s. Um a
cr u eld ad e q u e isso t en h a sid o assim ." Ela so lu çava e p a­
r ecia q u e su as lágr im as n ão t er iam um f im . Ela segu r o u
a m ão d ele na sua e f ico u m ais calm a, o su f icie n t e par a
p o d e r escu t ar .
Gast am o s m u it o d in h eir o na e d u cação d e n o sso s f i ­
lh o s; cu id am o s t ão b em d eles, q u e f icam o s p r o f u n d a­
m en t e ap egad o s; eles p r een ch em a n o ssa so lid ão e n eles
e n co n t r am o s a n o ssa r ealização e um sen t id o d e co n t in u i­
d ad e. Po r q u e so m o s ed u cad o s? Par a n o s t r an sf o r m ar m o s
em m áq u in as t e cn o ló gicas? Para p assar a vid a t r ab alh an ­
do e m o r r er n um acid en t e ou de u m a d o en ça d o lo r o sa?
Essa é a vid a q u e a n o ssa cu lt u r a e a n o ssa r eligião cr iar am
p ar a nós. Po r t o d o o m u n d o , esp o sas e m ães ch o r am ; a

78
gu er r a ou a d o e n ça levo u seu s m ar id o s ou f ilh o s. Ser á q u e
o am o r é ap ego ? Ser á q u e o am o r é a ago n ia da p er d a
e as lágr im as? É so lid ão e so f r im en t o ? É au t o p ied ad e e
a d o r da sep ar ação ? Se vo cê am asse o seu f ilh o , cu id ar ia
para q u e n en h u m f ilh o , de q u em q u er q u e f o sse jam ais
f o sse m o r t o n u m a gu er r a. Já aco n t ecer am m ilh ar es d e
gu er r as e m ães e esp o sas n u n ca t o t alm e n t e n egar am o s
m eio s q u e levam à gu er r a. Vo cê ch o r a de ago n ia e ap o ia,
in vo lu n t ar iam en t e, o s sist em as q u e p r o d u zem a gu er r a. O
am o r n ão co n h e ce a vio lên cia.
O h o m em exp lico u p o r q u e est ava se se p ar an d o de sua
esp o sa. " Ér am o s m u it o j o v e n s q u an d o n o s casam o s e, d e ­
p o is d e algu n s an o s, as co isas co m eçar am a não d ar cer t o ,
em t o d o s o s asp ect o s, sexu alm en t e, m en t alm en t e e p a­
r ecíam o s in ad eq u ad o s um par a o o u t r o . No co m eço , n o s
am ávam o s, m as gr ad u alm en t e isso f oi se t r an sf o r m an d o
em ó d io ; a se p ar ação se t o m o u n ecessár ia e o s ad vo gad o s
est ão cu id an d o d isso ."
A m o r é p r azer e a in sist ên cia d o d esejo ? A m o r é se n sa­
ção f ísica? At r ação , e seu p r een ch im en t o , é am o r ? A m o r
é um a m er cad o r ia d o p en sam en t o ? Um a co isa in ven t ad a
acid en t al e cir cu n st an cialm e n t e ? É co m p an h e ir ism o , ge n ­
t ileza e am izad e? Se q u alq u e r um a d e ssas co isas se co lo ca
co m o se n d o a m ais im p o r t an t e, en t ão n ão é am or . O am o r
é t ão f in al q u an t o a m o r t e.
Há um a t r ilh a q u e leva at é as m o n t an h as, p assan d o p o r
b o sq u es, p ast agen s e esp aço s ab e r t o s. Há um b an co an t es
de co m e çar a su b id a e n ele um casal d e id o so s e st á se n t a­
do, o lh an d o p ar a o vale ilu m in ad o p elo sol; eles vêm at é
ali co m f r e q u ê n cia. Sen t am -se ali sem d izer p alavr a, sile n ­
cio sam e n t e co n t e m p lan d o a b eleza da t e r r a. Eles esp er am
a vin d a d a m o r t e. E a t r ilh a co n t in u a em d ir eção à neve.

79
' í 10 de outubro de 1973

As ch u vas vier am e f o r am em b o r a; os seixo s im en so s


e ar r e d o n d ad o s r elu ziam ao sol m at in al. Os leit o s seco s
d o s rios ago r a est avam ch eio s e a t er r a se r eju b ilava m ais
um a vez. 0 so lo est ava m ais aver m elh ad o , cad a ar b u st o e
lâm in a de gr am a ain d a m ais ver d e e as ár vo r e s de r aízes
p r o f u n d as so lt avam n o vo s b r o t o s. O gad o en go r d ava e os
ald eõ es não est avam t ão m agr o s. Esses m o r r o s são t ão
velh o s q u an t o a p r ó p r ia t er r a e o s im en so s seixo s p ar e­
ciam t er sid o cu id ad o sa e eq u ilib r ad am e n t e co lo cad o s ali.
M ais par a o lest e, h avia um m o r r o q u e t in h a o f o r m at o
de um a gr an d e p lat af o r m a o n d e um t em p lo q u ad r ad o foi
co n st r u íd o . As cr ian ças da ald eia cam in h avam vár io s q u i­
lô m et r o s par a ap r en d er a ler e escr ever ; ali est ava um a
cr ian ça so zin h a, co m o r o st o b r ilh an d o , in d o p ar a a esco ­
la no vilar ejo vizin h o , levan d o um cad er n o num a m ão e a
m er en d a na o u t r a. Co m um o lh ar t ím id o e in d agad o r , ela
p ar o u q u an d o p assam o s e se f icasse ali p ar ad a se at r asa­
ria p ar a a esco la. Os cam p o s de ar r o z est avam su r p r e e n ­
d en t e m e n t e ver d es. A m an hã ser ia lo n ga e p acíf ica.
Do is co r vo s lu t avam no ar, gr alh an d o e n f u r ecid o s um
co m o o u t r o ; não t in h am m u it o ap o io no ar e assim d esce­
ram p ar a o ch ão p ar a co n t in u ar a b r iga. Pen as co m eçar am
a v o ar e a lu t a f o i f ican d o sér ia. Rep en t in am en t e, u n s doze
co r vo s d escer am so b r e eles e p u ser am um f im à lu t a. De­
p o is de m u it a algazar r a e gr alh ad as, t o d o s d esap ar ecer am
p o r en t r e as ár vo r es.

80
A vio lên cia est á em t o d a p ar t e, en t r e o s m ais ed u cad o s
| íe os m ais p r im it ivo s, en t r e o s in t e le ct u ais e o s se n t im e n -
t alist as. Nem a ed u cação n em as r e ligiõ e s o r gan izad as f o ­
r r am cap azes d e am an sar o ser h u m an o ; ao co n t r ár io , se
t o r n ar am r esp o n sáveis p elas gu er r as, t o r t u r as, cam p o s d e
co n cen t r ação e p ela m at an ça de an im ais, na t er r a e n o
mar. Qu an t o m ais o h o m em p r o gr id e, m ais cr u el p ar ece
se t o r n ar . A p o lít ica se t r an sf o r m o u em um r ed u t o de q u a­
d rilhas q u e se o p õ em m u t u am en t e; o n acio n alism o é u m
est im u lad o r d e gu er r as; há as gu e r r as e co n ô m icas, ó d io s
/ p esso ais e vio lê n cia. 0 ser h u m an o p ar ece n ão ap r e n d e r
com a exp er iên cia e o co n h e cim en t o e a v io lê n cia em su as
m ais var iad as f o r m as se p er p et u a. Qu e lu gar o co n h e ci­
m ent o t em na t r an sf o r m ação d o ser h u m an o e d a so cie ­
dade?
A en er gia d esp en d id a na acu m u lação do co n h e cim e n ­
t o não m u d o u a h u m an id ad e; isso n ão p ô s um f im à v i o ­
lên cia. A en er gia gast a em m ilh ar es de e xp licaçõ e s do p o r
que o ser h u m an o é t ão agr essivo , b r u t al e in sen sível, n ão
pôs um f im à sua cr u eld ad e. A en er gia gast a em an álise s
de sua d e st r u ição in san a, seu p r azer pela v io lê n cia, sa ­
d ism o e in t im id ação não t r an sf o r m o u o ser h u m an o em
algu ém at e n cio so e gen t il. A p e sar de t o d o s os livr o s e p a ­
lavras, am eaças e p u n içõ es, o ser h u m an o co n t in u a co m a
sua vio lên cia.
A vio lên cia não est á ap en as na m at an ça, na b o m b a e
na m u d an ça r evo lu cio n ár ia p o r in t e r m é d io d o d e r r am a­
m en t o de san gu e; ela é m ais p r o f u n d a e m ais su t il. Co n f o r ­
m id ad e e im it ação são in d icaçõ es de vio lên cia; im p o sição
e aceit ação de um a au t o r id ad e são in d icaçõ es d e v io lê n ­
cia; am b ição e co m p e t ição são e xp r e ssõ e s d e agr e ssão e

81
cr u eld ad e e a co m p ar ação leva à in veja, co m su a an im o ­
sid ad e e ó d io . On d e h o u ver co n f lit o , in t er io r ou ext erior,':
h aver á a b ase p ar a o d e se n vo lvim e n t o da vio lê n cia. A d i­
visão , em t o d as as su as f o r m as, t r az em si co n f lit o e dor.
Vo cê sab e d isso ; vo cê ieu so b r e as açõ es da vio lên cia,
vo cê viu a v io lê n cia em si m esm o e à su a vo lt a, o u viu co i­
sas so b r e ela e, ain d a assim , ela n ão t eve um f im . Po r quê?
A s e xp licaçõ e s e cau sas do co m p o r t am e n t o vio le n t o não
t êm um sign if icad o reaf. Se vo cê é t o le r an t e co m a v io ­
lên cia, est ar á d e sp e r d içan d o a en er gia q u e p r ecisar ia para
t r an sce n d ê -la. Vo cê p r ecisa d e t o d a a su a en er gia para en ­
car ar e t r an sce n d e r a en e r gia q u e est á se n d o d e sp e r d iça­
da co m a v io lê n cia. Co n t r o lar a vio lên cia é o u t r a f o r m a
d e vio lê n cia, u m a vez q u e o co n t r o lad o r é o co n t r o lad o .
Qu an d o a at en ção é t o t al e a en er gia p len a, a vio lên cia,
em t o d as as su as f o r m as, ch ega ao f im . At e n ção n ão é um a
p alavr a n em u m a f ó r m u la ab st r at a do p en sam en t o , m as
um a ação co t id ian a. Ação n ão é um a id eo lo gia, p o is se a
ação p r o ced e de um a ideologia, en t ão co n d u zir á à violên cia.
Dep o is d as ch u vas, o rio se gu e cir cu n d an d o o s seixo s
im en so s, p assan d o p elas cid ad es e ald eias e, n ão im p o r t a
q u ão p o lu íd o ele est eja, seu m o vim en t o vai lim p an d o a
si m esm o , ao co r r e r p elo s vales, cam p o s e d esf ilad eir o s.

82
W 12 de outubro de 1973

M ais u m a vez, um gu r u bem co n h e cid o veio v isit á-lo .


f Ést ávam o s sen t ad o s em um jar d im m u r ad o e ad o r ável;
| ò gr am ad o er a ve r d e e b em ap ar ad o , h avia r o seir as, er -
f yiihas d o ces, t age t e s d e um am ar elo b r ilh an t e e o u t r as
f f lo r es do n o r t e o r ien t al. O m u r o e as ár vo r e s m an t in h am
fos r u íd o s d o s p o u co s car r o s q u e p assavam à d ist ân cia; n o
íiár cir cu lava o p e r f u m e d e m u it as f lo r e s. À n o it e, um a f a -
ím ília d e ch acais saia de seu esco n d er ijo so b u m a ár vo r e;
eles escavar am um b u r aco lar go o n d e a m ãe t in h a t id o
t rês f ilh o t es. O b an d o p ar ecia b em sad io e, lo go d ep o is
que o sol se p u n h a, a m ãe saía co m os f ilh o t es, m as o s
m ant inh a p er t o d as ár vo r es. Havia lixo at r ás da casa e e le s
iriam p r o cu r ar algu m a co isa ali, m ais t ar d e. Havia t am b é m
um a f am ília de m an gu st o s; t o d as as n o it es, a m ãe, co m
seu f o cin h o r o sad o e cau d a lo n ga e gr o ssa, saía d e seu s
esco n d er ijo s segu id a de d o is f ilh o t es, um at r ás d o o u t r o ,
sem se d ist an ciar d o m u r o . Eles vin h am at é o f u n d o da
co zin h a o n d e, às vezes, se d eixava algu m a co isa p ar a eles.
Os m an gu st o s d eixavam o q u in t al livr e d e co b r as. Eles e o s
ch acais p ar eciam n u n ca t e r se e n co n t r ad o p o r ali, m as se
t ivessem , co n co r d ar iam em m an t er a paz.
A lgu n s d ias an t es, o gu r u avisar a q u e go st ar ia d e f aze r -
-Ih e um a visit a. Ele ch ego u e seu s d iscíp u lo s o su ce d e r am ,
um ap ó s o o u t r o . To car am -She os pés, em sinal de gr a n ­
de r esp eit o . Eles t am b ém q u er iam t o car os p és d o o u t r o
h o m em , m as ele não p er m it iu q u e f izessem isso ; ele lh es

83
d isse q u e ser ia algo d egr ad an t e, m as a t r ad ição e a esp e­
r an ça do p ar aíso er am d em asiad am en t e f o r t e s n eles. O:
gu r u n ão en t r ar ia na casa, p o is h avia f eit o vo t o s d e nunca
e n t r ar n u m a casa d e p esso as casad as. N aq u ela m anhã, o
céu est ava in t e n sam e n t e azul e as so m b r as alo n gad as.
" Vo cê n ega ser um gu r u , m as vo cê é um gu r u d o s gu-
rus, Desd e sua ju ven t u d e, eu o t e n h o o b se r vad o e o que
vo cê d iz é a ve r d ad e q u e p o u co s co m p r e en d er ão . Para
m u it o s so m o s n ecessár io s, p o is est ar iam p er d id o s, se não
f o sse assim ; n o ssa au t o r id ad e salva o s t o lo s. So m o s os in­
t ér p r et es; t ive m o s n o ssas e xp er iên cias; n ó s sab em o s. A
t r ad ição é u m a p r o t e ção e são m u it o p o u co s aq u eles que .
p o d em se su st e n t ar so zin h o s e e n car ar a r ealid ad e nua e
cr u a. Vo cê est á en t r e o s ab e n ço ad o s, m as n ó s d evem o s
cam in h ar co m a m u lt id ão , can t ar su as can çõ es, r esp eit ar
o s n o m es sagr ad o s e e sp ar gir a águ a b en t a, o q u e não sig­
n if ica q u e so m o s in t eir am en t e h ip ó cr it as. Eles pr ecisam
de aju d a e n ó s est am o s aq u i p ar a o f e r ecê-la. E se m e é
p er m it id o p er gu n t ar , o q u e é a exp e r iê n cia d aq u ela r eali­
d ad e ab so lu t a?"
Os d iscíp u lo s ain d a est avam en t r an d o e sain d o , d e­
sin t e r e ssad o s da co n v e r sação e in d if er en t es ao am b ien ­
t e cir cu n d an t e e à b eleza da f lo r e da ár vo r e. Uns p o u co s
sen t avam so b r e o gr am ad o e e scu t avam , e sp e r an d o não
ser p e r t u r b ad o s. Um a p esso a cu lt a e r ef in ad a est á sem p r e
d esco n t en t e co m a su a cu lt u r a.
A r ealid ad e não é par a ser exp e r im e n t ad a. Não há um
cam in h o q u e leve at é ela n em um a p alavr a q u e p o ssa d i­
zer o q u e ela é; n ão é algo par a se r b u scad o e en co n t r ad o .
Pela b u sca, o q ue se en co n t r a é a co r r u p ção da m en t e. A

84
p alavr a ver d ad e n ão é a ver d ad e; a d escr ição n ão é o q u e
foi d escr it o .
| " Os n o sso s an ce st r ais nos f alar am d e su as e xp e r iê n ­
cias, de sua ilu m in ação na m ed it ação , d e sua su p r aco n s-
ciên cia e d e su a r ealid ad e sagr ad a. E se m e p er m it e p er ­
gunt ar, d evem o s d eixar t u d o isso d e lad o e t am b ém se u s
su b lim es exem p lo s?"
Q u alq u er au t o r id ad e em m ed it ação é a p r ó p r ia n ega-
fção do q u e ela é. To d o o co n h ecim en t o , os co n ceit o s e o s
exem p lo s n ad a t êm a ve r co m a m ed it ação . A co m p let a
■elim inação do m ed it ad o r , do e xp er im en t ad o r , do p e n sa­
dor é a p r ó p r ia essên cia da m ed it ação . Essa lib er d ad e é
a ação d iár ia da m ed it ação . O o b se r v ad o r é o p assad o ,
seu f u n d am e n t o é o t em p o , seu s p en sam en t o s, im agen s
e so m b r as est ão ap r isio n ad as no t em p o . O co n h e cim e n t o
é o t em p o e a lib er d ad e do co n h e cid o é o f lo r e scim e n t o
da m ed it ação . Não há um sist em a e, p o r t an t o , n ão há u m
cam in h o q u e leve à v er d ad e o u à b eleza da m ed it ação . Se ­
gu ir o o u t r o , o seu exem p lo e a su a p alavr a é o m esm o q u e
b an ir a v er d ad e. So m e n t e no esp elh o d o r e lacio n am e n t o
vo cê p o d e v e r a f ace d aq u ilo q u e é. O q u e vê é o q u e est á
sen d o v ist o . Sem a o r d em q u e a v ir t u d e cr ia a m e d it ação
e as in f in d áveis af ir m açõ e s d o s o u t r o s n ão f azem o m en o r
sen t id o e são co m p le t am e n t e ir r elevan t es. A v e r d ad e n ão
t em um a t r ad ição e n ão p o d e ser p assad a ad ian t e.
So b o so l, o ch eir o d as er vilh as d o ces er a m u it o f o r t e.

85
de outubro de 1973

O avião est ava ch eio e vo ávam o s su ave m e n t e a um a


ait u r a de t r in t a e set e mi! pés, O m ar ia f ican d o p ar a t r ás
ao n o s ap r o xim ar m o s da t er r a; bem ab aixo d e n ó s est ava
o m ar e a t er r a; o s p assageir o s n ão p ar avam d e f alar e de
b eb er e d e f icar f o lh ean d o r evist as; e d ep o is h aver ia o f il­
m e. Er a um gr u p o b ar u lh en t o q u e p r ecisava se r en t r et id o
e alim en t ad o ; d o r m ir am , r o n car am e segu r ar am as m ão s.
A t er r a lo go f ico u e n co b e r t a por m assas de n u ven s, d e h o ­
r izo n t e a h o r izo n t e, esp aço e p r o f u n d id ad e e o r u íd o das
co n ver sas. En t re a t er r a e o avião havia um t ap et e in f in it o
d e n u ven s b r an cas e acim a um céu d e um azul su ave. No
assen t o ao lad o da jan e la, vo cê est ava in t eir am en t e d es­
p er t o , o b se r van d o as n u ven s m u d ar em de f o r m a e a luz
b r an ca p air an d o so b r e elas.
A co n sciên cia t em p r o f u n d id ad e ou é ap en as um a
e xcit ação su p e r f icial? O p en sam en t o p o d e im agin ar su a
p r o f u n d id ad e, p o d e af ir m ar q u e t em p r o f u n d id ad e ou
ap en as co n sid e r ar as o n d u laçõ e s su p e r f iciais. Ter ia o p en ­
sam en t o q u alq u e r p r o f u n d id ad e? A co n sciên cia é f eit a do
seu p r ó p r io co n t eú d o ; o seu co n t e ú d o é t am b é m a sua
f r o n t e ir a. O p e n sam e n t o é a at ivid ad e do q u e é e xt e r io r
e em ce r t o s id io m as o t er m o p en sam en t o sign if ica o lad o
de f o r a. A im p o r t ân cia qu e é d ad a às cam ad as o cu lt as
da co n sciê n cia t am b é m é algo su p e r f icial, sem q u alq u er *

* Rom a.

86
p r o f u n d id ad e. O p e n sam e n t o p o d e cr iar p ar a si m esm o
um cen t r o , co m o o ego , o " eu" , e esse ce n t r o n ão t em
n enh u m a p r o f u n d id ad e; p alavr as n ão são p r o f u n d as, não
im p o r t an d o a m an eir a ast u cio sa o u su t il co m o são r eu n i-
vdas. O " eu " é u m a f ab r icação do p en sam en t o na p alavr a e
; ha id en t if icação ; o " eu" , b u scan d o se r p r o f u n d o na ação e
na exist ên cia, n ão t em q u alq u er sign if icad o ; t o d as as su as
f t en t at ivas p ar a e st ab e le ce r um r elacio n am en t o p r o f u n d o
f acab am na m u lt ip licação d e su as p r ó p r ias im agen s, cu jas
so m b r as ele co n sid er a p r o f u n d as. A s at ivid ad e s d o p en sa-
m ent o n ão t êm p r o f u n d id ad e; seu s p r azer es, seu s m ed o s
f é su as d o r es são su p e r f iciais. A p r ó p r ia p alavr a su p e r f ície
In d ica q u e há algu m a co isa ab aixo , um gr an d e vo lu m e de
; água ou algo m u it o r aso . Um a m en t e r asa o u u m a m en t e
■p r o f u n d a são p alavr as do p e n sam e n t o e o p en sam en t o é
sem p r e su p e r f icial. O vo lu m e p o r t r ás do p e n sam e n t o é a
: exp er iên cia, o co n h e cim en t o , a m em ó r ia, co isas q u e já se
f o r am , ap en as p ar a ser em r elem b r ad as, p ar a ser em co n ­
sid er ad as ou não.
Bem ab aixo d e n ó s, lá na d ist an t e t e r r a, um r io lar go
se est en d ia co m su as cu r v as am p las, p assan d o n o m eio
de f aze n d as e sp alh ad as e, nas est r ad as sin u o sas, f o r m igas
f er vilh avam . A s m o n t an h as est avam co b e r t as d e neve e
os v ale s v e r d e s en vo lt o s em so m b r as p r o f u n d as. O so! e s­
t ava b em à f r en t e e d escia no m ar q u an d o o avião p o u so u
nas e m an açõ es e r u íd o s d e um a cid ad e em exp an são .
Haver á u m a p r o f u n d id ad e p ar a a vid a, p ar a a e xist ê n ­
cia? Ser á q u e t o d o r elacio n am e n t o é su p e r f icial? Ser á o
p en sam en t o cap az d e d e sco b r ir isso? O p en sam en t o é
o ú n ico in st r u m en t o q u e o ser h u m an o t em cu lt ivad o e
ap r im o r ad o e q u an d o isso é n egad o co m o um m eio par a

87
co m p r e e n d e r a p r o f u n d id ad e da vid a, a m en t e enco n t r a ;
o u t r a saíd a ou t en t a en co n t r ar o u t r o s m eio s. Levar uma.;:
vid a f ú t il lo go se t o r n a algo can sat ivo , en f ad o n h o e sem !
sen t id o e, a p ar t ir d isso , su r ge a b u sca co n st an t e de pra-.:
zer, m ed o s, co n f lit o s e vio lên cia. Pe r ce b er o s f r agm en t o s
q u e o p en sam en t o p r o d u ziu e a at ivid ad e d esses f r agm e n ­
t o s em sua t o t alid ad e é f im do p en sam en t o . A p er cep ção
da t o t alid ad e só é p o ssível q u an d o o o b ser vad o r , que é
um d o s f r agm e n t o s d o p en sam en t o , n ão est á at ivo. En­
t ão , ação é r e lacio n am e n t o e n u n ca p r o d u z co n f lit o e so ­
f r im e n t o .
Só o silên cio t em p r o f u n d id ad e, assim co m o o am on
O silê n cio n ão é um m o vim en t o d o p en sam en t o nem o
am or . Só assim as p alavr as " p r o f u n d o " e " su p e r f icial" per­
d em o sen t id o . Não há m ed id as p ar a o am o r n em para o
silên cio . Só o t em p o e o p en sam en t o p o d em ser m edidos;
p en sam en t o é t em p o . A m ed id a é n ecessár ia, m as q u an d o
o p e n sam e n t o ap lica isso na ação e n o s r elacio n am en t o s,
en t ão a co n f u são e a d eso r d em co m eçam . A o r d em não é
m en su r ável, ap en as a d eso r d em é.
0 m ar e a casa e st avam sile n cio so s, assim co m o os
m o r r o s ao f u n d o e as f lo r e s d o cam p o na p r im aver a.

88
17 de outubro de 1973

O ver ão t in h a sid o q u en t e e seco , co m ch u vas o casio -


Inais; os gr am ad o s co m eçavam a f icar am ar f o n zad o s, m as
| ás ár vo r es alt as e d e f o lh agem d en sa est avam f elizes e as
f lor es f lo r e sciam . Po r m u it o s an o s, a t er r a n ão t in h a vist o
ium ver ão t ão q u en t e e o s f aze n d e ir o s est avam co n t en t es,
f fias cid ad es, as co n d içõ es er am t er r íveis, co m o ar p o lu íd o
. v . V í:

/ e o calo r nas r uas ap in h ad as. As cast an h e ir as já co m e ça-


| / am a f icar ligeir am en t e m ar r o n s e os p ar q u es est avam
cheios de p esso as co m cr ian ças a co r r e r e a gr it ar p o r t o d a
part e. No cam p o , t u d o er a m u it o b elo ; h avia sem p r e p az
V !

ha t er r a e o r io p eq u en o e est r eit o , f r e q u e n t ad o p o r cisn es


iê pat os, era u m a f o n t e de en can t am en t o . O r o m an t ism o e
6 sen t im en t alism o e st avam cu id ad o sam e n t e e n ce r r ad o s
;nas cid ad es e, aq u i, no in t er io r d o cam p o , co m su as ár vo ­
res, p r ad o s e r egat o s, h avia b eleza e d eleit e. Havia um a
est rada q u e at r avessava um b o sq u e salp icad o de so m b r as
;e cad a f o lh a su st en t ava aq u ela b eleza, q u e t am b é m e st a­
va em cad a f o lh a cad en t e e lâm in a de gr am a. Beleza n ão
é um a p alavr a nem u m a r eação em o cio n al; n ão é su ave,
[hem é p ar a se r d ist o r cid a ou m o ld ad a p elo p en sam en t o .
% i a n d o a b eleza est á p r esen t e, t o d o m o vim en t o e ação ,
em q u alq u e r f o r m a de r elacio n am en t o , é in t eir o , sad io
p san t o . Q u an d o a b eleza, o am o r, n ão exist e, o m u n d o
en lo u q u ece. *

* Krishna m urt i ficou em Rom a até o dia 29 de out ubro.

89
Na p eq u en a t ela, o p r egad o r , co m p alavr as e gest os:
cu id ad o sam e n t e cu lt ivad o s, d izia q u e sab ia que o seu
salvad o r , o ú n ico salvad o r , e st ava vivo . Se ele n ão est i­
ve sse vivo , n ão h aver ia e sp er an ça p ar a o m u n d o . A form ai
agr e ssiva co m o gest icu lava, af ast ava q u aisq u e r d ú vid as e:
in d agaçõ es, u m a vez q u e ele sab ia q u e vo cê d ever ia at en­
t ar p ar a o q u e ele sab ia, p o is o co n h e cim e n t o d ele é o seu
co n h e cim e n t o e a su a co n vicção . O m o vim en t o calcu lad o
de seu s b r aço s e a p alavr a in f lam ad a er am a su b st ân cia
e o e n co r ajam e n t o p ar a sua au d iên cia, co m p o st a de jo ­
ven s e velh o s, q u e est ava ali b o q u iab e r t a, en f eit içad a e
em ad o r ação às im agen s d e su as p r ó p r ias m en t es. Um a
gu er r a acab ar a d e co m e çar e n em o p r e gad o r nem a sua
gr an d e au d iên cia se im p o r t avam co m isso , p o is as guer r as
d evem co n t in u ar , além d e ser algo q u e f az p ar t e da cult u­
ra d e t o d o s eles.
M ais t ar d e, na m esm a t ela, m o st r ar am o qu e os cien ­
t ist as est avam f azen d o , su as m ar avilh o sas in ven çõ es, seu
e xt r ao r d in ár io co n t r o le do esp aço , o m u n d o do am anh ã e
m áq u in as n o vas e co m p lexas; as e xp licaçõ e s de co m o as
célu las se f o r m am , o s e xp e r im e n t o s co m an im ais, ver m es
e m o scas. O est u d o d o co m p o r t am e n t o d o s an im ais foi di­
ver t id a e cu id ad o sam e n t e exp licad o . Co m esse est u d o os
acad ê m ico s p o d er ão e n t en d er m elh o r o co m p o r t am en t o
h u m an o . Os r esq u ício s d e um a an t iga cu lt u r a f o r am ex­
p licad o s; as e scav açõ e s, o s v aso s cer âm ico s, o s m osaicos
cu id ad o sam e n t e p r e se r vad o s e as p ar ed es em ruínas; c
m ar avilh o so t e m p o d o p assad o , seu s t em p lo s, su as gló ­
r ias. M u it o s e m u it o s vo lu m e s já f o r am escr it o s so b r e as
r iq u ezas, as p in t u r as, a cr u e ld ad e e as gr an d ezas do pas­
sad o , se u s r eis e se u s escr avo s.

90
Um p o u co m ais t ar d e, f o i m o st r ad a a gu er r a r eal e d e-
vast a d ora no d e se r t o e en t r e m o r r o s co b e r t o s d e m at a,
os t an q u es im en so s e j at o s vo an d o b aixo , o b ar u lh o e a
m at ança calcu lad a; e o s p o lít ico s f alan d o d e paz, m as e n ­
co r ajan d o a gu er r a em t o d as as p ar t es da t er r a; m o st r a-
ram m u lh er es q u e ch o r avam e o d esesp er o d o s f er id o s,
cr ian ças ace n an d o co m b an d eir as e sace r d o t e s en t o an d o
b ên ção s.
As lágr im as da h u m an id ad e n ão lavar am o d esejo h u -
m ano de m at ar . N en h u m a r eligião f o i cap az d e acab ar com
já gu er r a; ao co n t r ár io , t o d as elas t êm en co r ajad o a gu er r a
e ab en ço ad o o s seu s ar m am en t o s; elas cr iar am a d ivisão
nas p esso as. Go ver n o s se iso lam e p r ezam esse iso lam e n ­
t o . Cien t ist as são ap o iad o s p o r go ver n o s. O p r e gad o r est á
p er d id o em su as p alavr as e im agen s.
Vo cê ch o r ar á, m as ed u car á seu s f ilh o s p ar a m at ar e se ­
rem m o r t o s. Vo cê aceit ar á isso co m o u m a f o r m a d e viver ;
o seu co m p r o m isso é co m a su a p r ó p r ia se gu r an ça; est a
é o seu d eu s e o seu so f r im en t o . Vo cê cu id a t ão b em d o s
seus f ilh o s, t ão gen er o sa m en t e, m as em segu id a, vo cê se
vê t ão e n t u siast icam e n t e q u e r e n d o q u e eles sejam m o r ­
t os. Na t ela, eles m o st r ar am b eb ês f o cas, co m o lh o s en o r ­
m es, sen d o m o r t o s.
A f u n ção d a cu lt u r a é t r an sf o r m ar o se r h u m an o co m ­
p let am en t e.
Ao lo n go d o r io , p at o s m an d ar in s p er segu iam u n s ao s
o u t r o s e sp ar r am an d o águ a, e as so m b r as d as ár v o r e s se
r ef let iam na águ a.

9)
Há um a lo n ga o r ação pela paz em sân scr it o . Ela foi
escr it a há m u it o s e m u it o s an o s at r ás, p o r algu ém para
q u em a p az era u m a ab so lu t a n e cessid ad e e, t alvez, a
sua vid a co t id ian a e st iv e sse en r aizad a n isso . Ela foi escr i­
t a an t es do t r aiço e ir o ven en o do n acio n alism o , d o p oder
im o r t al do d in h eir o e da in sist ên cia no m u n d an ism o que
a in d u st r ialização da vid a p r o d u ziu . A o r ação se vo lt a para
a p az d u r ad o u r a:

Que haja paz entre os deuses, no céu e através das es­


treias; que haja paz na terra, entre os seres humanos e os
de quatro patas; que não magoemos uns aos outros; que
sejamos generosos uns com os outros; que expressemos a
inteligência que guiará nossas vidas e nossas ações; que
haja paz na nossa oração, nos nossos lábios e no nosso
coração.

N essa paz, não se m en cio n a a in d ivid u alid ad e; isso só


aco n t eceu t em p o s d ep o is. Ago r a t u d o se r ef er e a n ó s m es­
m o s- n o ssa p az, n o ssa in t eligên cia, n o sso co n h ecim en t o ,
n o ssa ilu m in ação . Os so n s d o s cân t ico s em sân scr it o p ar e­
cem cr iar um ef eit o est r an h o . Num t em p lo , u n s cin q u en t a
sace r d o t e s can t avam em sân scr it o e dava a im p r essão de
q ue as p ar ed es vib r avam .
Há um a t r ilh a q ue at r avessa o cam p o ver d e e b r ilh an ­
t e, le van d o a um b o sq u e ilu m in ad o p elo sol e par a além

92
dele. Rar am en t e algu ém visit a essa ár ea d e b o sq u e p er ­
m ead a de luz e so m b r as. É um lu gar ch eio d e paz, sile n cio ­
so e iso lad o . Há esq u ilo s e, o casio n alm en t e, um vead o a
d b ser var co m cau t ela e lo go d esap ar ece r ; so b r e um galh o ,
os esq u ilo s o b se r vam vo cê e, às vezes, r eclam am . Esse
bosque t em o p e r f u m e d o ver ão e o ch eir o da t e r r a ú m i-
dà. Há ár vo r es im en sas, velh as e co b e r t as d e m u sgo s; elas
dão as b o as vin d as à vo cê e vo cê sen t e a t er n u r a de su a
acolhida. Cad a v e z q u e v o cê se se n t a ali, o lh a p ar a o alt o
at r avés d as f o lh as e galh o s, p ar a o céu m ar avilh o sam e n t e
azul, aq u ela p az e aco lh im en t o est ão ali agu ar d an d o vo cê.
Você en t r o u n essa f lo r e st a co m o u t r as p esso as, m as h avia
in d if er en ça e silên cio ; as p esso as est avam co n ver san d o ,
d e sin t e r e ssad as e ign o r an d o a gr an d e za e d ign id ad e d as
ár vo res; elas n ão t in h am q u alq u e r t ip o de r e lacio n am e n t o
t om as ár vo r e s e, p r o vavelm en t e, n en h u m r e lacio n am e n ­
to um as co m as o u t r as. O r elacio n am en t o en t r e as ár vo r e s
e vo cê era co m p let o e im ed iat o ; elas e v o cê er am am igo s
è, sen d o assim , vo cê era am igo d e cad a ár vo r e, ar b u st o e
f lor so b r e a t er r a. Vo cê n ão est ava ali p ar a d e st r u ir e h avia
paz en t r e as ár vo r e s e vo cê.
A paz n ão é um in t er valo en t r e o f im e o co m eço de um
co n flit o , d e u m a dor, d e um so f r im en t o . N ão há go ve r n o
que p o ssa p r o m o ve r a paz; a paz vin d a d aí é a da co r r u p ­
ção e da d e cad ê n cia; a o r d em da lei q u e go ver n a um p o vo
gera a d e ge n e r ação , p o is n ão est á p r eo cu p ad a co m t o d as
às p esso as da t er r a. Tir an ias n u n ca p o d em m an t er a paz,
pois elas d est r o em a lib er d ad e: p az e lib er d ad e est ão j u n ­
t as. M at ar o o u t r o pela p az é a e st u p id e z d as id eo lo gias.
Você n ão p o d e co m p r ar a paz; ela n ão é a in ven ção de um
in t elect o ; n ão é algo a ser co m p r ad o co m o r açõ e s ou p o r

93
in t er m éd io d e b ar gan h as. A p az n ão est á em um edifício
sagr ad o , n em em u m livr o , n em em u m a p esso a. Ninguém
p o d e levar vo cê at é ela, n em gu r u , n em sacer d o t e, nem
sím b o lo .
Na m ed it ação ela est á. M ed it ação , em essên cia, é o
m o vim en t o d a paz. Não é um f im a se r alcan çad o ; não é
cr iad a p elo p e n sam e n t o ou p ela p alavr a. A ação da m e­
d it ação é in t eligên cia. M ed it ação n ão é n en h u m a dessas
co isas q u e v o cê f o i en sin ad o , n em q u e t en h a e xp er im en ­
t ad o . A b an d o n ar o q u e vo cê ap r en d e u o u exp er im en t o u
é m ed it ação . Est ar livr e do e xp e r im e n t ad o r é m ed it ação .
Q u an d o n ão há p az n o r elacio n ar -se, n ão há p az na m edi­
t ação ; é u m a f u ga p ar a a ilu são e p ar a q u im e r as im agin a­
t ivas. M ed it ação n ão p o d e se r d e m o n st r ad a ou d escr it a.
Vo cê n ão j u lga a paz. Vo cê p o d e se d ar co n t a dela se ela
est á ali, em m eio as su as at ivid ad e s co t id ian as, na ordem
e na v ir t u d e de sua vid a.
N u ven s p esad as e a n eb lin a est avam p r esen t es n aq u e­
la m an h ã; vai ch o ver . Vár io s d ias se p assar am at é que foi
p o ssível ve r o sol o u t r a vez. M as q u an d o vo cê vo lt o u ao
b o sq u e, em n ad a d im in u ír a a paz e as b o as vin d as. Havia
um a q u iet u d e ab so lu t a e u m a paz in co m p r een sível. Os es­
q u ilo s est avam esco n d id o s e o s gr ilo s est avam silen cio so s
n o s cam p o s e, para além d o s m o r r o s e vaies, est ava o m ar
agit ad o .

94
19 de outubro de 1973

O b o sq u e p er m an ecia ad o r m e cid o . O cam in h o sin u o so


cjüe 0 at r avessava est ava escu r o . Nad a se m ovia; 0 lo n go
cr ep ú scu lo co m e çava a d e sap ar e ce r e o silen cio da no it e
cobria a t er r a. O m u r m ú r io do r egat o , t ão in sist en t e d u ­
rant e o d ia, aceit ava a vin d a da n o it e e sua q u iet u d e. A t r a­
vés d as p eq u en as ab e r t u r as en t r e as f o lh as d as ár vo r e s,
yiam -se as e st r e las, b r ilh an t es e m u it o p r ó xim as. A e scu ­
ridão da n o it e é t ão n ecessár ia q u an t o a lu z do d ia. As ár -
vor es aco lh e d o r as ago r a e st avam r eco lh id as e d ist an t es;
(est avam p o r t o d a p ar t e, m as iso lad as e in ab o r d áveis; elas
: d o r m iam e n ão d eviam ser p e r t u r b ad as. N essa e scu r id ão
silen cio sa h avia cr e scim e n t o e f lo r e scim e n t o , um a r eu n ião
1de f o r ças p ar a ir ao en co n t r o d e um dia vib r an t e. A n o it e e
0 dia são e ssen ciais; am b o s d ão vid a e en er gia p ar a t o d o s
os ser es v iv o s. O se r h u m an o é 0 ú n ico a d e sp e r d içar isso .
O so n o é m u it o im p o r t an t e , u m so n o sem m u it o s so ­
n hos e sem m u it a agit ação . Q u an d o se d o r m e, m u it as
co isas aco n t e ce m , n ão só no co r p o f ísico , m as no cér eb r o
t am b ém , a m en t e é o cér eb r o ; eles são um só , um m o v i­
m ent o u n it ár io . O so n o é ab so lu t am en t e n ecessár io par a
t oda essa e st r u t u r a. Du r an t e o so n o , o r d em , aju st e s e p er ­
cep çõ es p r o f u n d as aco n t ecem ; q u an t o m ais sile n cio sa é a
co n d ição d o cé r eb r o , m ais p r o f u n d as são as p er cep çõ es.
0 cér eb r o p r ecisa d e se gu r an ça e o r d em p ar a f u n cio n ar
h ar m o n io sam en t e, sem r esist ên cia. A n o it e o f er ece isso
e, d u r an t e o so n o calm o e p r o f u n d o , aco n t ecem e st ad o s

95
e m o vim en t o s q u e o p en sam en t o j am ais p o d er á alcançar,
So n h o s são p e r t u r b açõ e s; eles d ist o r cem a p er cep ção t o ­
t al. A m en t e se r eju ven e sce d u r an t e o so n o .
Co n t u d o , t alve z vo cê d iga q u e o s so n h o s são n eces­
sár io s; q u e se vo cê n ão so n h a, en lo u q u ece; q u e eles são
ú t eis, r eve lad o r es. Há so n h o s su p e r f iciais e sem q u alq u er
sen t id o ; há so n h o s sign if icat ivo s e exist e o est ad o sem so ­
n h o s. So n h o s são a e xp r e ssão d e n o ssa vid a d iár ia em di­
f er e n t es f o r m as e sím b o lo s. Se n ão h o u ver h ar m o n ia e or­
d em em n o ssa vid a d iár ia e n o s r elacio n am en t o s, en t ão os
so n h o s são co n t in u ação d essa d e so r d e m . Du r an t e o so no ,
o cé r eb r o t en t a e n co n t r ar u m a o r d em p ar a essa co n f u sa
co n t r ad ição . N esse lut a co n st an t e en t r e o r d em e d eso r ­
d em , o cé r eb r o se d esgast a. M as ele p r ecisa de segu r an ça
e o r d e m p ar a p o d e r f u n cio n ar e, p o r t an t o , cr en ças, id e­
o lo gias e o u t r o s co n ce it o s n eu r ó t ico s se t o r n am n eces­
sár io s. Tr an sf o r m ar a n o it e em dia é um d esses h áb it o s
n eu r ó t ico s; as f u t ilid ad e s p r esen t es no m u n d o m o d er n o
d ep o is d o cair da n o it e são f u gas d e d ias de r o t in a e t édio.
A p er cep ção t o t al da d eso r d em no r elacio n am en t o ,
t an t o n o n ível p r ivad o q u an t o p ú b lico , na p r o xim id ad e ou
na d ist ân cia, a p e r ce p ção do q u e é, sem q u alq u e r esco lh a,
d u r an t e as h o r as co n scie n t e s d o d ia, cr ia o r d em a par t ir
da d eso r d em . Desse m o d o , o cé r e b r o n ão p r ecisa b u scar
o r d em d u r an t e o so n o . En t ão o s so n h o s são ap en as su p er ­
f iciais e sem n en h u m sign if icad o . Q u an d o a d ivisão ent re
o b se r v ad o r e o b se r vad o cessa co m p le t am e n t e , a o r dem
aco n t ece, na t o t alid ad e d a co n sciê n cia e n ão ap en as no
n ível co n scie n t e . O q u e é, é t r an sce n d id o q u an d o o o b ser ­
vad o r , q u e é o p assad o , q u e é o t em p o , d eixa d e exist ir . 0

96
p r esen t e at ivo , o q u e é, n ão est á ap r isio n ad o no t em p o
com o o o b se r v ad o r est á.
So m e n t e q u an d o a m en t e, o cér eb r o e o o r gan ism o ,
exp er im en t a essa o r d em t o t al d u r an t e o so n o exist e a
p er cep ção d esse e st ad o sem p alavr as, d esse m o vim en t o
i at em p o r al. isso .não é um so n h o f an t asio so nem a ab st r a­
ção d e u m a f u ga. É a p r ó p r ia essên cia da m ed it ação . Ou
seja, o cé r e b r o est á sem p r e at ivo , aco r d ad o o u d u r an t e o
ii sono; co n t u d o , o co n st an t e co n f lit o en t r e o r d em e d eso r -
í dem exau r e o cér eb r o . Or d em é a f o r m a m ais elevad a d e
ívir t u d e, d e sen sib ilid ad e, d e in t eligên cia. Q u an d o exist e
■essa gr an d e b eleza da o r d em , a h ar m o n ia, o cér eb r o n ão
fica in ce ssan t e m e n t e at ivo ; cer t a p ar t e d ele p r ecisa car ­
r egar o p eso da m em ó r ia, m as essa é um a p ar t e m u it o
p eq u en a; o r est o do cér eb r o f ica livr e dos r u íd o s da e xp e ­
r iên cia. Essa lib er d ad e é a o r d em , a h ar m o n ia d o silên cio .
Essa lib er d ad e e o s r u íd o s da m em ó r ia se m o vem ju n t o s;
in t eligên cia é a ação d esse m o vim en t o . M ed it ação é a li­
b er d ad e d o co n h e cid o , em b o r a o p e r an d o no cam p o d o
co n h ecid o . N ão há " eu " co m o o p er ad o r . Du r an t e o so n o
ou na vigília, a m ed it ação p er m an ece.
Vagar o sam en t e, a t r ilh a f oi d eixan d o o b o sq u e para
t rás e, d e h o r izo n t e a h o r izo n t e, o f ir m am en t o est ava
ch eio de e st r e las. N o s cam p o s, n ad a se m o via.

97
, : ' 20 de outubro de 1973

É o se r vivo m ais an t igo na t e r r a. Gigan t esco na p r o ­


p o r ção , na alt u r a e no vast o t r o n co . En t r e as o u t r as se-
q u o ias, q u e t am b ém er am an t igas, essa se d est acava pela
sua alt u r a; as o u t r as ár vo r e s t in h am sid o t o cad as pelo
f o go , m as essa n ão t in h a q u alq u er m ar ca. Ela t in h a p as­
sad o p o r t o d as as co isas f eias da h ist ó r ia, t o d as as gu er r as
do m u n d o , t o d as as t r ap aças e so f r im en t o s h u m an o s, pelo
f o go e p o r r elâm p ago s, t o d as as t e m p e st ad e s do t em p o ,
in có lu m e, m ajest o sa, ab so lu t am e n t e só e co m u m a d ig­
n id ad e e xt r ao r d in ár ia. In cên d io s t er iam o co r r id o , m as a
casca d e ssas seq u o ias er a cap az d e r esist ir ao f o go e so ­
b r eviver , Os t u r ist as b ar u lh en t o s ain d a n ão h aviam ch ega­
d o e vo cê p o d ia f icar so zin h o co m essa gr an d e e silen cio sa
ár vo r e; a seq u o ia ele vava-se ao s céu s, im en sa e et er na,
en q u an t o v o cê se sen t ava so b ela. Os seu s m u it o s an o s lhe
co n ced er am a d ign id ad e do silen cio e o d ist an ciam en t o
q u e veio co m as er as. Tão silen cio sa q u an t o a sua m en t e,
t ão calm a q u an t o o seu co r ação e vive n d o sem o p eso do
t em p o . Vo cê est ava at en t o p ar a a co m p aixão jam ais t o ­
cad a p elo t e m p o e p ar a a in o cên cia q u e n u n ca co n h eceu
o so f r im e n t o e a t r ist e za. Aii sen t ad o , o t e m p o d e sap ar e ­
ceu e n ão vo lt o u n u n ca m ais. Só h avia im o r t alid ad e, p o is a
m o r t e n u n ca exist ir a. Nada exist ia a não ser aq u ela ár vo r e
im en sa, as n u ven s e a t e r r a. Vo cê f o i ao en co n t r o d aq u ela
ár vo r e, se sen t o u co m ela d iar iam en t e e, cad a dia, d u r an ­
t e m u it o s d ias, ela er a u m a b e n d ição q u e vo cê só se dava

98
Ip n t a q u an d o se af ast ava dali. Vo cê n u n ca p o d er ia vo lt ar
a li p ed in d o p o r mais,, n u n ca exist iu o m ais; o m ais est ava
no vale ab aixo e além . E p o r q u e n ão er a um san t u ár io f e i­
t o pela m ão d o h o m em , h avia um a sacr alid ad e in so n d ável
p e jam ais o ab an d o n ar ia, po is não lhe p er t en cia.
|| De m an h ã b em ced in h o , q u an d o o sol ain d a n ão t o ­
cava o t o p o d as ár vo r es, o ve ad o e o u r so e st avam ali;
p b se r vam o -n o s m u t u am en t e, d e o lh o s b em ab e r t o s e in-
Hagat ivos; a t e r r a er a n o sso b em co m u m e o m ed o est ava
ausent e. Os gaio s azu is e os esq u ilo s ver m elh o s lo go ch e ­
gariam ; o esq u ilo er a m an so e am igável; vo cê t in h a n o zes
fios b o lso s e o esq u ilo ia p e gá-las em sua m ão ; q u an d o o
êsq uilo j á t in h a co m id o o su f icien t e, o s d o is gaio s d esciam
dos galh o s e a gr it ar ia se en cer r ava. Co m eço u o dia.
No m u n d o do pr azer, a sen su alid ad e se t o r n o u um a
geoisa m u it o im p o r t an t e . O sab o r p r ed o m in a e lo go o há-
f bit o d o p r azer assu m e o co n t r o le; ap e sar d e cau sar d an o s
| §o o r gan ism o , o p r aze r d o m in a. O p r azer d o s se n t id o s,
gdo p en sam en t o ast u t o e su t il, d as p alavr as, d as im agen s
da m ão e da m en t e é a cu lt u r a da ed u cação , o p r aze r da
vio lên cia e o p r azer d o sexo . O ser h u m an o é m o ld ad o na
form a d o p r azer e t o d a a e xist ên cia, r eligio sa ou o u t r a
qualquer , é a b u sca d e p r azer . Os exage r o s d e se n f r e ad o s
do p r azer são o r esu lt ad o d e um co n f o r m ism o m o r ai e in ­
t elect u al. Qu an d o a m en t e n ão é livr e n em d esp er t a, en ­
t ão a sen su alid ad e se t r an sf o r m a n u m f at o r de co r r u p ção
e isso é o q u e v e m o s no m u n d o co n t e m p o r ân e o . O p r azer
do d in h eir o e d o sexo p r ed o m in a. Qu an d o o ser h u m a­
no se t r an sf o r m a n u m a e n t id ad e d e se gu n d a m ão, a ex­
pressão da se n su alid ad e é a su a lib er d ad e. En t ão o am o r
é d esejo e p razer. O e n t r et en im en t o o r gan izad o , seja ele

99
r eligio so o u co m er cial, t r ab alh a p ar a a im o r alid ad e pesso^
al e so cial; vo cê d eixa de se r r esp o n sável. Resp o n d er co m
in t eir eza a q u alq u e r d esaf io é se r r esp o n sável e co m p le­
t am e n t e co m p r o m e t id o . Isso n ão aco n t ece q u an d o a p r ó ­
pr ia essên cia d o p en sam en t o é f r agm e n t ação e a b u sca do.
p razer , em t o d as as su as f o r m as su t is e ó b vias, é o p r in ci­
p al m o vim e n t o da exist ên cia. Pr azer n ão é alegr ia; alegria
e p r azer são co isas co m p le t am e n t e d if er en t es; u m a chega
sem ser co n vid ad a, a o u t r a é cu lt ivad a, n u t r id a; u m a se f a 2
p r esen t e q u an d o n ão há um " eu" , a o u t r a é p r isio n eir a do
t em p o ; o n d e u m a est á a o u t r a não est á. O pr azer , o m edo
e a vio lên cia an d am ju n t o s; são co m p an h e ir o s insepará^
veis. A p r e n d e r co m a o b se r vação é ação , f aze r é ver.
Ao en t ar d ecer , q u an d o a escu r id ão est ava se ap r o xi­
m an d o , o s gaio s e os e sq u ilo s t in h am id o d o r m ir . A est rela
v e sp e r t in a acab ava de se t o r n ar visíve l e o s r u íd o s d o dia e
d as m em ó r ias t in h am ch e gad o ao f im . A s seq u o ias gigan ­
t es e st avam im ó veis. Elas co n t in u ar ão exist in d o além do
t e m p o . Só o ser h u m an o m o r r e e a t r ist e za d isso .

100
21 de outubro de 1973

Era um a n o it e sem lua e o Cr u zeir o do Su l r elu zia so b r e


fãs p alm eir as. Ain d a levar ia m u it o t e m p o p ar a o sol ap ar e-
cer; na q u iet u d e d aq u ela escu r id ão , as e st r e las est avam
m uit o p r ó xim as da t er r a e f aiscavam um in t en so b r ilh o ;
Ip en et r an t em cn t e azu is, elas n asciam do rio. O Cr u ze ir o do
'! ■■

Sul est ava so zin h o e sem est r elas à sua vo lt a. N ão h avia


brisa e a t er r a p ar ecia t er p ar ad o , esgo t ad a p elas at iv id a­
d es h u m an as. Dep o is d as ch u vas p esad as, a m an h ã ser ia
im ar avilh o sa, p o is n ão h avia n u ven s no h o r izo n t e. Or io n
já t in h a d e sap ar e cid o e a est r ela m at u t in a já ap o n t ava no
h o rizo n t e d ist an t e. No b o sq u e, sap o s co axavam n u m a la-
fgoa p r ó xim a, f icavam q u iet o s p o r in st an t es e en t ão d es-
fjpert avam p ar a co m e çar t u d o o u t r a vez. O ch eir o d e j as-
m im p air ava f o r t e n o ar e h avia um can t o d ist an t e. M as
fàquela h o r a, h avia u m silên cio d e t ir ar o f ô le go e su a t en r a
(beleza est ava p r esen t e na t e r r a. M ed it ação é o m o v im e n -
ftô d esse silên cio .
No j ar d im m u r ad o , os r u íd o s do dia co m e çar am . O
| bebê est ava sen d o b an h ad o e cu id ad o sam e n t e u n t ad o ,
■■ii
um ó leo esp ecial p ar a a cab eça e o u t r o p ar a o r est o do
Icòrpo; cad a um t in h a a su a p r ó p r ia f r agr ân cia e am b o s
»est avam levem en t e aq u ecid o s. O b eb ê ad o r ava isso , p o is
l i r u l h a v a d e sat isf ação p ar a si m esm o e seu co r p in h o r o ­
bust o b r ilh ava pela u n ção d o s ó leo s. Em segu id a, a lim p e-
t p co n t in u ava co m a ap licação d e um t alco e sp e cialm e n t e
p er f u m ad o . Em n en h u m m o m en t o o b eb ê ch o r o u , p o is
p ar ecia h aver m u it o am o r e car in h o . Dep o is de seq u in h o ,
e[le f o i t e r n am e n t e e n r o lad o n u m p an o b r an co e lim po,
alim e n t ad o e co lo cad o na cam a o n d e im ed iat am en t e dor-:
m iu . Ele cr escer ia e ser ia ed u cad o , t r e in ad o p ar a t r ab a­
lhar, p ar a ace it ar as t r ad içõ es, as n o vas e as velh as cr en ­
ças, p ar a t er f ilh o s, su p o r t ar o so f r im e n t o e o r iso da dor.
Um dia, a m ãe se ap r o xim o u e p er gu n t o u : " O q u e é o
am o r ? É o cu id ad o , é co n f ian ça, é r esp o n sab ilid ad e, é o
p r aze r en t r e u m h o m em e u m a m u lh er ? É a d o r do apego
e d a so lid ão ?"
Vo cê est á cr ian d o o seu f ilh o co m t an t o cu id ad o , com í
u m a en er gia in can sável, o f e r ecen d o a sua vid a e o seu
t e m p o . Vo cê se sen t e, t alve z sem sab er , r esp o n sável. Você
o am a. Co n t u d o , o ef eit o r ed u cio n ist a da ed u cação irá co ­
m e çar e vai f aze r co m q u e seu f ilh o se co n f o r m e co m pu­
n ição e r eco m p en sa, p ar a se e n caixar na est r u t u r a social.
Ed u cação é o m o d o aceit o p ar a se co n d icio n ar a m ent e.
Par a q u e so m o s ed u cad o s? Par a t r ab alh ar in cessan t e­
m en t e e d ep o is m o r r er ? Vo cê cu id o u d ele co m car in h o e
af eição ; su a r esp o n sab ilid ad e t er m in a q u an d o co m eça a
e d u cação ? É o am o r q u e vai en viá-lo p ar a a gu er r a e para
se r m o r t o , d ep o is d e t o d o aq u ele cu id ad o e ge n e r o sid a -;
d e? Su a r e sp o n sab ilid ad e n u n ca acab a, o q u e n ão sign if i­
ca in t er f er ên cia. Lib er d ad e é t o t al r esp o n sab ilid ad e, naq
ap en as p elo s seu s f ilh o s, m as p o r t o d o s o s f ilh o s do m un­
do. É am o r o ap ego e seu so f r im en t o ? O ap ego ger a dor,;í
in veja e ó d io . 0 ap ego se d e sen vo lve a p ar t ir d e nossas:
p r ó p r ias f u t ilid ad e s, car ên cias e iso lam en t o . O ap ego nos
dá a se n sação d e p e r t e n cim e n t o , d e id e n t if icação com
algu m a co isa; d á-n o s um se n t id o d e r ealid ad e, de sen
Qu an d o t u d o isso é am eaçad o , su r ge o m ed o , o ódio, a
in veja. Ser á t u d o isso am o r ? Do r e so f r im e n t o é am o r ? O
p r azer sen so r ial é am o r ? M u it o s ser es h u m an o s r azo av e l­
m en t e in t elige n t es sab em m u it o bem d isso e n ão é algo
assim t ão co m p licad o . M as eles n ão ab r em m ão d isso ;
eles t r an sf o r m am esses f at o s em id eias e f icam lu t an d o
co m co n ceit o s ab st r at o s. Eles p r ef er em viver em ab st r a­
çõ es do q ue na r ealid ad e, no q u e é.
Na n egação do q u e n ão é o am or , o am o r é. Não t en h a
m ed o da p alavr a n egação . N egu e t u d o q u e n ão é am o r e,
en t ão , o q ue é, é co m p aixão . Aq u ilo qu e vo cê é im p o r t a
d em ais, p o is vo cê é o m u n d o e o m u n d o é vo cê. Ist o é
co m p aixão .
Len t am en t e, a m ad r u gad a ia ch egan d o ; no h o r izo n t e
o r ien t al um a lu m in o sid ad e f r aca ia ap ar ecen d o e se e s­
p alh an d o , f aze n d o co m q u e o Cr u zeir o d o Su l f o sse d e sa­
p ar ecen d o . A s ár v o r e s assu m iam a sua f o r m a, o s sap o s se
calar am e a est r ela m at u t in a ia se p er d en d o no e n gr an ­
d e cim e n t o da luz, p o is um n o vo dia co m eçava. Os v o o s
dos co r vo s e as vo zes h u m an as t in h am co m eçad o , m as as
b ên ção s d aq u ela f r esca m an h ã ain d a e st avam p o r ali.

ir* r>
22 de outubro de 1973

No p eq u en o b ar co , f lu in d o co m a co r r en t eza su ave
d o rio, o h o r izo n t e er a visível d e n o r t e a sui e d e lest e a
o est e; n ão h avia um a casa o u ár vo r e q u e in t er r o m p esse a
lin h a d o h o r izo n t e; n em m esm o u m a n u vem a f lu t u ar . As
m ar gen s er am p lan as, alo n gan d o -se e aco lh en d o o vast o
r io em seu p er cu r so . Havia o u t r o s b ar co s m en o r es, com
p e scad o r e s aco n ch e gad o s em um d o s lad o s, su as r ed es
lan çad as; e sse s h o m en s er am e xt r e m am e n t e p acien t es. 0
céu e a t er r a se en co n t r avam e o esp aço er a im en so . N es­
se esp aço im en su r ável, a t er r a e t o d as as co isas t in h am
sua exist ê n cia, at é m esm o esse p eq u en o b ar co sen d o le­
vad o pela f o r t e co r r en t eza. Ao lo n go d e u m a cu r va do rio,
os h o r izo n t es, im en su r áveis e in f in it o s, se e xp an d iam par a
além d e o n d e o s o lh o s p o d iam ver. O esp aço f ico u in es­
go t ável. É p r eciso exist ir um esp aço assim p ar a a b eleza e
a co m p aixão . Tu d o t em q u e t e r um esp aço , o s vivo s e os
m o r t o s, a p ed r a so b r e o m o r r o e o p ássar o em seu voo,
Qu an d o n ão há esp aço , há m o r t e. Os p e scad o r e s can t a­
vam e o so m d e su as can çõ e s d escia j u n t o co m o rio. O
so m p r ecisa d e esp aço . O so m de um a p alavr a p r ecisa de
esp aço ; a p alavr a cr ia seu p r ó p r io esp aço , q u an d o co r r e ­
t am en t e p r o n u n ciad a; o rio e a ár vo r e d ist an t e só p o d em
so b r e vive r q u an d o t êm esp aço ; sem esp aço t o d as as co i­
sas d ef in h am . O rio d e sap ar e ce u no h o r izo n t e e os p esca­
d o r es est avam in d o par a t er r a f ir m e. A escu r id ão p r o f u n ­
da d a n o it e est ava ch egan d o , a t e r r a r ep o u sava d ep o is de
t im dia can sat ivo e as est r elas se r ef let iam so b r e as águ as.
0 vast o esp aço f oi se est r eit an d o p ar a d en t r o d e u m a casa
p eq uen a e co m m u it as p ar ed es. At é m esm o o s gr an d es
p alácio s p o ssu em p ar ed es q u e se f ech am à im en sid ão do
ièspaço, t r an sf o r m an d o -o em sua p r o p r ied ad e .
Um a p in t u r a d eve t er esp aço d en t r o d e si, m esm o
i q u an do é em o ld u r ad a. Um a est át u a só p o d e e xist ir no es­
paço; a m ú sica cr ia o esp aço que p r ecisa; o so m d e um a
palavra não só cr ia esp aço : ele p r ecisa de esp aço p ar a se r
escu t ad o , O p en sam en t o p o d e im agin ar a d ist ân cia en t r e
dois p o n t o s, a d ist ân cia e a m ed id a; o in t e r valo en t r e d o is
p en sam en t o s é o esp aço q u e o p r ó p r io p e n sam e n t o cr ia.
A co n t ín u a e xt en são d o t em p o , o m o vim en t o e o in t e r valo
ent re d o is m o vim en t o s d o p en sam en t o p r ecisam d e es­
paço. A co n sciên cia est á d e n t r o d o m o vim en t o d o t e m p o
ie do p en sam en t o . 0 p en sam en t o e o t e m p o são m en su -
; ráveis en t r e d o is p o n t o s, en t r e o cen t r o e a p er if e r ia. A m -
i pia ou est r eit a, a co n sciên cia exist e o n d e há um cen t r o : o
: " eu" e o " não eu" .
Tu d o p r ecisa de esp aço . Se r at o s são co n t id o s em um
esp aço p eq u en o , eles d est r u ir ão u n s ao s o u t r o s; p ássar o s
i p eq u en in o s p o u sad o s so b r e um cab o elét r ico , co n t am
com o esp aço n ecessár io en t r e cad a um . Se r e s h u m an o s
viven d o em cid ad es ap in h ad as est ão se t o r n an d o v io le n ­
t os, On d e n ão há esp aço , in t er n a ou e xt e r n am e n t e , t o ­
ld as as f o r m as de t r ap aça e d e ge n e r ação t o r n am -se in e-
vit áveis. O co n d icio n am e n t o da m en t e, at r avés da assim
ích am ad a ed u cação , r eligião , t r ad ição e cu lt u r a, o f e r ece
m uit o p o u co esp aço para o f lo r e scim e n t o da m en t e e d o
co r ação . A cr en ça, a exp er iên cia segu n d o essa cr en ça,
as o p in iõ es, os co n ceit o s, as p alavr as, t u d o isso é o " eu" ,

105
o ego , o cen t r o q u e cr ia um esp aço lim it ad o , d en t r o do:
q ual est á a co n sciên cia. O " eu " t em o seu e st ad o de ser
e su as at ivid ad e s d en t r o d o p eq u en o esp aço q u e criou
p ar a si m esm o . To d o s os seu s p r o b lem as e sofrim ent os>
esp er an ça e d e se sp e r o est ão co n t id o s em su as pr óp rias
f r o n t e ir as e n ão há esp aço ai. O co n h e cid o o cu p a t o da a:
su a co n sciên cia. Co n sciên cia é o co n h ecid o . Den t r o das
f r o n t e ir as do co n h e cid o não há so lu ção par a t o d o s os pr o­
b lem as q u e os ser es h u m an o s cr iar am . E ain d a assim , eles
não ab r em m ão d isso ; eles se agar r am ao co n h e cid o ou in­
ven t am o d esco n h ecid o , na esp e r an ça de q u e isso venha
a r eso lver seu s p r o b lem as. O esp aço q u e o " eu " co n st r u iu
p ar a si m esm o é a su a d o r e a ago n ia d o pr azer. Os d eu ses
n ão lhe d ão esp aço , po is o esp aço d eles é o seu esp aço .
Esse vast o e im en su r ável esp aço est á f o r a d as m ed id as do
p en sam en t o , o p en sam en t o é o co n h e cid o . M ed it ação é
o e sv aziam e n t o d a co n sciên cia d e seu s co n t eú d o s, do co ­
n h ecid o , d o " eu" .
Lent a m en t e, os r em o s im p u lsio n ar am o b ar co rio aci­
m a no r io ad o r m e cid o e a luz d e um a casa ap o n t ava-lh es
a d ir eção . Havia sid o um e n t ar d e ce r d u r ad o u r o e o p o r do
sol er a d o u r ad o , ve r d e e lar an ja; cr iavam u m a t r ilh a d o u ­
r ad a so b r e as águ as.

106
: g f 24 de outubro de 1973

Na b aixad a d o vale, v iam -se as lu zes f r acas do p e ­


q u en o vilar ejo ; est ava escu r o e o cam in h o er a r ú st ico e
ch eio de p ed r as. Im er sa na escu r id ão p r o f u n d a, as lin h as
sin u o sas d as co lin as iam d e en co n t r o ao céu e st r e lad o e
um co io t e u ivava nas r ed o n d ezas. O cam in h o t in h a p e r ­
d id o a su a f am iliar id ad e e um a b r isa su ave e p e r f u m ad a
vin h a d o vale. Est ar so zin h o n esse lu gar er m o er a o u v ir
a vo z d e um silê n cio in t en so e a sua im en sa b eleza. Um
an im al f azia b ar u lh o en t r e o s ar b u st o s, am e d r o n t ad o o u
ch am an d o a at en ção . N aq u ele in st an t e, est ava m u it o e s­
cu r o e o m u n d o d aq u ele vale caiu em p r o f u n d o silên cio .
0 ar n o t u r n o t in h a ch eir o s esp eciais, u m a co m b in ação
de t o d o s o s ar b u st o s q u e cr esciam n aq u eles m o r r o s r e s­
secad o s, aq u ele ch eir o de ar b u st o s q u e co n h ecem o sol
escald an t e. As ch u vas p ar ar am há m u it o s m eses at r ás, e
não ch o ver ia o u t r a vez p o r um lo n go p er ío d o ; o cam in h o
est ava seco , em p o eir ad o e acid en t ad o . O gr an d e silên cio ,
co m o seu vast o esp aço , su st en t ava a n o it e e cad a m o v i­
m en t o d o p e n sam e n t o se aq u iet o u . A p r ó p r ia m en t e er a
esse esp aço im en su r ável e, na p r o f u n d eza d aq u ele silê n ­
cio , n ão h avia u m a ú n ica co isa q u e o p e n sam e n t o t iv e sse
co n st r u íd o . Ser ab so lu t am en t e n ad a é se r im en su r ável. O
cam in h o d escia p o r um a co lin a in clin ad a e um p eq u en o
r egat o est ava a d izer m u it as co isas, d e lician d o -se co m a
su a p r ó p r ia vo z. Cr u zava o cam in h o v ár ias vezes e os d o is
est avam b r in can d o ju n t o s n esse jo go . A s est r elas est avam

107
m u it o p r ó xim as e algu m as o lh avam p ar a b aixo d o alt o das
co lin as. A s lu zes d o v ilar e jo iam f ican d o m ais d ist an t es e
as e st r e las iam d e sap ar e ce n d o p o r t r ás d as co lin as e leva­
d as. Fiq u e só, sem p alavr a n em p en sam en t o , m as ap en as
o b se r van d o e e scu t an d o . O gr an d e silên cio m o st r o u que,
sem isso , a exist ên cia p er d e o seu sign if icad o p r o f u n d o e
a su a b eleza.
Ser u m a lu z p ar a si m esm o n ega t o d a exp er iên cia.
Aq u e le q u e est á e xp e r im e n t an d o co m o e xp e r im e n t ad o r
n ecessit a da e xp e r iê n cia p ar a e xist ir e n ão im p o r t a se efa
é p r o f u n d a ou su p e r f icial, a n e ce ssid ad e d e e xp er im en t ar
vai f ican d o cad a vez m aio r . Exp er iên cia é co n h ecim en t o ,
é t r ad ição ; o e xp e r im e n t ad o r se d ivid e p ar a d isce r n ir en ­
t r e o q u e é p r azer o so e o q u e é d o lo r o so , o q u e co n f o r t a
e o q u e p er t u r b a. O cr en t e e xp e r im e n t a segu n d o a sua
cr en ça e d e aco r d o co m seu s co n d icio n am e n t o s. Essas ex­
p er iê n cias p ar t em do co n h ecid o , p o is o r eco n h ecim en t o
é essen cial, sem ele n ão há exp e r iê n cia. To d a exp er iên cia
d eixa u m a m ar ca, a m en o s q u e ela t en h a um f im no m o ­
m en t o em q u e su r ge. To d a r esp o st a a um d esaf io é um a
exp er iên cia, m as q u an d o a r esp o st a vem d o co n h ecid o ,
o d e saf io p er d e sua n o vid ad e e sua vit alid ad e; en t ão há
co n f lit o , agit ação e at ivid ad e n eu r ó t ica. A essên cia d o d e­
saf io é q u est io n ar , p er t u r b ar , d e sp e r t ar e co m p r een d er .
Co n t u d o , q u an d o o d e saf io é t r ad u zid o no p assad o , en t ão
o p r esen t e é evit ad o . A co n vicção da exp er iên cia é a n e­
gação d o q u est io n am en t o . In t eligên cia é a lib er d ad e de
q u est io n ar , d e in ve st igar o " eu " e o " n ão eu" , o in t er io r e
o ext er io r . Cr en ças, id eo lo gias e a au t o r id ad e im p ed em a
p e r ce p ção clar a q u e só vem q u an d o há lib er d ad e. O d e se ­
jo p o r e xp e r iê n cias d e q u alq u e r n at u r eza t em q u e ser algo

108
su p er f icial o u sen so r íal, co n f o r t ável o u p r azer o so , p o is
não im p o r t a q u ão in t en so seja o d esejo , ele ser á se m p r e
o p r e cu r so r d o p e n sam e n t o e o p e n sam e n t o é o m u n d o
ext er io r . O p e n sam e n t o p o d e at é o r gan izar o in t er io r , m as
ainda assim é u m a e xt e r n alid ad e . O p e n sam e n t o jam ais
en co n t r ar á o n o vo , p o is ele é o velh o , e n u n ca é livr e. A
lib er d ad e est á além d o p en sam en t o . To d a at ivid ad e d o
p en sam en t o n ão é am or.
Ser u m a luz p ar a si m esm o é se r luz p ar a t o d o s os o u ­
t r os. Ser u m a luz p ar a si m esm o é a m en t e se r livr e do d e ­
saf io e da r esp o st a, p o is en t ão a m en t e est ar á t ò t alm e n t e
at en t a e co m p le t am e n t e d e sp e r t a. Essa at e n ção n ão t em
um cen t r o , algu ém q u e est á at en t o e, p o r t an t o , n ão t em
f r o n t eir as. En q u an t o h o u ver um cen t r o , um " eu" , t em q u e
h aver d esaf io e r esp o st a, ad e q u ad o ou in ad eq u ad o , p r a­
zer o so ou d o lo r o so . 0 cen t r o j am ais p o d er á se r um a luz
para si m esm o ; su a luz é a luz ar t if icial do p e n sam e n t o
q ue p r o d u z m u it a so m b r a. Co m p aixão n ão é so m b r a d o
p en sam en t o , m as é luz, q u e n ão p e r t en ce a v o cê nem a
n in gu ém .
Gr ad u alm e n t e , o cam in h o en t r ava n o vale e o r egat o
at r avessava o vilar ejo p ar a e n co n t r ar o m ar. A s co lin as
p er m an eciam im u t áveis, e o pio de u m a co r u ja era r e s­
p o st a a o u t r a. E h avia e sp aço p ar a o silên cio .

109
t 25 d e o u t u b r o d e 19 73

Sen t ad o n u m a p ed r a no lar an jal; 0 vale se esp alh ava


e d esap ar ecia nas d o b r as d as m o n t an h as. Era de m an h ã
bem ced in h o e as so m b r as e st avam lo n gas, ab e r t as e su ­
aves. A s co d o r n ize s f aziam seu ap e lo co m so n s d ef in id o s
e a p o m b a ar r u lh ava um a can ção t r ist o n h a, num r it m o
su ave e gen t il, ao co m e çar d o d ia. O p ássar o p r et o f azia
cu r v as r áp id as no ar, d ava cam b alh o t as e se d eleit ava com
0 m u n d o . Vaga r osa m en t e, um a gr an d e t ar ân t u la, p elu d a
e escu r a, saiu d e d eb aixo da p ed r a, p ar o u , sen t iu 0 ar da
m an h a e segu iu seu cam in h o sem p r essa. A s lar an jeir as
est avam p lan t ad as em linha r et a ao lo n go d e u m a gr an d e
ext en são , co m seu s f r u t o s e f lo r e s f r e scas - a f lo r e o f r u ­
t o , ao m esm o t em p o , na m esm a ár vo r e. O p er f u m e das
f lo r e s er a b em p en et r an t e e co m o calo r d o sol p o d er ia
f icar m ais in t en so e in sist en t e. O céu er a d e um azu l vivo
e su ave e t o d as as co lin as e m o n t an h as ain d a d o r m iam .
Era u m a m an h ã d elicio sa, f r ia e f r e sca, co m aq u ela es­
t r an h a b eleza q u e o se r h u m an o ain d a n ão h avia d e st r u í­
do . Os lagar t o s saíam e b u scavam um lu gar aq u e cid o p elo
so l, se e st icavam p ar a aq u e ce r as b ar r igas e vir avam as
lo n gas cau d as p ar a u m lado . Era u m a m an h ã f e liz e a luz
su ave co b r ia a t er r a e a b eleza in f in it a da vid a. M ed it ação
é a e ssên cia d essa b eleza m an if est a ou sile n cio sa. M an i­
f est a ela assu m e u m a f o r m a e su b st ân cia; sile n cio sa, não
p o d er á se r p o st a em p alavr as, f o r m a o u cor. A p ar t ir do
silên cio , a e xp r e ssão o u a ação é se m p r e b ela, in t eir a, e

110
t oda lu t a e co n f lit o s d eixam d e exist ir . Os lagar t o s f o r am
b uscar u m a so m b r a e os b e ija-f lo r e s e as ab elh as f icavam
ent re as f lo r es.
Sem p aixão n ão há cr iação . Qu an d o a en t r ega é t ot a! a
" paixão é in f in it a. A en t r ega co m um m o t ivo é um a co isa e
[quando n ão há p r o p ó sit o n em e xp e ct at iva é o u t r a. Aq u ilo
fque t em u m a f in alid ad e e um d ir e cio n am e n t o é ef êm er o
;e se t o r n a p er n icio so e co m er cial, vu lgar . O q u e não é m o ­
vido p o r u m a cau sa, in t en ção ou gan h o , não t em co m eço
nem f im . Essa en t r ega é o esvaziam en t o na m en t e, o d e ­
sap ar ecim en t o d o " eu" , o d e sap ar e cim e n t o d e si m esm o .
0 " eu " p o d e se p er d er d e si m esm o em algu m a at ivid ad e,
em algu m a cr en ça r e co n f o r t an t e ou num so n h o im agin a­
t ivo, m as t al p er d a é a co n t in u ação d e si m esm o em o u t r a
f o r m a, id e n t if ican d o -se co m o u t r a id eo lo gia ou ação . A
en t rega do eu não é um at o da vo n t ad e, p o is a vo n t ad e
é o eu. Os m o vim en t o s d o eu , h o r izo n t al ou v e r t icalm e n -
te e em q u alq u er d ir eção , ain d a e st ão d en t r o d o cam p o
do t em p o e d o so f r im e n t o . O p en sam en t o p o d e se e n t r e ­
gar a algu m a co isa san a o u in san a, r azo ável ou est ú p id a,
m as co m o su a e st r u t u r a e n at u r eza são f r agm e n t ad as, o
seu p r ó p r io en t u siasm o e excit ação io go se t r an sf o r m am
em p r azer e m ed o . N essa ár ea, a en t r ega d o eu é ilu só r ia
e in sign if ican t e . A p e r ce p ção de t u d o isso é o d e sp e r t ar
para as at ivid ad e s d o eu; n essa at e n ção n ão há um cen t r o ,
não há um eu. O im p u lso p ar a e xp r e ssar -se a si m esm o
em f u n ção de u m a id e n t if icação é o r e su lt ad o d a co n f u são
e de u m a exist ên cia sem sen t id o . Bu scar um se n t id o é o
co m eço d a f r agm e n t ação ; o p en sam en t o p o d e e dá u m
m ilhão d e se n t id o s p ar a a vid a, cad a um d eles in ve n t an ­
do seu s p r ó p r io s sign if icad o s q u e são ap e n as o p in iõ es e

ui
co n vicçõ e s, e n ão há um f im p ar a isso . O p r ó p r io viv e r é ó
in t eir o sen t id o , m as q u an d o a vid a é co n f lit o , lut a; q u an d o
é um cam p o de b at alh a p ar a a am b ição , a co m p et ição , a
ad o r ação d o su ce sso e a b u sca d e p o sição e p o der , ent ão
a vid a n ão t em se n t id o n en h u m . O q u e é a n ecessidade'
d e exp r essão ? A cr iação est á na co isa p r o d u zid a? A coisa
p r o d u zid a p ela m ão ou pela m en t e, n ão im p o r t an d o quão
bela ou u t ilit ár ia - é isso o q u e est am o s b u scan d o ? A pai­
xão , o n d e n ão exist e o eu, p r ecisa d e exp r essão ? Qu an d o
há u m a n ecessid ad e, u m a co m p u lsão , há a p aixão da cr ia­
ção ? En q u an t o h o u ver sep ar ação en t r e o cr iad o r e o que
é cr iad o , a b eleza e o am o r d esap ar e ce m . Vo cê p o d e pr o­
d u zir algo p r im o r o so , em co r e s ou em p ed r a, m as se sua
vid a co t id ian a co n t r ad iz aq u ela e xce lê n cia su p r em a, que é
a en t r ega t o t al d o eu , en t ão , aq u ilo q u e vo cê p r o d u ziu é
ap e n as p ar a elo gio e vu lgar id ad e. O p r ó p r io v iv e r é a cor, a
b eleza e sua exp r essão . Nada m ais é n ecessár io .
As so m b r as iam se ap r o xim an d o e as co d o r n íze s silen ­
ciar am . Havia ap en as a p ed r a, as lar an jeir as co m seu s f r u ­
t o s e f lo r es, as gr acio sas co lin as e a t er r a ab u n d an t e.

112
29 de outubro de 1973

Den t r e o s lar an jais d o vale, esse er a m u it o b em cu i­


d ad o - f ile ir a ap ó s f ileir a d e ár vo r e s j o v e n s, f o r t e s e r e­
lu zin d o ao so l. 0 so lo era b o m , b em ir r igad o , ad u b ad o e
bem t r at ad o . Co m um céu azul e clar o, a m an h ã est ava
linda, cálid a e p er m ead a po r um a brisa su ave e agr ad á­
vel. Po r en t r e os ar b u st o s, as co d o r n ízes se agit avam e
em it iam seu s ch am ad o s agu d o s; um f alcão p air ava no ar,
im ó vel, p ar a, em segu id a, p o u sar no galh o de u m a lar an ­
jeir a p r ó xim a e se r eco lh er p ar a d o r m ir . Ele est ava t ão
p r ó xim o q ue as gar r as af iad as, as p in t as em su as p en as
e o b ico co r t an t e er am clar am e n t e visíve is e ao alcan ce
de um b r aço . Ain d a m ais ced o , ao lo n go d e um a ala de
acácias, p assar in h o s p eq u en in o s alar d eavam um sin al
de p er igo . So b os ar b u st o s, d u as co b r as n ão ven en o sas,
com seu s an é is d e co r m ar r o m -e scu r o ao lo go d o co r p o ,
se e n r o scavam um a na o u t r a e, q u an d o p assar am p o r ali
est avam co m p le t am e n t e alh eias a u m a p r esen ça h u m an a.
Elas saír am d e u m a p r at eleir a no b ar r acão , alo n gar am -se
e co m os o lh o s n egr o s e b r ilh an t es esp r eit avam e e sp e ­
ravam p elo s cam u n d o n go s. Olh avam f ixam en t e, sem p is­
car, p o is n ão t in h am cílio s. Era bem p o ssível q u e t ive sse m
p assad o a n o it e ali e ago r a se m o viam en t r e o s ar b u st o s.
Elas est avam em seu t e r r it ó r io e p o d er iam se r v ist as com
f r eq u ên cia e, ao ap an h ar um a d elas, ele sen t iu o t o q u e
frio q u an d o a co b r a se en r o sco u em seu b r aço . Tu d o q u e

113
vive p ar ece t e r a sua p r ó p r ia o r d em , d iscip lin a e seu jeit o
ú n ico d e b r in car e e xp r e ssar co n t en t am en t o .
O m at er ialism o , n ad a exist e a n ão ser a m at ér ia, é a
at ivid ad e p r evalen t e e p er sist en t e d o s ser es h u m an o s, na
r iq u eza e na p o b r eza, No m u n d o , há um b lo co in t eir o de
ser es h u m an o s d e d icad o s ao m at er ialism o ; a est r u t u r a
da so cie d ad e n esse b lo co est á f u n d am e n t ad a em p r in cí­
p io s m at er ialist as co m t o d as as su as co n se q u ên cias. Os
o u t r o s b lo co s t am b ém são m at er ialist as, aceit am algu ns
p r in cíp io s id ealist as q u an d o co n ven ien t es, m as podem
d e scar t á-lo s em n o m e da r acio n alid ad e e da n ecessid ad e;
Ao af et ar o m eio am b ie n t e, vio le n t a ou len t am en t e, em
n o m e da r evo lu ção ou da evo lu ção , o co m p o r t am e n t o dó
se r h u m an o m u d a se gu n d o a cu lt u r a em qu e ele vive, Esse
é um co n f lit o an cest r al en t r e aq u eles q u e acr ed it am que
o ser h u m an o é m at ér ia e aq u eles q u e b u scam o espírit o.
Essa d ivisão t em cau sad o m u it a m isér ia, co n f u são e ilusão
p ar a o ser h u m an o .
O p en sam en t o é m at er ial e su a at ivid ad e, in t er io r ou
ext er io r , é m at er ialist a. O p en sam en t o e o t e m p o são
m en su r áveis e, n isso , a co n sciê n cia é m at ér ia. A co n sciên ­
cia é o seu co n t eú d o ; o co n t e ú d o é co n sciên cia; eles são
in sep ar áveis. O co n t e ú d o im p lica as m u it as co isas que o
p en sam en t o co n f igu r o u : o p assad o m o d if ican d o o pre­
sen t e q u e é o f u t u r o , q u e é o t em p o . Tem p o é o m o vim en ­
t o na co n sciê n cia, exp an d id a ou co n t r aíd a. Pen sam en t o é
m em ó r ia, exp er iên cia e co n h e cim en t o , e essa m em ória;
co m su as im agen s e su as so m b r as, é o si m esm o , o " eu"
e o " n ão eu " , o " n ó s" e o " eles" . A essên cia da d ivisão é c
" eu " , co m t o d o s o s seu s at r ib u t o s e q u alid ad es. O m at e­
r ialism o ap en as f o r t ale ce e e n gr an d e ce o " eu" . O " eu" sê

114
id en t if ica co m o Est ad o , co m um a id eo lo gia, co m at iv id a­
des " n ão eu" , r eligio sas ou m u n d an as, m as co n t in u a se n d o
sem p r e o " eu" . Su as cr e n ças são au t o cr iad as, assim co m o
os seu s p r azer es e m ed o s. Em sua est r u t u r a e n at u r eza, o
p en sam en t o é f r agm e n t ad o e o co n f lit o e a gu e r r a est ão
en t re o s seu s m u it o s f r agm en t o s, assim co m o as n acio n a­
lid ad es, as r aças e as id eo lo gias. Um a h u m an id ad e m at e ­
r ialist a se au t o d e st r u ir á, a m en o s q u e o " eu " seja co m p le ­
t am en t e ab an d o n ad o . O ab an d o n o do " eu " é de p r im eir a
im p o r t ân cia. So m e n t e a p ar t ir d essa r evo lu ção se p o d e
cr iar um a n o va so cie d ad e .
O ab an d o n o d o " eu " é am or, é co m p aixão : p aixão p o r
t o d as as co isas - p elo s q u e p assam f o m e, p elo s q u e so ­
f r em , p elo s sem -t et o , p elo s m at er ialist as e p elo s q u e cr e ­
em . O am o r n ão é sen t im en t alism o nem r o m an t ism o ; ele
é t ão f o r t e e d ef in it ivo q u an t o a m o r t e.
Len t am en t e, a n eb lin a q u e vin h a do m ar alcan ço u as
co lin as, e n v o lv e n d o -as co m o se f o ssem o n d as im en sas;
que f o i t o m an d o as co lin as e d escen d o p elo vale, ch e gan ­
do at é aqu i; esf r iar ia q u an d o a e scu r id ão d a n o it e ch e gas­
se. Em b o r a não h o u vesse est r elas, o silên cio er a co m p le ­
t o. Silên cio d e f at o , n ão aq u ele q u e a m en t e cu lt iva e no
qual n ão há esp aço . *

* As cinco a n o t a çõ e s se gu in t e s fo ra m e scrit a s d e zoit o m ese s m ais t a r­


de, em M alibu, na Califórnia.

115
Era de m an h ã bem ced o e o sol já est ava m u it o q u en ­
t e. N en h u m a b r isa so p r ava e f o lh a algu m a se m o via. N a­
q u ele t em p lo an t igo , o ar est ava f r e sco e agr ad ável; os
pés d e scalço s p er ceb iam as só lid as p lacas d e p ed r a, seu s
f o r m at o s d if er en t es e ir r egu lar id ad es. Ao lo n go d e um
m ilên io , m u it o s m ilh ar es de p esso as cam in h ar am so b r e
aq u ele piso. Dep o is d o b r ilh o da m an h ã, aq u ele lu gar p a­
r ecia escu r o , os co r r e d o r e s co m p o r t av am p o u cas p esso as
e as p assagen s m ais est r eit as est avam ain d a m ais escu r as.
Um a p assagem levava a um co r r e d o r m ais am p lo e est e
p ar a o t em p lo in t er n o . Havia um ch eir o f o r t e e se cu lar de
f lo r e s e in cen so . Re cé m -b an h ad o s e v e st id o s em t an gas
b r an cas, u m a cen t en a de b r âm an es can t avam . O sân s-
cr it o é u m a lín gu a p o d er o sa e r esso a p r o f u n d am e n t e . As
p ar ed e s m ilen ar es vib r avam e q u ase t r em iam ao so m de
u m a cen t en a d e vo zes. A d ign id ad e do so m er a in cr ível e
a sacr alid ad e d o m o m en t o est ava além d as p alavr as. Não
er am as p alavr as q u e d e sp e r t avam essa im en sid ão , m as a
p r o f u n d id ad e d o so m d e m u it o s m ilh ar es de an o s co n t id a
en t r e aq u elas p ar ed es e no esp aço im en su r ável além d e­
las. Não er a o sign if icad o d as p alavr as n em a clar eza com
q u e er am p r o n u n ciad as nem a b eleza escu r a do t em p lo ,
m as a q u alid ad e d o so m q u e r o m p ia as p ar ed e s e as lim i­
t açõ e s da m en t e h u m an a. O can t o d e um p ássar o , um a
f lau t a d ist an t e, a b r isa so p r an d o p o r en t r e a f o lh agem

116
t am b ém r o m p em o s m u r o s que o s ser es h u m an o s cr iam
para si m esm o s.
Nas gr an d es cat ed r ais e gr acio sas m esq u it as, o s can t o s
e a e n t o n ação de t e xt o s sagr ad o s ~ é o so m q u e ab r e o co ­
r ação p ar a a b eleza ou par a as lágr im as. Se não há esp aço ,
não há b eleza; na au sên cia de esp aço , vo cê só en co n t r a
p ar ed es e m ed id as; q u an d o n ão há esp aço n ão há p r o f u n ­
d id ade; sem esp aço só há p o b r eza in t er io r e ext er io r . Vo cê
t em t ão p o u co esp aço em sua m en t e; ela est á t ão ab ar ­
r o t ad a, t ão ch eia d e p alavr as, lem b r an ças, co n h e cim en t o ,
e xp er iên cias e p r o b lem as. Não so b r a n en h u m esp aço ali,
ap en as a et er n a t agar e lice do p en sam en t o . É p o r isso q u e
seu s m u seu s est ão t ão ab ar r o t ad o s e as p r at eleir as t ão
ch eias de livr o s. É p o r isso q u e vo cê lot a o s esp aço s d e
en t r et en im en t o , os r eligio so s e t o d o s os o u t r o s. Ou vo cê
co n st r ó i p ar ed es à su a vo lt a, um esp aço est r e it o de t r a ­
p aças e dor. Sem esp aço , in t er io r e ext er io r , vo cê se t o r n a
d esagr ad ável e vio len t o .
Tu d o p r ecisa d e esp aço p ar a viver , p ar a b r in car e para
cant ar. Aq u ilo q u e é sagr ad o n ão p o d e am ar sem esp aço .
Você n ão t em esp aço q u an d o f ica no co n t r o le, q u an d o há
so f r im en t o , q u an d o vo cê é o cen t r o do u n iver so . O esp aço
que v o cê o cu p a é o m esm o q u e o p en sam en t o cr io u em
t o r n o d e si e sign if ica d esesp er o e co n f u são . O esp aço q u e
o p e n sam e n t o m ed e é a d ivisão en t r e v o cê e eu, nós e
eles. Essa d ivisão é d o r in f in it a. No cam p o ab er t o , ver d e,
am p lo, est á a ár vo r e so lit ár ia.

H7
"ÖS 02 de abril de 1975

Não er a u m a t e r r a de ár vo r es, cam p o s, r egat o s, f lo ­


r es e alegr ia. Q u eim ad a p elo sol, a t er r a era ar en o sa, as
co lin as est ér eis e sem u m a ú n ica ár vo r e o u ar b u st o ; um a
p aisagem d eso lad a, q u iló m et r o ap ó s q u iló m e t r o de um a
secu r a sem f im , sem a p r esen ça d e um ú n ico p ássar o e
n em m esm o t o r r e s d e p et r ó le o co m su as ch am as acesas.
A co n sciên cia n ão co n segu ia su p o r t ar t al d eso lação , cada
m o r r o er a u m a so m b r a in f ér t il. Po r m u it as h o r as, vo am o s
so b r e essa im en sid ão vazia, at é q u e, f in alm en t e, lá est a­
vam o s p ico s n evad o s, f lo r e st as e r io s, v ilar e jo s e cid ad es
em exp an são .
Vo cê p o d e t er um vast o co n h e cim e n t o e ser co m p ie-
t am e n t e p o b r e. E q u an t o m ais p o b r e vo cê é m aio r é a sua
d e m an d a p o r co n h e cim en t o . Vo cê exp an d e su a co n sciên ­
cia co m u m a gr an d e v ar ied ad e d e co n h e cim en t o , acu m u ­
lan d o exp e r iê n cias e le m b r an ças e, ain d a assim , p o d e ser
im en sam e n t e p o b r e. 0 uso h ab ilid o so d o co n h ecim en t o
p o d e e n r iq u e cê -lo e lhe dá p r est ígio e p o d er , m as, ainda
assim , há p o b r eza. Essa p o b r eza p r o d u z in sen sib ilid ad e;
vo cê se d iver t e en q u an t o a casa est á q u eim an d o . Essa po­
b r eza ap en as f o r t ale ce o in t ele ct o e, nas em o çõ es, en f r a­
q u ece o s sen t im en t o s. É essa p o b r eza q u e p r o m o ve o d e­
se q u ilíb r io in t er io r e ext er io r . Não exist e o co n h ecim en t o
in t er io r , só ext er io r . O co n h e cim e n t o e xt e r io r nos in fo rm a
e r r o n eam e n t e q u e d eve e xist ir um co n h e cim e n t o int erior.
O co n h e cim e n t o d o eu é p assageir o e sem p r o f u n d id ad e;

118
a m en t e io go se p õ e além d esse co n h e cim e n t o , co m o se
cr u zasse um r io. Vo cê f az m u it o b ar u lh o ao cr u zar o r io e,
co n f u n d ir o b ar u lh o co m o co n h e cim e n t o do eu, é e xp an ­
dir ain d a m ais a p o b r eza. Essa exp an são da co n sciê n cia é
a at ivid ad e da p o b r eza. Religiõ es, cu lt u r a e co n h e cim e n t o
não p o d em e n r iq u e ce r essa p o b r eza.
A h ab ilid ad e da in t eligên cia é co lo car p co n h e cim en t o
em seu d evid o lu gar . Sem co n h e cim e n t o n ão é p o ssível
viver n est a civilização cad a v e z m ais t e cn o ló gica e m e cân i­
ca, m as ele não t r an sf o r m ar á o se r h u m an o e a so cie d ad e .
O co n h e cim en t o n ão é a excelên cia da in t eligên cia; a in t e ­
ligên cia p o d e e d eve u sar o co n h e cim e n t o e, assim , t r an s­
f o r m ar o ser h u m an o e a so cied ad e . A in t eligê n cia não é o
m er o cu lt ivo do in t ele ct o e de su a in t egr id ad e. Eia e m e r ge
da co m p r e e n são t o t al da co n sciê n cia h u m an a, q u e é v o cê
in t eir o , e n ão de u m a p ar t e, d e um segm en t o se p ar ad o d e
si m esm o . O est u d o e a co m p r e e n são d o m o vim en t o d e
sua p r ó p r ia m en t e e co r ação f az n ascer essa in t eligê n cia.
Vo cê é o co n t eú d o de sua p r ó p r ia co n sciên cia; ao co n h e ­
cer-se a si m esm o , vo cê co n h e cer á o u n iver so . Esse sab e r
est á além da p alavr a, po is a p alavr a n ão é a co isa. A cad a
m in u t o , a lib er d ad e d o co n h e cid o é a essên cia da in t eli­
gên cia. Essa in t eligên cia o p er a n o u n ive r so se v o cê a d eixa
em paz. Vo cê est á d e st r u in d o essa o r d em sagr ad a co m a
ign o r ân cia d e si m esm o . Essa ign o r ân cia n ão d e sap ar e ce
co m est u d o s q u e o u t r o s f izer am so b r e vo cê ou so b r e eles
m esm o s. É vo cê q u e t em de in vest igar o co n t e ú d o de su a
p r ó p r ia co n sciên cia. Os est u d o s q u e o u t r o s f izer am so b r e
eles m esm o s e, assim , so b r e vo cê são d e scr içõ e s, m as n ão
o d escr it o . A p alavr a n ão é a co isa.

119
Só no r elacio n am en t o vo cê p o d e co n h e ce r a si m esm o ,
n ão n u m a ab st r ação e m u it o m en o s no iso lam en t o . M es­
m o n u m m o st eir o , vo cê se r elacio n a co m a so cie d ad e qu e
o co n st r u iu co m o um escap e, f e ch an d o as p o r t as à lib er ­
d ad e. 0 m o vim en t o d o co m p o r t am e n t o é um gu ia segu r o
p ar a vo cê m esm o ; é um esp e lh o d e sua co n sciên cia; esse
e sp e lh o r evelar á o seu co n t eú d o : as im agen s, o s ap ego s,
o s m ed o s, a so lid ão , a alegr ia e o so f r im en t o . A p o b r eza
est á em f u gir d isso , seja pela su b lim ação ou p ela id en t if i­
cação . Negar, sem r esist ên cia, o co n t e ú d o d a co n sciên cia
é a b eleza e a co m p aixão da in t eligên cia.

120
Qu ão ext r ao r d in ar iam e n t e bela é a sin u o sid ad e d e
um gr an d e rio. Vo cê p r ecisa vê-lo a p ar t ir de um a alt it u d e
co r r et a, n em m u it o d e lo n ge n em m u it o de p er t o , a se r ­
p en t ear p r e gu iço sam e n t e at r avés d o s cam p o s ver d e s. O
rio er a lar go e t r an sb o r d an t e em su as águ as clar as. N ão
vo ávam o s n u m a alt it u d e m u it o elevad a e d ava p ar a ve r a
f o r t e co r r en t e e su as o n d as p eq u en in as, b em no m eio d o
rio. Nó s o se gu im o s e p assam o s p o r ald eias e cid ad e s at é
ch egar ao m ar. Cad a cu r va t in h a a sua p r ó p r ia b eleza, a
sua p r ó p r ia f o r ça, o seu p r ó p r io m o vim en t o . E b em lo n ge
dali, o s gr an d es p ico s co b e r t o s d e n eve se r evest iam d o s
t o n s r o sad o s d o sol m at in al; eles ab ar cavam o h o r izo n t e
d o lad o o r ien t al. N aq u ela h o r a d o dia, o r io lar go e as gr a n ­
des m o n t an h as p ar eciam su st e n t ar a e t e r n id ad e - esse
sen t id o av assalad o r de esp aço in f in it o . Em b o r a o avião
e st ivesse in d o p ar a o su d o est e, n aq u ele esp aço n ão h avia
d ir eção n em m o vim en t o , ap en as aq u ilo q u e é. Po r u m a
hora in t eir a, nad a m ais exist ia, n em m esm o o r u íd o d as
t u r b in as. So m en t e q u an d o o co m an d an t e aviso u q u e lo go
est ar íam o s at e r r issan d o , a ho ra p len a ch ego u a um f im .
Não h avia m em ó r ia d aq u ela h o ra, n en h u m r egist r o do seu
co n t eú d o e, p o r t an t o , est ava f o r a do alcan ce d o p e n sa­
m ent o . Qu an d o acab o u n ão h avia r e sq u ício s, a lo u sa e s­
t ava lim p a o u t r a vez. Assim , o p en sam en t o n ão d isp u n h a
d o s m eio s p ar a cu lt ivar aq u ela h o r a e e st ava p r o n t o p ar a
d eixar o avião .

121
0 q u e o p e n sam e n t o p en sa ele q u e r q u e seja a r eali­
d ad e, m as isso n ão é o real. A b eleza j am ais p o d e ser um a
e xp r essão d o p en sam en t o . Um p ássar o n ão é f eit o pelo
p en sam en t o e p o r isso é b elo . 0 am o r n ão é m o ld ad o pelo
p en sam en t o , e q u an d o é, se t r an sf o r m a n u m a co isa m u i­
t o d if er en t e. A ad o r ação d o in t elect o e su a in t egr id ad e é
u m a r ealid ad e cr iad a p elo p en sam en t o . M as n ão é co m ­
p aixão . O p en sam en t o n ão p o d e f ab r icar a co m p aixão ; ele
p o d e f aze r isso p ar ecer r ealid ad e, ou n ecessid ad e, m as
não ser á co m p aixão . A n at u r eza do p en sam en t o é f r ag­
m en t ad a e, p o r t an t o , cr ia um m u n d o de f r agm en t o s, de
d ivisão e co n f lit o . Assim , o co n h e cim e n t o é f r agm en t ad o
e n ão im p o r t a o q u an t o seja acu m u lad o , cam ad as e ca­
m ad as, p er m an ecer á sem p r e f r agm e n t ad o , em p ed aço s.
O p en sam en t o p o d e cr iar um a id eia d e in t egr ação , m as
isso t am b é m é um f r agm en t o .
A p alavr a ciên cia sign if ica co n h e cim e n t o e, p o r in t er ­
m éd io da ciên cia, o ser h u m an o esp er a ser t r an sf o r m ad o
em algu ém sad io e f eliz. Assim , an sio sam en t e, q u er o co ­
n h ecim en t o de t u d o q u e há na t er r a e t am b ém de si m es­
m o. Co n h e cim e n t o n ão é co m p aixão e sem co m p aixão o
co n h e cim e n t o cr ia a in jú r ia, o cao s e in co n t ável m isér ia. 0
co n h e cim e n t o n ão p o d e f aze r o ser h u m an o am ar , pode
ap en as ge r ar a gu er r a e os in st r u m en t o s de d est r u ição ,
m as n ão p o d e t r azer am o r par a o co r ação , n em paz para
a m en t e. Pe r ceb er t u d o isso é agir, m as não é um a ação
b asead a na m em ó r ia ou em p ad r õ es. O am o r não é m e­
m ó r ia, n ão é a le m b r an ça d e p r azer es.

122
Du r an t e algu n s m eses, o acaso o levo u a v iv e r n u m a
casa p eq u en a e d ilap id ad a, b em no alt o d as m o n t an h as
e d ist an t e de o u t r as casas. Havia m u it as ár vo r e s e, co m o
foi d u r an t e a p r im aver a, f r agr ân cias se e sp alh avam no ar.
Era a so lid ão d as m o n t an h as e a b eleza da t er r a ve r m e lh a.
Os p ico s e le vad o s e st avam co b e r t o s de n eve e algu m as
d as ár vo r e s f lo r e sciam . Vo cê vivia so zin h o no m eio d esse
esp len d o r . A f lo r e st a não f icava lo n ge, co m cer vo s, a p r e ­
sen ça o casio n al d e um u r so , aq u eles m acaco s en o r m e s de
car as p r et as e r ab o s co m p r id o s e, é clar o , ser p en t es. Na
so lid ão p r o f u n d a e d e m o d o p ecu liar , v o cê se r elacio n ava
co m t o d o s eles. Vo cê n ão p o d er ia f e r ir o q u e q u er q u e f o s­
se, nem m esm o à m ar gar id a n ascid a so b r e a t r ilh a. N esse
r elacio n am en t o , a se p ar ação en t r e vo cê e eles n ão exist ia;
não er a um a co isa in ven t ad a; n ão er a u m a co n v icção e m o ­
cio n al o u in t ele ct u al q u e t r azia isso à t o n a, m as sim p le s­
m en t e era assim . Esp ecialm en t e ao en t ar d ecer , um gr u p o
d esses gr an d e s m acaco s se ap r o xim ava e algu n s p o u co s
f icavam no ch ão , m as a m aio r ia se aco m o d ava n as ár v o ­
r es a o b se r v ar sile n cio sam e n t e . Ficavam su r p r e e n d e n t e ­
m en t e q u iet o s, co m ap en as algu m a b r eve agit ação aq u i
e ali, e n o s o b se r vávam o s m u t u am en t e. Vin h am t o d as as
t ar d es, sem ch e gar m u it o p er t o n em f icar m u it o alt o n as
ár vo r es, m as est ávam o s m ú t u a e sile n cio sam e n t e at e n ­
t o s u n s ao s o u t r o s. To r n am o -n o s m u it o b o n s am igo s, m as
eles n ão q u er iam in vad ir aq u ela so lid ão . N u m a t ar d e, ao

123
cam in h ar p ela f lo r est a, vo cê o s en co n t r o u su b it am en t e
em u m a clar eir a. Dever ia h aver u n s t r in t a m acaco s, jo ven s
e id o so s, sen t ad o s p o r en t r e as ár vo r e s e em vo lt a d aq u e ­
le esp aço ab er t o , ab so lu t am e n t e sile n cio so s e im ó veis.
Se q u isesse, vo cê p o d er ia t o cá-lo s, p o is n ão h avia m ed o
n eles; e, assim , se n t ad o s no ch ão n o s o b se r vam o s uns
ao s o u t r o s, at é q u e o sol se esco n d eu p o r t r ás d o s picos
n evad o s.
Se vo cê p er d e o co n t at o co m a n at u r eza, p er d e o co n ­
t at o co m a h u m an id ad e. Se vo cê não t em um r elacio n a­
m en t o co m a n at u r eza, vo cê se t o r n a um assassin o ; e,
assim , irá m at ar b eb ês f o cas, b aleias, go lf in h o s e o p r ó ­
p r io ser h u m an o , seja p o r lu cr o , p o r esp o r t e, p elo co n h e­
cim en t o o u p ar a co m er . E assim , a n at u r eza t em m ed o de
vo cê e lh e n ega su a b eleza. Vo cê at é p o d e f aze r lo n gas
cam in h ad as nos b o sq u es, nos cam p o s ou em lu gar es ap r a­
zíveis, m as vo cê é um assassin o e, assim , p er d e a am izad e
d as cr iat u r as da n at u r eza. É p r o vável q u e vo cê não est eja
se r elacio n an d o co m n in gu ém , nem co m seu m ar id o ou
sua esp o sa; vo cê est á o cu p ad o d em ais co m su as per das
e gan h o s, co m seu s p r ó p r io s p en sam en t o s, su as d o r es e
p r azer es. Vo cê vive n o seu iso lam en t o p r ivad o e escu r o
e q u an d o t e n t a e scap ar ger a ain d a m ais escu r id ão . Seu
in t er esse se vo lt a p ar a um a so b r e vivê n cia ef êm er a, d es­
p r eo cu p ad a ou vio le n t a. M ilh ar es m o r r em de f o m e ou
são assassin ad o s p o r cau sa da sua ir r esp o n sab ilid ad e.
Vo cê p er m it e q u e a o r d em m u n d ial f iq u e n as m ão s de
p o lít ico s m en t ir o so s e co r r u p t o s, d e in t ele ct u ais e de sa­
b ich õ es. Po r q u e vo cê n ão t em in t egr id ad e, vo cê co n st r ó i
u m a so cie d ad e im o r al e d eso n e st a, b asead a n u m ego ísm o
ab so lu t o . Dep o is v o cê f o ge d e t u d o isso , do q u al vo cê é

124
o ú n ico r e sp o n sáve l, in d o p ar a a p r aia, p ar a o cam p o , o u
car r egan d o u m a ar m a p o r " esp o r t e" .
Vo cê p o d e sab e r de t u d o isso , m as o co n h e cim e n t o
não o t r an sf o r m a. Qu an d o vo cê t em esse se n t id o de t o t a ­
lid ad e, en t ão vo cê se r elacio n a co m o u n iver so .

125
■'

Não é aq u ele azul e xt r ao r d in ár io do M ed it er r ân eo ; o.


Pacíf ico t em um azul m ais et ér eo , p r in cip alm e n t e q u an ­
d o há u m a b r isa su ave vin d a d o o est e e se vo cê est iver
in d o p ar a o n o r t e, p ela est r ad a b eir an d o a co st a. Est ava
t u d o t r an q u iio , d eslu m b r an t e m e n t e clar o e ch eio de ale­
gria. Ocasio n alm e n t e, b aleias p o d iam ser vist as so p r an d o
o seu cam in h o em d ir eção ao n o r t e, m as não su as cab eças
en o r m e s, q u an d o se lan çavam p ar a f o r a d ' águ a. Havia um
b an d o d elas so p r an d o ; b aleias d evem se r an im ais m uit o
vigo r o so s. N aq u ele dia, o m ar er a um lago , p ar ad o e ex­
t r em am en t e silen cio so , sem um a ú n ica o nd a; não est ava
ali aq u ele azul clar o e d an çan t e. 0 m ar est ava ad o r m ecid o
e vo cê o lh ava par a ele m ar avilh ad o . Era um a bela casa\
vo lt ad a p ar a o m ar e co m um jar d im silen cio so , gr am ad o
v e r d e e f lo r es; t am b ém er a esp aço sa e ilu m in ad a pelo sol
calif o r n ian o ; o s co elh o s t am b ém go st avam da casa, pois
v in h am t o d o s o s d ias, d e m an h ã ced o e ao an o it ece r ; eles
co m iam as f lo r e s e o s am o r es p e r f e it o s r ecém p lan t ad o s,
os t aget es e as p lan t in h as m en o r es. N in gu ém co n segu ia
m an t ê-lo s af ast ad o s, em b o r a h o u vesse um a t ela de ar a­
m e em vo lt a d o j ar d im e m at á-lo s ser ia um cr im e. M as
um gat o e u m a co r u ja m an t in h am a o r d em no jar d im ; o
gat o p r et o p er am b u lava p elo jar d im e a co r u ja p o u sava *

* Essa era a casa onde K e st a va h ospe dado, em M alibu.

126
nos galh o s d o s eu calip t o s, d u r an t e o dia; ela p o d ia se r v i s-
t a co m os o lh o s f ech ad o s, gr an d e, im ó vel e ar r e d o n d ad a.
Os co e lh o s d e sap ar e ce r am , o jar d im f lo r e scia e o Pacíf ico
azul f lu ía sem esf o r ço .
Só o ser h u m an o t r az a d eso r d em p ar a o u n iver so . Ele é
cr u el e e xt r e m am e n t e vio len t o . On d e q u er q u e est eja, ele
p r o vo ca o so f r im en t o em si m esm o e ao m u n d o à sua v o i-
t a. Ele d esp er d iça, d est r ó i e n ão t em co m p aixão . Não t em
o r d em d en t r o de si e, p o r t an t o , t u d o q u e ele t o ca se t o r n a
sujo e caó t ico . Su a p o lít ica se t r an sf o r m o u n u m a f o r m a
r ef in ad a de b an d id agem do po der , das f r au d e s p esso ais e
n acio n ais e d o s gr u p o s co n t r a gr u p o s. Su a eco n o m ia é r e s­
t r it a e, p o r t an t o , n ão é u n iver sal. Su a so cie d ad e é im o r al
seja em lib er d ad e ou so b a t ir an ia. Não é r eligio so , e m b o ­
ra t en h a cr en ças, ad o r açõ e s e se su b m et a a r it u ais in f in ­
d áveis e sem sen t id o . Po r q u e o se r h u m an o f ico u assim
- cr u el, ir r esp o n sável e e xt r e m am e n t e ego cen t r ad o ? Po r
q uê? Há u m a cen t en a d e e xp licaçõ e s e aq u eles q u e e xp li­
cam , su t ilm en t e, co m p alavr as n ascid as d o co n h e cim e n t o
de m u it o s livr o s e de e xp e r im e n t o s co m an im ais, e st ão
ap r isio n ad o s na r ed e do so f r im e n t o h u m an o , no o r gu lh o ,
na am b ição e na ago n ia. A d e scr ição n ão é o d escr it o , a p a­
lavra n ão é a co isa. Ser á q u e é p o r q u e o ser h u m an o est á
b u scan d o cau sas ext er n as, o am b ien t e co n d icio n an d o -o ,
esp er an d o q u e a r ef o r m a e xt e r io r o t r an sf o r m e in t er io r ­
m ent e? Ser á p o r q u e ele est á t ão ap e gad o ao s sen t id o s,
d o m in ad o p o r su as exigên cias im ed iat as? Ser á p o r q u e
ele vive in t eir am en t e no m o vim en t o do p en sam en t o e
do co n h e cim en t o ? Ou ser á p o r q u e ele é t ão r o m ân t ico
e sen t im en t al q u e se t o r n o u cr u el co m seu s id eais,
f an t asias e p r et en sõ es? Ou ser á p o r q u e ele é sem p r e

127
co n d u zid o , t o r n ad o um segu id o r , ou se t o r n a um co n d u t o r ,
u m gu r u ?
Essa d ivisão en t r e o in t er io r e o e xt e r io r é o co m eço
d o co n f lit o e do so f r im en t o ; o se r h u m an o é ap an h ad o
n essa co n t r ad ição , n essa t r ad ição m ilen ar . Ap r isio n ad o
n essa d ivisão sem sen t id o , ele est á p er d id o e se t o r n a um
e scr avo d o s o u t r o s. O in t er io r e o e xt e r io r são im agin a­
çõ es e in ven çõ es d o p en sam en t o ; co m o o p en sam en t o
é f r agm e n t ad o , ele cr ia a d eso r d em e o co n f lit o , o qu e é
d ivisão . O p e n sam e n t o não p o d e cr iar a o r d em , a vir t u d e
q u e f lu i sem q u alq u e r esf o r ço . A vir t u d e não é a r ep et i­
ção in cessan t e da m em ó r ia, n ão é algo q u e se p r at iq u e.
Pe n sam e n t o -co n h e cim e n t o é v in cu lad o ao t em p o . Em sua
n at u r eza e est r u t u r a, o p en sam en t o n ão é cap az de ab ar ­
car a in t eir eza d o f lu xo da vid a em seu m o vim en t o t o t al.
Pe n sam e n t o -co n h e cim e n t o n ão p o d e t e r a p er cep ção da
t o t alid ad e; n ão p o d e f icar at en t o p ar a isso , sem esco lh a,
en q u an t o p er m an ece co m o o qu e p er ceb e, algu ém de
f o r a o lh an d o p ar a d en t r o . Pen sam en t o -co n h e cim en t o
não t em lu gar na p er cep ção ; o p en sad o r é o p en sam en t o ;
o q u e p er ceb e é o q ue est á sen d o p er ceb id o . Só en t ão há
um m o vim en t o sem esf o r ço em n o ssas vid as.

128
08 de abril de 1975

Nest a p ar t e d o m undo* não ch o ve m u it o , cer ca de


q u in ze a vin t e p o le gad as ao ano , sen d o e ssas ch u vas e x­
t r em am en t e b em vin d as, p o is n ão ch o ver á p elo r est o d o
ano. Ain d a há n eve n as m o n t an h as e d u r an t e o ver ão e
o u t o n o elas f icam nuas, q u eim ad as p elo so l, r o ch o sas e
p r o ib it ivas; so m e n t e na p r im aver a f icam b r an d as e co n v i­
d at ivas. Co st u m ava h aver u r so s, ce r vo s, lin ces, co d o r n íze s
e u m a var ie d ad e d e se r p e n t e s. M as ago r a eles co m e ça­
vam a d e sap ar e ce r ; a t em id a cr iat u r a h u m an a est ava u l­
t r ap assan d o os lim it es. Tin h a ch o vid o um p o u co e o vale
se r evest iu d e ver d e, as lar an jeir as car r egad as d e f lo r e s
e f r u t o s. Era um b elo vale, d ist an t e d o s r u íd o s d a cid ad e
e o n d e se o u via o can t o d as p o m b as. Len t am en t e, o ar
se im p r egn ava co m o p er f u m e d as f lo r es de lar an jeir a e,
em m ais algu n s d ias, a f r agr ân cia t o m ar ia co n t a d e t u d o
co m o calo r d o so l e o s d ias sem so p r o d e ven t o . Era um
vale co m p le t am e n t e cir cu n d ad o p o r co lin as e m o n t an h as;
além d as co lin as, est ava o m ar e além d as m o n t an h as,
o d eser t o . No ver ão , o clim a ser ia in su p o r t ave lm e n t e
q u en t e, m as a b eleza est ar ia sem p r e p r esen t e n esse lu ­
gar d ist an t e d as m u lt id õ e s e n lo u q u e cid as e su as cid ad es.
À n o it e, o silen cio ser ia e xt r ao r d in ár io , r ico e p en et r an t e.

* K passou 10 dias no Vale de Ojai, Califó rnia, e se refere a ele nest a


an ot ação .

129
A m ed it ação cu lt ivad a é um sacr ilé gio à b eleza e cada
galh o e f o lh a f alava d a alegr ia da b eleza e o s cip r est es al-;
t o s e e scu r o s sile n ciavam nela; a velh a e r et o r cid a p im en ­
t eir a f lu ía co m a b eleza.
Vo cê n ão p o d e, n ão lhe é p er m it id o co n vid ar a alegria,;
Se assim o f izer , ela se t r an sf o r m ar á em pr azer. Pr azer;
é u m m o vim en t o d o p en sam en t o e o p en sam en t o não
p o d e, n em lh e é p er m it id o , cu lt ivar a alegr ia; se o fizer, en­
t ão aq u ilo q u e é alegr ia p assa a ser um a le m b r an ça, uma.
co isa m o r t a. Beleza n ão se vin cu la ao t em p o ; ela é t o t al­
m en t e livr e d o t e m p o e, assim , da cu lt u r a. A b eleza est á
q u an d o o eu n ão est á. O eu é cr iad o p eio t em p o , pelo m o-:
vim en t o d o p en sam en t o , p elo co n h e cid o e pela palavra.
No ab an d o n o d o eu, n essa at e n ção t o t al, a essên cia da
b eleza est á p r esen t e. O ab an d o n o do eu não é um a ação
calcu lad a d o d esejo , d o q u er er . O q u e r e r é im p o sit ivo , d e­
f en sivo e, assim , cau sa d ivisão e co n f lit o . A d isso lu ção do
eu n ão é a evo lu ção d o co n h e cim en t o do eu; o t em p o não
t em q u alq u e r p ar t icip ação n isso . N ão exist e um cam in h o
ou um m ét o d o para d ar cab o do eu. A t o t al n ão ação in t e­
r io r é a at e n ção p o sit iva da b eleza.
Vo cê t em cu lt ivad o um a vast a r ed e d e at ivid ad e s in­
t e r ligad as o n d e vo cê f ica ap r isio n ad o ; sua m en t e, sen do
co n d icio n ad a p o r isso , o p er a d essa m esm a m an eir a, in ­
t e r io r m e n t e . Em p r een d er e ven cer na vid a se t r an sf o r m a
na co isa m ais im p o r t an t e e a f ú r ia d esse im p u lso é ainda
o e sq u e le t o d o eu. É p o r isso q u e vo cê t em seu s id eais e
cr en ças, p o r isso q u e segu e um gu r u , um salvad o r ; a f é
t o m a o lu gar da p er cep ção e da at en ção . Não há n ecessi­
d ad e d e o r açõ e s e r it u ais q u an d o o eu n ão est á. Vo cê p r e­
en ch e o s esp aço s vazio s do esq u ele t o co m co n h ecim en t o ,

130
com im agen s, co m at ivid ad e s in sign if ican t e s, d e m o d o a
m an t ê-lo ap ar e n t e m e n t e vivo .
No silên cio e q u ie t u d e da m en t e, a b eleza et er n a ch e ­
ga sem se r co n vid ad a ou b u scad a e sem o s r u íd o s do r e­
co n h ecim en t o .

131
No p r o f u n d o silê n cio da n o it e e na q u iet u d e d a m anh ã,
q u an d o o sol t o ca as co lin as, há um gr an d e m ist ér io . O
m ist é r io est á aí, p r esen t e em t u d o q u e vive. Se vo cê se
sen t a em silên cio so b um a ár vo r e, sen t e a t er r a an cest r al
em an an d o o seu m ist ér io in co m p r e e n síve l. N u m a n o it e de
paz, q u an d o as est r elas est ão clar as e p r ó xim as, vo cê per­
ceb e o e sp aço em e xp an são , a o r d em m ist er io sa de t o d as
as co isas, o im en su r ável e o n ad a, o m o vim en t o d as co li­
nas escu r as e o pio d e um a co r u ja. No silên cio ab so lu t o da
m en t e, o m ist ér io se exp an d e livr e d o t e m p o e d o esp aço .
Há m ist é r io n o s t e m p lo s an t igo s q u e f o r am co n st r u íd o s
co m um cu id ad o in f in it o e co m at en ção , o q u e é am or. As
ele gan t e s m esq u it as e as gr an d es cat ed r ais p er d em esse
m ist ér io so m b r io , p o is há in t o ler ân cia, d o gm a e p o m pa
m ilit ar . O m it o q u e se e sco n d e n as cam ad as p r o f u n d as da
m en t e n ão é m ist er io so , m as r o m ân t ico , t r ad icio n al e co n ­
d icio n ad o . No s r ecesso s secr et o s da m en t e, a v e r d ad e f o i
p o st a de lad o p elo s sím b o lo s, p alavr as e im agen s, d e sp r o ­
vid o s d e m ist ér io , ap en as t u r b u lê n cias d o p en sam en t o .
No co n h e cim e n t o e su as açõ es há im agin ação , su r p r esa
e d eleit e; m as m ist ér io é o u t r a co isa. Não é algo a ser r e­
co n h ecid o , acu m u lad o e r elem b r ad o . A e xp er iên cia é a
m o r t e d o m ist ér io in co m u n icável; p ar a co m u n icar vo cê
p r ecisa da p alavr a, d e um gest o , de um o lh ar , m as para
e st ar em co m u n h ão co m aq u ilo , a m en t e, a t o t alid ad e
d o q u e vo cê é p r ecisa e st ar no m esm o n ível, ao m esm o

132
t em p o e co m a m esm a in t en sid ad e q u e aq u ilo q u e é ch a ­
m ad o de m ist ér io . Isso é am o r. Co m isso, t o d o o m ist ér io
do u n iver so se ab r e.
N essa m an h ã, n ão havia um a única n u vem no céu, o
so l est ava no vale e t o d as as co isas se r eju b ilavam , e xce ­
t o o ser h u m an o . Ele o lh o u p ar a essa t er r a m ar avilh o sa e
co n t in u o u a su a lab u t a co m a seu so f r im e n t o e seu s p r a ­
zer es p assageir o s; ele n ão t in h a t e m p o p ar a ver ; est ava
m u it o o cu p ad o co m o s seu s p r o b lem as, sua ago n ia, su a
v io lê n cia. Não v ê a ár vo r e e, assim , t am b é m n ão p er ceb e
o seu p r ó p r io esf o r ço . Qu an d o é f o r çad o a o lh ar , ele r asga
em p ed aço s o q u e vê, ch am a isso de an álise; f o ge d a si­
t u ação , ou se n ega a ver. Na ar t e d e v e r est á o m ilagr e d a
t r an sf o r m ação , a t r an sf o r m ação " d o q u e é" . " O q u e d e v e ­
ria se r " n u n ca é. Há um vast o m ist ér io no at o d e ver. Ist o
r eq u er cu id ad o , at en ção , o q u e é am o r.

133
14 de abril de 1975

Bem à su a f r e n t e e p r e gu iço sam e n t e , u m a ser p en t e


en o r m e, go r d a e p esad a at r av e ssava a r u a lar ga o n d e h a­
via car r o ças; ela t in h a saíd o de u m a lago a n as p r o xim id a­
d es. Era q u ase t o d a p r et a e a luz d o e n t ar d e ce r d ava à
sua p eie um p o lim e n t o e sp e cial. A se r p e n t e se m o via sem
p r essa e co m ar es de n o b r eza e p o d er . Ela n ão t in h a vist o
vo cê ali, de pé, a o b se r v á-la b em d e p e r t o e sile n cio sa­
m en t e. Devia t e r m ais q u e um m et r o e m eio d e co m p r i­
m en t o e ap r e se n t ava um in ch aço m o st r an d o o q u e havia
co m id o . Ela p asso u p o r cim a d e um a p eq u en a elevação
na t e r r a e v o cê cam in h o u em sua d ir e ção , o lh an d o par a
b aixo e se ap r o xim an d o p ar a v e r a lín gu a b if u r cad a en t r ar
e sair. Ela segu ia p ar a u m gr an d e b u r aco na t e r r a. Vo cê
p o d er ia t ê-la t o cad o , p o is ela t in h a u m a b e le za est r an h a
e at r ae n t e. Um ald eão p asso u e gr it o u p ar a d e ixá-la em
paz, p o is er a um a n aja. N o dia segu in t e, o s ald e õ e s t in h am
co lo cad o um p ir es co m leit e e f lo r e s d e h ib isco so b r e o
m o n t ícu lo . Na m esm a r u a e u m p o u co m ais à f r e n t e , havia
um ar b u st o alt o , q u ase sem f o lh as e co m e sp in h o s lo n go s,
af iad o s, acin ze n t ad o s e n en h u m an im al o u sar ia t o ca r su as
f o lh as su cu le n t as; ele est ava se p r o t e ge n d o e ai d aq u ele
q u e o t o casse . No s b o sq u e s d as r e d o n d e zas, ce r v o s t ím i­
d o s e m u it o cu r io so s ap ar e ciam o casio n alm e n t e ; eles p er ­
m it iam q u e vo cê se ap r o xim asse d eles, p o r ém sem ch e gar
m u it o p er t o , p o is r ap id am e n t e d e sap ar e ciam p o r en t r e a
f o lh age m . Havia u m co m o lh o s b em b r ilh an t e s e o r elh as

134
v o lt ad as p ar a f r e n t e q u e p er m it ia q u e se ch e gasse m ais
p er t o , se v o cê e st iv e sse so zin h o ; t o d o s e les t in h am p in ­
t as b r an cas n o p elo am ar r o n zad o ; r e t r aíd o s e d ó ceis, m as
sem p r e em e st ad o d e ale r t a, f aziam co m q u e f o sse m u it o
agr ad áve l e st ar en t r e eles. Um d eles era co m p le t am e n t e
b r an co e isso d evia se r u m a e xce n t r icid ad e .
0 b em n ão é o o p o st o d o m al. O bem n u n ca f o i t o cad o
p elo m al, e m b o r a o m al est eja à su a vo lt a. 0 m al n ão p o d e
f e r ir o b em , m as o b em p ar ece p o d e r f er ir e, assim , o m al
se t o r n a cad a vez m ais ast u t o e m ais p e r n icio so . O m al
p o d e se r cu lt ivad o , agu çad o e e xp an d ir -se em v io lê n cia;
d en t r o d o m o v im e n t o do t em p o , ele n asce, é n u t r id o e h a­
b ilid o sam e n t e u sad o . M as o bem n ão p e r t e n ce ao t em p o ;
n ão há co m o cu lt iv á-lo o u n u t r i-lo co m o p e n sam e n t o ; a
ação do b em n ão é visível; n ão t em cau sa e, p o r t an t o , n ão
t em ef eit o . O m al n ão p o d e se t o r n ar o b em , p o is est e n ão
é u m p r o d u t o do p en sam en t o ; o bem est á além d o p e n ­
sam e n t o , assim co m o a b eleza. Aq u ilo q u e o p e n sam e n t o
f az o p e n sam e n t o p o d e d esf azer , m as isso n u n ca é o b em ;
co m o n ão p e r t e n ce ao t e m p o , o b em n ão t em u m lu gar
d e m o r ad ia. On d e o bem est á exist e o r d e m , m as n ão a
o r d e m da au t o r id ad e , da p u n ição e da r e co m p e n sa. O r ­
d em é e ssen cial e, se n ão f o r assim , a so cie d ad e se d e st r ó i
e o ser h u m an o t o r n a-se m alé f ico , h o m icid a, co r r u p t o e
d e ge n e r ad o . Po is o se r h u m an o é a so cied ad e , são in se p a­
r áveis. A o r d em q u e vem co m o b em é d u r ad o u r a, im u t á­
vel e at e m p o r al; e st ab ilid ad e é a su a n at u r eza, p o r t an t o ,
ab so lu t am e n t e segu r a. Não há o u t r a se gu r an ça.

135
Esp aço é o r d em . Esp aço é t em p o , d u r ação , lar gu r a e
vo lu m e . N est a m an h ã o m ar e o f ir m am e n t o e st ão im e n ­
so s; o h o r izo n t e o n d e as co lin as co b e r t as d e f lo r e s am ar e ­
las e n co n t r am o m ar é a o r d e m da t er r a e d o céu ; é có s­
m ico . A q u e le cip r e st e , alt o , e scu r o e so lit ár io su st en t a a
o r d em da b eleza e a casa d ist an t e so b r e o m o r r o co b e r t o
d e m at a se gu e o m o v im e n t o d as m o n t an h as q u e se e le ­
vam p ar a e n co b r ir as co lin as m ais b aixas; o cam p o ver d e
co m u m a ú n ica vaca p ast an d o t r an sce n d e o t em p o . E o
h o m em su b in d o a co lin a est á p r eso no e st r e it o esp aço d e
seu s p r o b le m as.
Há o e sp aço d o v azio cu jo v o lu m e n ão é ap r isio n ad o
p elo t e m p o n em p e las m ed id as cr iad as p elo p e n sam e n ­
t o . A m en t e n ão p o d e en t r ar n esse esp aço ; ela só p o d e
o b se r var . N essa o b se r v a ção n ão há e xp e r im e n t ad o r . Esse
o b se r v ad o r n ão t em h ist ó r ia, n em asso ciaçõ e s, n em m i­
t o s; assim , o o b se r v a d o r é aq u ilo q u e é. O co n h e cim e n ­
t o é ext e n so , m as n ão t em e sp aço , p o is p elo seu p r ó p r io
p eso e v o lu m e ele p e r v e r t e e su f o ca e sse esp aço . Não há
co n h e cim e n t o d o eu , seja in f e r io r ou su p e r io r ; só exist e
u m a e st r u t u r a v e r b al d o eu, um e sq u e le t o r eve st id o p elo
p e n sam e n t o . O p e n sam e n t o n ão p o d e p e n e t r ar em sua
p r ó p r ia est r u t u r a; ele t am b é m n ão p o d e n egar t u d o q u e
ele ju n t o u , p o is q u an d o o f az est á r e cu san d o um gan h o
ain d a m aio r . Q u an d o o t e m p o do eu n ão est á, o esp aço
im en su r ável é.

136
A m ed id a é o m o v im e n t o de p u n ição e r e co m p e n sa,
gan h o s ou p er d as; é a at iv id ad e d e co m p ar ação e co n ­
f o r m id ad e , da r e sp e it ab ilid ad e e da su a n e gação . Esse
m o vim en t o é o t e m p o , o f u t u r o co m a su a e sp e r an ça e o
p assad o co m o s se u s ap e go s. To d a essa r e d e de co n e xõ e s
é a p r ó p r ia e st r u t u r a do eu, e sua u n ião co m o se r su p r e ­
m o o u co m o p r in cíp io ú n ico , ain d a est á d e n t r o d e seu
p r ó p r io cam p o . Tu d o isso é a at ivid ad e d o p e n sam e n t o . O
p e n sam e n t o n ão p o d e p e n e t r ar o e sp aço sem t e m p o , d e
j e it o n en h u m . Os m ét o d o s, os cu r r ícu lo s e as p r át icas q u e
o p e n sam e n t o in ven t a n ão são as ch aves q u e ab r ir ão a
p o r t a, p o is n ão há p o r t a n em ch ave. O p e n sam e n t o p o d e
ap e n as se d ar co n t a d e su a in f in d ável at iv id ad e , d e su a
cap acid ad e de co r r o m p e r , d e su a p r ó p r ia f alsid ad e e d e
su as ilu sõ es. O p e n sam e n t o é o o b se r v a d o r e o o b se r v a ­
do. Se u s d e u se s são su as p r ó p r ias p r o je çõ e s e ad o r á-lo s é
ad o r ar a si m esm o . O q u e est á além do p e n sam e n t o , além
do co n h e cid o , n ão p o d e se r im agin ad o n em t r an sf o r m ad o
em um m it o ou em u m se gr e d o p ar a p o u co s. Est á p r e se n ­
t e p ar a v o cê ver.

137
0 rio lar go ain d a est ava co m o um t an q u e de m o in h o .
N ão h avia u m a ú n ica o n d u lação e, co m o era m u it o cedo,
a b r isa da m an h ã ain d a n ão t in h a d e sp e r t ad o . As est r elas
est avam na águ a, clar as e cin t ilan t e s, e a e st r e la m at u t i­
na er a a m ais b r ilh an t e d e t o d as. As ár vo r e s ao lo n go do
rio est avam escu r as e o v ilar e j o e n t r e elas e st av a ainda
ad o r m e cid o . Nem u m a f o lh a se m o via e p e q u e n as co r u ­
j as p iavam so b r e os galh o s d o ve lh o t am ar in d e ir o ; elas
m o r avam aíi e, q u an d o o so l su r gia, ap r o ve it av am par a se
aq u ecer . Os p ap agaio s v e r d e s e b ar u lh e n t o s t am b é m ain ­
da est avam q u iet o s. To d as as co isas, at é m esm o o s in set o s
e as cigar r as e sp e r avam an sio so s p elo so l, em ad o r ação . O
rio est ava im ó vel e o s p e q u e n o s b ar co s co m su as f r acas
lam p ar in as est avam au se n t e s. Gr ad u alm e n t e , acim a das
ár v o r e s e scu r as e m ist e r io sas, co m e çavam o s p r im eir o s
sin ais da au r o r a. To d as as cr iat u r as vivas ain d a est avam
im e r sas no m ist é r io d aq u ele m o m en t o d e m ed it ação . Sua
p r ó p r ia m en t e era at e m p o r al, im en su r ável; n ão h avia p a­
r âm e t r o s p ar a m e d ir a d u r ação d aq u ele m o m en t o . Havia
ap e n as m o vim e n t o e d esp er t ar , p ap agaio s e co r u jas, gr a­
lh as e m ain ás, cães e u m a vo z q u e at r ave ssava o rio. E,
d e r ep en t e, o so l ap ar eceu e xat am e n t e o n d e as ár vo r es
e st avam , d o u r ad o , ain d a e sco n d id o pela f o lh agem . Ago r a

* K est á d e vo lt a à casa, em M alib u .

138
o gr an d e r io est ava d esp er t o , m o v e n d o -se ; t em p o , co m ­
p r im en t o , lar gu r a e vo lu m e f lu íam . To d a a vid a co m e çava,
p ar a n u n ca t e r f im .
Qu e ad o r áve l m an h ã, a p u r eza da lu z e a t r ilh a d o u r a­
da q u e o so l d e se n h av a so b r e as águ as p u lsan t e s d e vid a.
Vo cê er a o m u n d o , o co sm o s, a b eleza im o r t al e o j ú b ilo
da co m p aixão ; só q u e n ão h avia v o cê ali; se v o cê e st iv e sse ,
n ad a d isso e st ar ia. Vo cê in t r o d u z um co m e ço e um f im e,
en t ão , u m n o vo co m e ço , n u m a cad eia sem f im .
No v ir a se r há in cer t eza e in st ab ilid ad e . No vazio há
e st ab ilid ad e ab so lu t a e, assim , clar eza. A q u ilo q u e é co m ­
p le t am e n t e e st áve l n u n ca m o r r e; a co r r u p ção est á n o v i r
a ser. O m u n d o se v o lt a p ar a o v ir a ser, p ar a as co n q u is­
t as, p ar a o lu cr o e, assim , su r ge o m ed o d e p e r d e r e d e
m o r r er . A m en t e p r ecisa at r av e ssar esse gar galo q u e ela
m esm a cr io u , o eu , p ar a se d e p ar ar co m o v ast o vazio , cu ja
e st ab ilid ad e o p e n sam e n t o jam ais p o d er á m ed ir . O p e n sa­
m en t o d eseja cap t u r ar est e v ast o vazio , u sá-lo , cu lt iv á-lo
e co lo cá-lo no m er cad o . Tem d e f azê -lo p ar e ce r ace it áve l
e r e sp e it áve l p ar a se r ven er ad o . Co m o o p e n sam e n t o n ão
co n se gu e cat e go r izá-lo , en t ão d eve se r ilu são , ar m ad ilh a;
ou d eve ser so m e n t e p ar a p o u co s e p ar a o s esco lh id o s.
Desse m o d o , o p e n sam e n t o cir cu la p o r su as p r ó p r ias t r i­
lh as e n gan o sas, em vão , am e d r o n t ad o , cr u e l, n u n ca e st á­
vel, e m b o r a em su a vaid ad e af ir m e q u e há e st ab ilid ad e
n as su as açõ e s, n as su as e xp lo r açõ e s e n o co n h e cim e n t o
q u e acu m u lo u . A ilu são se t r an sf o r m a na r e alid ad e q u e ele
alim en t a. O q u e o p e n sam e n t o f az p ar e ce r r eal n ão é ver ­
d ad eir o . O v azio n ão é um a r ealid ad e, m as é a ver d ad e. O
gar galo , o eu, é a r e alid ad e d o p e n sam e n t o , é o e sq u e le t o
so b r e o q u al co n st r ó i t o d a a sua e xist ê n cia - a r ealid ad e

»39
d e sua f r agm e n t ação , su a d or , seu so f r im e n t o e seu am or .
A r e alid ad e d o s seu s d e u se s, ou do seu ú n ico d eu s, é a
cu id ad o sa e st r u t u r a d o p e n sam e n t o , su as o r açõ e s, seu s
r it u ais e seu cu lt o r o m ân t ico . Na r e alid ad e n ão exist e es­
t ab ilid ad e , n em clar eza v e r d ad e ir a.
O co n h e cim e n t o d o eu é t e m p o , d u r ação , lar gu r a e v o ­
lu m e; ele p o d e ser acu m u lad o , u sad o co m o u m a escad a
p ar a v ir a ser , p ar a m elh o r ar , p ar a co n q u ist ar p o siçõ es.
Esse co n h e cim e n t o j a m a is lib e r t ar á a m en t e d a car ga de
sua p r ó p r ia r ealid ad e. Vo cê é a car ga; a ve r d ad e d isso
est á em ver isso , e a lib e r d ad e n ão é a r e alid ad e do p e n ­
sam e n t o . Ver é agir. A gir vem da e st ab ilid ad e e clar eza,
d o vazio .

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7%í 24 de abril de 1975

To d a cr iat u r a viva t em a su a p r ó p r ia se n sib ilid ad e , seu


p r ó p r io j e it o d e viver , su a p r ó p r ia co n sciê n cia, m as o ser
h u m an o assu m e q u e a su a co n sciê n cia é m u it o su p e r io r
e, p o r cau sa d isso , p er d e o seu am o r , a su a d ign id ad e e
se t o r n a in se n síve l, e m p e d e r n id o e d e st r u t iv o . Era um a
m an h ã clar a e ad o r áv e l, n o vale d o s lar an jais, co m seu s
f r u t o s e a f lo r ação d e p r im aver a. A s m o n t an h as ao n o r t e
ain d a t in h am n eve salp icad a em se u s cu m e s; in d if e r e n t e s
e só lid as, elas n ão t in h am ad o r n o s, m as ao co n t r a st a r co m
a su av id ad e d o azul d o céu d e m an h ãzin h a, elas p ar eciam
e st ar b em p r ó xim as e v o cê q u ase p o d ia t o cá -la s. Tin h am
u m a in d e st r u t ív e l m aje st ad e e aq u e la im e n sa p r e se n ça
q u e vem co m a id ad e, assim co m o a b eleza q u e v e m co m
a gr an d e za at e m p o r al. Er a u m a m an h ã m u it o sile n cio sa e
o p e r f u m e d as f lo r e s de lar an jeir a en ch iam o ar e h avia a
b eleza m agn íf ica d a luz. N essa p ar t e d o m u n d o , a luz t em
u m a q u alid ad e e sp e cial, p e n e t r an t e , viva e d e e n ch e r o s
o lh o s; p ar ecia p e n e t r ar t o d a a co n sciê n cia e v ar r e r t o d o s
o s can t o s e scu r o s. Havia im en sa alegr ia p o r t o d a p ar t e e
cad a lâm in a d e gr am a se r eju b ilava co m t u d o isso ; o gaio
azul p u lava d e galh o em galh o , m as, d e ssa v e z, sem p e r d e r
a cab e ça d e t an t o gr it ar , só p ar a var iar . Er a u m a m an h ã
glo r io sa, ch eia d e lu z e gr an d e p r o f u n d id ad e .
O t e m p o ger o u a co n sciê n cia co m os se u s co n t e ú d o s.
É a cu lt u r a d o t e m p o . 0 co n t e ú d o p r o d u z a co n sciê n cia;
sem ele, a co n sciê n cia, co m o n ó s a co n h e ce m o s, n ão

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exist e. Daí, n ão há n ad a. N ó s m o ve m o s as p e q u e n as p eças
d e u m a ár ea p ar a o u t r a na co n sciê n cia, d e aco r d o co m a
p r e ssão da r azão e d as cir cu n st ân cias, m as se m p r e d en ­
t r o d o m esm o cam p o de dor, so f r im e n t o e co n h e cim en t o .
Esse m o v im e n t o é o t em p o , o p e n sam e n t o e a m ed id a. É
u m j o go d e e sco n d e -e sco n d e co n sigo m esm o t o t alm e n t e
sem sen t id o ; é a so m b r a e a su b st ân cia d o p en sam en t o ; é
o f u t u r o e o p assad o d o p e n sam e n t o . O p e n sam e n t o não
p o d e ap r e e n d e r e st e m o m en t o , p o is est e m o m en t o não
é d o t e m p o . Est e m o m e n t o é o f im d o t e m p o ; o t em p o
p ar a n est e m o m en t o ; n ão há m o v im e n t o algu m e, assim ,
est e m o m en t o n ão est á r e lacio n ad o co m n en h u m o ut r o.
Est e m o m en t o n ão t em cau sa e, assim , nem co m e ço nem
f im . A co n sciê n cia n ão p o d e ab ar cá-lo . N est e m o m en t o de
v azio a t o t alid ad e é.
M e d it ação é o e sv aziam e n t o da co n sciê n cia d e seu s
co n t e ú d o s.

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