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Fundamentos

Filosóficos do Direito
Profª Ivone Fernandes Morcilo Lixa

2016
Copyright © UNIASSELVI 2016

Elaboração:
Profª Ivone Fernandes Morcilo Lixa

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

340.1
Lixa; Ivone Fernandes Morcilo
Fundamentos filosóficos do direito/ Ivone Fernandes
Morcilo Lixa: UNIASSELVI, 2016.
158 p. : il.
ISBN 978-85-515-0003-3
1.Teoria e filosofia.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
L693f

Impresso por:
Apresentação
Vivemos um tempo alucinado e alucinante! As distâncias são cada
vez menores, a comunicação nos une em escala planetária em tempo real,
mas paradoxalmente nunca estivemos tão sem esperanças e com medo.

Nosso cotidiano é dominado por um crescente medo desenraizado


que se alimenta pelo anúncio do fim das grandes utopias. Estamos perto do
fim da segunda década do século XXI sem que tenhamos definido os rumos
dessa etapa da história vista por alguns como uma autêntica “encruzilhada”
que nos obriga a pensar acerca de qual caminho seguir: civilização ou barbárie.
Tempos difíceis e inéditos em que saberes são redefinidos, formas de poder
são reinventadas, maneiras pouco éticas de controle e de geração de riqueza
vão ampliando e aprofundando novas formas de exclusão e perversidades. É
nesse cenário que te convidamos a filosofar sobre o direito e a justiça!

Talvez você esteja se perguntando: restaria ainda algo a ser repensado


e reinventado? Para quê? Por quê?

Aceitando o desafio de responder algumas dessas perguntas é que


apresentamos este caderno de estudos. Viajando pelo mundo da filosofia
iniciamos nossa primeira conversa. Na primeira unidade, vamos ter a
oportunidade de compreendermos melhor qual a função da Filosofia e de que
maneira a Filosofia pode nos ajudar a compreender melhor os fundamentos
e elementos que constituem o Direito Moderno.

Na segunda unidade, juntos vamos percorrer a história do pensamento


filosófico ocidental buscando individualizar o legado de cada momento para
as reflexões acerca do justo e do direito.

Finalmente, na terceira unidade, retornamos ao mundo contemporâneo


descortinando por sob o véu de nossa ingenuidade a criticidade e os desafios
para o jurista brasileiro nos dias atuais. Sem dúvidas é um convite para
sairmos do lugar comum, do nosso conforto e aparente segurança.

O caminho é difícil, mas necessário, afinal é preciso nos mantermos


apaixonados pelo Direito e com esperança para que possamos acreditar na
transformação. É isso que nos mantém vivos e nos humaniza. Precisamos
amar o saber, e é assim que nasce a Filosofia!

Bons Estudos!

Profª Ivone Fernandes Morcilo Lixa

III
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – DIREITO E FILOSOFIA............................................................................................. 1

TÓPICO 1 – FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL.......................................................................... 3


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 3
2 O QUE É E PARA QUE FILOSOFIA?.............................................................................................. 4
3 FILOSOFIA: UM SABER CIENTÍFICO E METÓDICO.............................................................. 7
4 A FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL.............................................................................. 9
4.1 POR QUE ATENAS E EM ATENAS?........................................................................................... 12
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 20
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 21

TÓPICO 2 – FILOSOFIA DO DIREITO............................................................................................. 23


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 23
2 A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA DO DIREITO.................................................................. 26
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 30
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 31

TÓPICO 3 – O PARADIGMA DOMINANTE DE DIREITO MODERNO E SEUS .


ELEMENTOS EDIFICADORES.................................................................................... 33
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 33
2 O PARADIGMA MODERNO DE LEGALIDADE: FUNDAMENTOS.................................... 39
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 42
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 43

TÓPICO 4 – ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO JURÍDICO .


CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO PRINCÍPIO
DA LEGALIDADE........................................................................................................... 45
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 45
2 VERTENTE HISTORICISTA DO DIREITO MODERNO.......................................................... 51
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 54
RESUMO DO TÓPICO 4...................................................................................................................... 58
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 59

UNIDADE 2 –A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO


NO MARCO DA TRADIÇÃO................................................................................... 61

TÓPICO 1 – O LEGADO GRECO-ROMANO.................................................................................. 63


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 63
2 DO MITO AO LOGOS....................................................................................................................... 66
3 PLATÃO – FILOSOFIA, POLÍTICA E JUSTIÇA........................................................................... 74
4 ARISTÓTELES: UM ESPÍRITO MODERADO............................................................................. 79
5 O HELENISMO ROMANO............................................................................................................... 86
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 89
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 90

VII
TÓPICO 2 – O PENSAMENTO MEDIEVAL ................................................................................... 91
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 91
2 A PATRÍSTICA E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO............................................. 93
3 A CULTURA JURÍDICA MEDIEVAL.............................................................................................. 99
4 A HERANÇA CULTURAL PARA A MODERNIDADE............................................................... 101
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 102
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 104
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 105

UNIDADE 3 – FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS


CONTEMPORÂNEOS................................................................................................ 107

TÓPICO 1 – OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO


JUSFILOSÓFICO MODERNO..................................................................................... 109
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 109
2 HANS KELSEN E A PURIFICAÇÃO DO DIREITO.................................................................... 111
3 CRISE E CRÍTICA: OS LIMITES DA RACIONALIDADE JURÍDICA MODERNA............ 118
4 A REVISÃO DOS FUNDAMENTOS DO DIREITO NO BRASIL: CRISE E CRÍTICA........ 124
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 132
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 133

TÓPICO 2 – DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS................................... 135


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 135
2 A NOVA CONDIÇÃO NO COTIDIANO...................................................................................... 137
3 PALEOPOSITIVISMOS, JUSCONSTITUCIONALISMOS E RENOVAÇÃO
CRÍTICA NO BRASIL........................................................................................................................ 137
4 PENSAMENTO CRÍTICO CONSTITUCIONAL: RENOVAÇÃO POLÍTICA,
JURÍDICA E FILOSÓFICA................................................................................................................ 142
5 NOVOS MARCOS FILOSÓFICOS DO DIREITO ...................................................................... 145
CONTEMPORÂNEO............................................................................................................................. 145
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 149
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 151
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 152

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................ 153

VIII
UNIDADE 1

DIREITO E FILOSOFIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Os objetivos desta unidade são:

• definir o que é Filosofia;

• compreender o que é Atitude Filosófica;

• diferenciar a Atitude Filosófica do mero ato de pensar;

• identificar os objetivos da Filosofia;

• conceituar Filosofia Jurídica, bem como seus objetivos específicos;

• refletir acerca dos elementos históricos, políticos e filosóficos que


construíram o Direito Moderno.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. Ao final de cada um deles
você encontrará atividades que auxiliarão no seu aprendizado.

TÓPICO 1 – FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

TÓPICO 2 – FILOSOFIA DO DIREITO

TÓPICO 3 – O PARADIGMA DOMINANTE DE DIREITO MODERNO E


SEUS ELEMENTOS EDIFICADORES

TÓPICO 4 – ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO


JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

1 INTRODUÇÃO
Às vezes temos a sensação de que vivemos em um mundo que precisamos
e queremos compreender, e é por isso que iniciamos nosso estudo com um convite.

O mesmo tipo de convite com o qual se inicia o famoso romance filosófico


“O Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, que já foi traduzido em mais de 50 idiomas.
Você já ouviu falar sobre esse livro? É uma interessante estória através da qual
uma menina inquieta e curiosa chamada Sofia, nome que (como você verá) não é
escolhido por acaso, é conduzida pela história e o mundo dos grandes filósofos.
Ela, assim como você, é convidada a “olhar o fundo da cartola do mágico”.

Há um trecho interessante no início do livro com o qual você poderá se


identificar:

Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o truque


do mágico que tirou um coelhinho de uma cartola que estaria vazia.
No caso do coelhinho, sabemos que o mágico apenas nos iludiu. E é
justamente porque ele conseguiu nos iludir que queremos descobrir
como fez seu truque. Quando nos referimos ao mundo, é um pouco
diferente. Sabemos que o mundo não é um truque nem uma ilusão,
pois vivemos aqui e fazemos parte dele. No fundo, nós é que somos
como o coelhinho que foi tirado da cartola. A diferença entre nós e
o coelhinho branco é que ele não sabe que está participando de um
número de mágica.
Conosco é outra história. Temos consciência de que somos parte
de algo misterioso e ansiamos por descobrir como tudo pode ser
explicado (GAARDER, 2012, p. 15).

DICAS

O livro O Mundo de Sofia está disponível na internet em: <file:///C:/Users/


Usuario/Downloads/O%20Mundo%20de%20Sofia%20-%20Jostein%20Gaarder%20(1).pdf>.
Leia!!! Será recompensador!!

3
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Você deve estar se perguntando por que e para que estudar Filosofia, se
seu interesse é Direito? Filosofia não é perda de tempo ou coisa de gente que
“viaja” e vive nas nuvens?

É natural que você pense assim, aliás, muitos perguntam para que
serve a Filosofia. Estamos habituados a nos preocuparmos com o que nos traga
recompensas materiais ou financeiras, afinal, temos apelos todos os dias pela
mídia, por exemplo, a sermos utilitaristas e colocarmos nossa felicidade, bem
como o sentido de nossa existência, na quantidade de coisas e bens que podemos
comprar e acumular. Através da Filosofia aprendemos a conquistar uma felicidade
muito particular: descobrir o sentido das coisas e de nossa própria existência para
sermos donos de nosso próprio destino.

A Filosofia está presente em nosso cotidiano mais do que pensamos


e tem influenciado ideias, discursos, ações políticas, conceitos de justiça, por
exemplo, sem percebermos que é a Filosofia que nos permite ter a capacidade de
escolhermos e valorarmos nosso agir, não apenas individualmente, mas com os
demais com quem convivemos. E é isso, afinal, que nos torna civilizados.

Iniciamos um estudo particular que nos vai ajudar a compreender que não
existe nada “natural” no mundo jurídico. Vamos aprender que, embora sendo
difícil, devemos conhecer a origem e a finalidade dos valores que regem o mundo
do Direito, para nos tornar menos ingênuos e com mais certezas.

2 O QUE É E PARA QUE FILOSOFIA?


Vivemos um cotidiano marcado por discursos e práticas que costumamos
rotular de “justas/injustas” ou “certas/erradas”; e não raras vezes nos vemos
exigindo “o que nos é de Direito”. O que exatamente estamos colocando em
questão? O que é o justo e injusto em um mundo marcado por tão profundas
contradições e aparente desesperança?

Os últimos anos do século XX testemunharam grandes mudanças


em toda a face da Terra. O mundo torna-se unificado – em virtude
das novas condições técnicas, bases sólidas para uma ação humana
mundializada. Esta, entretanto, impõe-se à maior parte da humanidade
como uma globalização perversa.
Consideramos, em primeiro lugar, a emergência de uma dupla
tirania, a do dinheiro e a da informação, intimamente relacionadas.
Ambas, juntas, fornecem as bases do sistema ideológico que legitima
as ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam
conformar segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais,
influenciando o caráter das pessoas. A competitividade, sugerida pela
produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais
facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instalam. Tem
as mesmas origens a produção, na base mesma da vida social, de uma
violência estrutural, facilmente visível nas formas de agir dos Estados,
das empresas e dos indivíduos. A perversidade sistêmica é um dos
seus corolários (SANTOS, 2011, p. 18).

4
TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

Frases como “isso é uma verdade” já não são ditas com tanta facilidade. As
verdades parecem provisórias. É um tempo em que tudo parece se transformar com
rapidez alucinante. Mal temos tempo de compreender conceitos, valores, ideias ou
comportamentos que repentinamente já são ultrapassados. Como nós, que pensamos
o Direito, podemos lidar com esse aparente “pós tudo” sem cairmos na cilada do
senso comum, dos dogmas ou das verdades midiáticas criadas todos os dias?

NOTA

Dogma é uma “verdade a priori” aceita sem questionamentos. O dogmatismo


ao longo da história resultou em intolerância e opressão. Em sentido contrário, o pensar
crítico é uma postura que visa rever os dogmas e os contextos teóricos, fáticos, ideológicos
e culturais que os sustentam e os legitimam.

Há uma realidade na qual estamos inseridos que exige uma explicação!


Diariamente fazemos escolhas e julgamentos de valores, pois somos movidos por
crenças, valores, preconceitos, enfim, um conjunto de idealizações e representações
tanto individuais como coletivas que nos permite viver em sociedade. Como diz a
filósofa Marilena Chauí (2000, p. 8):

Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças


silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos
porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na
realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre
realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também
na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência
da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.

No esforço de ir além das “verdades postas” é preciso uma atitude


reflexiva metódica, ou seja, é necessário um “distanciamento” da realidade e dos
fatos para que possamos interrogar a nós mesmos e aos conceitos que parecem
inquestionáveis. Neste momento podemos sentir que nossas certezas são
questionadas e tudo parece possível de ser redefinido ou repensado.

É desde aí, desta “atitude reflexiva”, que falamos em “Filosofia”. Desde


uma atitude que permite discutir o que parece óbvio e natural. Claro que refletir
sobre as verdades e a realidade que nos cerca é uma dura escolha. Pode ser que
sejamos mais felizes ou mais otimistas com o superficial, afinal, ser inquieto é não
se deixar levar tão facilmente. É não aceitar passivamente o que nos é oferecido
como “alternativa possível”. Desde a atitude reflexiva descobrimos que não
podemos ser felizes a vida toda e todo o tempo. E essa é talvez a tarefa mais
urgente de nosso tempo. Enfrentar o medo das incertezas é o grande desafio
que se coloca diante de nós quando decidimos assumir uma atitude reflexiva.
Devemos ter a coragem de sair do nosso “agradável e confortável” senso comum.
“Acontece que tendemos a descobrir algo agradavelmente reconfortante quando
ouvimos melodias que sabemos de cor” (BAUMAN, 2008, p. 29).
5
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Esse distanciamento das “melodias que sabemos de cor”, das verdades


cotidianas, a fim de assumirmos uma atitude questionadora de si mesmo e desejar
conhecer por que e para que são nossas crenças e sentimentos é que podemos
chamar de atitude filosófica.

A atitude filosófica é o ato de reflexão questionadora própria do filósofo,


daquele que, tendo a consciência de que o saber é sempre provisório e também
infinito, renova e reinventa sempre as perguntas que formula. É assumir o risco
de viver sem verdades. Para o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale (2002, p. 5-6):

Filósofo autêntico, e não o mero expositor de sistemas, é, como o


verdadeiro cientista, um pesquisador incansável, que procura sempre
renovar as perguntas que formula, no sentido de alcançar respostas
que sejam ‘condições’ das demais. A filosofia começa com um estado
de inquietação e de perplexidade, para culminar numa atitude crítica
diante do real e da vida.

E é aí que nasce a Filosofia. Um saber metódico e rigoroso que possibilita


chegar à raiz das coisas na interminável e incessante busca do sentido do “ser” e
universo existencial.

ATENCAO

• Atitude reflexiva: é o ato de pensar as crenças, verdades e sentimentos de


nosso cotidiano de forma profunda e com desejo de conhecer a essência das coisas.
• Atitude filosófica: é a reflexão própria dos que não se cansam de admirar as coisas, e são
capazes de se distanciar do cotidiano e de si mesmos.
• Por que e para que a reflexão filosófica? Para um agir pessoal e social intencional e
consciente, sabendo o por que, para que e como são as coisas, crenças e sentimentos
em sua essência.
• A finalidade da reflexão filosófica é permitir um pensar e crer de forma crítica e livre de
preconceitos.
• O filósofo é inimigo de fanatismos e dogmatismos.

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

FIGURA 1 - LE PENSEUR – O PENSADOR


Le Penseur – O Pensador – é uma famosa
escultura de 1902 do artista francês Auguste
Rodin. Retrata uma difícil e sofrida atitude
humana: a de refletir profundamente. A atitude
do filósofo!

FONTE: <https://artelocalizada.wordpress.com/tag/o-pensador/>.
Acesso em: 15 ago. 2016.

3 FILOSOFIA: UM SABER CIENTÍFICO E METÓDICO


Muitas vezes usamos a palavra “Filosofia” para querer significar muitas
coisas, como, por exemplo: “filosofia de vida”, no sentido de uma forma pessoal
de agir e pensar; “mera filosofia”, querendo dizer que se trata de especulação, de
tão somente uma “teoria” sem fundamento. Mas Filosofia não é mera opinião, é
um pensar de maneira sistemática, ou seja, a partir de critérios e métodos. É um
trabalho intelectual.

Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca


encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou
ideias obtidas por procedimentos de demonstração e prova, exige a
fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim
a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana,
nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não
se trata de dizer ‘eu acho que’, mas de poder afirmar ‘eu penso que’.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque
não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas
exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que
as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam
umas às outras, formem conjuntos coerentes de ideias e significações,
sejam provadas e demonstradas racionalmente (CHAUÍ, 2000, p. 13).

A origem etimológica da palavra “Filosofia” nos esclarece bem seu sentido:

• “Filosofia” é uma palavra grega que resulta da união de dois termos: filos (o que
ama, o que gosta) e sofia (saber, sabedoria), portanto, Filosofia é o “amor pela
sabedoria”, e o filósofo é o que tem paixão pela verdade que se quer conhecer.
• Filosofia é um saber racional, rigoroso e sistemático que se diferencia de
religião, ou seja, de convicção pela fé.
7
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

QUADRO 1 - SABERES QUE PERMITEM COMPREENDER E EXPLICAR A REALIDADE


São informações que nos ajudam a descrever e identificar a realidade que nos
cerca, porém, tratam-se de saberes que não resultam de uma sólida base teórica e
Senso comum metodológica. Sua força de convencimento é produto do costume e/ou aceitação
cultural. Muitas vezes, se tais conhecimentos são submetidos ao rigor crítico e
científico, nem sempre são mantidos ou validados.
Trata-se de uma forma de saber que estabelece padrões de conduta e concepções
Religião de acordo com a fé em determinados princípios transcendentais. São formas de
(Teologia) convencimento ou convicções originárias de crenças – de fé – racionalizadas de
forma lógica que deve ser distante de fanatismo cego.
Racionalização de determinadas temáticas através de métodos e técnicas que
busca demonstrar a correção de certas prescrições ou proposições. Trata-se de
uma elaboração de pensadores europeus como Copérnico, Descartes, Galileu,
Newton, dentre outros, dos séculos XVI a XVIII, que acreditam que a realidade
Ciência
pode ser compreendida, explicada e dominada através de metodologias específicas
– métodos e técnicas – que possibilitam a sistematização, controle, previsão e
disseminação de saberes válidos, demonstráveis e seguros. A ciência tradicional
é uma contraposição ao senso comum, misticismo, mitos e superstições.
Saber reflexivo, racional, metódico e crítico sobre algo. Pode ser aplicada a
diferentes campos do conhecimento com a finalidade de questionar, esclarecer e
tornar compreensíveis os pressupostos que fundamentam distintas temáticas. É
ramificada em vários campos. Assume-se como atitude prévia de problematizar
Filosofia
uma determinada questão sob distintas perspectivas, sempre aberta a rever e
inovar conceitos e verdades prévias. Entre outras coisas, é a atitude própria
daquele que se espanta (estranhamento) com o mundo a seu redor – seu cosmos
–, todo o universo existencial.

FONTE: A autora

Filosofia é um dos saberes humanos que se define por sua especificidade,


métodos e objetivos, sendo composta por distintos “saberes”. Ao longo da
construção histórica do pensamento filosófico, distintos campos e subdivisões
foram sendo definidos. De modo geral, o saber filosófico se estende por campos
que colocam questões e problemáticas que as ciências da natureza – tais como
matemática, física, biologia e química – não conseguem responder, dizem respeito
ao permanente “problema das escolhas”.

DICAS

Assista à clássica cena do filme “Matrix”. O herói é obrigado a escolher entre


permanecer na ignorância ou conhecer a dura realidade. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=Bb86zhbBTAU>. Acesso em: jul. 2016.

8
TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

É sobre os seguintes campos que se estende o saber filosófico:

• Ética: do grego “ethos” – bons costumes –, diz respeito a escolhas inevitáveis e


inadiáveis quando nos deparamos com condutas e hierarquia de valores que
definem os caminhos a serem seguidos e os que devem ser evitados, levando
em conta os fins a que se destina a justificativa do próprio agir. A Filosofia Ética
tem como objeto de problematização a atitude humana em relação ao coletivo
e suas consequências históricas, sociais e políticas. Em outras palavras, é um
campo filosófico preocupado com o valor do bem e do agir humano que o tem
como finalidade última.
• Lógica: tem como preocupação as estruturas do pensamento e seus encadeamentos
racionais que permitem conhecer o ser humano e seu mundo circundante.
Através da lógica se discute se as inferências – deduções, as conclusões obtidas
pela relação entre uma coisa e outra – são verdadeiras ou falsas.
• Estética: do termo grego aisthetiké, significa “aquele que percebe”. É o campo da
filosofia que se dedica ao estudo do belo nas manifestações artísticas e naturais;
ao sentimento que desperta no indivíduo quando da sua contemplação.
• Epistemologia: termo de origem grega, “episteme”, relacionado com a natureza
e limites do conhecimento humano. Normalmente definida como “Teoria do
Conhecimento” ou “gnosiologia”, que no sentido mais restrito refere-se às condições
– metodológicas e técnicas – sob as quais se produz o conhecimento. Como campo
filosófico relaciona-se às possibilidades de alcançar a verdade no conhecimento.
• Metafísica: do grego “metà” – além de – e “physis” – natureza, física – é um
campo filosófico que discute questões para além do agir e conhecer, envolvendo
discussão acerca da natureza do que se conhece, sobre o que permite indagar
acerca da coisa em si. Metafísica indica o permanente esforço para atingir
uma causa válida e racional para o sentido da existencialidade humana, que
tem como ramo principal a ontologia – que investiga sobre as categorias ou
essências do ser.

4 A FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL


Filosofia, como saber sistemático e rigoroso acerca dos fundamentos
últimos das coisas, do “o quê”, “para que”, “porquê”, “como” dos fenômenos que
nos cerca e sobre nós mesmos, é um campo do conhecimento que, como conhecido
atualmente, surgiu na antiga Grécia há mais de dois mil e quinhentos anos.

9
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

FIGURA 2 - PITÁGORAS DE SAMOS


Pitágoras de Samos (570-495
a.C.), filósofo e fundador da teoria que
entendia serem os números, as relações
matemáticas, a essência de todas as coisas.
A ele se atribui a invenção da palavra
Filosofia para designar a sabedoria, que,
apesar de pertencer aos deuses, pode ser
desejada pelos homens, pelos filósofos.

FONTE: <http://www.ahistoria.com.br/pitagoras/>. Acesso em: 15 ago. 2016.

Evidente que não significa que outras culturas e civilizações, como os


orientais, africanos e povos latino-americanos, não se dedicaram a refletir e/ou
compreender o mundo ao seu redor. Entretanto, “Filosofia” com as características
que se tornaram modelo na cultura ocidental é resultado da tradição grega.
Vejamos um exemplo:

Os chineses desenvolveram um pensamento muito profundo sobre a


existência de coisas, seres e ações contrárias ou opostas, que formam a
realidade. Deram às oposições o nome de dois princípios: Yin e Yang.
Yin é o princípio feminino passivo na Natureza, representado pela
escuridão, o frio e a umidade; Yang é o princípio masculino ativo na
Natureza, representado pela luz, o calor e o seco. Os dois princípios
se combinam e formam todas as coisas, que, por isso, são feitas de
contrários ou de oposições. O mundo, portanto, é feito da atividade
masculina e da passividade feminina (CHAUÍ, 2000, p. 20).

A extraordinária genialidade grega para a Filosofia é o chamado “Milagre


Grego”. Claro que essa afirmação chega a ser exagerada e despreza as demais
culturas, chamadas pelos antigos gregos de “bárbaros”. Na verdade, entre fins
do século VII a.C. e VI a.C., uma soma de fatores contribuiu para a criação,
consolidação e expansão da Filosofia grega. Segundo historiadores do helenismo,
a criação de um modo específico de pensar o mundo dos homens e da natureza
se dá através de:

• As viagens marítimas – que contribuíram para a desmistificação da visão de


mundo dominante, uma vez que os mitos já não podiam explicar as origens e
diferenças descobertas.
• A invenção do calendário – uma nova abstração sobre o tempo na qual os
deuses não encontram lugar.
• Invenção da moeda – que exige nova forma de raciocinar e relacionar as coisas
e os bens.
• O surgimento da vida urbana – contribuindo para a formação de uma categoria
de sujeitos enriquecidos que coletivamente passaram a pensar e discutir
coletivamente, criando uma espécie de espaço público de decisão.

10
TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

• Invenção do alfabeto – fazendo com que se desenvolva a sofisticação da


literatura, arte e capacidade de abstração.
• Criação da política – resulta da busca de equilíbrio entre a convivência dos
homens e o poder. Entretanto, se em sua origem, na antiguidade grega,
significou uma forma possível de humanização, momentos da trajetória
histórica conferiram-lhe um sentido inverso. O nascimento da reflexão política
resultou das condições específicas do modo de vida grego ateniense: a existência
da pólis – Cidade-Estado – e o logos – racionalização do mundo circundante;
ambas constituindo distintas dimensões da liberdade e pluralidade humana.

FIGURA 3 - MUNDO HELÊNICO – CIVILIZAÇÃO E CULTURA GREGA ANTIGA

FONTE: <http://pt.slideshare.net/patriciagrigorio3/a-grcia-antiga-51320286>. Acesso em: 15 ago. 2016.

E
IMPORTANT

Embora não se possa afirmar que foram os gregos os únicos “filósofos” do mundo
antigo, os primeiros nomes históricos da Ciência e da Filosofia são: Tales de Mileto (623 a.C. ou
624 a.C.-546 a.C. ou 548 a.C.), Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.), Anaximandro de Mileto (610-
546 a.C.), Xenófanes de Colofon (570-475 a.C.) e Parmênides de Eleia (530-460 a.C.).

Por que quando pensamos ou ouvimos falar em Filosofia, imediatamente


lembramos da cidade de Atenas? Por que lá houve o florescer de uma magnífica
cultura que imortalizou nomes como os dos filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles,
os autores trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, historiadores como Heródoto e
Tucídides?

11
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Vamos então a um breve estudo histórico que nos permite compreender


por que, quando são reunidas algumas condições políticas, sociais, econômicas e
culturais, pode ocorrer um “milagre” em uma civilização.

FIGURA 4 - A ESCOLA DE ATENAS


"A Escola de Atenas" é um
afresco de Raffaello (1506-1510), de
5,00m x 7,00m, pintado no Palácio
Apostólico, Vaticano. Retrata um
grupo de filósofos de várias épocas
históricas ao redor de Aristóteles e
Platão, ilustrando a continuidade
histórica do pensamento filosófico
ateniense.

FONTE: <https://filosofiaefilosofiasnorenascimento.wordpress.com/2013/08/17/delimitando-o-
campo-i/>. Acesso em: 15 ago. 2016.

4.1 POR QUE ATENAS E EM ATENAS?


De todas as cidades gregas, em nenhuma outra havia tão estreito laço
entre o cidadão e a pólis – cidade autônoma/cidade-Estado - como o que existia
em Atenas, uma cidade que se afirmou como superior militar, política, cultural
e economicamente em relação às demais, culminando com uma dolorosa
experiência: A Guerra do Peloponeso (431-401 a.C.).

Em meio à derrota surge a necessidade de uma reflexão política interna, o


que se tornou fator decisivo para a rápida e surpreendente superação da profunda
crise em que aquela sociedade havia mergulhado.

Em nenhum outro momento da história o povo ateniense havia se dado


conta de que sua maior força estava na cultura.

Uma corrente geral arrastava poetas, oradores e, sobretudo, jovens,


buscando exaltar o ideal consciente da cultura e da educação grega. A clara
consciência do “espírito grego”, que se traduzia como distinção em relação aos
demais povos, e a realização da democracia no século anterior, ofereciam maior
capacidade de superação aos entraves políticos, sociais e econômicos dos séculos
V e IV a.C.

Neste momento, o processo histórico rompe com a estabilidade da ordem


social até então instituída. Assiste-se um avanço cultural decisivo que criou
um fértil terreno para o pensamento político e filosófico. É superado o antigo
paradigma cosmológico no qual ao homem cabia apenas aceitar o destino de

12
TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

nascer, viver e morrer sob a ordem do inevitável e imutável, desaparecendo o


sentido de vivência como mágico círculo natural de ordem fora do qual apenas
existia o caos.

Assim, abre-se o campo para os debates onde é ressaltada a capacidade


de pensar como forma de convencimento público, destacando-se pensadores
influentes e eloquentes que defendiam valores humanos. Este movimento
intelectual crítico das autoridades e das convenções acaba por criar um abismo
entre as velhas crenças – preocupadas com o mundo da natureza – e os assuntos
da pólis. Os sofistas lideram estes novos debates, auxiliando seus discípulos a
obter mais sucesso na vida pública do que na especulação teórica. Sophistes era
uma expressão genericamente utilizada para designar pessoas ao mesmo tempo
hábeis e sábias, e, por volta de 450 a.C., passou a ser usada para identificar
“professores viajantes” que ensinavam por meio de conferências públicas a arte
da eloquência e da sabedoria “prática” (areté).

Estes intelectuais constituíam uma nova classe de profissionais que,


apesar de não partilharem nenhuma escola filosófica, possuíam um traço comum:
afastaram definitivamente o pensamento grego das preocupações naturais e
centraram-se nos assuntos relativos à conduta humana.

Consolida-se uma forma de pensar onde a filosofia passa a ser a fonte


primordial de conhecimento e poder. Na medida em que a capacidade de
contemplação – adquirida pelo ato de filosofar – confere legitimidade racional ao
discurso e à prática política, é rompida a submissão injustificável ao nomos: agora
é necessário compreendê-lo racionalmente.

Neste cenário é que surge uma figura que será imortalizada como a
encarnação de todas as virtudes ideais de um cidadão: Sócrates (469-399 a.C.).
Um homem atormentado pela consciência do saber, que carregava o insuportável
fardo de conhecer a redenção de uma sociedade decadente e criminosa, não
poderia fugir da missão política que deveria cumprir.

Sua conhecida escolha pela morte, quando acusado de corromper a


juventude e ser um subversivo, representa o conflito político entre o pensador e a
pólis. Embora não desejando desempenhar nenhum papel político, queria, acima
de tudo, que a filosofia tivesse algum sentido para a cidade.

Seu julgamento e morte é antes de mais nada uma atitude humana diante
da esfera política. A partir de então, os filósofos se sentiram mais responsáveis
pela cidade, seus seguidores – destacadamente Platão e Aristóteles – definiram
conceitos éticos a fim de conferir validade à ação política.

Este foi o ponto de partida para a reflexão política: a racionalização de


uma conduta ética como sinônimo de sabedoria e as bases de toda tradição
filosófica ocidental.

13
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

DICAS

Leia a obra clássica:

JAEGER, Werner. Paideia – A Formação do Homem Grego. Tradução de Artur M. Lima. São
Paulo: Martins Fontes, 1989.

Há uma História da Filosofia?

Ao falarmos Filosofia no marco da tradição ocidental, ou seja, das ideias,


conceitos, métodos e teorias que se consolidaram e são repetidas no meio
acadêmico, o eixo central é, normalmente, a História da Filosofia.

Como tradição e mesmo como disciplina universitária, a filosofia


ganha profundidade, porque conhece a fundo a sua própria história.
As grandes ideias, resenhadas e sistematizadas, impedem que
constantemente aquele que trabalha com a filosofia tenha que inventar
a roda. Isto é, o conhecimento da história da filosofia facilita a bagagem
filosófica na medida em que desnuda a amplitude do conhecimento
filosófico e se abre às suas minúcias (MASCARO, 2012, p. 3).

Filosofia implica em método de reflexão e pode-se dizer que a cada


momento histórico há “uma Filosofia” porque há um método, uma forma
específica de sistematização, desafios e questionamentos específicos de cada
época e contexto para os quais serão elaboradas respostas a partir da acumulação
de saberes filosóficos legados, portanto, historicamente, convencionou-se as
seguintes etapas do pensamento filosófico ocidental:

• Filosofia Antiga: entre os séculos VI a.C. ao V

Refere-se a uma etapa bastante diversificada, envolvendo problemáticas


das mais diversas. Pode-se agrupar entre:

o pré-socráticos ou cosmológico – período e pensadores que antecederam


a Sócrates e interrogavam acerca das questões da natureza, physis, e o
princípio organizador, arché, do mundo e da própria natureza;
o socrático ou antropológico – entre os séculos V e fins do século IV a.C.,
representado pelas imortais figuras de Sócrates, Platão e Aristóteles,
quando a preocupação da Filosofia desloca-se para o eixo humano, a vida
política e moral; bem como a capacidade humana de conhecer a essência e
razão das coisas;
o helenístico ou greco-romano – de fins do século III a.C. ao II, quando se
dá o início da consolidação do pensamento cristão, destacadamente com o
pensamento de Santo Agostinho. Nesta etapa, as grandes questões passam
a orbitar em torno da busca da virtude individual e da fundamentação da
ética cristã. Predominam as doutrinas dos estoicos, epicuristas e os céticos.
14
TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

• Filosofia Medieval: entre os séculos V ao XIV/XV

Etapa histórica em que a Filosofia se torna “serva da Teologia”, uma vez que
ocorre uma indissociável relação entre Filosofia e Teologia, mais especificamente,
a Teologia Cristã, que nasce e se consolida associada à cultura greco-romana,
porém, com forte influência do pensamento aristotélico, sobretudo em Tomás de
Aquino, após uma breve aproximação inicial com o platonismo, particularmente
em Santo Agostinho.

A Filosofia medieval foi edificada por pensadores europeus, árabes


e judeus. Naquele momento, a Igreja dominava política e ideologicamente a
Europa e se expandia, ao mesmo tempo em que fundava universidades, edificava
catedrais e coroava reis. Em síntese, a Igreja Católica Romana era o poder em
múltiplas dimensões, tendo como uma das questões filosóficas centrais a prova
da existência de Deus e da alma imortal.

Há que se destacar que se o pensamento conhecido de Platão e Aristóteles


chegou até à Idade Média e, por via de consequência, à Modernidade, os grandes
responsáveis foram os árabes, uma vez que não apenas mantiveram magníficas
bibliotecas, mas eram estudiosos metódicos dos antigos textos gregos, a exemplo
de Avicena (980-1037), que buscou conciliar o pensamento de Platão e Aristóteles,
e Averróis (1126-1198), um dos maiores conhecedores de Aristóteles que o mundo
já conheceu. Sem dúvida, graças aos árabes foi possível a aproximação entre o
materialismo aristotélico e o cristianismo.

Dentre a complexa e profunda discussão filosófica levada a cabo pelos


medievais, dois momentos costumam ser assinalados:

o Patrística – o termo “patrística” vem do latim pater (pai) e se refere aos


“pais” da teologia da Igreja, tem seu início durante o período de decadência
do Império Romano, durante o século III. As principais questões filosóficas
são relacionadas com fé e razão; a natureza de Deus, a alma e a vida moral.
A fundamentação será dada pelo platonismo, sobretudo no que se refere à
concepção do “suprassensível”, para a justificação do controle racional das
paixões, no sentido platônico, renúncia do mundo terreno e o rigor ético. O
maior nome é o do Bispo de Hipona, Santo Agostinho (354-430), que desde
Platão crê que a verdade é produto da iluminação divina dada por Deus a todo
espírito humano. Dentre suas obras destacam-se as que irão ser relevantes
para nosso futuro estudo sobre Filosofia do Direito: “As Confissões” (396-
397) e “Cidade de Deus” (411-426) – seu maior escrito sobre ética e política.
o Escolástica – período posterior ao século XIII, quando Tomás de Aquino (1225-
1274), a partir das obras de Aristóteles, garante a sobrevivência do cristianismo
frente ao avanço do racionalismo que irá marcar os séculos posteriores.
Inúmeras são suas obras, dentre as quais destaca-se a “Suma Teológica”, escrita
entre os anos de 1265-1273. Desde a metafísica aristotélica são elaboradas as
bases racionais e filosóficas para a separação entre fé e razão, harmonizando as
distintas e maiores esferas da verdade que podem ser atingidas.

15
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

A Filosofia Medieval, marcada por profundidade e grande vigor teórico,


é um período que não pode ser considerado “de trevas”, como erroneamente
costuma ser compreendida, ou enfadonhas e inúteis discussões sobre cristianismo,
como o “sexo dos anjos” e “umbigo de Adão”.

DICAS

A popular expressão “discutir sexo dos anjos” tem sua origem em um curioso
episódio ocorrido no ano de 1453, durante a tomada de Constantinopla pelos turcos. Narra a
história que enquanto o imperador, que acabou morto, resistia junto com os cristãos contra
a queda da cidade de Istambul (na época chamada Bizâncio), que estava sendo queimada
e incendiada e sua população morta, as autoridades da Igreja mantinham uma acalorada
discussão sobre qual seria o sexo dos anjos e se Adão tinha ou não umbigo.

A Idade Média foi o momento histórico de elaboração dos pilares da


Modernidade. Na etapa medieval, a vida intelectual, política e filosófica atinge
novos e altos níveis de sofisticação. Por essa razão afirma Richard Tarnas (2011, p.
244) que “a gestação medieval da cultura europeia atingira um novo limiar, além
do qual ela já não se conteria nas antigas estruturas. A maturação de dois mil anos
do Ocidente estava a ponto de afirmar-se em uma série de tremendas convulsões
culturais que dariam à luz ao mundo moderno”.

• Filosofia Moderna: entre os séculos XV/XVI ao XIX

O pensamento filosófico moderno possui uma marca: a completa inovação


do mundo e do homem. Como resultado de uma soma de fatores, a Modernidade
inaugura um inédito estágio civilizatório de múltiplas e complexas faces. Dentre
os fatores que se entrelaçam, o Renascimento, a Reforma e a Revolução Científica
serão os propulsores de uma nova lógica de vida e, como veremos, de Direito.

As transformações mais do que nunca são aceleradas e alucinantes: o


“mundo” se expande para além da Europa, a visão unitária de cristianismo e de
verdade é rompida pela Reforma Protestante com Calvino e Lutero; o conceito de
conhecimento passa a ser definido pela Ciência por pensadores como Leonardo
da Vinci, Copérnico, Galileu, Bacon e Kepler; a política passa a ser definitivamente
assunto humano e científico com Bodin e Maquiavel; a arte renasce com Miguel
Ângelo, Rafael, El Greco e outros. Enfim, Modernidade torna-se sinônimo de
permanente mudança.

Definitivamente o homem torna-se dono de seu destino e de suas escolhas


políticas, é livre para se autodeterminar. Afinal, o homem é o “centro” do universo
existencial.

16
TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

FIGURA 5 - HOMEM VITRUVIANO


Homem Vitruviano de Leonardo
da Vinci é uma obra de 1490 baseada em
um trabalho do arquiteto Vitrúvio e quer
significar as proporções perfeitas de um
ideal de ser humano. É uma figura repleta
de simbolismos, demonstrando a relação
do homem com o universo.

FONTE: <http://www.sitedecuriosidades.com/curiosidade/o-que-e-o-homem-vitruviano-de-da-
vinci.html>. Acesso em: 15 ago. 2016.

O pensamento moderno possui duas faces indissociáveis: o Racionalismo e o


Iluminismo. O Racionalismo moderno é fundado na inabalável crença na autonomia
e autoconsciência do ser humano em si, muito menos dependente de um Deus
onipotente e onipresente. A fé na razão humana triunfa sobre as religiões, as antigas
autoridades e a Ciência como uma nova forma de redenção, e conduz o homem a um
novo olhar para a realidade objetiva verificável, quantificável e comprovável.

A busca pela verdade era agora conduzida na base da cooperação


internacional, no espírito de curiosidade disciplinada, com o desejo
mesmo de transcender cada vez mais os limites do conhecimento.
Oferecendo uma nova possibilidade de certeza epistemológica e
consenso objetivo, novos poderes de previsão experimental, invenção
técnica e controle da Natureza, a Ciência apresentava-se como a graça
salvadora da cultura moderna (TARNAS, 2011, p. 305).

Munido de uma nova racionalidade, independente dos dogmas da


Igreja e das gloriosas e eternas ideias greco-romanas, agora havia condições que
estabeleciam um novo modelo civilizatório, novas formas de ordem política
alicerçadas nos direitos racionalmente definidos em contratos sociais mais
benéficos, que iriam servir de linha divisória entre o estado de natureza selvagem
e bárbaro e a sociedade civil.

ATENCAO

Lembre-se de que a era moderna é a era das Revoluções Burguesas, que


fundaram uma nova forma de poder: os Estados Liberais.

17
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Outra face do pensamento moderno é o Iluminismo (Aufklãrung em


alemão, que pode ser traduzido como Esclarecimento, ou Lumières, Luzes, no dizer
francês). Para os iluministas, todo desconhecido pelo estado de ignorância pode ser
conhecido, “iluminado” pela razão humana. Pensadores iluministas como Locke,
Leibniz, Spinoza, Bayle, Voltaire, Montesquieu, Diderot, Hume, Adam Smith, Kant,
dentre muitos outros mais, fundaram uma nova visão de mundo.

FIGURA 6 - REPRESENTAÇÃO DA LIBERDADE


A Liberdade Guiando o
Povo – Le liberte guidant le peuple –,
pintura de Eugène Delacroix de
1830, é um dos grandes símbolos da
civilização moderna e representa a
liberdade empunhando a bandeira
da Revolução Francesa triunfando
sobre os mortos.

FONTE: <http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2012/01/06/903132/conheca-
liberdade-guiando-povo-eugne-delacroix.html>. Acesso em: 15 ago. 2016.

• Filosofia Contemporânea: da metade do século XIX até os dias atuais

É muito difícil definir com clareza o período histórico em que se vive. São
muitas as correntes filosóficas com variadas percepções de mundo, entretanto,
algo têm em comum: o desencanto com a razão e a descrença na ciência. Estamos
em uma etapa em que “tudo parece desmanchar-se no ar”. Tempos líquidos, no
entender de Bauman (2008, p. 38), ao que parece “[...] não podemos mais tolerar o
que dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos [...]”.

As categorias filosóficas passaram a desconfiar do otimismo técnico e


científico do século XIX, afinal, as guerras mundiais desnudaram a crueldade que
pode ser produzida pelo conhecimento científico. Desde aí, por exemplo, a Escola
de Frankfurt, formada por um grupo de intelectuais fundadores da Teoria Crítica,
fez a distinção entre razão instrumental e razão crítica. A razão instrumental,
a técnico-científica, não foi capaz de promover a libertação e emancipação
humanas, ao contrário, tornou-se instrumento de opressão e extermínio. Como
contraposição à razão crítica, desde uma revisão da razão instrumental, propõe
uma forma de conhecimento libertador e emancipatório.

As utopias modernas foram destroçadas pelas experiências totalitárias do


fascismo, nazismo e stalinismo. Instalou-se um desencanto com os discursos e
ideais legados da modernidade. Desgraçadamente descobrimos que não somos
iguais, tampouco livres e muito menos fraternos. A universalidade e hegemonia

18
TÓPICO 1 | FILOSOFIA: UM ESTUDO INICIAL

da civilização eurocêntrica já não pode ser mais defendida. São tempos de


relativismos e saberes provisórios.

Estaríamos no fim da Filosofia? No fim da história? Se para alguns a


Modernidade acabou, para outros, como Jürgen Habermas, é um projeto inacabado
(HABERMAS, 2013). Em discurso proferido em setembro de 1980 em Frankfurt,
Habermas denuncia que as promessas do Iluminismo não se cumpriram e ainda
seria possível, apesar das patologias e males vividos na Modernidade, melhorar
a condição humana, e, assim, não teria sentido o discurso pós-moderno. Talvez o
que ainda nos restaria seria o luto pelo fracasso de um projeto civilizatório.

FIGURA 7 - RETRATO DO HORROR

Guernica – de Pablo Picasso, obra produzida em 1937, atualmente no


Museu Rainha Sofia (Madri-ES). Retrata o horror do bombardeio alemão sobre a
cidade espanhola de Guernica com o aval do ditador Francisco Franco.
FONTE: <http://www.museoreinasofia.es/en/collection/artwork/guernica>.
Acesso em: 15 ago. 2016.

Desde os centros tradicionais da Filosofia se anuncia a pós-modernidade.


A entrada para o século XXI não foi tão triunfal como se esperava. Desde as três
últimas décadas do século XX, as lutas contra os regimes ditatoriais, os movimentos
sociais, a luta pela afirmação de direitos humanos, a perversa miséria e exclusão
produzida pela globalização neoliberal, fizeram ressurgir a aproximação entre a
Filosofia, Ética, Política e Ideologia.

DICAS

Mais adiante retomaremos alguns dos pensadores modernos e pré-modernos


para melhor compreendermos o próprio Direito e seus fundamentos filosóficos modernos.
Para melhor aprofundar esse momento de estudo, sugere-se a leitura do livro: “Convite à
Filosofia”, de Marilena Chauí, disponível em: <http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/
File/classicos_da_filosofia/convite.pdf>, especialmente o Capítulo I.

19
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você viu:

• Os elementos essenciais que irão servir de referência permanente em nossos


estudos.

• O sentido e especificidade do estudo da Filosofia.

• A Filosofia como saber prévio e necessário a qualquer campo do conhecimento.

• A origem do pensamento filosófico na tradição do pensamento ocidental.

• O processo histórico de construção da Filosofia ocidental.

• Os desafios da reflexão filosófica no mundo contemporâneo.

20
AUTOATIVIDADE

Considere o texto a seguir:

Uma definição precisa do termo “filosofia” é impraticável. Tentar


formulá-la poderia, ao menos de início, gerar equívocos. Com alguma
espirituosidade, alguém poderia defini-la como “tudo e nada, tudo ou
nada...”. Melhor dizendo, a filosofia difere das ciências especiais na medida
em que procura oferecer uma imagem do pensamento humano – ou mesmo da
realidade, até onde se admite que isso possa ser feito – como um todo. Contudo,
na prática, o conteúdo de informação real que a filosofia acrescenta às ciências
especiais tende a desvanecer-se até parecer não deixar vestígios. Acreditamos
que esse desvanecimento seja enganoso, mas devemos admitir que até aqui a
filosofia não tem conseguido realizar suas grandes pretensões. Tampouco tem
logrado êxito em produzir um corpo de conhecimentos consensual comparável
ao elaborado pelas diversas ciências. Isso se deve, em parte, embora não
integralmente, ao fato de que, quando obtemos conhecimento verdadeiro a
respeito de determinada questão situamos essa questão como pertencente
à ciência e não à filosofia. O termo “filósofo” significava originariamente
“amante da sabedoria”, tendo surgido com a famosa réplica de Pitágoras aos
que o chamavam de “sábio”. Insistia Pitágoras em que sua sabedoria consistia
unicamente em reconhecer sua ignorância, não devendo, portanto, ser chamado
de “sábio”, mas apenas de “amante da sabedoria”. Nessa acepção, “sabedoria”
não se restringia a qualquer dos domínios particulares do pensamento e, de
modo similar, “filosofia” era usualmente entendida como incluindo o que hoje
denominamos “ciência”. Esse uso sobrevive ainda hoje em expressões como
“filosofia natural”. Na medida em que uma grande produção de conhecimento
especializado em um dado campo ia sendo conquistada, o estudo desse campo
se desprendia da filosofia, passando a constituir uma disciplina independente.
As últimas ciências que assim evoluíram foram a psicologia e a sociologia.
Dessa forma, poderíamos falar de uma tendência à contração da esfera da
filosofia na própria medida em que o conhecimento se expande. Recusamo-
nos a considerar filosóficas as questões cujas respostas podem ser dadas
empiricamente. Não desejamos com isso sugerir que a filosofia poderá acabar
sendo reduzida ao nada. Os conceitos fundamentais das ciências, da figuração
geral da experiência humana e da realidade (na medida em que formamos
crenças justificadas a seu respeito) permanecem no âmbito da filosofia, visto
que, por sua própria natureza, não podem ser determinados pelos métodos das
ciências especiais. É sem dúvida desencorajador que os filósofos não tenham
logrado maior concordância com respeito a esses assuntos, mas não devemos
concluir que a inexistência de um resultado por todos reconhecido signifique
que esforços foram realizados em vão. Dois filósofos que discordem entre si
podem estar contribuindo com algo de inestimável valor, embora ambos não
estejam em condição de escapar totalmente ao erro: suas abordagens rivais

21
podem ser consideradas mutuamente complementares. O fato de filósofos
distintos necessitarem dessa mútua complementação torna evidente que o
ato de filosofar não é unicamente um processo individual, mas também um
processo que possui uma contrapartida social. Um dos casos em que a divisão
do trabalho filosófico se torna bastante proveitosa consiste na circunstância de
que pessoas distintas usualmente enfatizam aspectos diferentes de uma mesma
questão. Contudo, boa parte da filosofia volta-se mais para o modo pelo qual
conhecemos as coisas do que propriamente para as coisas que conhecemos,
sendo essa uma segunda razão pela qual a filosofia parece carecer de conteúdo.
No entanto, discussões a respeito de um critério definitivo de verdade podem
determinar, na medida em que recomendam a aplicação de um dado critério,
quais as proposições que na prática deliberamos serem verdadeiras. As
discussões filosóficas da teoria do conhecimento têm exercido, ainda que de
modo indireto, importante efeito sobre as ciências.

FONTE: <http://filosofia.paginas.ufsc.br/files/2013/04/O-que-%C3%A9-Filosofia-e-por-que-vale-
a-pena-estud%C3%A1-la.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.

Após a leitura e reflexão sobre o texto acima responda a seguinte questão:

Por que a não concordância dos filósofos sobre determinada


problemática é considerado um ganho? As discussões filosóficas não devem
conduzir a uma verdade?

22
UNIDADE 1
TÓPICO 2

FILOSOFIA DO DIREITO

1 INTRODUÇÃO
Vamos retomar o mesmo questionamento inicial: por que e para que o
estudo da Filosofia para quem deseja ser um jurista? Qual a relação entre Direito
e Filosofia?

Como já vimos, a atitude reflexiva, ação ou processo através do qual a


pergunta retorna ao sujeito que pergunta, resulta da permanente inquietação
frente ao que nos rodeia, e este é o ponto de partida para a Filosofia.

Também já sabemos que a problematização das questões mais radicais, no


sentido daquelas que estão “na raiz”, nos coloca diante de um universo infinito
de desafios e novos questionamentos que, de início, sequer imaginávamos serem
relevantes.

Diante da tentativa de estabelecer a relação entre Direito e Filosofia,


inúmeras são as dificuldades e “caminhos” que se colocam, porém, decidindo
pela escolha mais elementar, neste primeiro momento propomos definir o que é
Filosofia do Direito.

Como conhecimento sistematizado e rigoroso, a Filosofia é o estudo


preliminar de inúmeras áreas do saber, particularmente das Ciências Sociais e
Humanas. Como você já deve saber, há uma diferença nas áreas do conhecimento
definida em função de seu objeto e métodos. Sem querer entrar na mesma
discussão que tomou conta do debate científico dos séculos XVIII e XIX acerca
do conceito de Ciência e seus distintos campos, o campo do Direito é um campo
de estudo social e valorativo, uma vez que lidamos com conceitos como deveres,
obrigações, justo e injusto etc. Para iniciarmos uma aproximação com a Filosofia
do Direito, podemos afirmar que Direito é um saber específico, ao mesmo
tempo uma ciência normativa e aplicada que se aproxima de muitos outros
conhecimentos relacionados à ação humana e aos valores que a regem.

23
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

NOTA

“Ciência”  é um termo de origem latina “scientia”, que significa conhecimento


ou saber. De forma bastante simples, se pode afirmar que atualmente se entende por
Ciência todo o  conhecimento produzido através da sistematização metodológica acerca
de um determinado objeto com base em determinados pressupostos ou princípios. Ciência
comporta vários conjuntos de saberes elaborados a partir de teorias que respondem de
maneira eficiente a um determinado problema. Por esta razão, “espírito investigativo” é
sempre problematizador e aberto ao “novo”. De acordo com o objeto são definidos campos
distintos do conhecimento, dentre os quais as Ciências Sociais e Humanas, que estudam
o comportamento e as relações humanas. Nelas se incluem áreas como a Antropologia, o
Direito, a História, a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia Social, a Economia Social, a Política
Social, o Direito Social. Já as Ciências Naturais são ciências que descrevem, ordenam e
comparam os fenômenos que independem das relações humanas, como, por exemplo,
as ciências exatas (como a Física e a Química) e as geociências (Biologia, incluindo a
Microbiologia e a Paleontologia, Geografia, Geologia, Cristalografia etc.).

FIGURA 8 – OBSERVAÇÃO CIENTÍFICA


Gravura de Maurits Cornelis Escher (1898-
1972) que nos sugere o que é a observação científica:
um olhar para o “mistério” do mundo e de nós
mesmos.

FONTE: <http://www.mcescher.com/gallery/italian-period/hand-with-reflecting-sphere/>.
Acesso em: 15 ago. 2016.

Por sua particularidade, o Direito possui distintas dimensões, dentre as


quais a dogmática jurídica, definida como premissas ou pressupostos válidos,
segundo os valores, finalidades e princípios do Direito, cuja finalidade é a de
orientar uma decisão de forma a limitar a discricionariedade – poder de escolha
– do órgão julgador.

A dogmática jurídica preocupa-se com possibilitar uma decisão e


orientar a ação, estando ligada a conceitos fixados, ou seja, partindo
de premissas estabelecidas. Essas premissas ou dogmas estabelecidos

24
TÓPICO 2 | FILOSOFIA DO DIREITO

(emanados da autoridade competente) são, a priori, inquestionáveis.


No entanto, conformadas as hipóteses e o rito estatuídos na norma
constitucional ou legal incidente, podem ser modificados de tal forma
a se ajustarem a uma nova realidade. A dogmática, assim, limita
a ação do jurista condicionando sua operação aos preceitos legais
estabelecidos na norma jurídica, direcionando a conduta humana
a seguir o regulamento posto e por ele se limitar, desaconselhando,
sob pena de sanção, o comportamento contra legem, mas não se limita
"a copiar e repetir a norma que lhe é imposta, apenas depende da
existência prévia desta norma para interpretar sua própria vinculação
(ADEODATO, 2002, p. 32).

Uma das finalidades da dogmática jurídica é a de possibilitar o que


tradicionalmente se define como segurança jurídica, ou seja, garantir um mínimo
de previsibilidade das decisões que definem as relações e o comportamento
social, porém, dogmática jurídica não deve ser compreendida como conceitos,
ideias e concepções estagnadas e imutáveis. É exatamente a dimensão valorativa
do Direito que lhe confere permanente dinâmica, e aqui podemos visualizar uma
outra face do saber jurídico: a Zetética.

Zetética do Direito tem como característica ser especulativa e


problematizadora acerca da Dogmática Jurídica (COELHO, 1991). É o campo do
Direito de discussão acerca dos fundamentos e justificativas dos conceitos com os
quais operamos o Direito, rompendo com as verdades postas, especulando acerca
do que é e não do que deve ser de direito.

TUROS
ESTUDOS FU

Na última unidade iremos aprofundar o estudo acerca da Teoria Crítica do


Direito e discutir as distintas correntes e proposições.

Não é difícil perceber que no Direito, embora este possua conceitos


técnicos operacionais dados, por exemplo, pela norma jurídica, há uma
permanente mutabilidade e problematização dos parâmetros mais duradouros
e institucionalizados do saber jurídico a fim de que o Direito cumpra sua função
social, que é a de dar uma solução adequada a interesses e necessidades sociais
de acordo com a dinâmica que rege a vida social. Para tanto é necessário um
comportamento crítico e atualizador por parte dos juristas, em outras palavras,
uma atitude filosófica.

A Filosofia do Direito é um dos instrumentos através dos quais é possível


a abstração crítica dos conceitos e pressupostos jurídicos que constroem e
legitimam as práticas jurídicas e os discursos jurídicos, funcionando como espaço
privilegiado para, de forma livre, refletir radicalmente.

25
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Para pensadores clássicos do Direito, como Giorgio Del Vecchio, o Direito


ultrapassa o limite de sua logicidade interna, uma vez que é produto da natureza
humana, fazendo com que exista a necessidade de alargar e aprofundar a dimensão
do fenômeno jurídico de forma a permitir compreender as contingências sob
as quais se construiu uma lei ou um costume; e esse fundamento não pode ser
investigado pela ciência jurídica stricto sensu, ou seja, em sua dimensão técnica
normativa. Esta investigação define o campo da Filosofia do Direito: “disciplina
que define o Direito na sua universalidade lógica, investiga os fundamentos e os
caracteres gerais do seu desenvolvimento histórico, avalia-o segundo o ideal de
justiça traçado pela razão pura” (DEL VECCHIO, 1979, p. 306).

Como veremos, ao longo da história a Filosofia do Direito se tornou um


saber autônomo, independente da Filosofia, uma vez que possui particularidades,
objeto específico e objetivo diferenciado.

Agora já estamos preparados para conversar sobre Filosofia do Direito e


assim “retirar a venda dos olhos”.

FIGURA 9 – A JUSTIÇA É CEGA

FONTE: <http://chebolas.blogspot.com.br/2013/05/blog-post_4012.html>. Acesso em: 15 ago. 2016.

A charge acima faz menção à tradicional figura da deusa Themis, que


na mitologia grega era a guardiã dos juramentos dos homens e das leis. Era
representada empunhando a balança – com a qual equilibra seu raciocínio para
julgar – e a espada – que é a força necessária para ser obedecida.

Sua imparcialidade e cegueira não devem ser entendidas literalmente, uma


vez que necessita estar de “olhos abertos” às injustiças e formas de dominação
entre os homens.

2 A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA DO DIREITO


Já tendo compreendido a relação entre Direito e Filosofia, passamos agora
a uma aproximação maior com nosso objeto principal: a Filosofia do Direito. O
26
TÓPICO 2 | FILOSOFIA DO DIREITO

ponto de partida para a compreensão de um campo do saber é a definição de suas


características nucleares, quais sejam: seu objeto, métodos e finalidades e/ou funções.

Tendo a Filosofia como preocupação a problematização acerca da


essência das coisas, a questão do “ser”, ao voltarmos nosso olhar como filósofos
para o Direito, nosso objeto particular é o Direito que, de acordo com o “olhar”
metodológico, comporta distintas definições. Direito é um termo “vazio”, sob o
ponto de vista do rigor científico, ou seja, exige previamente uma definição, e
exatamente esse tem sido o grande desafio dos juristas ao longo da história do
pensamento jurídico. Direito não é um termo uníssono, não possui uma única
definição, e buscar defini-lo é uma das tarefas mais desafiadoras da Filosofia do
Direito. E ainda, depende daquele que o define segundo os parâmetros que adote,
das relações que são estabelecidas com os demais campos da Filosofia, como Ética
e Moral ou com a Ideologia.

Para Marilena Chauí (2000), a ideologia é um conjunto lógico, sistemático


e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta)
que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como
devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir
e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto,
um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de
caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma
sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais,
políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em
classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da
ideologia é a de apagar as diferenças, como de classes, e de fornecer aos membros
da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais
identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a
Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado.

Definir “o que é Direito” para delimitar o objeto da Filosofia do Direito


não é uma tarefa simples e fácil e, dependendo da corrente teórica adotada, pode-
se chegar a conceitos diversos.

Nós mesmos, em nosso cotidiano, usamos a palavra “Direito” com


sentidos bem distintos. Quer tentar verificar?

Ótimo!!!

Então considere as seguintes frases:

• “No Direito brasileiro não há pena de morte para crimes comuns”.


• “Tenho o direito a professar uma crença religiosa”.
• “O Direito é uma ciência social aplicada”.

27
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Na primeira frase a palavra “Direito” é usada para referir-se ao sistema


normativo – conjunto de normas jurídicas hierarquicamente sistematizadas e
legitimadas pelo Estado – que de forma geral rotulamos de “Direito Objetivo”,
ou de “Direito Positivo”.

Na segunda, usada como “Direito Subjetivo”, como “permissão”,


“exercício de liberdade” ou “ faculdade”.

Já na terceira, como estudo ou campo do conhecimento, um saber


sistemático acerca do Direito Objetivo e do Subjetivo.

Como você pôde perceber, não é possível usar a palavra “Direito” sem
que se dê a ela uma atribuição, uma vez que há uma autêntica constelação de
visões – que mais adiante chamaremos de “cosmovisões” – acerca do Direito,
porém, apesar de se poder reconhecer a imprecisão do termo Direito, tanto na
linguagem comum como na diversidade dos pensadores jurídicos, devemos
nos esforçar para diminuirmos essa vagueza, uma vez que nos cabe determinar
pressupostos e fundamentos que nos afastem do senso comum e das imprecisões.

Para Miguel Reale (2002, p. 304), a diferença entre Ciência do Direito e


Filosofia do Direito é muito evidente, ou seja:

• Ciência do Direito, ou Jurisprudência, caracteriza-se como estudo


sistemático de preceitos já dados, postos diante do intérprete
(administrador, advogado ou juiz) como algo que ele deve apreender
ou reproduzir em suas significações práticas, a fim de determinar o
âmbito da conduta lícita ou as consequências resultantes da violação
das normas reveladas ou reconhecidas pelo Estado.
• Filosofia do Direito, ao contrário, em lugar de ir das normas jurídicas
às suas consequências, volve à fonte primordial de onde aqueles
ditames de ação necessariamente emanam, ou seja, não observa a
experiência jurídica, como um dado ou um objeto externo, mas sim
in interiore hominis.

Na visão do jusfilósofo brasileiro, a Filosofia do Direito vai além do Direito


posto pelo poder político, pelo Estado, e do problema de buscar no sistema a
resposta jurídica ao caso concreto, mas vai às origens e finalidades da própria norma
jurídica, isto porque, explica Reale (2002), o Direito “não é uma coisa”, mas carrega
em si as relações sociais. O Direito não se limita à experiência prática. Carrega em
si vivências sociais, uma trama de relações de poder, e por essa responsabilidade e
compromisso social o jurista deve ter uma preocupação prévia a toda experiência
jurídica: por que e para que a norma jurídica? Portanto, não há de se confundir
prática científica ou procedimental do Direito com a Filosofia do Direito.

A Filosofia do Direito é um saber crítico a respeito das construções


jurídicas erigidas pela Ciência do Direito e pela própria práxis do
Direito. Mais que isso, é sua tarefa buscar os fundamentos do Direito,
seja para cientificar-se de sua natureza, seja para criticar o assento sobre
o qual se fundam as estruturas do raciocínio jurídico. Provocando, por
vezes, fissuras no edifício que por sobre as mesmas se ergue (BITTAR;
ALMEIDA, 2001, p. 43).

28
TÓPICO 2 | FILOSOFIA DO DIREITO

A atitude filosófica no Direito é um permanente estado de vigilância e


atenção às práticas jurídicas e judiciais, à inovação legal, à finalidade das normas
jurídicas, é, enfim, uma atitude própria daquele que está permanentemente
inquieto com o mundo ao seu redor, e é esse modo de ser que distingue os
jusfilósofos dos demais pensadores do Direito: a capacidade e sensibilidade de se
admirar com as coisas e com mundo que nos cerca.

Independente das concepções teóricas e pressupostos, Bittar e Almeida


(2001) delimitam as seguintes tarefas e objetivos da Filosofia do Direito:

• Proceder à crítica das práticas, das atitudes e atividades dos operadores do


direito.
• Avaliar e questionar a atividade legiferante, bem como oferecer suporte
reflexivo ao legislador.
• Proceder à avaliação do papel desempenhado pela ciência jurídica e o próprio
comportamento do jurista ante ela.
• Investigar as causas da desestruturação, do enfraquecimento ou da ruína de
um sistema jurídico.
• Depurar a linguagem jurídica, os conceitos filosóficos e científicos do Direito.
• Investigar a eficácia dos institutos jurídicos, sua atuação social e seu
compromisso com as questões sociais, seja no que tange a indivíduos, a grupos,
a coletividades, a preocupações humanas universais.
• Esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo e suas
relações com a sociedade e os anseios culturais.
• Resgatar origens e valores fundantes dos processos e institutos jurídicos.
• Por meio da crítica conceitual institucional, valorativa, política e procedimental,
auxiliando o juiz no processo decisório.

Em síntese: Enquanto a Ciência do Direito define conceitos e proposições


operacionais limitadas às verdades provisórias e limitadas a uma determinada
concepção acerca do Direito, a Filosofia do Direito problematiza os fundamentos,
das causas últimas e finalidades do Direito.

TUROS
ESTUDOS FU

A questão que a seguir buscaremos responder diz respeito à delimitação do


Direito Moderno. Atualmente, quando nos referimos ao Direito, a que exatamente estamos
nos referindo e por quê?

29
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você viu que:

• Há uma especificidade na Filosofia do Direito: problematizar a essência e


finalidade do agir jurídico.

• Não há um consenso acerca do termo “Direito”, devendo ser definido de


acordo com os pressupostos ideológicos, políticos e filosóficos estabelecidos.

• A atividade do jurista exige uma permanente atitude questionadora.

30
AUTOATIVIDADE

Considere a seguinte afirmação do jusfilósofo Luiz Fernando Coelho:

A dogmática jurídica pressupõe algumas crenças aceitas pelo senso


comum teórico dos juristas como verdade, independentemente de qualquer
discussão ou prova. Eu as chamo de pressupostos ideológicos, porque foram
construídas ao longo da história do Direito pela ideologia, inculcadas no
inconsciente coletivo e assimiladas pelo senso comum teórico dos juristas.

FONTE: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15826/14317>. Acesso


em: 15 ago. 2016.

Responda a seguinte questão:

Como romper com o “senso comum teórico” dos juristas?

31
32
UNIDADE 1
TÓPICO 3

O PARADIGMA DOMINANTE DE DIREITO MODERNO E


SEUS ELEMENTOS EDIFICADORES

1 INTRODUÇÃO
O conhecimento jurídico, como qualquer outro conhecimento, é uma
construção elaborada desde a articulação de elementos que dão origem à
compreensão ou solução de um problema ou questionamento que nos permite
adquirir determinadas competências. Tendo essa perspectiva, o contexto existencial
– histórico, político, social e cultural – do pensador e a “escolha” metodológica
dos elementos a serem utilizados permitem identificar as características e
objetivos das teorias científicas, portanto, saber científico não é um privilégio,
mas produto de uma dinâmica relação com a realidade circundante. Ciência não
é feita independente do mundo, não opera de forma autônoma, mas depende de
um conjunto de condições para sua elaboração e desenvolvimento e, uma vez
elaborada e com condições institucionais, o saber se prolifera e se reproduz.

Essa concepção de ciência foi defendida por Thomas S. Kuhn (1922-


1996), cientista e filósofo americano, cujos estudos o conduziram a buscar outro
direcionamento intelectual dedicando-se ao estudo da história e filosofia da
ciência. No ano de 1940 ele ingressou na Universidade de Harvard para estudar
Física, doutorando-se em 1949, e no ano de 1962, com o lançamento da obra The
structure of scientific revolutions (A estrutura das revoluções científicas), promove
uma autêntica “dessacralização” da ciência.

NOTA

A seguir levantaremos os conceitos do estudo de Khun.

33
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

A partir de uma perspectiva histórica demonstra que não é possível


sustentar uma “Ciência” como atividade única em todos os momentos
históricos nas distintas sociedades, uma vez que, para Khun, o que é um saber
científico é um certo consenso e/ou cumplicidades teóricas de uma comunidade
autodenominada “científica”. Neste sentido, cientista é o indivíduo que partilha
e se compromete com o modelo defendido e reproduzido pela comunidade
científica, construindo-se a tradição de pesquisa e teorias científicas.

Demonstra, através da sua perspectiva historicista, que apesar de as


pesquisas científicas terem por base a lógica e a racionalidade, elas também
são regidas pela subjetividade. Segundo ele, a crença em um paradigma não
depende necessariamente da razão, mas sim da fé do pesquisador.

Traz uma nova concepção de paradigma, o qual pode ser interpretado


como um modelo referencial, um conjunto de conhecimentos que já está
estabelecido na comunidade científica. Entretanto, com o surgimento de novos
fenômenos, alguns paradigmas não conseguem explicar ou responder aos
questionamentos que tais fenômenos produzem, o que leva ao surgimento de
uma anomalia e, consequentemente, à emergência de uma crise científica.

O paradigma inicial, antes de entrar em uma crise, encontrava-se na


denominada “ciência normal”, que não pretende trazer inovações, representa
o estudo dentro do próprio paradigma, a fim de demonstrar cada vez mais a
solidez do mesmo. Diante da aparição de uma crise, existem três possibilidades
de solução: a ciência normal conseguiria solucionar a anomalia; o problema seria
rotulado e encaminhado às gerações futuras, para que estas, com uma melhor
aparelhagem, pudessem resolvê-lo; ou tal anomalia levaria ao surgimento de
um novo paradigma, o qual não anularia necessariamente o anterior.

Com o surgimento de um novo paradigma, a ciência daria um salto,


avançaria. Isto é, ocorreria uma revolução científica através da denominada
“ciência extraordinária”, a qual representa o tempo da emergência de novos
paradigmas e a competição deles entre si. Tal competição tem como causa a
escolha de qual paradigma possuirá o enfoque mais adequado, em relação a
resolver as deficiências do paradigma anterior. Com o estabelecimento do novo
paradigma, reiniciam-se os processos e o desenvolvimento científico se efetiva.

Kuhn demonstra que, muitas vezes, a escolha ou defesa de um


paradigma baseia-se em questões subjetivas, pessoais, mesmo que já exista um
novo paradigma racionalmente mais eficiente que o anterior. O objetivo nem
sempre é provar racionalmente a veracidade de um paradigma. Para o cientista
decidir se é a favor ou contra um paradigma, ele deve decidir se acredita nele
ou não, se tem fé no mesmo ou não.

FONTE: <http://seminariosemsaude.blogspot.com.br/2010/10/thomas-kuhn-e-ciencia-como-pra-
tica.html>. Acesso em: 20 jul. 2016.

34
TÓPICO 3 | O PARADIGMA DOMINANTE DE DIREITO MODERNO E SEUS ELEMENTOS EDIFICADORES

Em síntese, paradigma é um conjunto de instrumentos teóricos e práticos


aceitos e partilhados por uma comunidade científica capaz de resolver problemas,
explicar fenômenos e demonstrar resultados de uma investigação revestidos de
“verdades científicas”. A história da ciência não é desenvolvida a partir de uma
linearidade e sequência articulada de saberes, ou progresso permanente e contínuo,
mas a primazia de um paradigma sobre outras possíveis determinadas condições.

Trazendo essa concepção de saber para o Direito, passamos a vê-lo


como uma construção técnica e sociocultural – um paradigma – que se tornou
dominante e vem sendo reproduzido no interior da comunidade jurídica a partir
de determinadas condições.

Em que condições e com quais elementos foi elaborado o paradigma de


Direito dominante?

O marco a partir do qual vamos iniciar nossa conversa sobre o Direito é a


Modernidade.

“Modernidade” é a designação genérica de um complexo conjunto


de transformações ocorridas a partir dos séculos XIV e XV que acabou por
transformar o modo de vida e suas formas tradicionais de racionalização.

Naquele momento histórico, a realidade parecia se transformar em um


ritmo alucinante.

Copérnico, no século XVI, com a teoria heliocêntrica e a órbita planetária,


havia iniciado um movimento antidogmático seguido por Tycho Brahe, Kepler
e Galileu, entre outros, que viria a abalar o princípio de autoridade, até então,
base do poder papal. Isaac Newton, no século XVII, dá um passo definitivo
para a criação de uma teoria geral da dinâmica. Em meados do mesmo século,
Huygens elaborou a teoria ondulatória da luz. Em 1628 são publicadas as
descobertas de Harvey sobre a circulação do sangue. Robert Boyle, em 1661,
supera definitivamente os alquimistas no campo da química e retoma a teoria
dos átomos de Demócrito. Giordano Bruno em 1660 é queimado na fogueira
por divulgar a teoria heliocêntrica e por suas convicções teológicas serem
consideradas heréticas. Acreditava que a Sagrada Escritura deveria ser obedecida
como ensinamento moral e não como astronômico.

A revolução da ciência abria possibilidade para a certeza epistemológica


e consenso objetivo e, ao mesmo tempo, a lógica da previsão experimental e
metodológica científica ia assumindo-se como redentora social.

O mundo torna-se secular e mutante. “Secularização” é um termo que


significa o gradual e irreversível abandono das convicções científicas que se
apoiavam em preceitos religiosos, de forma acentuada a partir do século XIII. O
processo de secularização consistiu na formação dos Estados Modernos e declínio

35
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

do poder papal e antigos reinos, além do rompimento com o paradigma do saber


medieval, portanto, a secularização foi elemento essencial para edificação da
Modernidade e de suas instituições, como o Estado Contemporâneo e o Direito.

Com a teoria darwiniana demonstrava-se que a transformação era o


estado permanente da natureza lutando para o desenvolvimento e supremacia
dos mais fortes e não fruto benevolente de um plano transcendental. Assim, a
ciência ia tornando a realidade neutra.

De forma definitiva eram rompidos os vínculos com o passado medieval


e inaugurada uma era em moldes absolutamente novos anunciando o alvorecer
de um progresso humano infinito.

O modelo de racionalidade que foi construído desde o Renascimento


chega ao auge no século XIX, quando adquire o status de modelo global de
racionalidade científica que se alastra para os diversos campos do conhecimento.
Tal modelo é representado melhor pelo positivismo.

A palavra positivismo foi empregada pela primeira vez pelo filósofo


francês Claude Saint-Simon (1760-1825) para designar o método exato das ciências
e a possibilidade de sua extensão à filosofia. Mais tarde, Auguste Comte (1798-
1857) utilizou a expressão para designar a sua filosofia, que teve grande expressão
no mundo ocidental durante a segunda metade do século 19 (estendendo-se ao
Brasil na primeira metade do século 20).

FIGURA 10 - AUGUSTE COMTE

FONTE: <http://pt.slideshare.net/mundisa/sociologia-comte>. Acesso em: 20 jul. 2016.

36
TÓPICO 3 | O PARADIGMA DOMINANTE DE DIREITO MODERNO E SEUS ELEMENTOS EDIFICADORES

A característica essencial do positivismo, tal qual Comte a concebeu, é a


devoção à ciência, vista como único guia da vida individual e social, única moral
e única religião possível.

A obra fundamental de Comte é o livro "Curso de Filosofia Positiva",


escrito entre 1830 e 1842, a partir de 60 aulas dadas publicamente pelo filósofo,
a partir de 1826. É na primeira delas que Comte formulou a "lei dos três estados"
da evolução humana:

• estado teológico, em que a humanidade vê o mundo e se organiza a partir


dos mitos e das crenças religiosas;
• estado metafísico, baseado na descrença em um Deus todo-poderoso, mas
também em conhecimentos sem fundamentação científica;
• estado positivo, marcado pelo triunfo da ciência, que seria capaz de
compreender toda e qualquer manifestação natural e humana.

FONTE: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/comte.htm>. Acesso em: 15 ago. 2016.

O positivismo se caracteriza pela crença de que somente é válido e


confiável o conhecimento acerca dos fatos observados e estudados através
do método próprio das ciências experimentais (observação, quantificação e
experimentação), pressupõe que o espírito e os métodos científicos experimentais
devem se estender a todos os domínios da vida intelectual, política e moral.

Para melhor compreendermos o conceito de ciência e de Direito Moderno,


vamos lembrar rapidamente o “cenário” histórico no qual ele foi construído, e
para isso retornemos ao mundo europeu dos séculos XVI a XVIII, dentro do qual
reinventou-se o conceito de política e de poder que servirá de explicação para o
modo como o Direito foi elaborado.

Um dos elementos centrais e ponto de partida é o conceito de


contratualismo, uma espécie de “fórmula” política e jurídica que vai aliar
convenientemente convivência social e submissão a um poder comum.

Os chamados contratualistas entendem que o estado de natureza é um


tipo de condição humana irracional que deveria definitivamente ser superado
quando uma forma de poder fosse capaz de controlar os conflitos. Este estado de
natureza, marcado por um individualismo caótico, deveria ser substituído por
um mundo de indivíduos dotados de direitos iguais formando um corpo político
comum, uma força esmagadoramente maior do que qualquer um isolado, e
governado por um único poder legítimo: o Estado.

37
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

E
IMPORTANT

As teorias contratualistas foram elaboradas entre os séculos XVI e XVII e


discutiam as razões pelas quais os homens vivem em sociedade e criam distintas formas
de poder. Defendem que as relações humanas livres de qualquer ordem social, jurídica e
política caracterizam o “estado de natureza” e era o que predominava antes do surgimento
da sociedade civil. Naquele “estado de natureza” não havia leis e tampouco normas sociais
ou políticas, o que veio a ser sucedido por uma espécie de pacto através do qual os homens
passam a reconhecer uma autoridade política – o Estado – e um conjunto de regras – o
Direito –, criando as bases da sociedade moderna.
Destacam-se, dentre outros, como contratualistas: J. Althusius (1557-1638),  Thomas
Hobbes  (1588-1679), B. Spinoza (1632-1677), S. Pufendorf (1632-1694),  John Locke  (1632-
1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), I. Kant (1724-1804)
Sobre o tema, leia mais em: <http://www.portalconscienciapolitica.com.br/filosofia-politica/
filosofia-moderna/os-contratualistas/>.

O contratualismo moderno, proposto nas teorias de Hobbes, Locke e


Rousseau, funda-se na crença de que para haver uma nova ordem social e política
esta deve estar subordinada a uma justiça comum racional e objetivamente
elaborada, de forma que sua compreensão se aproxime do método científico e,
assim, as obrigações políticas e jurídicas, unificadas, vão sendo elaboradas como
legítimas, racionais, verdadeiras e objetivas.

É nesta concepção de contrato social e racionalidade moderna que se funda


o corpo político: a recíproca obrigação política horizontal, cidadão para cidadão,
e vertical, do cidadão para com o Estado. Nesta indissociável relação é que se
compreende o objetivo do Direito Moderno. Em outras palavras, o direito não
pode servir de instrumento de violação da vontade geral e deve ser tão universal
e abstrato como a vontade que o justifica.

Em síntese, o Direito Moderno é definido potencialmente como vontade


do soberano, manifestação de consentimento e autoprescrição.

Embora com divergências, os pensadores políticos e jurídicos modernos


são movidos pelo desejo de justificar uma nova ordem social que vinha emergindo
a partir de critérios racionais e universalmente válidos, na qual o direito ocupa
um papel central.

38
TÓPICO 3 | O PARADIGMA DOMINANTE DE DIREITO MODERNO E SEUS ELEMENTOS EDIFICADORES

2 O PARADIGMA MODERNO DE LEGALIDADE:


FUNDAMENTOS
Como você já deve ter concluído, o paradigma da modernidade tem como
pressuposto a crença de que a racionalidade técnica científica é capaz de produzir
uma explicação segura e verdadeira. O Direito moderno vai ser elaborado a partir
desse mesmo pressuposto, qual seja, o de que um conjunto de normas objetivas,
tecnicamente adequadas e legitimamente construídas é capaz de promover a
segurança jurídica e a previsibilidade nas relações humanas.

Segurança jurídica, para o jusfilósofo Miguel Reale (1994, p. 102), é a


existência de “algo subjetivo, um sentimento, a atitude psicológica dos sujeitos
perante o complexo de regras estabelecidas como expressão genérica e objetiva
da segurança mesma”. Para esse autor, o problema da “segurança” não é
somente uma questão de “sentimento” ou “sensação”, mas também a certeza de
existência de um conjunto de instrumentos eficazes e complexos de garantias a
fim de proteger os indivíduos envolvidos nas “tramas” da convivência humana.
“Segurança” sem “certeza” seria uma falácia!

Para muitos pensadores, é a dualidade – certeza/segurança – que explica


ao longo da história a prevalência do direito escrito sobre o costume, a supremacia
da “ordem escrita” sobre a tradição.

Como, na perspectiva da Modernidade, vai ser definida “segurança


jurídica” e “certeza de garantia”?

Lembrando o conceito de Estado Moderno enquanto produto de uma


vontade geral, ideia de contrato social, este ente político torna-se fonte legítima
para a produção do Direito através de algumas crenças, tais como o paradigma
da legalidade e a onipotência do legislador.

O legalismo moderno pode ser compreendido como um conjunto de


normas objetivas gerais e abstratas produzidas exclusivamente pelo Estado, cuja
finalidade é controlar a ação social, tanto individual como política, estabelecendo
deveres e direitos de forma coercitiva.

Esta “invenção” política e jurídica é resultado das chamadas Revoluções


Burguesas – processo histórico e transformações de forma de poder lideradas
pela burguesia ocorridas especialmente na Inglaterra e França, que entre os
séculos XVII ao XIX destituíram os modelos absolutistas e acabaram por fundar
os Estados Liberais Modernos, que serviram para a defesa dos interesses das
elites burguesas defenderem seus interesses, livre circulação de bens e de pessoas,
liberdade de comércio e direito de propriedade contra o arbítrio do Estado.

39
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Este modelo sociopolítico e jurídico foi recepcionado e reproduzido


de distintas formas, por exemplo, na França a lei positivada em códigos era
considerada a condição primeira para a garantia de direitos, enquanto que na
Alemanha, pela tradição histórica, se preferia diferenciar lei formal (codificada)
de lei material (finalidade e conteúdo valorativo).

O paradigma da legalidade era, e de certa maneira é, um dos pilares


centrais da segurança jurídica, uma vez que garante a coesão do grupo social e
organiza a consciência individual em função de padrões universais, válidos para
todos, de justiça e previsibilidade, legitimando a ordem política e jurídica posta,
criando uma espécie de “consenso” no agir coletivo e individual.

O princípio da legalidade canaliza e estrutura a lei. A lei pode ser


vaga, imprecisa, fluida e indeterminada, pois o princípio da legalidade
consegue a proeza de fazer aparecer como conformes a esta fluidez
os mais diversos atos de aplicação individual e concreta. Garantindo
uma ligação tanto normativa como lógica entre o abstrato e o concreto,
entre o geral e o individual, a legalidade funda e reforça a ideia de uma
coerência da ordem jurídica. Ela pinta a imagem reconfortante, porque
previsível, de um mundo jurídico fechado e ordenado, em que tudo
está no seu lugar, em que a conclusão decorre naturalmente do jogo
das premissas maior e menor, em que o geral e o abstrato antecipam
um juízo hipotético sobre o concreto que, por sua vez, os confirma.
Em suma, a ideia de uma lógica da ordem jurídica é essencialmente
ideológica e esta ideia alimenta-se, nomeadamente, do princípio da
legalidade (MIALLE, 1989, p. 275).

O historiador português do Direito Antonio Manuel Hespanha esclarece


que o plano jurídico vinha ao encontro da pretensão de colocar fim tanto à
incerteza e ao casuísmo do modelo jurídico tradicional, quanto à proliferação
de sistemas especulativos sobre direito natural que haviam surgido ao longo do
século XVIII, “ou seja, dirigia-se tanto contra a vinculação do direito à religião e à
moral, como contra a sua identificação com especulações de tipo filosófico como
as que eram correntes nas escolas jus-racionalistas. Contra uma coisa e contra a
outra proclamava-se a necessidade de um saber dirigido para coisas positivas”
(HESPANHA, 1997, p. 15). Assim vai se construindo a concepção de Direito como
Direito Positivo, ou seja, de que direito legítimo e válido é aquele posto pelo
poder político estatal.

Positivismo Jurídico é uma doutrina segundo a qual o único direito é o


direito positivo

Você deve estar se perguntando: o que é, afinal, Direito Positivo? Haveria


“outro” Direito para além do Direito Positivo?

Essa é uma discussão que tem acompanhado – e até atormentado – os


juristas ao longo dos séculos desde a antiguidade grega, e a resposta não é tão
simples. Para melhor esclarecer, veremos o que nos ensina o notável jusfilósofo

40
TÓPICO 3 | O PARADIGMA DOMINANTE DE DIREITO MODERNO E SEUS ELEMENTOS EDIFICADORES

Norberto Bobbio (1999, p. 15) sobre a primeira distinção que deve ser feita entre
Positivismo Jurídico e Positivismo Filosófico, já estudada:

A expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de ‘positivismo’


em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma
certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas
jurídicos eram também positivistas no sentido filosófico: mas em suas
origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com
o positivismo filosófico [...] a expressão ‘positivismo jurídico’ deriva
da locução ‘direito positivo’.

“Direito Positivo” é uma expressão que na atualidade significa “Direito


Posto” pelo poder político – em nosso caso, pelo Estado.

Por que “Direito Positivo” se tornou sinônimo de “Direito Legal”? Vamos


tentar responder com o breve estudo no tópico a seguir.

41
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você viu que:

• Direito Positivo, Positivismo Jurídico e Positivismo Filosófico são conceitos


distintos, embora em muitos momentos aparentemente se aproximem e se toquem.

• Positivismo Jurídico é uma concepção teórica, política e filosófica de Direito


reducionista que acabou por tornar-se o paradigma dominante de Direito.

• Direito Positivo é o Direito posto pelo poder político em distintos momentos da


história cuja função é estabelecer o controle social e a sustentação das próprias
relações de poder que o criam.

• O positivismo jurídico torna-se aparentemente a única forma legítima de


Direito que nega os valores éticos e morais que o constituem e finalidade maior:
a realização do justo concreto.

42
AUTOATIVIDADE

A bela e conhecida obra literária “O auto da compadecida” de


Ariano Suassuna reproduz o cotidiano do sertanejo brasileiro em todas suas
dimensões. Uma das partes centrais da obra é “o julgamento de João Grilo”
quando os personagens são “levados ao céu” e são julgados se irão para o céu
ou inferno.

Veja a cena em: <https://www.youtube.com/watch?v=16dYqO24HBI>.

No julgamento de João Grilo há uma discussão entre o Diabo – que


os quer condenar pela violação à lei – e a Compadecida – que os defende em
sua miserável condição humana. Como esta metáfora sertaneja reproduz uma
crítica ao Positivismo Jurídico?

43
44
UNIDADE 1
TÓPICO 4

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO


JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

1 INTRODUÇÃO
O estudo a seguir faz parte da obra “Hermenêutica e Direito: uma
possibilidade crítica”, publicada pela Editora Juruá (Curitiba) em 2003, de autoria
de Ivone Fernandes Morcilo Lixa.

Ao longo da história do Direito Moderno foram definidas duas correntes


doutrinárias que deram origem ao que vai se denominar de Positivismo Jurídico,
sua principal característica é a predominância do legalismo. Para compreender
essa construção deve-se partir do século XIX, quando foram definidas duas
grandes correntes jurídicas: o legalismo, representado pela Escola Exegética
desenvolvida na França, e o formalismo científico, cuja precursora foi a Escola
Histórica alemã.

O legalismo, que acaba sendo dominante na prática jurídica, reduz o


direito à lei e admite como única fonte de direito o criado por um legislador
estatal. Já a segunda corrente, a Histórica, “[...] deduzia as normas jurídicas e
sua aplicação a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da
ciência jurídica, sem conceder a valores ou objetivos extrajurídicos (por exemplo,
religiosos, sociais ou científicos) a possibilidade de confirmar ou infirmar as
soluções jurídicas” (WIEACKER , s.d., p. 492).

Embora não possam as duas concepções ser confundidas, por possuírem


diferentes matrizes filosóficas e políticas, ambas rejeitam qualquer fundamentação
metafísica do direito para além das relações humanas e políticas concretas,
buscando elaborar uma concepção de Direito como saber científico especializado
e autônomo, que deve utilizar métodos objetivos e verificáveis, à semelhança
das ciências naturais, além da pretensão de conferir a este saber um caráter de
universalidade e de progressiva perfeição, já que esta fase coincide com o período
áureo da expansão colonialista europeia, que difundia e impunha a cultura e,
por via de consequência, o modelo jurídico desenvolvido na Europa Ocidental às
diferentes partes do mundo, combatendo e dizimando em nome do “progresso,
modernidade e da civilização” todas as formas de organização social, política e
jurídica dos povos conquistados, convencida de sua supremacia.

45
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

ATENCAO

Lembre-se do conceito de Ciência, elaborado na Modernidade, e de que a


partir de tal modelo de saber é que pode ser edificado o Direito Moderno.

Retomando a trajetória histórica do pensamento jurídico, é necessário


compreender como foi o processo de codificação no século XIX, que foi
fator relevante para a consolidação do positivismo jurídico. Este movimento
inovador e revolucionário no plano jurídico-formal vem na esteira da ideologia
liberal burguesa e no triunfo dos princípios da Revolução Francesa, rompendo
definitivamente com a antiga ordem estamental sobre a qual se assentava o
Antigo Regime. O princípio básico deste novo paradigma jurídico, coerente
com a concepção de que o estudo do Direito deve ser restringido à experiência
constatada, consiste em identificar e reconhecer apenas como Direito o produzido
pelo Estado, o único com existência objetiva – jus positum – que, com segurança,
pode ser instrumento de planificação e manutenção da sociedade.

O movimento da codificação, produto da simbiose do jusracionalismo


com o Iluminismo, alastrou-se pela Europa Ocidental a partir do século XIX,
e, apesar da multiplicidade de circunstâncias que justificam sua ocorrência,
possuem um idêntico perfil espiritual. Os códigos modernos pretenderam uma
“planificação social” através da reordenação sistemática da matéria jurídica
tendo como pressuposto a convicção iluminista de que o estágio civilizatório da
sociedade seria alcançado com uma forma de governo fundada na razão e na
“vontade geral”” (WIEACKER , s/d, p. 366).

O ideal cartesiano atraído pela certeza do saber encontrava na filosofia, na


política e no direito, dentre outras disciplinas, um conceito de ciência tradicional
incerta e contraditória. É exatamente o que Descartes (1596-1650) exprime na
primeira e segunda partes do Discours de la Méthode, propondo para aquelas
disciplinas um método com bases sólidas como as da matemática. O método
proposto por Descartes está assentado inicialmente na evidência racional, por
não admitir como verdadeiro nada que não seja evidente para o espírito, regra
primeira que é complementada por outras – a análise, síntese e revisões gerais
– que apenas têm a finalidade de tornar evidente o “que à primeira vista o não
é” (HESPANHA, 1997, p. 149). O pensamento dos juristas que buscavam um
“direito certo e seguro” encontrou no poder da razão individual a possibilidade
de descoberta das regras do justo fundado numa ordem racional, o que iria
conduzir no sentido de tornar o direito positivo o “mais certo”.

46
TÓPICO 4 | ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO PRINCÍ-
PIO DA LEGALIDADE

FIGURA 11 - RENÉ DESCARTES

FONTE: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.

René Descartes (1596-1650), filósofo, físico e matemático francês,


tornou-se um dos grandes idealizadores da ciência e da filosofia moderna. Seu
pensamento influenciou pensadores das diferentes áreas com sua concepção
de “método” inspirado no rigor matemático e nas “cadeias da razão”.

Defende que:

• não se pode admitir "nenhuma coisa como verdadeira se não a reconheço


evidentemente como tal", devendo ser admitido como verdade o que é
verdadeiro e demonstrado pela razão – assumir como atitude a “dúvida
metódica”;
• todo saber deve ser resultado de análise, ou seja, deve-se "dividir cada uma
das dificuldades em tantas parcelas quantas forem possíveis";
• a síntese é capacidade científica de síntese: "concluir por ordem meus
pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de
conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de degraus, aos
mais complexos";
• a compreensão dá-se pelos "desmembramentos tão complexos... a ponto de
estar certo de nada ter omitido".

Estes elementos são os fundamentos do célebre método cartesiano e do


racionalismo.
FONTE: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes.htm>. Acesso em: 20 jul. 2016.

47
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Naquele novo momento histórico passa a dominar no pensamento dos


juristas a ideia de “sistemas” que têm como ponto de partida os direitos inatos
do indivíduo. A concepção individualista de homem, apesar de remontar ao
nominalismo, teve no cartesianismo e no empirismo um novo impulso, onde
os direitos individuais, imutáveis e necessários são definidos pela própria
natureza humana. Do cartesianismo é absorvida a ideia do homem como ser que
busca a verdade através da razão, detentor de dois direitos naturais inerentes:
usar livremente a razão na produção do conhecimento e de pautar sua ação
em princípios ditados pela razão. O empirismo transcende o cartesianismo
ao idealizar o homem não apenas como um ser racional, mas comandado por
instintos concretos (perpetuação, conservação) que deveriam ser garantidos e
satisfeitos pelo Direito Positivo.

Afirma Hespanha (1997, p. 151), que “a filosofia nominalista, ao contrário


da tradição filosófica clássica que conferia existência real ao homem como inserido
em estruturas sociais, considerava o homem enquanto um ser isolado, sem outros
direitos e deveres senão aqueles reclamados pela sua natureza individual ou pela
sua vontade”.

Com o jusracionalismo é aberta uma nova fase no pensamento jurídico.

De um lado, a nova convicção de “natureza humana” eterna e imutável


confere valor universal do Direito, o que explica a “exportação” dos códigos,
notadamente o Código Civil napoleônico como subsidiário ou principal, para
regiões culturalmente distintas, representando um verdadeiro movimento
revolucionário. E de outro, o divórcio definitivo entre Direito Natural e Direito
Positivo, vindo este último a ser considerado como o único Direito.

NOTA

Você já deve ter compreendido “Direito Positivo” como o conjunto de normas


jurídicas “postas” pelo poder político, já o Direito Natural pode ser compreendido, ao menos
provisoriamente, até discutirmos melhor o tema, como prescrições que norteiam o agir
(social, político e jurídico) fundamentadas no conceito de “justiça”, ou seja, Direito Natural é
que é bom, enquanto Direito Positivo é o necessário para o controle social.
A discussão acerca dos conceitos e limites de cada esfera do Direito acompanha a trajetória
histórica do Direito ocidental.

No entender de Bobbio (1999, p. 26, grifos do original), “[...] a partir


deste momento o acréscimo do adjetivo «positivo» ao termo «direito» torna-
se um pleonasmo, mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o
positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito
senão o positivo”.

48
TÓPICO 4 | ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO PRINCÍ-
PIO DA LEGALIDADE

Na França revolucionária do século XIX o movimento da codificação veio


a mudar radicalmente o conceito de Direito, fazendo verdadeira “tábula rasa” da
ordem jurídica anterior. Ao criar uma nova mentalidade que identifica Direito
com os códigos, os juristas desenvolvem um instrumental técnico de interpretação
e aplicação do Direito, seguindo uma orientação exegética – denominação
relacionada à técnica medieval de interpretação literal de textos.

No dizer de Bobbio (1999, p. 83), a técnica exegética “[...] consiste em assumir


pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido
pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo
por artigo, do próprio Código”. Portanto, a chamada Escola da Exegese pretendia
reduzir o direito à lei, levando a cabo os objetivos revolucionários burgueses.

Como disse o decano Aubry, em 1857, em um relatório oficial sobre o


espírito do ensino da Faculdade de Direito em Paris: Toda a lei, tanto no
espírito quanto na letra, com uma ampla aplicação de seus princípios e o
mais completo desenvolvimento das consequências que dela decorrem,
porém nada mais que a lei, tal a divisa dos professores do Código de
Napoleão (PERELMAN , 1998, p. 31).

Apesar de já ter a Assembleia Nacional Constituinte francesa de 1790


concebido um projeto de código que sintetizasse um novo direito revolucionário,
apenas em 1804, com o Consulado e sob a influência de Napoleão I, é que o
Código Civil teve uma versão definitiva, seguindo-se o Código de Processo Civil
(1806), Código Comercial (1807), Código Penal (1810), dentre outros. Esta fase
de promulgação dos códigos inaugura a instauração da Escola da Exegese, que,
segundo Perelman (1998), vem seguida de duas outras fases distintas: uma fase
de apogeu até cerca de 1880, e uma de declínio, que termina em 1890 com a obra
de Gény, anunciando o fim do pensamento exegético. Os códigos napoleônicos
consumaram definitivamente a doutrina jusracionalista ao “positivar a própria
razão” e a concretização legislativa da volonté générale.

FIGURA 12 - CÓDIGO DE NAPOLEÃO


O Código Civil francês foi
promulgado em 21 de março de 1804 e
acabou sendo conhecido como “Código
de Napoleão”. Este importante diploma
jurídico teve grande influência no
direito civil moderno, inclusive para a
elaboração do primeiro Código Civil
brasileiro, de 1916.

FONTE: <http://jhessycruzoliver.blogspot.com.br/2013/06/o-codigo-civil-napoleonico.html>.
Acesso em: 15 ago. 2016.

49
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

Segundo Hespanha (1997), a lei sistematizada nos códigos adquire o


monopólio de manifestação do direito. Já não havia lugar para outras fontes de
direito. O direito doutrinal havia sido incorporado nos códigos. A Revolução
rompeu definitivamente com o passado, instituindo uma nova ordem política e
jurídica, desvinculando-se, assim, do Direito tradicional. A jurisprudência não
tinha mais sentido como fonte de Direito, na medida em que aos juízes cabia
apenas o poder de aplicar a lei e não estabelecer o Direito. Esta compreensão
jurídica, predominante na França do século XIX, forjou juristas (como Duranton,
Demolombe, Troplong) cujas obras doutrinárias limitavam-se a expor e interpretar
os artigos dos códigos.

A Escola da Exegese estava intimamente ligada ao ambiente político


e jurídico francês, ou seja, a um Estado nacional revolucionário, em
corte com o passado, dotado de órgãos representativos e que tinha
empreendido uma importante tarefa de codificação. Isto determina a
disseminação dos princípios desta escola noutros países, retardando-a,
nomeadamente, nos casos em que estes requisitos não estivessem
realizados (HESPANHA, 1997, p. 177).

Tal saber jurídico, que dominou a Europa na primeira metade do século


XIX, segundo Bobbio (1999, p. 84-89), possui como características fundamentais:

• A inversão das relações tradicionais entre Direito Natural e Direito


Positivo.
• O monismo jurídico.
• A interpretação e aplicação da lei fundada na intenção do legislador.
• O culto à lei e o princípio da autoridade.

Como decorrência da sacralização do Direito estatal fundado no princípio


da onipotência do legislador, vincula-se uma das características do pensamento
exegético: a interpretação e aplicação da lei com base na intenção do legislador, se
o único Direito é o expressado na lei, enquanto manifestação positivada do Estado,
por via de consequência, a correta hermenêutica é aquela que busca “revelar” ou
“desentranhar” do texto legal a vontade do legislador nos casos em que “[...] ela não
deflui imediatamente do próprio texto legislativo, e todas as técnicas hermenêuticas
[...] são empregadas para atingir tal propósito” (BOBBIO, 1999, p. 87).

A ficção jurídica de um legislador onipotente e detentor de “uma vontade”


expressa no texto legal é fruto do pensar dogmático positivista, que compreende
o texto da lei como expressão da mens legislatoris (vontade do legislador).

Pressupondo os códigos como instrumento capaz de garantir a certeza


das relações sociais e o Direito como fato objetivado e delimitado nestes
códigos, via de consequência, a interpretação e aplicação do Direito deveria ser
centralizada na determinação unívoca e precisa do sentido expresso no texto legal,
operando-se com a segurança e certeza como valores prioritários deste modelo
de cientificização. Para dar conta da perspectiva formalista e lógica da ciência
jurídica, definitivamente o intérprete não pode operar senão o que lhe é dado,
que são as proposições normativas e sistematicamente organizadas nos códigos.

50
TÓPICO 4 | ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO PRINCÍ-
PIO DA LEGALIDADE

Esta preocupação cientificista herdada pelos juristas do século XVIII se


explica pelo conceito sistemático de Direito, “[...] que se resumia, em poucas
palavras, na noção de conjunto de elementos estruturados pelas regras de
dedução” (FERRAZ Jr., 1991, p. 240). Interpretar significa, sob tal ótica, estabelecer
o sentido imanente da norma na totalidade do sistema tal qual foi previsto pelo
legislador, distinguindo-se a vontade real e vontade presumida.

2 VERTENTE HISTORICISTA DO DIREITO MODERNO


A Alemanha, em fins do século XVIII, que ocupava lugar de destaque
no cenário do pensamento jurídico europeu, além de não ter sido palco da
experiência revolucionária burguesa, não conhecia o modelo político do Estado
Nacional. Na Europa a crença no racionalismo e no liberalismo revolucionário
difundia a convicção de que os Estados Modernos deveriam ordenar sua ordem
jurídica através de uma codificação monopolizadora.

Nas raízes dos movimentos políticos contratualistas, o Estado (e o Direito


Codificado) era idealizado como fruto de um contrato social racional a-histórico,
portanto, como forma universal e acultural, indiferente às particularidades
históricas e culturais. “Era isto que uma cultura de raízes nacionais, ancorada nas
especificidades culturais dos povos, não podia aceitar. Uma organização política e
jurídica indiferenciada, exportável, universalizante, aparecia quando confrontada
com os particularismos das tradições nacionais, como um artificialismo a rejeitar”
(HESPANHA, 1997, p. 181). É contra esta visão artificial e intemporal de Estado e
Direito que pensadores como Gustav Hugo (1764-1844), Friedrich Carl V. Savigny
(1779-1861) e G. F. Puchta (1798-1846) buscam fontes não estatais e não legislativas
do direito, compreendendo a sociedade como um organismo sujeito à evolução
histórica, onde a tradição do passado condiciona naturalmente o presente. Esta
natural e peculiar evolução, sob tal ótica, possuiria como elemento permanente e
atuante o “espírito do povo” (Volksgeist), que daria sentido e unidade a todas as
formas de manifestação cultural das diferentes nações.

O processo de construção do positivismo na Alemanha, segundo Bobbio


(1999), foi precedido pela desagregação dos “mitos” jusnaturalistas ligados à
concepção filosófica racionalista, a filosofia iluminista de matriz cartesiana, tarefa
que coube ao historicismo na primeira metade do século XIX, que tem sua origem
na Escola Histórica do Direito. Chama a atenção Bobbio “[...] que ‘escola histórica’
e ‘positivismo jurídico’ não são a mesma coisa; contudo, a primeira preparou o
segundo através de sua crítica radical ao direito natural” (1999, p. 45).

Como decorrência das condições específicas do processo histórico e da


concepção predominante no pensamento jurídico alemão em rejeitar o Estado
como única fonte do direito e sua forma legislativa, é na filosofia da cultura
organicista e evolucionista, somada ao ambiente cultural do romantismo alemão,
que a Escola Histórica vai buscar como pressuposto da ordem jurídica a ideia de
que a sociedade, assim como um ser vivo, é um todo orgânico submetida a um

51
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

processo de evolução histórica que é individualizada em cada povo. Este processo


evolutivo histórico, neste entendimento, é movido por uma força, ou um “espírito
contínuo e atuante”: o espírito do povo (Vosksgeist) que confere unidade e sentido a
todas as manifestações culturais de uma nação, sendo o direito uma destas formas
de manifestação, e, portanto, é o resultado da ação deste agente nuclear.

O primeiro passo para a desmistificação do jusnaturalismo deu-se com


Gustav Hugo. Como sugere o título de sua obra, Tratado do Direito Natural como
Filosofia do Direito Positivo, escrita em 1798, entende-se que o direito natural
não pode ser mais concebido como sistema normativo independente do direito
positivo, mas como filosofia do direito positivo. Com tal afirmação, reduzindo o
direito natural e filosofia ao direito positivo, efetua a passagem do jusnaturalismo
para o juspositivismo. Na obra referida, quando se discutem as fontes do direito,
ao colocar a questão central do que é direito, o autor responde não acreditando na
“sabedoria” jus-racionalista do legislador e sua “fábrica de leis”:

TUROS
ESTUDOS FU

Mais adiante faremos um estudo detalhado sobre jusnaturalismo ao longo do


pensamento ocidental! Será interessante!

Na crítica que Hugo lançou ao jusracionalismo a-histórico e seus legisladores,


buscou construir uma ciência jurídica autônoma, empírica e filosófica, propondo uma
sistematização interna da qual seria possível a construção conceitual dos conteúdos
do direito positivo, antecipando as contribuições levadas pela Escola Histórica.

A reação ao movimento de codificação francês, considerado como fator de


destruição e não de construção do direito, conduzirá a valorização dos elementos
consuetudinário e doutrinal do direito e não ao direito legislado, como pretendia
o pensamento legalista-exegético, o que é evidenciado no debate travado entre
Savigny e Antônio Frederico Justo Thibaut (1772-1840). Thibaut, no ensaio Sobre
a necessidade de um direito civil geral para a Alemanha (Heidelberg, 1814),
defende a necessidade da codificação do direito com uma perfeição formal –
normas jurídicas enunciadas de maneira clara e precisa – e substancial – normas
capazes de regular todas as relações sociais – como forma de unificação da
Alemanha e avanço no pensamento jurídico.

Com a crença de que, apesar de o direito originar-se da “alma do povo”,


cabe ao jurista a tarefa de sistematização dele, o que é demonstrado por sua
preocupação em reconstruir o direito revelado pelos juristas, nas obras História
do Direito Romano na Idade Média (1815-1831) e Sistema do Direito Romano
Actual (1840-1851).

52
TÓPICO 4 | ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO PRINCÍ-
PIO DA LEGALIDADE

O trabalho de Friedrich Carl von Savigny é um importante marco na


renovação da ciência jurídica alemã, por submeter a ordem jurídica vigente a
um tratamento “histórico” incorporando a história do direito à história global, já
que o direito é parte integrante da cultura como um todo socialmente construído.
Inicialmente é importante esclarecer que para Savigny a cultura é entendida como
tradição espiritual.

Por entender o direito como “parte individualizada da vida do povo”,


que “atua de maneira silenciosa” e surgindo “assim como a linguagem” das
concepções do povo, não pode ser imposto, como pretendiam os “legisladores
jusracionalistas”.

FIGURA 13 - FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY


Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) –
Importante jurista alemão do século XIX e o maior nome
da Escola Histórica de Direito. Teve enorme influência no
Direito Moderno, especialmente no Direito Civil.

FONTE: <https://global.britannica.com/biography/Friedrich-Karl-von-Savigny>.
Acesso em: 15 ago. 2016.

Savigny intencionava buscar as raízes do direito presente a partir da


historicidade, mas na prática compreendeu os conceitos abstratos e idealizados
pelo direito, já que a construção da história jurídica, que foi objeto de análise,
não discute a validade e natureza da ordem jurídica. Ao repudiar a filosofia
racionalista, deixou de conferir fundamentação à sua historicidade, entretanto,
consegue seu objetivo ao conferir tratamento formal ao direito.

Como decorrência da ideia já consolidada de sistematicidade do direito,


por sua fonte originária ser um todo orgânico (o “espírito do povo”), a unidade dos
institutos jurídicos seria conferida por um “princípio orientador”, “uma alma”.
A compreensão e o sentido dos institutos, nesta ótica, seriam obtidos a partir da
sistematização dos princípios gerais, e, através da dedução, seria possível obter
os demais princípios.

Em síntese, com o tratamento formal do direito histórico e legislado seria


possível extrair princípios gerais que explicariam e produziriam toda uma ordem
normativa subsequente, incorporando definitivamente os postulados positivistas
de cientificidade. Ao produzir uma coerência no sistema, não estaria o jurista a criar
o direito de maneira arbitrária, mas apenas identificando e descrevendo de maneira
neutra o que era objetivamente dado. A neutralidade e a objetividade pretendidas
pelo direito passam a legitimar uma ordem jurídica fundada na racionalidade.
Assim, se ia definindo o idealismo científico formal do Direito Moderno.

53
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

LEITURA COMPLEMENTAR

O QUE É FILOSOFIA E POR QUE VALE A PENA ESTUDÁ-LA

UTILIZAÇÃO DA FILOSOFIA

Há uma questão que muita gente formula de imediato quando ouve falar
de filosofia: qual a utilidade da filosofia? Não há certamente expectativa alguma
de que ela contribua para a produção de riqueza material. Contudo, a menos que
suponhamos que a riqueza material seja a única coisa de valor, a incapacidade da
filosofia de promover esse tipo de riqueza não implica que não haja sentido prático
em filosofar. Não valorizamos a riqueza material por si própria - aquela pilha de
papel que chamamos de dinheiro não é boa por si mesma -, mas por contribuir para
nossa felicidade. Não resta dúvida de que uma das mais importantes fontes de
felicidade, ao menos para os que podem apreciá-la, consiste na busca da verdade
e na contemplação da realidade; eis aí o objetivo do filósofo. Ademais, aqueles
que, em nome de um ideal, não classificaram todos os prazeres como idênticos
em seu valor, tendo chegado a experimentar o prazer de filosofar, consideraram
essa experiência como superior em qualidade a qualquer outra. Visto que a
maior parte dos bens que a indústria produz, excetuando os que suprem nossas
necessidades básicas, valem apenas como fontes de prazer, torna-se a filosofia
perfeitamente apta, no que se refere à utilidade, para competir com a maioria dos
produtos industriais, quando poucos são os que podem dedicar-se, em tempo
integral à tarefa de filosofar. Mesmo que entendêssemos a filosofia como fonte
de um inocente prazer particularmente válido por si próprio (obviamente, não
apenas para os filósofos, mas também para todos aqueles a quem eles ensinam
e influenciam), não haveria razão para invejar tão pequeno desperdício da força
humana dedicada ao filosofar.

Não esgotamos, porém, tudo o que pode ser dito em favor da filosofia,
pois, à parte qualquer valor que lhe pertença intrinsecamente acima de seus
efeitos, a filosofia tem exercido, por mais que ignoremos isso, uma admirável
influência indireta até mesmo sobre a vida de gente que nunca ouviu falar nela.
Indiretamente, tem sido destilada através de sermões, da literatura, dos jornais e
da tradição oral, afetando assim toda a perspectiva geral do mundo. Em grande
parte, foi através de sua influência que se fez da religião cristã o que ela é hoje.
Devemos originalmente a filósofos ideias que desempenharam papel fundamental
para o pensamento em geral, mesmo em seu aspecto popular, como, por exemplo, a
concepção de que nenhum homem pode ser tratado apenas como um meio ou a de
que o estabelecimento de um governo depende do consentimento dos governados.
No âmbito da política, a influência das concepções filosóficas tem sido expressiva.
Nesse sentido, a Constituição norte-americana é, em grande parte, uma aplicação
das ideias do filósofo John Locke; ela apenas substitui o monarca hereditário
por um presidente. Similarmente, admite-se que as ideias de Rousseau tenham
sido decisivas para a Revolução Francesa de 1789. É inegável que a influência
da filosofia sobre a política pode às vezes ser nefasta: os filósofos alemães do

54
TÓPICO 4 | ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO PRINCÍ-
PIO DA LEGALIDADE

século XIX podem ser parcialmente responsabilizados pelo desenvolvimento de


um nacionalismo exacerbado que posteriormente veio a assumir formas bastante
deturpadas. Todavia, não resta dúvida de que essa responsabilidade tem sido
frequentemente muito exagerada, sendo difícil determiná-la exatamente, o
que se deve ao fato de aqueles filósofos terem sido obscuros. Contudo, se uma
filosofia de má qualidade pode exercer influência nefasta sobre a política, com as
filosofias de boa qualidade pode ocorrer o contrário. Não há meios de impedir tais
influências, sendo, portanto, extremamente oportuno que dediquemos especial
atenção à filosofia com o intuito de constatar se concepções que exerceram alguma
influência foram mais positivas do que nefastas. O mundo teria sido poupado de
muitos horrores caso os alemães tivessem sido influenciados por uma filosofia
melhor que a dos nazistas.

Torna-se, portanto, imperativo abandonar a afirmação de que a filosofia


é destituída de valor, mesmo com respeito à riqueza material. Uma boa filosofia,
ao influenciar favoravelmente a política, pode gerar uma prosperidade incapaz
de ser alcançada sob a égide de uma filosofia inferior.

Outrossim, o expressivo desenvolvimento da ciência, com seus


consequentes benefícios de ordem prática, muito depende de seu background
filosófico. Houve mesmo quem tenha chegado a afirmar, a nosso ver
exageradamente, que o desenvolvimento da civilização como um todo seria
concomitante às mudanças na ideia de causalidade, da concepção mágica de
causalidade à científica. De qualquer modo, a ideia de causalidade faz parte
do objeto da filosofia. A própria ‘perspectiva científica’, em grande parte, foi
introduzida inicialmente pelos filósofos.

Todavia, certamente não estaremos nas melhores condições para fazer


um estudo proveitoso da filosofia se a encararmos principalmente como uma
via indireta de acesso à riqueza material. A principal contribuição da filosofia
consiste no intangível background intelectual do qual muito dependem o clima
espiritual e a feição geral de uma civilização. Nesse sentido, ocasionalmente se
desenvolvem ambições ainda maiores. Whitehead, um dos mais expressivos e
acatados pensadores modernos, descreve os dons da filosofia como “a capacidade
de ver e de prever, aliada a um sentido do valor da vida, ou seja, o sentido da
importância que anima todo esforço civilizado”. Acrescenta ainda Whitehead
que, “quando uma civilização atinge seu auge sem coordená-lo com uma
filosofia de vida, difundem-se por toda a comunidade períodos de decadência e
monotonia, seguidos pela estagnação de todos os esforços”. Para ele, a filosofia
consiste em “uma tentativa de esclarecer as crenças que, em última instância,
determinam nossa atenção, a qual integra a base de nosso caráter”. De um
modo ou de outro, podemos ter como certo que o caráter de uma civilização é
enormemente influenciado por sua concepção geral da vida e da realidade. Até
pouco tempo, para a maioria das pessoas, essa concepção era proporcionada pelo
ensino religioso, mas as próprias concepções religiosas foram muito influenciadas
pelo pensamento filosófico. Ademais, a experiência demonstra que as concepções
religiosas podem conduzir-nos à loucura, a menos que sejam continuamente

55
UNIDADE 1 | DIREITO E FILOSOFIA

submetidas a uma avaliação racional. Os que rejeitam qualquer concepção


religiosa devem ter o maior interesse em elaborar uma nova concepção para, se
possível, substituir a crença religiosa. E fazê-lo significa engajar-se na filosofia.

Embora não possa substituir a filosofia, a ciência suscita problemas


filosóficos, pois ela não pode dizer-nos que lugar ocupam os fatos com que lida no
esquema geral das coisas, não conseguindo nem mesmo esclarecer suas relações
com os espíritos que os observam. Nem mesmo pode demonstrar, embora deva
admitir, a existência do mundo físico ou a legitimidade do uso dos princípios
da indução para prever as prováveis ocorrências futuras ou ultrapassar de
alguma forma o que tem sido efetivamente observada. Nenhum laboratório
científico pode demonstrar em que sentido os homens têm uma alma, se o
universo tem ou não um propósito, se, e em que sentido, somos livres, e assim
por diante. Não desejamos com isso sugerir que a filosofia possa resolver esses
problemas; no entanto, se ela realmente não puder, nada mais poderá fazê-lo,
sendo certamente válido tentar descobrir ao menos se tais problemas podem ser
solucionados. Veremos que a própria ciência pressupõe continuamente conceitos
que subsumam os domínios da filosofia e, da mesma forma que nenhuma ciência
pode florescer se não admitirmos tacitamente uma resposta para certas questões
filosóficas, não podemos fazer uso mental adequado da ciência, com o intuito
de implementar nosso desenvolvimento intelectual, sem admitirmos uma visão
de mundo mais ou menos coerente. Mesmo as melhores conquistas da ciência
moderna não teriam sido alcançadas se os cientistas não tivessem adotado
determinadas suposições de grandes e originais filósofos, nas quais basearam
todo o seu proceder. A concepção “mecanicista” do universo, que caracterizou a
ciência durante os últimos três séculos, é derivada principalmente da filosofia de
Descartes. Por ter ocasionado maravilhosos resultados, o esquema mecanicista
deve ser, em parte, verdadeiro, ainda que parcialmente inadequado, apressando-
se o cientista em buscar no filósofo o necessário auxílio para erigir novo esquema
que possa substituir o antigo.

Um segundo serviço inestimável prestado pela filosofia (especialmente


pela “filosofia crítica”) reside no hábito, por ela estimulado, de promover-se um
julgamento imparcial considerando-se todas as facetas de uma questão, e na
ideia que ela oferece do que seja a evidência e de que devemos buscar ou esperar
de uma prova. Pode ser esse um importante questionamento das inclinações
emocionais e das conclusões precipitadas, sendo especialmente necessário, e
com frequência negligenciado, em controvérsias políticas. Se ambos os lados
considerassem suas diferenças políticas munidos de espírito filosófico, seria
difícil admitir a eventualidade de uma guerra. O sucesso da democracia depende
muito da habilidade dos cidadãos em distinguir um bom de um mau argumento,
não se deixando enganar por confusões. A filosofia crítica estabelece um padrão
ideal para o raciocínio correto e capacita quem a estuda a remanejar argumentos
confusos. Talvez seja esse a motivação pela qual Whitehead afirma, na passagem
acima citada, que “nenhuma sociedade democrática poderá alcançar êxito sem
que a educação geral que a inspire exprima uma perspectiva filosófica”.

56
TÓPICO 4 | ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO E DA SUPREMACIA DO PRINCÍ-
PIO DA LEGALIDADE

Na medida em que admitirmos que certa cautela é desejável ao


afirmarmos que os homens não deixam de viver de acordo com uma filosofia na
qual acreditam, e enquanto atribuirmos a maior parte dos desacertos humanos
exatamente à falta desse desejo de sintonia com ideais mais nobres, não poderemos
negar a extrema relevância de crenças gerais a respeito da natureza do universo
e do bem para a determinação do progresso ou da degeneração da humanidade.
Algumas partes da filosofia inegavelmente produzem resultados práticos mais
expressivos, mas não devemos por isso incorrer no erro de supor que a aparente
inexistência de um suporte de ordem prática para determinado campo de estudo
implica que a investigação desse campo seja destituída de sentido prático. Conta-
se que um cientista, que costumava jactar-se de desprezar a dimensão prática de
toda pesquisa, disse certa vez a respeito de uma: “O melhor disso tudo é que ela
possivelmente não revelará qualquer utilidade prática para quem quer que seja”.
Todavia, essa linha de pesquisa acabou levando à descoberta da eletricidade.
De modo similar, estudos filosóficos por demais acadêmicos e aparentemente
destituídos de utilidade prática terminam por exercer profunda influência sobre
a visão de mundo, chegando até mesmo a afetar, em última instância, a ética
e a religião que adotamos, pois as diferentes partes da filosofia, os diferentes
elementos que compõem nossa visão de mundo, deveriam integrar-se. Tal é pelo
menos o objetivo, nem sempre alcançável, de uma boa filosofia. Sendo assim,
conceitos à primeira vista muito distanciados de qualquer interesse de ordem
prática podem vir a afetar de modo vital outros conceitos que envolvem mais de
perto a vida diária.

Podemos compreender agora o motivo pelo qual a filosofia não precisa


recear a questão de ter ou não valor prático. Devo ao mesmo tempo dizer que não
aprovo de modo algum uma concepção puramente pragmática da filosofia. A
filosofia merece ser valorizada por si própria, e não por seus efeitos indiretos de
ordem prática. E a melhor maneira de assegurarmos esses bons efeitos práticos
é nos dedicarmos à filosofia pela filosofia. Para encontrar a verdade, precisamos
buscá-la desinteressadamente. E o fato de a encontrarmos se revelará muito útil
do ponto de vista prático. Não obstante, uma preocupação prematura com seus
efeitos práticos só dificultará nossa busca do que é de fato verdadeiro. Muito
menos podemos fazer desses efeitos práticos o critério de sua verdade. As crenças
são úteis porque são verdadeiras, e não verdadeiras porque são úteis.

FONTE: <http://filosofia.paginas.ufsc.br/files/2013/04/O-que-%C3%A9-Filosofia-e-por-que-vale-a-
pena-estud%C3%A1-la.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2016.

57
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você viu que:

• O Direito moderno é um paradigma assentado no princípio da legalidade.

• Positivismo Jurídico é a síntese teórica, filosófica e política do Direito moderno que


acabou por constituir-se em modelo dominante acerca do pensar e do agir jurídico.

• As crenças aceitas e reproduzidas de neutralidade e autossuficiência do


sistema normativo estatal são elementos nucleares e basilares da lógica jurídica
contemporânea.

58
AUTOATIVIDADE

Para finalizar este primeiro momento de estudo estamos propondo


como atividade de verificação a elaboração de um breve texto de uma (1)
página – na metodologia exigida (Arial, 11, espaço 1,5, justificado) abordando
o seguinte tema: “OS FUNDAMENTOS DO POSITIVISMO JURÍDICO”.

Sugere-se como texto base para elaboração a Introdução e Capítulo


1 do livro de Norberto Bobbio, disponível no site: <http://aprender.ead.unb.
br/pluginfile.php/19632/mod_resource/content/1/Norberto%20Bobbio%20
-%20O%20positivismo%20juridico%2C%20Li%C3%A7%C3%B5es%20da%20
Filosofia%20do%20Direito.pdf>.

Feito o trabalho releia brevemente a unidade estudada e compare seu


texto com o conjunto do texto lido.

59
60
UNIDADE 2

A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO
DIREITO MODERNO NO MARCO
DA TRADIÇÃO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Os objetivos desta unidade são:

• compreender as características, fundamentos e legado da cultura greco-


romana no âmbito da Filosofia do Direito;

• identificar o contexto histórico desde o qual foi edificada a Filosofia


Jurídica Medieval, destacadamente as correntes Patrística e Escolástica,
de forma a individualizar os fundamentos desde os quais se edificou a
cultura jurídica moderna;

• individualizar e caracterizar a cultura jurídica no contexto do pensamento


filosófico medieval como pressuposto histórico e científico do Direito
Moderno.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em dois tópicos e ao final de cada um deles você
encontrará atividades que o auxiliarão no aprendizado.

TÓPICO 1 – O LEGADO GRECO-ROMANO

TÓPICO 2 – O PENSAMENTO MEDIEVAL

61
62
UNIDADE 2
TÓPICO 1

O LEGADO GRECO-ROMANO

1 INTRODUÇÃO
A partir dos estudos realizados na unidade anterior já é possível
aprofundarmos melhor nossos estudos, especificamente na Filosofia do Direito,
indo às raízes das questões centrais para as quais os pensadores do Direito
buscaram soluções a fim de estabelecer fundamentos éticos, políticos e morais
adequados para o agir jurídico.

Inicialmente vamos lembrar que o estudo da Filosofia Geral e o da Jurídica,


em geral, são associados com o processo de construção das ideias, métodos, conceitos
e questionamentos ao longo da história do pensamento ocidental. Repetidamente
os manuais acadêmicos costumam apresentar o desenrolar do pensamento de
distintos autores desde a autorreferência, ou seja, é feita a reconstrução da história
do pensamento filosófico sem o objetivo de discutir como as ideias podem mudar
o mundo e como o mundo muda as ideias. Caso não estivermos atentos, podemos
entrar em um interminável círculo de debates e reflexões, perdendo de vista a
realidade que nos cerca e para a qual nossa preocupação deve estar voltada.
Afinal, filosofar é uma atitude de questionamentos, porém devemos sempre ter o
cuidado de não estar “nas nuvens”, pois se assim for, estaremos conhecendo tão
somente a miséria da Filosofia e não a sua virtude.

NOTA

A expressão “Miséria da Filosofia” foi usada pelo pensador Karl Marx como
título de sua importante obra em 1847. Este livro, considerado por alguns como a base do
marxismo, é uma resposta ao economista Pierre-Joseph Proudhon que havia escrito acerca
das contradições do sistema econômico de sua época. A crítica de Marx à obra é porque sua
obra era essencialmente acadêmica, uma vez que analisava e compreendia a realidade a partir
de abstrações. Marx critica o método: compreender a realidade desde o “mundo das ideias”.

Diríamos hoje que Marx critica o “academicismo”!

63
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

A miséria da Filosofia é ficar perdida dentro de si mesma, de sua tradição,


ou seja, é esquecer sua maior finalidade: o agir social.

Ao reconstruirmos a tradição do pensamento filosófico, não podemos


esquecer que as ideias são produzidas desde um “cenário” histórico, cultural
e ideológico provocativo, e para essas provocações é que os filósofos buscam
respostas. Sempre há um “pano de fundo” impulsionando o agir, mas não estamos
situados naquele contexto histórico. O que buscamos é enfrentar os desafios de
nossa realidade e, para tanto, refazemos nossa trajetória não como puro lazer ou
“passatempo”, mas estabelecendo uma relação entre o pensar e o agir, entre as
ideias e a realidade, compreendendo a Filosofia como práxis.

Práxis é uma palavra de origem grega, utilizada inicialmente por


Aristóteles, que significa conduta ou ação. Portanto, refere-se à atividade oposta
à teoria. Embora o termo tenha sido usado por muitos pensadores, foi em Karl
Marx que ganhou ressignificação. De acordo com a filosofia marxista, práxis é
o fundamento de toda teoria, qual seja, o de transformação da realidade. Marx
utiliza o conceito como crítica ao idealismo, compreensão das coisas e do mundo
a partir das ideias.

Deixando de lado o idealismo vulgar e fantasioso (a face miserável do


pensar) que trabalha a realidade não como é, mas como se imagina ser, é que
vamos revisitar historicamente a construção do pensamento filosófico jurídico.

Lembra o pensador Antonio Carlos Wolkmer que reexaminar a história


do pensamento jurídico é dar uma nova leitura ao Direito, uma vez que:

A história expressa a complexa manifestação da experiência humana


interagida no bojo de fatos, acontecimentos e instituições. O caráter
mutável, imperfeito e relativo da experiência humana permite proceder
múltiplas interpretações dessa historicidade. Daí a formulação, ora
de uma História oficial, descritiva e personalizada do passado, e que
serve para justificar a totalidade do presente, ora da elaboração de
uma História subjacente, diferenciada e problematizante que serve
para modificar/recriar a realidade vigente (WOLKMER, 2007, p. 14).

Como já estudamos, o pensamento jurídico hegemônico foi elaborado


como uma espécie de “engenharia” social e política, relativamente bem-sucedido,
na Modernidade, a partir de uma soma de fatores e elementos que possibilitaram
a edificação de um projeto jurídico cientificista e técnico de matriz eurocêntrica.
O eurocentrismo é uma concepção segundo a qual o espírito europeu é uma
verdade absoluta e carrega em si um todo intelectual da humanidade.

Esta concepção, chamada por Enrique Dussel como “paradigma


eurocêntrico”, é a tese que acabou por impor tanto nas áreas centrais como
nas periferias mundiais o pressuposto segundo o qual a modernidade é um
fenômeno exclusivamente europeu desenvolvido desde a Idade Média e, desde
aí, se difunde como “história mundial” (DUSSEL, 2012, p. 51). A Modernidade,
vista pela perspectiva eurocêntrica, tem como antecedente a Idade Antiga e

64
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

preparatória à Idade Média, e desde aí a Europa adquire lugar privilegiado e


acumulador da construção do conhecimento.

Apresentamos uma “linha do tempo” da Filosofia ocidental, é apenas uma


imagem para situar-se. A história não é linear, tampouco a Filosofia é somente
eurocêntrica.

QUADRO 2 – FILOSOFIA OCIDENTAL


MITO NASC. FILOSOFIA RENASCENÇA FILOSOFIA ILUMINISMO FILOSOFIA
FILOSOFIA MEDIEVAL MODERNA CONTEMPORÂNEA
Grécia Renascimento Iluminista
Antiga Filosofia Filosofia Filosofia Filosofia
Antiga Medieval Moderna Contemporânea
- Séc. VII
- Mitologia VII ao XIV XIV - XVI XVII - XVIII XVIII - XIX XIX - XX
a.C - VI d.C
- Cosmos - Viagens Característica Característica Característica Característica Característica
(mundo) Marítimas Valorização - Humanismo - Racionalismo - Razão - Progresso
- Moedas da Teologia - Homem - Ceticismo, - Política - Técnicas
- Cidades - (centro) Dúvida - Grandes - As Grandes Guerras
- Escrita Teocentrismo Revoluções - Ditaduras
- Política - Padres - Progresso - Socialismo
Igreja - Mercantilismo
Pensadores Pensadores Pensadores Pensadores Pensadores Pensadores
- Platão S. Agostinho - Maquiavel - Descartes - Hume - Hegel
- Sócrates S. Tomás - Bacon - Rousseau - Marx
- Aristóteles - Hobbes - Kant - Sartre
- Sofistas - Pascal - Heidegger
- Locke

TEMAS PARA ESTUDO: Verdades, Conhecimento, Ética e Moral, Política, Liberdade, Cultura,
Violência, Ideologia, Bioética e outros.
FONTE: <http://amorsaudeevida.blogspot.com.br/2014/04/linha-do-tempo-da-filosofia.html>.
Acesso em: 20 jul. 2016.

Vamos iniciar o estudo da trajetória da Filosofia do Direito buscando


compreender:

• Quais elementos caracterizaram cada momento da historicidade pré-moderna


da filosofia jurídica.
• As contribuições de cada etapa histórica ao pensamento jusfilosófico pré-moderno.
• Como foram respondidas as grandes questões acerca da justiça e do direito em
distintos momentos a partir de diferentes contextos.

Na etapa contemporânea da vida social necessitamos redefinir nossa


trajetória na tentativa de visibilizar um futuro mais generoso e humanizador,
o que pretendemos desde uma revisão da história do pensamento filosófico do
direito, pois, ao que parece:

O direito perdeu sua identidade, rendeu-se a novos deuses: é visto


como servo da economia, da política e da utilidade, enquanto exigimos
que seja visto como fenômeno moral. Nunca antes, parece, exigiu-se
tanto do direito; nunca antes investiu-se tão pouca autoridade nele
(MORRISON, 2006, p. 17).

65
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

2 DO MITO AO LOGOS
Uma das problemáticas que se deve ter presente é acerca das fontes de
estudo do direito e da filosofia grega e romana. Como boa parte da literatura
jurídica e filosófica foi perdida, sobretudo a dos pré-socráticos, dos sofistas, de
Demócrito, e tantos outros autores, nosso estudo deve ser completado por outras
fontes. Também se perderam escritos de Platão e Aristóteles, restando fragmentos
e partes incompletas de importantes obras.

FIGURA 14 - FRAGMENTO DA “ILÍADA”


Fragmento da “Ilíada”, de Homero, arquivada no
Neues Museum, em Berlim, que preserva parte da obra.

FONTE: <https://jrodrigorodriguez.wordpress.com/2010/02/07/berlim-e-hamburgo-aos-
pedacos-xix-homero-ausente/>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Estamos acostumados a nos maravilharmos com a magistral obra


dos juristas romanos e da genialidade da cultura grega, sem, muitas vezes,
nos darmos conta das convergências entre ambas. A expansão do Império
Romano e o aprimoramento da vida na pólis grega são fatores importantes para
compreendermos a fundação de uma nova concepção de cidadania e política.
Com diferenças e particularidades, o certo é que o espírito prático romanista e seu
legado técnico de direito, um dos pilares da cultura ocidental, e a sofisticação da
cultura grega vão encontrar na filosofia o ponto de encontro entre ambas.

A ciência jurídica romana, no período clássico, tem na filosofia grega,


particularmente no platonismo, paripatetismo e estoicismo, a fonte ética e moral
de sustentação. Não que os romanos não tenham autonomia de pensamento, mas
há de ser lembrado que a civilização romana foi plural e eclética, aprendendo ao
longo de séculos de história de dominação a conviver e absorver distintas culturas.

As primeiras especulações acerca da justiça na Grécia antiga são fundadas


na teogonia – antiga narrativa da origem do cosmo e dos deuses –, que concebia,
desde um politeísmo antropomórfico, a solução dos problemas humanos. A
relação entre a natureza e os humanos estruturou o espírito inicial da filosofia.
66
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

O que aconteceu foi que categorias com que teve que encarar o mundo
natural foram tiradas da experiência da vida humana, intuitivamente
expressa na mitologia, e deste modo se deve reconhecer, [...] que essas
categorias (e em especial a noção de ‘lei’, aplicada aos fenômenos da
realidade física) têm origem social. A passagem do mito para o logos,
como se denominou o processo mental que deu lugar à filosofia
enquanto conhecimento racional rigoroso, não se deu de uma só vez,
e por longo tempo coexistiram as duas modalidades de enfrentar o
mistério do Ser (TRUYOL Y SERRA, 1982, p. 86, grifos nossos).

A inicial filosofia helênica buscava compreender o enigma da existência


humana desde o desvelamento do que seria o elemento essencial, primordial, estável
e unitário que rege o cosmos humano e não humano. A esse princípio a que “todas as
coisas” estão ligadas e a que “tudo volta” deram o nome de physis – natureza.

Ao mesmo tempo, a vida humana ia se organizando na pólis – um espaço


de convivência comunitária, um pequeno cosmos, a política e a autoderminação
iam se consolidando. Assim, a pólis foi sendo o núcleo central articulador da
cultura grega e manifestação jurídica-política, que somadas exprimem uma das
maiores expressões civilizatórias da história.

A visão de mundo complexa e particularmente grega deve ser compreendida


a partir dos arquétipos tão marcantes daquela cultura. Subjacente às ideias era
mantida uma visão de cosmo (kósmos – universo humano e não humano harmônico
e estruturado), ordenado por princípios imutáveis e universais transcendentais
concebidos desde formas e conceitos divinos. Embora distintos no pensar e em
momentos históricos diferentes, os filósofos gregos manifestaram um desejo de
encontrar os elementos e arquétipos ordenadores para o caos da vida.

Esses princípios estavam ora nas formas geométricas e matemáticas; ora


nos opostos (homem/mulher; luz/escuridão; amor/ódio; bem/mal, entre outros),
ora nos valores morais e na justiça.

FIGURA 15 - ATLAS
Atlas ou Atlante é um dos titãs gregos –
figuras de poderes desproporcionais de força e
violência, desordem e caos –, condenado por Zeus
a sustentar os céus para sempre. O castigo lhe foi
imposto após tentar tomar o Olimpo.

FONTE: <http://eventosmitologiagrega.blogspot.com.br/2010/10/atlas.html>.
Acesso em: 16 ago. 2016.

67
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

No pensamento grego havia um permanente fluxo entre a vida interior e


exterior: “tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo”, defendia Heráclito
de Éfeso. E assim, desde as divindades e os arquétipos serão elaborados os
fundamentos de filosofia e justiça daquela sociedade.

Protegida pelos deuses, a pólis era regida por normas tradicionais – themistes
(regulamentações) – que codificadas constituíam o nomos – ordem da pólis­. Como você
deve saber, as pólis constituíam formas diversas de organização que concretizava a
convivência desde os valores de todos por todos. Graças à vida na pólis era possível
a liberdade individual assegurada pela justiça, inicialmente compreendida como
reparação a tudo que feria a ordem estabelecida e, posteriormente, vai se identificar
como harmonia e equilíbrio nas relações entre os homens.

[...] se o apego da pólis às suas autocracias e independência pôde servir de


estímulo à emulação, também é certo que trouxe consigo a invertebrada atomização
do mundo grego, cuja unificação acabou por ser imposta do exterior, à custa da
própria liberdade. Essa situação só em parte foi mitigada por confederações e
ligas de cidades, estabelecidas em geral sob a direção de uma pólis hegemônica
(Atenas, Esparta, Tebas) (TRUYOL Y SERRA, 1982, p. 87).

A íntima relação dos termos “política” e “pólis” não decorre tão somente
do vínculo semântico. A multifacetada experiência ocorrida em Atenas entre
os séculos IV a VI a.C. evidenciou contradições capazes de gerar um ambiente
decisivo para o surgimento da reflexão política.

O esplendor vivido pela pólis ateniense em séculos anteriores, canalizado


para o campo intelectual, transmutou o amálgama composto pela filosofia, ciência
e cultura para um campo específico do conhecimento e da ação: a política.

Para o povo grego, o modo de vida digno dependia de uma precondição:


o exercício da liberdade. A liberdade significava a independência em relação
às necessidades básicas de vida, eliminando qualquer modo de vida ligado à
sobrevivência. Não apenas os escravos não possuíam liberdade, mas também
os artesãos livres e os mercadores, ou seja, estavam excluídos todos os que não
podiam dispor de liberdade de ação e de movimento. Apenas aos homens livres
pertencia o direito de escolha de uma vida digna: a vida voltada aos prazeres
do corpo – onde o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos
assuntos da pólis – atividade que por excelência produz belos efeitos; e a vida de
filósofo – dedicada à contemplação e investigação das coisas eternas, cuja beleza
não poderia ser alterada nem pela produção nem pelo consumo humano. Na
concepção de Hannah Arendt (1983), dentre as atividades humanas gregas que
mantinham um bios digno – um modo de vida autenticamente humano e livre de
necessidades e privações –, a vida política ocupava especial destaque, pois viver
na pólis significava desfrutar de uma forma de organização política particular e
livremente escolhida.

68
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

Não se tratava apenas de viver num aglomerado urbano, mas, sobretudo,


de ser parte integrante de uma unidade política e social organizada, limitada
territorialmente; fazendo com que o grego, como afirma Touchard (s/d, p. 28),
“reflita sempre sobre si próprio como cidadão”. A pólis representava, como
modelo ideal de agrupamento humano, algo mais do que uma forma possível
de organização: era uma dádiva divina que possibilitava conferir sentido e
individualidade à existência humana.

A grande marca do espírito grego, uma cultura ímpar, é a busca de


compreensão da relação do cosmos – mundo circundante – com o ser humano
na tentativa de edificar um tipo ideal de governo desde uma Politeia, fundada
na ética e no bem comum que, irrenunciavelmente fosse capaz de servir de
referencial para a ação dos governantes. Este “espírito” foi norteando as distintas
formas de governo da pólis – da monarquia à aristocracia e posteriormente a
oligarquia seguida pela tirania –, formas que acabaram por se tornarem objeto
de reflexão do mundo existencial, humano e não humano. Esta é uma marca do
espírito grego: através da razão, compreender a relação do homem com o mundo
circundante instituído, como busca de um tipo ideal de governo, de uma Politeia
– Constituição – fundada no bem e na ética, que pudesse servir como referencial
último para a ação dos governantes.

É certo que houve um “mundo pré-político” grego, o mundo homérico,


onde havia um sentido embrionário de pólis. Ilíada fala de um mundo dominado
pelo espírito heroico de homens que já conheciam a vida organizada da cidade.
Jaeger (1989, p. 29) compreende que a Ilíada descreve um tipo próprio de existência:
“para o herói – o mais nobre dos homens, porém frágil por sua condição humana
– a luta e a vitória representam o conteúdo da própria vida”.

Com a chegada e aperfeiçoamento do alfabeto fenício na Grécia são


escritos poemas épicos que traduzem a cultura do povo grego em uma fase
primitiva. Os mais famosos são atribuídos a Homero (século XI a.C.): Ilíada e
Odisseia, constituídos, ambos, por 24 cantos. Ilíada canta episódios do décimo
ano da guerra de Troia, tendo como personagem central Aquiles, um semideus
(herói), filho de Peleu (rei de Tessália) e da sereia Tétis, que com sua cólera e
bravura combate Heitor, um dos mais valentes dos chefes troianos. Dentre outros
episódios, a estória narra a morte de Aquiles (flechado no calcanhar por Páris) e o
fim da guerra de Troia (ardil do cavalo de madeira). Odisseia narra as aventuras de
Ulisses (rei de Ítaca e herói da guerra de Troia) que se destaca por sua prudência e
astúcia. Odisseia descreve a volta de Ulisses após a queda de Troia. Passando por
desgraças e triunfos, retorna Ulisses para junto de sua amada Penélope disfarçado
de mendigo. Vencendo a prova exigida por Penélope, apenas Ulisses seria capaz
de disparar 12 flechas, e mesmo velho e coberto de farrapos é reconhecido. Como
recompensa por seus feitos, Ateneia – deusa protetora de Ulisses – devolve-lhe
seu aspecto juvenil e reiniciam novas aventuras.

69
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

O mesmo modelo de herói em Odisseia, regressando de maneira aventurosa


de sangrentas batalhas, inspirado pelo modo de ser da aristocracia, deseja a fama
partilhada com amigos e familiares. A nobreza descrita em Ilíada é idealizada pelo
imaginário transmitido pela tradição; uma casta que tenta permanecer intocável,
resistindo às mudanças políticas. Em Odisseia a mesma nobreza é descrita como
uma classe ainda fechada, que, apesar de forte sentimento de humanidade, é
consciente de seus privilégios, entendendo-os como desígnios divinos.

Homero narra, segundo Jaeger (1989), uma concepção que precedeu


e fundamentou o pensamento político clássico grego. A idealidade humana
da antiga pólis permaneceu no coletivo, convertendo a cidade “[...] num ser
especificamente espiritual que reunia em si os mais altos aspectos da existência
humana e os repartia como dons próprios” (JAEGER, 1989, p. 96).

A pólis – o cosmos político – dá ao homem grego, ao lado de sua vida


privada, a vida de cidadão, permitindo a identificação de uma segunda existência:
o comum, através do qual o homem realiza suas virtudes de convivência política.
A identidade de um grego não era restrita a seu nome e a de seu pai, mas de
sua cidade de origem. A consciência de cidadania, que desde tempos imemoriais
pertencia à aristocracia, fazia com que o cidadão exigisse e lutasse por garantias
de vida privada e comum, já que ambas constituíam uma só. Seguramente é por
este fato que Aristóteles define o homem como um animal político: um ser com
qualidade de cidadão.

Segundo o pensamento de Hannah Arendt (1983, p.16), a convivência


plural da pólis é o que possibilitava uma significação ao humano, pois tal
coexistência é o pressuposto da identidade individual e política. A escolha de um
modo de vida digno, condicionada à ação política, dependia de uma precondição
determinante: o exercício da liberdade. A noção de liberdade era o diferencial
entre um grego e um bárbaro.

A liberdade, conceito aliado à ideia de lei, era uma condição que os gregos
sempre exaltaram. Viver livre era, fundamentalmente, além de não ser escravo de
ninguém e de nenhuma coisa, também o poder de participar politicamente. Tal
condição resultou de paulatina conquista jurídica: a liberdade civil, conquistada
com as reformas de Sólon (594 a.C.), e o avanço democrático com a participação
nos órgãos de decisão política. Assim, liberdade e democracia eram inseparáveis.

Democracia significava a obediência da lei na igualdade, sendo, portanto,


a liberdade, como define Touchard (s/d, p. 39), “[...] um estatuto de duplo
aspecto: por um lado, independência em relação a toda espécie de coação pessoal;
por outro, obediência às disposições gerais”. A cidade permitia a emancipação
do cidadão na medida em que libertava o indivíduo da submissão pessoal e a
transferia para as obrigações coletivas.

70
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

Sólon, apesar de nobre, havia feito fortuna como comerciante. Empreendeu


uma reforma social abolindo a escravidão por dívidas – proibiu que a liberdade do
credor fosse garantia de pagamento de dívida – e deu aos camponeses uma parte
das terras que até então pertencia exclusivamente aos nobres. No âmbito político,
além de manter os órgãos governamentais existentes (Arcontes e Areópago),
acrescentou dois novos corpos políticos: a Assembleia Popular, constituída por
todos cidadãos sem distinção de nascimento, e o Conselho dos 400 (Senado).
Dividiu os atenienses em quatro classes de acordo com a riqueza com gradativa
proporcionalidade de direitos. A quarta classe, os mais pobres, não pagavam
impostos. Ao conceder o privilégio de voto à quarta classe, preparou o caminho
para a democracia.

De todas as cidades gregas, em nenhuma outra havia tão estreito laço


entre o cidadão e a pólis como o que existia em Atenas. Por esta razão, a queda de
Atenas em 404 a.C., após uma guerra de 30 anos, representou uma catástrofe, com
repercussões para além do âmbito político, atingindo a própria moral daquela
sociedade. Péricles, que governou Atenas de 461 até sua morte, em 429, havia
fundado um império que parecia ser a eterna morada da civilização ateniense. A
súbita perda de hegemonia de Atenas abalou o mundo helênico, porque “deixava
nos limites do Estado grego um vazio difícil de preencher” (TOUCHARD, s.d.,
p. 335). Assim, o século V a.C. transformou-se num momento de reconstrução
interna e externa de Atenas.

“Democracia” é o termo que define oficialmente o modelo político de


Atenas no século V. Péricles emprega a palavra “democracia” na oração fúnebre
que Tucídides lhe atribui. Como princípio político, designa um modelo oposto
à tirania e oligarquia no qual a lei é igual para todos (isonomia), com igual
participação nos negócios (isegoria) e no poder (isocracia). Afirma o referido autor
que democracia se caracteriza como: Barreira contra o abuso da força (Hybris) e
os apetites excessivos (pleonexia), ela desempenha no universo político o mesmo
papel que a medida (sofrósine) no universo moral (TOUCHARD, s.d.).

Os longos anos de guerra absorveram recursos que causam acentuado


empobrecimento de Atenas, e, com isso, as lutas de classe acirram-se, polarizando
forças sociais em antagonismos antropofágicos. O modo de vida ateniense, até
então inabalável, teve que ser recomposto. A derrota da Liga de Delos na Guerra
do Peloponeso (431-404 a.C.), com a vitória de Esparta e a imposição do regime
oligárquico dos Trinta Tiranos, mostrou que as instituições políticas são tão
efêmeras quanto qualquer sonho de eterna dominação e riqueza. O decréscimo
populacional, a destruição das áreas agrícolas acompanhada de êxodo rural, a falta
de alimento e o forte abalo econômico são alguns dos fatores que produziram um
turbilhão de decadência. A participação e o interesse do cidadão nas atividades
públicas, que até então davam fiança à administração política, tornaram-se objeto
de repugnância.

71
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

ATENCAO

Foi a partir desta dolorosa experiência que surgiu a necessidade de uma


reflexão política interna, sendo este um dos fatores decisivos para a rápida e surpreendente
superação da profunda crise em que aquela sociedade havia mergulhado. Em nenhum
outro momento da história o povo ateniense havia se dado conta de que sua maior força
estava na cultura.

O resgate da aparentemente perdida honra ateniense passa a nortear


o cotidiano nas praças e nos tribunais. Uma onda de esperança impregnava o
discurso dos poetas, dos políticos e jovens. A clara consciência do “espírito grego”,
que se traduzia como distinção em relação aos demais povos, e a realização da
democracia no século anterior ofereciam maior capacidade de superação aos
entraves políticos, sociais e econômicos dos séculos V e IV a.C. Neste momento, o
processo histórico rompe com a estabilidade da ordem social até então instituída.
Assiste-se a um avanço cultural decisivo que criou um fértil terreno para o
pensamento político e filosófico. É superado o antigo paradigma cosmológico
no qual ao homem cabia apenas aceitar o destino de nascer, viver e morrer sob
a ordem do inevitável e imutável, desaparecendo o sentido de vivência como
mágico círculo natural de ordem fora do qual apenas existia o caos.

Paulatinamente ia abrindo espaço público para os debates, acentuando-


se a capacidade de pensar e argumentar como forma de convencimento. Assim,
pensadores eloquentes iam influenciando as massas. Este movimento intelectual
crítico das autoridades e das convenções acaba por criar um abismo entre as
velhas crenças, preocupadas com o mundo da natureza, e os assuntos da pólis.

Os sofistas lideram estes novos debates, auxiliando seus discípulos a obter


mais sucesso da vida pública do que na especulação teórica. Sophistes era uma
expressão genericamente utilizada para designar pessoas, ao mesmo tempo hábeis
e sábias, que, por volta de 450 a.C., passou a ser usada para identificar “professores
viajantes” que ensinavam por meio de conferências públicas a arte da eloquência
e da sabedoria “prática” (areté). Os sofistas (sábios) eram estrangeiros, portanto,
não cidadãos gregos, e sem compromisso com os destinos da cidade. O objetivo
desses “professores itinerantes” era ensinar a arte do bem falar e argumentar, sem
a preocupação com a essência valorativa (moral e ética) do discurso.

Os sofistas mais conhecidos são Hípias (nascido na Élida no século V a.C.),


Górgias (487-380 a.C.) e Protágoras (485-410 a.C.).

Estes intelectuais constituíam uma nova classe de profissionais, que


apesar de não partilharem nenhuma escola filosófica, possuíam um traço comum:
afastaram definitivamente o pensamento grego das preocupações naturais e
centraram-se nos assuntos relativos à conduta humana. Com isto, o zoon politikon,

72
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

definição de homem usada mais tarde por Aristóteles, muda de eixo. Tratava-
se agora de unir, de maneira convincente, duas atividades políticas: “a ação
(práxis) e o discurso (léxis), dos quais surge a esfera dos negócios humanos (taton
anthropon pragmata, como chamava Platão), que exclui estritamente tudo o que
seja apenas útil e necessário” (ARENDT, 1983, p. 34). A experiência crescente do
exercício político vai acentuando o discurso como meio de persuasão, meio de
comunicação específico que alia o pensamento filosófico ao político.

Consolida-se uma forma de pensar onde a filosofia passa a ser a fonte


primordial de conhecimento e poder. Na medida em que a capacidade de
contemplação, adquirida pelo ato de filosofar, confere legitimidade racional ao
discurso e à prática política, é rompida a submissão injustificável ao nomos: agora
é necessário compreendê-lo racionalmente.

Sob este “pano de fundo” surge uma figura que será imortalizada como a
encarnação de todas as virtudes ideais de um cidadão: Sócrates.

FIGURA 16 - ESCULTURA DE SÓCRATES EXPOSTA NO MUSEU DO LOUVRE

FONTE: <http://faunosmitos.blogspot.com.br/2008/11/scrates-era-um-fauno_8005.html>.
Acesso em: 16 ago. 2016.

O Sócrates (469-399 a.C.) histórico, segundo Jaeger (1989, p. 343-400), não


possuía nenhum traço de origem, nem de classe social, que o predestinasse a
reunir em torno de si filhos da aristocracia. É possível que Arquelau, quando
então com 30 anos, o tenha conduzido no círculo aristocrático. Em idade madura,
viveu o apogeu e o florescimento da cultura ateniense, tendo discípulos de
relevância política, como Alcebíades e Crítias. A exigência da consolidação do
poder ateniense levava seus cidadãos a grandes sacrifícios e Sócrates sempre se
destacou como um bravo combatente. Pessoalmente era radicalmente contrário
à ambição pelo poder por entender que as razões espirituais eram superiores
às causas políticas. Na escola ateniense de atletismo, o ginásio, local também
de torneio de pensamentos, torna-se uma figura indispensável, por ser um
autêntico médico preocupado com o bem-estar físico e espiritual de seus amigos.
A “ginástica de pensamento”, a que obrigava os jovens, os fascinava, fazendo
perguntas certeiras para a revelação dos talentos daqueles que o procuravam.

73
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

Identificado por alguns como sofista e ridicularizado por outros de


maneira impiedosa, como por Aristófanes na peça teatral As Nuvens, Sócrates
é um homem de seu momento histórico. Viveu numa Atenas que assistia ao
nascimento do ato de filosofar consubstanciado com o de fazer política.

Em Críton, Platão imortaliza a atitude de Sócrates que faz de sua morte


o seu último grande ensinamento: a obediência às leis da cidade é um dever
para todos, mesmo quando elas se voltam contra o cidadão. Compreendendo
que política e ética são inseparáveis, Sócrates tinha claro o conflito de ambas na
prática, chegando a afirmar diante dos juízes que a luta pela justiça deve ser do
homem comum e não dos homens públicos. Observava que os crimes mais graves
eram cometidos por um homem quando estava no poder, por ser a onipotência
a maior tentação que uma pessoa pode ter. Por esta razão, o entendimento de
Sócrates é o de que a direção política deve possuir um cunho filosófico, sendo esta
a grande convicção desenvolvida por Platão, seu maior seguidor.

Sócrates, um homem atormentado pela consciência do saber, que


carregava o insuportável fardo de conhecer a redenção de uma sociedade
decadente e criminosa, não poderia fugir da missão política que deveria cumprir.
Sua escolha pela morte representa o conflito político entre o pensador e a pólis.
Embora não desejando desempenhar nenhum papel político, queria, acima de
tudo, que a filosofia tivesse algum sentido para a cidade. Seu julgamento e morte
é antes de mais nada uma atitude humana diante da esfera política. A partir de
então, os filósofos se sentiram mais responsáveis pela cidade. A introdução do
humanismo no pensamento político e filosófico foi o grande legado de Sócrates,
pois isto foi o que possibilitou que seus seguidores pudessem definir conceitos
éticos capazes de conferir validade à ação política. E exatamente este foi o ponto
de partida para a reflexão política: a racionalização de uma conduta ética como
sinônimo de sabedoria.

A dialética é o método pedagógico através do qual Sócrates refletia. A


partir do diálogo irônico e sarcástico, para que o interlocutor chegue às suas
próprias conclusões, estimula a reflexão entre “ideias opostas”. Essa forma de
educação custou a Sócrates sua vida. Foi acusado de ateísmo e de corromper
a juventude. O pressuposto de seu pensamento é o reconhecimento de seus
próprios limites e ignorante de sua ignorância, pois só assim a razão poderia
superar a mera opinião.

3 PLATÃO – FILOSOFIA, POLÍTICA E JUSTIÇA


Platão, como era próprio dos jovens da aristocracia ateniense, tinha
inclinação para os negócios públicos. O regime dos Trinta, que emerge da crise
ateniense após 404 a.C., e o breve retorno da democracia, findada em poucos
meses, fazem ruir suas ilusões em relação à política.

Entretanto, o grande golpe que mais o abalou, com então 29 anos, foi a
condenação e morte de Sócrates. Devido a esse episódio Platão já não crê mais nos

74
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

regimes políticos de sua época, sobretudo na democracia, por entender ser o pior dos
regimes que tornava possível a política ser dominada por mercenários dominados
por paixões e meras opiniões. Platão, seguindo os ensinamentos de Sócrates, se
convence definitivamente que apenas o filósofo poderia ser governante pois apenas
ele, conhecendo a verdadeira justiça, seria capaz de melhor conduzir a política.

FIGURA 17 - PLATÃO – MUSEU DO LOUVRE

FONTE: <http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.
php?foto=437&evento=6>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Segundo Philonenko (1997), “Platão” era uma alcunha de Aristocles (428-


7-348-7 a.C.). Ateniense de nascimento, do lado paterno descendente de Codrus,
último rei de Atenas, que por sua vez descendia diretamente do próprio deus
Poseidon; e, do lado materno, de Perictine, descendente de Sólon, filha de Crítias,
dois dos Trinta Tiranos que dominaram Atenas por algum tempo. Após seu
nascimento, sua mãe enviúva e volta a casar-se com Pirilampo, seu tio materno,
com quem teve um filho, Antifonte, narrador de Parmênides. Era um aristocrata
de alta linhagem e como tal recebeu a alta educação exigida por sua posição social.
Ligou-se intimamente com Sócrates, um homem do povo, de cuja convivência,
salienta o referido autor, houve um curioso resultado: Sócrates nunca se tornou
aristocrata, nem Platão um homem do povo. É duvidosa a maneira como Platão
se aproxima de Sócrates, mas é provável que, por ter sido preparado para exercer
atividade política, tenha se ligado a Sócrates por suas pregações sobre a justiça que
iria reinar na cidade quando o princípio da consequência substituísse o princípio da
igualdade. A desordem e impotência do governo democrático no desastre político
de 404 (fim da guerra do Peloponeso) e o despotismo oligárquico instalado foram
os motivos que conduziram Platão a ligar-se ao homem de quem dirá no final de
Fédon: “[...] que entre todos os do seu tempo que lhe foi dado conhecer, ele foi o
melhor e, além disso, o mais sábio e o mais justo” (PHILONENKO, 1997, p. 25).

Em A República, referindo-se aos sofistas como mercenários e falsos


pensadores políticos, Platão (s.d., p. 283) afirma:

75
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

Cada um desses particulares mercenários, a quem essa gente chama


Sofistas e considera como rivais, nada mais ensina senão as doutrinas da
maioria, que eles propõem quando se reúnem em assembleias, e chamam
a isso ciência. É como se uma pessoa, que tenha de criar um animal grande
e forte, aprendesse a conhecer as suas fúrias e desejos, por onde deve
aproximar-se dele e por onde tocá-lo, e quando é mais intratável ou mais
meigo, e porquê, e cada um dos sons que costuma emitir a propósito de
cada coisa, e com que vozes dos outros se amansa ou irrita, e depois de ter
adquirido todos estes conhecimentos com a convivência e com o tempo,
lhes chamasse ciência e os compendiasse, para fazer deles objeto de
ensino, quando na verdade nada sabe do que, destas doutrinas e desejos,
é belo ou feio, bom ou mau, justo ou injusto, e emprega todos estes termos
de acordo com as opiniões de grande animal, chamando bom àquilo que
ele aprecia, mau ao que ele detesta, mas sem ter qualquer outra razão
para tanto, antes designando por justo e belo o inevitável, porquanto
nunca viu a diferença essencial entre a natureza da necessidade e a do
bem, nem é capaz de a apontar a outrem.

Com a morte de Sócrates, Platão sabe que Atenas não era um lugar seguro
e decide partir para a Itália e Secília Meridional, tornando-se próximo de Díon
– cunhado do tirano de Siracusa Dionísio I, o Velho, sucedido por seu filho
Dionísio, o Jovem – o que lhe permitiu visitar a corte muitas vezes e, movido
por sua crença, tenta convencer o monarca de que o verdadeiro rei deveria ser
um filósofo. Mais uma vez passa por uma experiência dramática: é embarcado
à força num navio de Égina, cidade então em guerra com Atenas, vendido como
escravo, retornando apenas para Atenas graças ao resgate feito por Anníceris.
Após sua primeira viagem àquelas terras, em 387 a.C., volta para Atenas e funda a
Academia, próximo ao santuário do herói ático Academos, que perdurou até 529,
quando é desativada por Justiniano.

Seus primeiros diálogos refletem a grande preocupação política que na


obra República, tradução de Politeia (palavra mais rica de significado), atinge
plena maturidade. A República é um grande diálogo que reflete um espírito
inquieto que pretende, através da reflexão, encontrar um melhor caminho para
o governo da cidade. Buscando uma resposta para o que é a justiça, segundo
Chevalier (1982), desta obra platônica podem ser extraídas três teorias: a da
justiça; da educação, condição primordial para a realização da justiça; e da
comunidade, condição negativa, mas necessária. Como herdeiro do pensamento
pitagórico e seguidor dos princípios socráticos, para Platão, a justiça é concebida
como virtude universal que engloba prudência, sabedoria e fortaleza, na medida
em que dependem da existência daquela, pois apenas com tal coexistência torna-
se possível a harmonia social.

Para Pitágoras a conduta humana em sociedade possui como referencial a


“ordem natural das coisas divinas”, ou seja, o comportamento ou está de acordo
ou em desacordo com tal parâmetro. A justiça é tomada como valor absoluto que
exige do indivíduo qualquer sacrifício para mantê-la: entre sofrer uma injustiça e
causar-lhe a outrem é preferível sofrê-la. Segundo Bittar (1999, p. 51), o paradigma
da justiça é expresso no contexto da filosofia pitagórica como inúmeros conceitos,
podendo ser resumidos nos seguintes preceitos:

1. Respeito aos deuses e ao culto.


2. No sentido judiciário (post factum) como corretivo em caso de
ocorrência de uma injustiça.

76
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

3. Justiça normativa (ante factum) como algo preventivo colocado à


disposição dos politai como garantia da ordem e bem comum.
4. Como sinônimo de autoridade e obediência estando implícita a
ideia de hierarquia.
5. Com sentido ético como piedade. A doutrina pitagórica, segundo
o referido autor, afora seu caráter místico, representou uma
importante base para o pensamento platônico.

Moral e política na teoria platônica formam a base imutável do Bem


Comum que não podem estar à mercê de perturbações “do devir”. Para Platão,
a verdadeira política deve estar a salvo das paixões e ilusões e a chave para a
verdadeira política seria a Filosofia. Por esta razão a Alegoria, ou Mito da Caverna
é um dos núcleos centrais de suas ideias. Com este referencial, Platão exclui a
utilidade, conveniência e interesse da verdadeira sabedoria de governar, pois a
grandeza da política da cidade é medida de acordo com sua relação com o ideal
de justiça, que não é outra coisa senão o Verdadeiro Bem aplicado à convivência
social. Ao instituir a política como ciência, Platão busca estabelecer princípios
teóricos para bem governar, e este foi o início de uma reflexão legada a toda
geração de teóricos que o sucederam.

Na República, Platão idealiza uma cidade hierarquizada, governada por


filósofos com virtude própria, fundada na Razão ou “Ciência do Bem” (ciência
política). Nesta linha de pensamento, a justiça nada mais é do que o respeito à
hierarquia: cada um deve exercer “na” e “para” a cidade o papel que lhe cabe.
Reconhecendo a diversidade humana, a Cidade de Platão seria constituída por
três classes distintas: a primeira, dos chefes de governo com sabedoria e virtudes
próprias; a segunda, de auxiliares ou guerreiros dotados de coragem; e a terceira,
dos artífices ou camponeses, quer sejam proprietários ou não, virtuosos por sua
temperança, ou seja, com capacidade de resistir aos apetites. A convivência com
tal diversidade permitiria a realização da perfeita justiça na medida em que
cada qual cumprisse sua função. Cada classe, representando uma parte da alma,
permitiria a existência de um único corpo harmônico: A Cidade.

Ao que parece, a construção teórica platônica pretendia eliminar a divisão


social dominante em seu tempo e a causa da decadência moral da civilização
ateniense: a luta de ricos contra pobres, dos excluídos contra a aristocracia
dominante. Seja como for, a idealização de uma cidade homogênea – como
se poderia afirmar atualmente, totalitária – era a forma de eliminar o modelo
político que Platão considerava o pior de todos: a democracia, para a qual a
ética de governo era o individualismo. A cidade perfeita era, para Platão, uma
autêntica oligarquia de sábios esclarecidos, uma vez que o mérito de governar
não poderia ser obtido pelo nascimento nem pelas aptidões naturais, mas pela
virtude adquirida através do conhecimento científico.

Platão, ao instituir um estudo normativo sobre princípios teóricos que


devem reger a convivência dos homens, inaugura a política como ciência. A
invenção da política foi uma resposta ao conflito, aparentemente indissolúvel,
entre aqueles cujo saber e prática era construído unicamente pela lógica do poder;
e os filósofos desejavam mostrar que, afinal de contas, não eram inúteis, pois
conheciam a “ciência do agir”, e esta sim, era o fundamento legítimo da política.

77
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

Você já compreendeu o que buscavam Sócrates e Platão?

O filósofo, ao assumir “carregar o fardo” de governar, tenta evitar ser


governado pelos piores. Não é o medo do próximo que o impulsiona, mas a
consciência de seu compromisso para com o coletivo: sabe que o conhecimento
não deve ser apenas objeto de contemplação, antes de tudo, deve orientar a prática.
A política é inventada como uma ciência que não se confunde com especulação.
Platão mostra que a ação de governar deve combinar a aptidão de comandar com
sabedoria e justiça. Em suma, ao governante cabe saber diferenciar a justa relação
entre o múltiplo e o uno, ter dignidade e legitimidade a partir de uma causa
transcendente verdadeira.

O esforço em idealizar uma cidade sob o ponto de vista filosófico, que


nunca chegou a ser levada a sério, evidenciando-se assim que existe “algo mais” no
exercício da política: um permanente conflito entre a ação e a reflexão. Platão soube
racionalizar o conflito a partir do permanente choque entre o Corpo e a Alma, a
Cidade e a Sabedoria, a Política e a Filosofia. Este drama platônico estendeu-se
ao longo da história ocidental, sem que, contudo, se tivesse tanta consciência de
sua origem como a que ele teve: a reflexão política implica necessariamente numa
escolha: a aparente segurança oferecida pela submissão resignada e abandono da
política ou o risco da ação consciente, com a certeza de que, apesar da permanente
luta, nem sempre o final é glorioso. E Platão mostrou que esta última é a característica
daqueles que não se deixam imbecilizar pela própria impotência.

Platão, assim como Sócrates, sabia, por sua própria experiência, que a ação
política é, dentre as capacidades e possibilidades humanas, uma das mais perigosas.
As condições históricas que foram sendo criadas ao longo do desenvolvimento
político ocidental evidenciaram que refletir acerca da política é assumir o risco
do fracasso, que apenas pode ser compensado pela oportunidade de construção
de uma sociedade melhor. Platão percebeu que Sócrates não havia fracassado ao
mostrar que os assuntos da pólis não são seguros para os filósofos, reconhecendo
que sua morte serviu para dar sentido à reflexão política. Compreendeu que
seu mestre sabia que apenas seria imortalizado se a solidariedade dos filósofos
pudesse competir com a cidade, sem serem ridicularizados ao falarem nas praças
públicas. Afinal, Sócrates triunfou, mostrando à pólis que não era um inútil, que
realmente tinha muito a ensinar a seus concidadãos. Esta é uma das lições que se
pode extrair da invenção da política: buscar sentido na experiência do conflito.

Em breve síntese, do pensamento platônico colhe-se para a Filosofia do


Direito:

• O sentido de Ética enquanto pressuposto da ordem política e jurídica que não


se restringe à mera virtude, mas o agir orientado para o Bem sem abandoná-
lo sob pena de “deixar o barco navegar pelo sentido da correnteza e não para
onde o timoneiro deseja chegar”.
• A Filosofia – o educar-se – tem por finalidade o exercício da cidadania, para a
“verdade”.
• O Bem e o Justo nascem desde a reflexão acerca da verdadeira essência – que está
no mundo das ideias – sendo a finalidade da justiça o exercício do bem comum.
• O direito não existe independente da vida social – da convivência na pólis.

78
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

4 ARISTÓTELES: UM ESPÍRITO MODERADO


Muitos autores consideram Aristóteles o criador do método empírico, nas
experiências práticas, de investigação em contraposição ao idealismo platônico.
Talvez porque sua técnica de investigação tinha como base a observação tal qual
estudava os fenômenos biológicos. Para Aristóteles, a essência das coisas não é
um mero reflexo do mundo das ideias, mas elas podem ser compreendidas a
partir da maneira como opera a natureza.

A teoria platônica de um outro mundo atemporal de essência parece


postular que, de algum modo, a ‘realidade’ concreta das coisas existia
fora do tempo e das estruturas espaciais que damos por certos quando
estabelecemos nossa relação com as coisas. Para Aristóteles, porém,
devemos voltar nossa atenção para o modo como as coisas funcionam
neste mundo à nossa volta (MORRISON, 2006, p. 49).

FIGURA 18 - ARISTÓTELES – MUSEU DO LOUVRE

FONTE: <http://www.leitura.org/aristteles-busto-de-aristteles-no-museu-do-louvre-nascimento.
html>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Nascido em Estagira no ano 384 a.C., Aristóteles era filho de Nicômaco,


médico de Amintas III – rei da Macedônia, pai de Felipe II e avô de Alexandre
Magno. Aos 18 anos passa a frequentar a Academia, acompanhando as lições
de Platão durante duas décadas. Possuidor de grande fortuna, cercou-se dos
livros dos grandes filósofos e poetas de seu tempo, sendo chamado por Platão
de O Leitor. Era dotado de um grande espírito de observação e de incomum
sagacidade. Aos 41 anos é convidado por Felipe para ser educador de Alexandre.
Com a ascensão de Alexandre ao trono, em 336 a.C., retorna para Atenas e funda
o Liceu, ginásio localizado na parte leste da cidade. Sua escola foi chamada de
peripatética, de passeadores, por ser comum dar aulas passeando pelos jardins.
Seu ensino abrangia todas as formas de conhecimento de sua época: Lógica,
Metafísica, Cosmologia, Biologia, Arte, Sociologia, Psicologia e Moral.

FONTE: <http://www.suapesquisa.com/aristoteles/>. Acesso em: 16 ago. 2016.

79
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

Aristóteles, de maneira diversa de seu mestre Platão, buscou também refletir


acerca da organização política de sua época. Seus escritos eram manuais – lições –
utilizados por alunos e professores do Liceu, muito provavelmente, alguns deles
escritos como projetos de pesquisa juntamente com os alunos, sendo A Política
o grande tratado político. Apesar de ser uma obra bastante modificada quanto
à disposição dos livros, o que se percebe de sua forma atual é que, sem dúvida,
constitui um tratado de ciência política, que, segundo Sabine (s.d., p. 10), “mostra
duas fases do pensamento aristotélico, que paulatinamente distancia-se de Platão”.

Um primeiro momento, como herdeiro do pensamento platônico, mas


tentando ir além, considera a filosofia política como princípio de construção da cidade,
predominando a preocupação ética de identificar o bom cidadão com o homem
bom, vendo na política a possibilidade de formação de um ser humano moralmente
elevado. A relação entre o homem e a pólis, vínculo natural e necessário, é, para
Aristóteles, o que diferencia o ser humano dos demais animais, já que a superioridade
humana é adquirida com a convivência na cidade, e, por via de consequência, com a
possibilidade de partilhar de um processo civilizatório comum.

Definindo a política como condição inerente ao homem, afirma Aristóteles


(1988, p. 14):

É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que
o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em
sociedade, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer
circunstância o inibe, deixa de fazer parte de qualquer cidade, é um ser
vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse Homero,
a censura cruel de ser um sem família, sem leis, sem lar. Porque ele é
ávido de combates, e, como as aves de rapina, incapaz de se submeter
a qualquer obediência.

Aristóteles concebe a convivência política como algo “natural”, porém,


confere um sentido específico para o termo “natureza”. Afirma que a cidade está
na ordem da natureza e antes do indivíduo:

[...] se cada indivíduo isolado não se basta a si mesmo, assim também


se dará com as partes em relação ao todo. Ora, aquele que não pode
viver em sociedade, ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio,
não faz parte do Estado; é um bruto ou um deus. A natureza compele
assim todos os homens a se associarem (ARISTÓTELES, 1988, p. 15).

Assim, admite a coexistência na cidade como forma de desenvolvimento


humano, já que proporciona as condições necessárias para o homem atingir sua
plenitude, ou seja, permite às forças evolutivas do homem atingirem seus próprios
fins, portanto, não vislumbra na vida política um obstáculo à “vida natural” do
homem, como entendiam os pensadores cínicos do século IV a.C., ao contrário, é
exatamente na vida política que, para Aristóteles, o ser humano atinge um modo
de vida digno e superior a qualquer outro.

80
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

Lembre-se de que o conceito de “natureza” em Aristóteles deve ser


compreendido a partir de seus estudos biológicos e sociais, entendendo
“natureza” como um sistema de capacidades e forças evolutivas para um fim
próprio, que, para seu desenvolvimento, apropria-se das condições favoráveis
oferecidas materialmente.

Num segundo momento de sua obra trata da questão política numa


dimensão maior: “A nova ciência seria geral, isto é, abordaria tanto as formas
existentes quanto os ideais de governo e ensinaria a arte de administrar e organizar
Estados de todos os tipos, fosse qual fosse a forma desejada” (SABINE, s.d., p. 101).
A nova orientação conferida por Aristóteles à ciência política buscava, além do
ensino da arte de governar, independente do modelo político adotado, o estudo
das formas existentes e ideais de governo. Assim, esta nova ciência, independente
do fim moral, incluía o conhecimento acerca do Bem Político (relativo e absoluto)
e procedimentos políticos no estudo dos objetivos de governo.

Com o objetivo de examinar os diferentes modelos políticos de sua época,


juntamente com seus alunos, investigou 158 constituições, inclusive o Direito
Consuetudinário dos bárbaros e as Leis de Sólon, dentre outros estudos. O final
de Ética a Nicômaco serve de introdução para A Política, onde Aristóteles torna
evidente o método através do qual pretendia compreender e ensinar a ciência
política. Criticando a maneira como os sofistas ensinavam a arte de governar,
que no seu entender “se omitiram quanto ao exame do assunto da legislação”
(ARISTÓTELES, 1985, p. 210), afirma que talvez fosse melhor estudar o assunto
das constituições no limite da capacidade, da filosofia e das coisas humanas,
apontando para o ponto de partida do estudo da política:

Primeiro, então, se algo foi dito com acerto e detalhadamente pelos


pensadores anteriores, passemos em revista a sua contribuição;
depois, à luz das constituições que colecionamos, examinemos as
instituições que preservam ou destroem as cidades, e as que preservam
ou destroem as várias espécies de constituições, e as razões pelas
quais umas cidades são bem administradas e outras, ao contrário, são
mal administradas. Quando tivermos estudado convenientemente
estes assuntos é mais provável que possamos ver de maneira mais
abrangente qual das várias espécies de constituições é a melhor, e
como cada constituição deve ser estruturada, e quais as leis e costumes
que uma constituição deve incorporar para ser a melhor. Comecemos
a nossa discussão (ARISTÓTELES, 1985, p. 211).

É de se notar a maneira diferenciada através da qual Aristóteles aborda


a ciência política em relação a Platão. Chama a atenção Touchard (s.d.) que a
metodologia adotada em A Política se aproxima do que atualmente poderíamos
chamar de “científica”, pois a partir de uma análise empírica, persegue dois
objetivos distintos: compreender o funcionamento dos regimes políticos existentes
e descrever um modelo ideal de governo. Entretanto, ao mesmo tempo que busca
afastar-se, mantém aproximação com seu mestre. Busca igualmente estabelecer um
fim ético como princípio político, e esta intenção Aristóteles nunca abandonou.

81
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

O Estado deveria permitir o desenvolvimento moral de seus cidadãos,


pois era concebido como uma associação de indivíduos que deveriam
partilhar a crença na construção de um modo de vida digno e feliz.
Este era o sentido de existência do Estado: a forma de organização que
permite o mais alto desenvolvimento moral do cidadão, percebendo,
afinal, que o bom homem e o bom cidadão apenas são coincidentes
num modelo político ideal (TOUCHARD, s.d., p. 59).

A partir do Livro VI de A Política é iniciado o estudo das diferentes


formas de governo, com a finalidade de identificar “quais as condições que lhe
podem dar toda a perfeição desejada, livre de quaisquer obstáculos exteriores, e
finalmente, qual a que convém a este ou àquele povo” (ARISTÓTELES, 1988, p.
156). Fazendo a distinção entre o governo constitucional e o despótico, e partindo
do pressuposto de que o primeiro objetiva o bem comum, enquanto o segundo
apenas ao da classe dominante, Aristóteles estabelece três formas autênticas
(ou constitucionais) – monarquia, aristocracia e democracia moderada – e três
degenerados (ou despóticos) – tirania, oligarquia e democracia extremada (ou
governo da plebe).

O critério estabelecido por Aristóteles diferencia-se do utilizado por Platão


em um aspecto central: para o primeiro, as formas autênticas eram as que visavam
o bem comum, enquanto que para o segundo era o respeito à lei. Entretanto,
percebe Aristóteles que a disputa pelo poder se relaciona essencialmente com
dois pontos centrais: a qualidade (definida pela liberdade, riqueza e instrução) e
quantidade (superioridade numérica do povo). Em outras palavras, a luta política
polariza-se a partir de duas reivindicações centrais de poder: o interesse das elites
econômicas e o bem-estar de um número maior possível de pessoas. Porém, quais
seriam as reivindicações mais justas? A resposta a tal indagação é o que para
Aristóteles confere mérito ao governo, na medida em que seria aquele capaz de
atender às reivindicações das diferentes classes que compõem a cidade.

Para Aristóteles, o grande problema não era estabelecer academicamente


qual o princípio ético da política, já que todos pareciam concordar que seria a
justiça, mas de como realizá-la através da prática. Seguindo o mesmo pensamento
de Sócrates e Platão, ressaltou Aristóteles que o juízo correto (orthòs lógos) a respeito
de uma ação (práxis) é que torna o homem capaz de realizar o bem. Esta razão
prática, diferentemente da teórica (epistêmica – que opera com o conhecimento
puro e com objetivos eidéticos e conceituais eternos, que possui um fim em si
mesmo) é indispensável para a convivência social e para o exercício de governo.
Esta razão prática permite o desenvolvimento da virtude, já que não é inerente
ao ser, mas adquirida pela participação num processo educativo (Paideia) desde a
mais tenra idade. Com uma boa orientação, a razão iria se impor sobre as paixões,
conduzindo o homem e os assuntos da cidade.

Um bom governo (das leis, constitucional) seria um governo da razão sem


paixão, pois só assim seria possível controlar o governo dos homens que tende para
a satisfação da alma apetitiva, do desejo orientado instintivamente sem a direção
da razão. Assim, a boa conduta é obtida quando há uma adequação entre meios e

82
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

fins através da “prudência”, ou seja, da “prudente” eleição dos meios necessários


para o alcance dos objetivos teleológicos das práxis. A “prudência” (phrónesis)
é a disposição racional direcionada para a ação, no sentido de atualização de
um bem, que permite a escolha dos meios adequados para a realização dos fins
eleitos. Por esta razão é que se pode conhecer um homem por sua prática, por
suas ações, uma vez que age a partir da eleição de um ponto que será o diretivo
de toda a aplicação da sabedoria prática. É na eleição e decisão que o homem
demonstra o justo e o injusto, já que isto é inerente a toda ação.

Para Aristóteles, portanto, a política é a ciência da prática que tem como


objeto o estudo do bem da cidade e, como consequência, o bem de todos os
cidadãos, ocupando a questão da ética lugar privilegiado. Por conta disto, a justiça
é a preocupação central do governante, pois esta é a virtude social por excelência.
Um governo sob leis boas – representativas dos ideais da cidade – criaria o hábito
de observância de todos os cidadãos de preceitos genéricos e abstratos capazes
de atender aos anseios políticos dos cidadãos. Na medida em que as leis iguais
para todos, com a mesma qualificação política ateniense (cidadãos, metecos e
escravos), a igualdade seria de acordo com as aptidões de cada um, e assim, a
felicidade seria o resultado do convívio social, a pólis, que teria sempre na célula
familiar a origem primeira que ia se complementando com a convivência social.

Aristóteles, com um espírito político moderador, converge seu pensamento


para uma tendência em que deve prevalecer o interesse da “classe média”, classe
esta que, como chama atenção Touchard (s.d., p. 60), “por diversas vezes tentara
impor os seus pontos de vista em Atenas, sobretudo no fim do século V, e se
definira a si própria como intermediária entre os ricos, inclinados ao egoísmo e
à ambição, e os não possidentes, encargo e ameaça para o Estado”. Esta classe,
entende Aristóteles, não age por interesse próprio, mas em interesse coletivo, e é
isto que a torna mais capaz para o exercício da “coisa pública”. Esta concepção,
sem dúvida, vincula-se ao princípio aristotélico de que a “virtude está no meio”.

É evidente, pois, que a comunidade civil mais perfeita é a que existe


entre os cidadãos de uma condição média, e que não pode haver Estados
bem administrados fora daqueles nos quais a classe média é numerosa e
mais forte que cada uma delas; porque ela pode fazer pender a balança
em favor do partido ao qual se une, e, por este meio, impedir que uma ou
outra obtenha superioridade sensível. Assim, é uma grande felicidade
que os cidadãos só possuam uma fortuna média, suficiente para suas
necessidades. Porque, sempre que uns tenham imensas riquezas e
outros nada possuam, resulta disso a pior das democracias, ou uma
oligarquia desenfreada, ou ainda, uma tirania insuportável, produto
infalível dos excessos opostos (ARISTÓTELES, 1985, p. 175).

Buscando estabelecer a melhor constituição, aconselha Aristóteles que a


preferível é a mais aceita pelos mais fortes da cidade, e que, ao mesmo tempo, não
deve ser aquela que mais se distancia do meio. Seguramente é por esta razão que
elogia a democracia moderada de Sólon. Embora não pretendendo descrever o
tipo ideal de Estado, Aristóteles não se limitou tão somente a descrever as formas
de governo existentes. Os objetivos morais que permitiriam o aperfeiçoamento

83
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

humano não estariam, como para Platão, num plano ideal, mas seriam o
resultado de um complexo ajuste político, sendo a arte de governar a correta
adequação entre os meios disponíveis e os fins desejados.

A inovação de Aristóteles está no fato de que inclui em seu estudo não


apenas a significação ética da Cidade-Estado, “mas também o estudo empírico
dos elementos políticos e sociais de constituições, as respectivas combinações,
e as consequências que delas derivam” (SABINE, s.d., p. 123). Portanto, não
abandona os ideais de seu mestre, que permaneceram inalterados, mas buscou
orientar uma prática política orientada por fins dignos, através de meios
racionalmente estabelecidos. Sem dúvida, o trabalho de Aristóteles busca indagar
o tipo de comunidade que constitui a Cidade-Estado propondo uma diferenciada
da comunidade familiar, mostrando como, historicamente, a partir da família –
comunidade que atende as necessidades mais elementares –, surge a pólis como
forma mais civilizada de vida.

Seguramente, um dos conceitos relevantes de Aristóteles para a formação


jurídica é o de justiça, que tem, como você percebeu, como sua base de construção,
a dimensão ética, por ele definida como “ciência da prática”.

Sobre justiça como virtude, o texto principal é Ética a Nicômaco,


especialmente o Livro V, embora possam ser encontrados estudos em diversos
outros livros de sua imensa produção.

DICAS

Aristóteles tratou a justiça como virtude que se aproxima de outras, como


coragem, temperança, benevolência, entre outras.

Como virtude, justiça é uma ciência da prática e ramo especial do saber humano, a ética.

Sugere-se a leitura de Ética a Nicômaco, disponível em: <http://pensamentosnomadas.


com/obra-completa-de-aristoteles-em-10874>. No site você encontrará muitas das obras
de Aristóteles.

Em Aristóteles encontramos dois grandes campos para a compreensão do


sentido da justiça: o universal e o particular.

Aristóteles considera que a “regra de ouro” da justiça é “dar a cada um o


que é seu” de acordo com seu mérito! Vamos compreender melhor esse conceito.

• Justiça Universal: é a virtude que está em todas as demais, como, por exemplo,
na paciência ou caridade. O paciente é aquele que reconhece o que é necessário
despender de tempo ou conhecimento com outro. O professor impaciente com
84
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

o aluno não possui a virtude da paciência e tampouco da justiça, porque não


reconhece a necessidade e condição do outro, ou ainda, a caridade como ato de
dar não deve ser movida pelo temor ou como demonstração de superioridade,
mas sim como justiça.
• Justiça Particular: como virtude em si mesma que se manifesta como:
• Justiça Distributiva: se dá na relação entre dois sujeitos e duas coisas, cujo
critério fundamental é o mérito – dar a cada um o que é seu – reconhecendo
Aristóteles que o mérito pode ser variável e é uma proporção.

Compreendendo melhor, vamos ler o que diz Aristóteles sobre a “regra


de ouro” “dar a cada um o que é seu”:

O justo, portanto, pressupõe no mínimo quatro elementos, pois as


pessoas para as quais ele é de fato justo são duas, e as coisas nas quais
ele se manifesta – os objetos distribuídos – são também duas. O justo,
então, é uma espécie do gênero ‘proporcional’ (a proporcionalidade
não é uma propriedade apenas das quantidades numéricas, e sim da
quantidade em geral) (ARISTÓTELES, 1985, p. 96).

Como podemos perceber, a justiça distributiva envolve um “arranjo” na


distribuição dos bens e do poder de distribuição.

• Justiça Corretiva: também chamada justiça diortótica, é mais simples de


se compreender. Ao contrário da distributiva, nessa modalidade a justiça é
considerada como um tipo de reparação que, voluntária ou involuntariamente,
foi retirado de alguém ou da coletividade. É uma proporção matemática, uma vez
que se trata de devolução ao que foi subtraído. Para Aristóteles, independe se a
pessoa é boa ou má, uma vez que para a correção devem ser tratadas como iguais.

Como podemos perceber, tanto a Justiça Distributiva como a Corretiva


fazem parte do cotidiano do direito e das decisões judiciais tanto na esfera privada
como pública.

• Reciprocidade: esta modalidade, que não se enquadra nas anteriores, é que se


aplica em caso de produção de bens e sua aquisição, para as coisas que podem
ser mensuradas por dinheiro.

Seja A uma casa, B dez minas e C um leito. O termo A vale a metade de


B se vale cinco minas (ou seja, ela é igual a cinco minas); o leito (C) vale
um décimo de B; vê-se claramente, então, quantos leitos equivalem a
uma casa (ou seja, cinco). É evidente que as permutas se efetuavam
desta maneira antes de existir dinheiro, pois é indiferente permutarmos
uma casa por cinco leitos ou pelo equivalente em dinheiro aos cinco
leitos (ARISTÓTELES, 1985, p. 101).

É evidente que Aristóteles é um homem de seu tempo e pensa desde


uma sociedade escravista e aristocrática, a concepção de justiça está elaborada
desde tal perspectiva! Não iremos encontrar em Aristóteles o conceito de valor de
humanidade e de igualdade como atualmente temos, mas isso não deve diminuir
a importância de seu pensamento!
85
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

FIGURA 19 - MUNDO GRECO-ROMANO: ESCRAVISTA E ARISTOCRÁTICO

FONTE: <http://antiguidade1anomedio.blogspot.com.br/2015/06/escravidao-no-mundo-greco-
romano.html>. Acesso em: 16 ago. 2016.

5 O HELENISMO ROMANO
Ao final da era de Péricles (495/492-429 a.C.), considerada a Era de Ouro de
Atenas, a civilização grega entrava em decadência. A democracia ateniense, maior
orgulho daquele povo, ruía e as guerras, já no século IV a.C., pouco a pouco iam
minando as bases daquela extraordinária civilização. Desde o episódio da morte
de Sócrates, os ideais éticos e políticos daquela sociedade foram se esvaindo.
Apesar dos filósofos terem abandonado as praças, o espírito helênico sobreviveu
e ecoou pela história!

NOTA

Helenismo é um termo que designa a divulgação, absorção e expansão da


civilização grega pelo mundo mediterrâneo, euroasiático e no Oriente.

O helenismo vai dialogar de forma muito próxima com os romanos, sem


que se possa considerar uma sucessão linear, uma vez que as filosofias grega e
romana são construídas sobre as mesmas bases, até as inovações trazidas pelo
cristianismo no início da Idade Média.

Os romanos ficaram conhecidos na história do Direito como essencialmente


práticos, que souberam absorver diversas culturas. “Sem a criatividade e o
refinamento dos helenos, os romanos incorporaram elementos culturais advindos
de vários povos conquistados e os adaptaram ao seu espírito e aos seus interesses
políticos de dominação” (WOLKMER, 2006, p. 29).

86
TÓPICO 1 | O LEGADO GRECO-ROMANO

Das inúmeras contribuições e reinvenções da filosofia grega pelos romanos


no período pós-clássico, destacaram-se: o epicurismo, difundido principalmente
por Lucrécio (99-55 a.C.), e o estoicismo, cujos representantes foram Sêneca (4
a.C. - 65 d.C.), Epicteto (50-93 d.C.) e o imperador Marco Aurélio (121-180 d.C.).
Ambas são concepções filosóficas voltadas para a vida feliz e virtuosa, além de
ambas demonstrarem desinteresse e desencanto com a política. “Às trevas sócio-
organizacionais de seu tempo, os epicuristas responderam da mesma forma que
o platonismo e o aristotelismo, a saber, distanciando-se das atividades políticas e
aglomerando-se num lugar comum de estudos, reflexões e discussões: o jardim, a
escola” (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 121).

• Epicurismo: escola que permaneceu durante séculos tanto no mundo grego como
no romano, tem sua origem no pensamento de Epicuro de Samos (341-270 a.C.).

FIGURA 20 - EPICURO DE SAMOS

FONTE: <http://epicurea.es/por-que-epicurea/>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Para Epicuro de Samos: A justiça é a vingança do homem em sociedade,


como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem. O epicurismo assenta-
se na busca pelo prazer, não entendido como mundanidade, mas ausência de dor
e perturbação da alma. Para ele, a verdadeira felicidade é encontrada quando do
afastamento de todos os tipos de sofrimento.

Para Epicuro, a noção de justiça se funda na concepção de que há entre os


indivíduos interesse em uma vida plena e prazerosa sem dominação de um por outro,
e desde aí se constrói a política. Portanto, ser justo é agir conforme o bem do outro.

Vejamos suas máximas:

• O justo segundo a natureza é a regra do interesse que temos em não


nos prejudicarmos nem sermos prejudicados mutuamente.
• Em relação àqueles, dentre os viventes, que não puderem concluir
pactos para não se prejudicarem pessoalmente nem serem prejudicados
mutuamente, nada há que seja justo ou injusto. Isto também vale para

87
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

os povos que não puderam ou não quiseram concluir os pactos para


não se prejudicarem nem serem prejudicados mutuamente. • Nunca
houve justiça em si, mas nas relações recíprocas, quaisquer que sejam
seu âmbito e as condições do tempo, uma espécie de pacto a fim de
não prejudicar nem ser prejudicado (EPICURO, 2006, p. 99).

Seria a justiça uma convenção compreendida pela razão e pela natureza,


porque os homens sendo injustos se aproximariam do sofrimento, seja pelo
castigo ou pela perseguição.

• Estoicismo: corrente que influenciou mais que o epicurismo, cujo fundador foi
Zenão de Citium.

FIGURA 21 - ZENÃO DE CITIUM


Zenão de Citium (333 a.C.-263 a.C.) – busto no
Museu Pushkin, em Moscou –, natural da ilha de Chipre.
Estoicismo é uma referência ao local onde esse filósofo
ensinava: stoa pokilé (pórtico pintado).

FONTE: <http://kdfrases.com/frase/136822>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Nos estoicos há uma tendência ao uso prático da razão, e esta razão deve
orientar as ações humanas para a harmonia tal qual há na natureza. Diferencia-se
do epicurismo porque não entendem a razão como convenção e a justiça não nasce
de um acordo, mas é uma virtude que orienta a razão anterior às leis escritas.
Saber guiar-se pela razão é conhecer a natureza e seus desígnios, consolidando o
dever como hábitos que geram virtudes e afastando-se das paixões e futilidades
que desviam a alma do dever.

O estoicismo, bastante difundido por Cícero, assenta-se no Direito Natural


entendido como uma razão universal que se aproxima da moral, como a reta
razão, sendo o direito justo válido para todos os homens.

TUROS
ESTUDOS FU

A seguir veremos como o cristianismo mudou radicalmente a percepção de


mundo greco-romano, iniciando uma nova etapa na tradição filosófica.

88
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, vimos que:

• A Filosofia greco-romana significou o rompimento da lógica mítica na


legitimação e justificação da política e da justiça nas relações humanas.

• O rico legado da cultura grega, em suas distintas etapas, dos pré-socráticos aos
socráticos, construiu o sentido ético e moral da justiça e do Direito.

• A civilização helênica, preservada mesmo após a desintegração do mundo


greco e romano, por sua beleza, força e complexidade foi mantida, reproduzida
e reinventada, chegou até os dias atuais enquanto momento fundacional e
sempre referenciado do modelo ideal de justiça e seu sentido maior: a felicidade
e bem comum.

89
AUTOATIVIDADE

A seguir trazemos um trecho do famoso diálogo entre Sócrates e


Glauco no livro de Platão “A República”. O diálogo – fictício – ficou conhecido
como o “Mito da Caverna”. Trata-se de uma parte central da obra e tem sido
objeto de análise ao longo da história do pensamento filosófico.

Sócrates: E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme


caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele
não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz,
com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses
objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros.

Glauco: Ele não poderá vê-los, pelo menos nos primeiros momentos.

Sócrates: É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do
alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens
dos homens e dos outros objetos refletidos na água, depois os próprios objetos.
Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o
próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que
durante o dia para o sol e para a luz do sol.

Glauco: Sem dúvida.

Sócrates: Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas
ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é.

Glauco: Certamente.

Sócrates: Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é


ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é,
de algum modo a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.

Glauco: É indubitável que ele chegará a essa conclusão.

Sócrates: Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada,


da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que
ficaria feliz com a mudança e teria pena deles?

Glauco: Claro que sim.


FONTE: <http://www.esdc.com.br/CSF/artigo_2009_06_Platao_e_o_Mito_da_Caverna.htm>.
Acesso em: 16 ago. 2016.

Após a leitura do texto acima responda a seguinte questão:

Para os pensadores gregos pós-socráticos antigos qual o sentido da


justiça? Por que o jusfilósofo tem a “missão” de “retornar à caverna” e tentar
“libertar os demais”?

90
UNIDADE 2 TÓPICO 2

O PENSAMENTO MEDIEVAL

1 INTRODUÇÃO
A verdadeira desintegração do Império Romano, longo processo que
se inicia em torno do século V, marcado pela divisão do império em Oriente e
Ocidente em 476, a expansão dos reinos bárbaros e a ascensão do cristianismo
são fatores que marcam a entrada do mundo ocidental em um novo estágio
civilizatório. A Idade Média será um longo período histórico marcado pela
hegemonia do poder da Igreja, herdeira do legado filosófico da antiguidade, e
relações socioeconômicas feudais. Será uma etapa em que os valores culturais,
ideológicos, políticos e filosóficos se assentarão nos valores cristãos e pela
centralização do poder eclesiástico.

Apesar do legado cultural da antiguidade, a fase medieval é marcada por


profundas diferenças.

Enquanto na Antiguidade os homens eram valorizados por suas


posses, qualidades e por seus feitos heroicos, excluindo os pobres,
mulheres e os escravos, na sociedade cristã ocidental se reconhece o
homem como unidade composta de matéria e espírito. A reviravolta
proporcionada pelo cristianismo ao afirmar que o bem maior não é o
Estado, mas o homem dentro da sociedade, possibilita a edificação da
concepção transcendental de dignidade das ‘modernas declarações de
direito’ (WOLKMER, 2006, p. 38).

91
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

FIGURA 22 - SOCIEDADE MEDIEVAL

FONTE: <http://sociedademedieval.weebly.com/>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Marcada por relações sociais estamentais – ordens/grupos sociais divididos


e sem mobilidade –, a sociedade medieval era um universo profundamente
hierarquizado, no qual a nobreza e o clero detinham o poder, restando aos servos
a submissão aos senhores em troca de proteção e uso da terra para a sobrevivência.

A doutrina cristã vai se definir como o eixo central da moral, ética, leis
e fundamento das instituições políticas e jurídicas desta etapa. É das lições do
cristianismo e dos fundamentos bíblicos aliados à releitura da tradição grega e
romana que serão elaborados os preceitos de direito e justiça.

Durante a Idade Média, no mundo ocidental, predomina uma visão


homogênea de cristianismo fundada em verdades e dogmas difundidos pelos
doutores da Igreja. A filosofia e o direito se submetiam ao controle da teologia cristã
e da doutrina da Igreja, que irão dialogar com pensadores como Platão e Aristóteles.

Aliar fé (pístis) e razão (logos) será o grande esforço desta etapa, que pode
ser sintetizada pelos seguintes elementos caracterizadores:

• A hegemonia do monoteísmo cristão no mundo ocidental.


• A adoção da teoria criacionista – origem do mundo e controle do tempo por
Deus.
• O antropocentrismo – assumindo o homem (ser criado à imagem e semelhança
de Deus) lugar privilegiado na história.
• Condição humana marcada pelo pecado cuja redenção depende do perdão
divino condicionado à adoção do modo de vida cristão.
• A incorporação na natureza humana dual platônica – corpo e alma racional – o
espírito (pneuma) que é o elo como o divino através do exercício da fé.
• O sentido do amor divino como único verdadeiro que conduz à redenção.
• Concepção linear e progressiva da história (anunciando o fim com o Juízo Final).

92
TÓPICO 2 | O PENSAMENTO MEDIEVAL

É na Alta Idade Média, entre os séculos V e IX, que serão elaborados


os fundamentos da chamada Patrística, pelos padres (pais) da Igreja, cujos
fundamentos e sistematizações tiveram como objetivo central a criação dos
dogmas centrais da religião cristã que acabarão por institucionalizar a própria fé
e, a partir dos princípios desta fé cristã, extraídos os conceitos de Direito e Justiça
que irão nortear as práticas de controle daquela sociedade.

2 A PATRÍSTICA E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO


Muitos serão os padres que irão assumir a tarefa de edificar os fundamentos
da fé cristã, sendo este período conhecido como Patrística (etapa que se estende
entre os séculos II ao VI). Destes pioneiros da filosofia e teologia cristã, podem
ser elencados duas grandes correntes: os “filiados” à tradição helênica, mais
especulativos e de discussões mais metafísicas da teologia, como São Irineu, São
Basílio, Orígenes; e os latinos, de inclinação mais prática, como São Ambrósio, São
Jerônimo e Santo Agostinho. Entretanto, é em Santo Agostinho que a Patrística
encontra o ponto de convergência e maior complexidade.

FIGURA 23 - SANTO AGOSTINHO (354-430) – MUSEU FITZWILLIAM – CAMBRIDGE

FONTE: <http://religiao.culturamix.com/santos/santo-agostinho/>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Santo Agostinho, ou Aurélio Agostinho, o Bispo de Hipona, é considerado


o grande conciliador entre a filosofia grega e o cristianismo. O conjunto de
sua obra tem como ponto de partida a defesa da revelação da palavra de Deus
na Bíblia; desde aí, produz uma vasta produção cujos trabalhos mais relevantes
93
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

para o Direito são Confissões e Cidade de Deus. Na primeira narra sua trajetória
de vida, que até sua conversão passa por inúmeras experiências, dentre as quais
o maniqueísmo, que estará presente em seu pensamento. Sua conversão em
386 representa a absoluta adesão à filosofia enquanto instrumento de reflexão e
compreensão racional da fé.

A concepção agostiniana acerca do justo e injusto pode ser compreendida


a partir da própria teologia aliada à metafísica platônica, tão bem evidenciada
na obra Cidade de Deus. “O tema em Agostinho remete ao estudo do problema
da justiça fundamentalmente à discussão da relação existente entre lei humana
(lex temporalem) e lei divina (lex aeterna), onde está compreendido o estudo das
diferenças, influências, relações etc. existentes entre ambas” (BITTAR; ALMEIDA,
2001, p. 173).

Sua concepção de justiça tem no platonismo a principal fonte de


inspiração e justificação. Defende que a justiça humana – falha, transitória,
imperfeita e corrupta – apenas será corrigida pela justiça divina – eterna, perfeita
e incorruptível. As leis humanas, que regulam a relação entre os homens, devem
ser inspiradas em leis divinas que têm como fonte o maior dos legisladores:
Deus, que diferentemente dos homens é ilimitado, tudo sabe e tudo vê. Assim,
a justiça divina deve comandar e inspirar a justiça humana, que tem sua origem
na própria criação de Deus, mas que por imperfeições e erros humanos acabou
sendo desvirtuada.

Há que se lembrar que na lógica judaico-cristã o pecado original corrompeu


o homem e está na base de todo sofrimento humano. Por sua própria culpa o
homem é corrupto, pois se afastou de seu Criador.

E, nessa ordem de ideias, em que homens, instituições, governos,


julgamentos, ordenações, organizações, comportamentos são
corruptos, também leis são corruptas. Este é o estado de coisas
humano: esse é o estatuto da lei humana. A justiça, portanto, nessa
orientação, é viciada ab origine. A justiça, dentro dessa dimensão, vem
compreendida como algo profundamente marcado pelos próprios
defeitos humanos (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 177).

Embora a preocupação de Agostinho não tenha sido o tema do Direito, o


conjunto de sua obra permite extrair importantes elementos para a compreensão
da política, dos fundamentos e relações entre Direito Natural (divino) e Direito
Positivo (humano), legitimidade do poder político e o sentido da justiça.

Para Truyol Serra (1982, p. 215), Agostinho é pessimista em relação aos


homens – a crença no pecado original que corrompeu sua natureza divina –, o
que faz com que seja necessária a submissão da lei humana à divina, tendo a
mesma lógica em relação ao poder político. Portanto, a verdadeira justiça só será
efetiva se alicerçada no cristianismo e na prática da fé.

Em síntese, pode-se afirmar que sua doutrina possui os seguintes traços


característicos:
94
TÓPICO 2 | O PENSAMENTO MEDIEVAL

• A razão deve ser aliada à fé a fim de que seja possível a iluminação interior.
• Redefine o platonismo – é forte em sua obra o dualismo platônico como corpo/
alma; terreno/divino; imperfeito/perfeito; mutável/imutável etc. – encontrando
na transcendência divina cristã a essência da verdade.
• Desenvolve os grandes dogmas da Igreja, tais como o da Santíssima Trindade,
além da tese do criacionismo.
• Conceito de “mal” como mero resultado degradante do afastamento de Deus
pelo próprio homem.
• Existência concomitante de dois poderes: o Divino – que governa a Cidade
Celeste cujos cidadãos participam e comungam do amor de Deus – e o Humano
– onde vivem os que se afastaram do verdadeiro amor e serão julgados no
Juízo Final.

TUROS
ESTUDOS FU

Na próxima unidade você poderá perceber que são muitos os elementos do


pensamento moderno em que se encontram elementos do pensamento agostiniano, tais
como o conceito de Estado e legitimidade de poder político.

DICAS

No site <http://www.mundodosfilosofos.com.br/agostinho.htm> você poderá


encontrar a biografia de Santo Agostinho.

Verá como o pensamento deste importante filósofo reflete suas inquietações pessoais e trajetória
de vida que o levaram à conversão e a assumir a tarefa de edificar o fundamento do cristianismo.

Ainda, no site <https://www.wdl.org/pt/item/11301/> você poderá consultar as obras de


Santo Agostinho.

No início do século XII o cristianismo e o poder da Igreja já haviam se


consolidado na Europa, perdendo, assim, urgência, a necessidade de afirmação
da teologia cristã e a autoridade intelectual dos doutores da Igreja, que já estavam
consolidadas, não havendo mais ameaça de nenhuma outra cultura ou forma de
paganismo para suas estruturas de dominação. O clero prosperava e já então
era possível dedicar-se mais à investigação de novas culturas, particularmente
as do Império Bizantino e do islamismo, que souberam preservar os antigos
manuscritos da cultura helênica.

95
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

Num contexto sem precedentes de aprendizado patrocinado


pela Igreja e sob a influência das forças maiores que animavam a
emergência cultural do Ocidente, estava preparado o cenário para
a mudança radical nos alicerces da concepção cristã: no ventre da
Igreja medieval, a filosofia cristã de negação do mundo elaborada
por Agostinho e baseada em Platão começou a dar lugar a uma
interpretação fundamentalmente diferente de existência, conforme os
escolásticos recapitulavam a evolução intelectual do movimento de
Platão a Aristóteles (TARNAS, 2011, p. 198).

As transformações são desencadeadas desde então, coincidindo com a


redescoberta ocidental de boa parte dos textos de Aristóteles, preservados pela
cultura árabe, e desde então traduzidos para o latim, e com eles também obras da
ciência grega, particularmente a de Ptolomeu.

Este inédito episódio, que trouxe uma complexa cosmologia científica e a


sofisticação aristotélica desconhecida, atrai os pensadores da Igreja, em especial
os escolásticos.

A Escolástica é o último período do pensamento cristão medieval, que


vai do começo do século IX até o fim do século XVI, da constituição do sacro
romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que se assinala geralmente com
a descoberta da América (1492). O termo escolástica tem sua origem relacionada
à filosofia ensinada nas universidades, pelos mestres  escolásticos. Esta é uma
etapa de grande avanço do ensino superior, as universidades se tornaram centros
de discussão, o que chamou a atenção dos eclesiásticos para o “perigo” das
diversidades acerca da verdade cristã. Até quando, por autorização papal, em
1215, a Universidade de Paris recebe o direito de autonomia em relação à busca
pelo conhecimento.

A preocupação inicial de “contágio” do paganismo filosófico de Aristóteles


à fé cristã acabou tendo efeito não desejado e cada vez mais os “livros proibidos”
passavam a ser objeto de curiosidade e investigação.

DICAS

O clássico filme “O Nome da Rosa”, baseado no romance homônimo de


Umberto Eco e dirigido por Jean-Jacques Annaud, é uma ficção que trata exatamente de
uma trama diabólica e violenta que se abate sobre um mosteiro no século XIV, quando
valores e dogmas tradicionais do cristianismo são questionados. Na biblioteca do mosteiro
são mantidas às escondidas obras da filosofia grega antiga consideradas heréticas, portanto
perigosas para a fé cristã. Aos curiosos, que liam às escondidas, é reservado o pior dos
castigos: a morte por envenenamento.

Caso não tenha assistido, sugerimos que o faça.

96
TÓPICO 2 | O PENSAMENTO MEDIEVAL

É neste ambiente de tensão, entre Fé e Razão, que Tomás de Aquino e


seus discípulos enfrentam, magistralmente, o desafio e aparentes contradições da
cultura grega e o cristianismo, preparando o firme terreno por onde se edificaria
a ciência moderna. A ele foi legada a tarefa de integrar de forma coerente o
legado grego à fé cristã, e, atento às transformações de seu tempo, soube dar “de
modo impressionante a virada do pensamento ocidental sobre seu eixo na Alta
Idade Média para uma nova direção da qual a mente moderna seria herdeira e
depositária” (TARNAS, 2011, p. 201).

FIGURA 24 - SÃO TOMÁS DE AQUINO

FONTE: <http://religiao.culturamix.com/santos/santo-agostinho/>. Acesso em: 16 ago. 2016.

Diferentemente dos teólogos tradicionais, Aquino não se opunha às


inovações da ciência, uma vez que reconhecia na natureza a criatividade divina,
e conhecê-la não era nenhuma ousadia, pois Deus ainda permaneceria soberano,
uma vez que a racionalidade humana era dom divino e o exercício da liberdade
era dádiva por Ele concedida.

Estava convencido de que a Razão e a Liberdade tinham valor em si e o


objetivo de ambas era servir mais a Deus. As qualidades humanas eram expressões
do próprio Criador, uma vez que o homem era feito à sua imagem e semelhança.

A obra de Tomás de Aquino é imensa, mas, sem dúvida, a Summa Theologica


é a que expressa de forma sistemática o pensamento cristão e a relação deste com
inúmeras matérias, como antropologia, política, ética e direito. Na concepção
tomista, o homem é um ser naturalmente voltado para a felicidade e o pecado é
um agir em sentido inverso que, pela bondade divina, constitui uma escolha, uma
vez que o homem é um ser livre. A liberdade é a precondição para qualquer ato ser
considerado moral, pois um ato só é humano se for livre, ensinava Aquino.
97
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

A liberdade tem, para o pensamento tomista, como pressuposto, o


conhecimento de todas as alternativas para que possa escolher de forma virtuosa.
Sendo, portanto, a obrigação moral de origem natural no ser humano, que deve
praticar o bem e evitar o mal.

Os fatores e condições aceitos que se apresentam razoáveis aos homens são:

• O homem tem o dever moral de proteger sua vida e sua saúde, razão
pela qual o suicídio e a negligência constituem um erro.
• A necessidade natural de propagar a espécie resulta na necessidade
fundamental de união de um homem e uma mulher.
• Tendo em vista que o homem busca a verdade, seu melhor
meio de consegui-lo consiste em viver em harmonia social com
seus concidadãos, que também estão engajados em tal busca.
Para assegurar uma sociedade ordenada e harmoniosa, as leis
humanas são moldadas de modo que sirvam de diretrizes para o
comportamento da comunidade (MORRISON, 2006, p. 78-79).

Desde aí podem ser compreendidos os princípios que devem reger as


leis humanas, que se originam do estado natural do homem, devendo a razão e a
moral orientarem-se por estas tendências e capacidades. Tais qualidades formam o
Direito Natural, um hábito interior, mas pela insuficiência e incompletude humana
é necessário o Direito Positivo, portanto, obrigação moral imposta pela razão.

A lei nada mais é que um ordenamento da razão tendo em vista o bem


comum promulgado por aquele que tem o encargo de cuidar da comunidade
(pergunta 90, r. 4) (AQUINO, 2001).

Aquino (2001 apud MORRISON, 2006) define a lei na lógica tomista como:

• Lei Eterna: a lei é um ditame da razão prática que emana do governo que rege
uma comunidade perfeita. Portanto, a ideia mesma do governo das coisas em
Deus, o senhor do Universo, tem a natureza de uma lei. E, como a concepção
das coisas da razão divina não está sujeita ao tempo, mas é eterna, conclui-se
que essa espécie de lei deve ser chamada de eterna (pergunta 91, r. 1).
• Lei Natural: a lei natural é a parte da lei eterna que diz respeito especificamente
ao ser humano. Se o homem não pode conhecer a totalidade de Deus, a
racionalidade humana garante sua participação na razão eterna, através da
qual ele identifica uma tendência natural (normativa) à prática de atos e a fins
adequados. A lei natural nada mais é que a participação da criatura racional na
lei eterna (pergunta 91, r. 2).
• Lei Humana: as leis escritas – leis humanas – devem derivar de preceitos
gerais da lei natural. Sendo, portanto, o direito um “ditame da razão prática”.
A forma de se extrair as conclusões da lei é semelhante ao que ocorre com a
“razão especulativa”. Da mesma forma que chegamos a conclusões distintas nas
ciências, do mesmo modo, a partir dos preceitos da lei natural, a razão humana
deve atingir determinações mais particulares de certas questões. O que confere à
lei sua legitimidade é sua dimensão moral originada do Direito Natural.

98
TÓPICO 2 | O PENSAMENTO MEDIEVAL

• Lei Divina: sua função é dirigir o homem a seu devido fim, que é revelado
nas Escrituras Sagradas como forma de graça divina para que o homem possa
atingir seus fins espirituais e naturais. A lei divina provém diretamente de
Deus e é conhecida pela fé, esperança e amor.

Em síntese, pode-se compreender a teoria em Tomás de Aquino como


parte do pressuposto de o homem, enquanto ser racional e livre, escolhe sua
conduta e, por não conhecer plenamente os desígnios de Deus, desvia-se do
verdadeiro caminho pecando. Portanto, a autodeterminação que é uma bênção
também é motivo da perdição e causa do mal (ausência do bem).

3 A CULTURA JURÍDICA MEDIEVAL


Desde os primórdios do que iria ser definido como cultura jurídica
medieval e superadas as questões intelectuais e políticas que envolveram a
cristandade, problemas específicos na esfera jurídica apenas surgem no século
XI, quando o ambiente econômico, político e urbano do norte da Itália exige uma
nova compreensão intelectual da matéria jurídica e da administração da justiça,
impulsionando uma cultura profana acerca do direito orientada não apenas para
e pelas autoridades, mas para um mundo autônomo.

Diante disso, a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma
modelar e intemporal da sua própria vida. Os textos da antiguidade eram, por isso,
intocáveis no seu valor, se bem que a sua utilização (aplicação) na vida medieval
continuava a constituir um problema que exigia um enorme e continuado esforço da
razão cognitiva. Neste contexto, a expressão máxima de valor textual era a Sagrada
Escritura e os demais de cunho teológico a ela relacionados. De forma correlata, na
esfera jurídica, o texto que gozava do mesmo status era o Corpus Iuris, que exercia
sobre o pensamento jurídico medieval a força de uma revelação do direito.

É neste ambiente que na primeira metade do século XII o monge Irnerius,


ao iniciar sua cátedra em Direito Justiniano em Bolonha, deu origem à escola dos
glosadores, trabalho posteriormente seguido em distintas partes da Itália e França.

Segundo António Manuel Hespanha (2005, p. 198), “as características


mais salientes e originárias do método bolonhês são a fidelidade ao texto do
códex Justiniano e o caráter analítico e, em geral, não sistemático”. A justificativa
para o apego fiel ao texto é por ser considerado de origem sagrada, por acreditar-
se na época que Justiniano fosse contemporâneo de Cristo, sendo, portanto,
inadmissível outra interpretação que não consistisse num ato de humilde
esclarecimento do sentido das palavras.

Assim, o trabalho dos glosadores na interpretação exegética do texto


de Justiniano ia paulatinamente se transformando numa dogmática, por
criar uma linguagem técnica acerca do direito, entretanto, sem a preocupação
exclusivamente prática, mas com objetivo teórico-dogmático, ou seja, de
demonstrar a racionalidade de textos jurídicos sagrados.
99
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

Este trabalho acabou por influenciar a cultura jurídica da época, em função


da autoridade intelectual destes juristas, que gozavam de um prestígio próximo
ao sagrado, além da exegese textual, um verdadeiro racionalismo contemplativo
e puramente intelectual, que serviu de legitimação do direito positivo moderno,
quando é travestido em “vontade política geral” da nação com finalidade prática
sob o comando do Estado.

Na Idade Média, quanto mais prática necessitava ser a interpretação dos


textos jurídicos, mais ia se aproximando de técnicas suficientemente capazes
de harmonizar, construir regras e princípios do que foi sendo definido como
dogmática jurídica. Entretanto, a esta dogmática jurídica faltava o revestimento
da “verdade” enquanto categoria lógica e autônoma.

O avanço no sentido de edificar a moderna cultura jurídica será dado


pelos comentadores, como foram designados os novos “práticos” do direito
pré-moderno, que acabaram por transformar o Direito de Justiniano no direito
comum da Europa (HESPANHA, 2005).

O avanço urbano e mercantil europeu dos séculos XIII e XIV exigia maior
valorização do direito local em relação ao direito comum cultivado pelos letrados.
Estes pós-glosadores, “arquitetos da modernidade” ao lado de Dante, Giotto e
Petrarca, foram os responsáveis em estabelecer a relação entre o jus commune com
o jus speciale local.

Este processo acabou por conduzir a uma unidade racional e lógica das
distintas concepções, mas com uma finalidade prática, o que vai ultrapassando
os glosadores por constituir-se numa interpretação menos comprometida com a
“sacralidade” dos textos de Justiniano, além de também fundada numa atitude
mais racionalista no sentido de guiar o pensamento por critérios lógicos tal como
haviam sido herdados por Aristóteles.

Entretanto, o direito, tanto para os comentadores, como havia sido para os


glosadores, era considerado um repositório de experiências de natureza indiscutível,
mesmo quando contraditório. Por esta razão, todo trabalho de sistematização
foi realizado segundo uma ordem formalmente preestabelecida, porém, criando
inovações dogmáticas que se tornam permanentes na modernidade.

A inovação no plano interpretativo foi a oposição entre o texto de lei


(verba) e seu espírito (mens). Esta distinção era baseada no princípio medieval
da linguagem segundo o qual as palavras eram invenções humanas feitas para
permitir exteriorizar um pensamento, um espírito, sendo as palavras verdadeiras
expressões da alma. O espírito da lei enquanto valor encontrava apoio, por
exemplo, no Digesto, scire leges non est verba earum tenere sed vim ac potestate (saber
as leis não é dominar a sua letra, mas seu sentido e intenção). Para além desta
tarefa era realizado um outro trabalho, mais importante: a interpretação lógica
dos preceitos jurídicos.

100
TÓPICO 2 | O PENSAMENTO MEDIEVAL

A interpretação lógica partia da concepção de que o texto era a expressão


de uma ideia geral (ratio) tal qual o autor expressou em cada parte, sendo assim,
o texto compreendido a partir da inter-relação do conjunto dos contextos, ou seja,
cada preceito jurídico isolado é compreendido a partir do texto normativo que
o constitui – do instituto jurídico – extraído das ideias formadoras iniciais – a
dogmática. A ratio legis era obtida através de um procedimento lógico dialético,
segundo as regras aristotélicas, que acabava se tornando um processo inovador
e, portanto, criativo.

4 A HERANÇA CULTURAL PARA A MODERNIDADE


O saber jurídico edificado pelos comentadores acabou por colocar em
marcha uma lógica que conduziu à unificação interna do ordenamento jurídico,
chegando no século XVI já pronta para sua cientifização. Como lembra Hespanha
(2005), o paciente trabalho dos comentadores tornava viável um movimento
de síntese, pelo qual todo o direito fosse reunido num sistema teórico orgânico
submetido a axiomas e regras.

Enfim, estava pronto e logicamente fundamentado um sistema coerente


que poderia adquirir novo status independente da tradição romanística, já sendo
possível avançar no sentido de libertar-se da árdua e laboriosa interpretação dos
textos da antiguidade para sua fundamentação, abrindo-se, assim, o direito para
uma perspectiva racionalista, produto de princípios universais que designam as
condições institucionais de normatizar as relações sociais. Estava definitivamente
superada a fase de construção sistemática do direito.

É o ambiente filosófico do século XVII que vai fornecer elementos para


uma concepção de direito estável e previsível, como a própria razão cartesiana
dominante. Um projeto perseguido pelos juristas modernos que se distinguia
do idealizado pelos romanistas clássicos, para os quais o direito era uma arte
orientada por regras prováveis de estabelecer o justo que admitiam conflito
de opiniões. Com a secularização do conhecimento e a quebra de hegemonia
religiosa provocada pela Reforma Luterana, a validade do direito deveria ser
buscada independente da crença religiosa. Com esta laicização, o fundamento
do direito se desloca para valores referenciais laicos, comuns a todos e
válidos pela evidência exclusivamente racional. É assim que se vai firmando
o jusnaturalismo moderno, que se aproxima metodologicamente das ciências
matemáticas, uma tendência de submeter o mundo humano ao mundo da
natureza. Todos os seres regidos pelas mesmas leis e movimentos, enfim, a
ordem e certeza do otimismo cartesiano.

101
UNIDADE 2 | A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO MODERNO NO MARCO DA TRADIÇÃO

LEITURA COMPLEMENTAR

FILOSOFIA MEDIEVAL

O desenvolvimento do conhecimento durante a Idade Média conta com


particularidades diversas que se afastam daquela errônea perspectiva que a define
como a “Idade das trevas”. Contudo, a predominância dos valores religiosos e as
demais condições específicas fazem do período medieval apenas singular em relação
aos demais períodos históricos. Nesse sentido, o expressivo monopólio intelectual
exercido pela Igreja estabeleceu uma cultura de traço fortemente teocêntrico.

Não por acaso, os mais proeminentes filósofos que surgiram nessa época tiveram
grande preocupação em discutir assuntos diretamente ligados ao desenvolvimento e à
compreensão das doutrinas cristãs. Já durante o século III, Tertuliano apontava que o
conhecimento não poderia ser válido se não estivesse atrelado aos valores cristãos. Logo
em seguida, outros clérigos defenderam que as verdades do pensamento dogmático
cristão não poderiam estar subordinadas à razão.

Em contrapartida, existiam outros pensadores medievais que não


advogavam a favor dessa completa oposição entre a fé e a razão. Um dos mais
expressivos representantes dessa conciliação foi Santo Agostinho, que entre os
séculos IV e V defendeu a busca de explicações racionais que justificassem as
crenças. Em suas obras “Confissões” e “Cidade de Deus”, inspiradas em Platão,
ele aponta para o valor onipresente da ação divina. Para ele, o homem não teria
autonomia para alcançar a própria salvação espiritual.

A ideia de subordinação do homem em relação a Deus e da razão à fé


acabou tendo grande predominância durante vários séculos no pensamento
filosófico medieval. Mais do que refletir interesses que legitimavam o poder
religioso da época, o negativismo impregnado no ideário de Santo Agostinho deve
ser visto como uma consequência próxima às conturbações, guerras e invasões
que viriam a marcar a formação do mundo medieval. Contudo, as transformações
experimentadas com a Baixa Idade Média promoveram uma interessante revisão
da teologia agostiniana. A chamada filosofia escolástica apareceu com o intuito de
promover a harmonização entre os campos da fé e da razão. Entre seus principais
representantes estava São Tomas de Aquino, que durante o século XIII lecionou
na universidade de Paris e publicou “Suma Teológica”, obra onde dialoga com
diversos pontos do pensamento aristotélico.

São Tomás, talvez influenciado pelos rigores que organizavam a Igreja,


preocupou-se em criar formas de conhecimento que não se apequenassem em
relação a nenhum tipo de questionamento. Paralelamente, sua obra teve uma
composição mais otimista em relação à figura do homem. Isso porque acreditava
que nem todas as coisas a serem desvendadas no mundo dependiam única e
exclusivamente da ação divina. Dessa maneira, o homem teria papel ativo na
produção de conhecimento.

102
TÓPICO 2 | O PENSAMENTO MEDIEVAL

Apesar dessa nova concepção, a filosofia escolástica não foi promotora de


um distanciamento das questões religiosas e, muito menos, afastou-se das mesmas.
Mesmo reconhecendo o valor positivo do livre-arbítrio do homem, a escolástica
defende o papel central que a Igreja teria na definição dos caminhos e atitudes
que poderiam levar o homem à salvação. Com isso, os escolásticos promoveram o
combate às heresias e preservaram as funções primordiais da Igreja.

FONTE: SOUSA, Rainer Gonçalves. Filosofia Medieval. Brasil Escola. <http://brasilescola.uol.com.


br/historiag/filosofia-medieval.htm>. Acesso em: 16 ago. 2016.

103
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, vimos que:

• O pensamento jurídico medieval é produto das relações de poder e cultura


daquele momento histórico quando o grande desafio foi o de consolidar o
cristianismo e simultaneamente legitimar o poder papal.

• O Direito Canônico resultou da consolidação e desenvolvimento da filosofia


medieval que, resgatando o platonismo e aristotelismo, elaboram as bases do
poder da Igreja.

• O trabalho dos canonistas foi o início do que iríamos denominar na Modernidade


de “Ciência Jurídica”.

104
AUTOATIVIDADE

Considere a seguinte afirmação:

A “modernidade” refere-se às formações societárias do “nosso tempo”,


dos “tempos modernos”. O início da “modernidade” está marcado por três
eventos históricos ocorridos na Europa e cujos efeitos se propagam pelo
mundo: a Reforma Protestante, o Iluminismo (die Aufklärung) e a Revolução
Francesa. Em outras palavras, a “modernidade” se situa no tempo. Ela abrange,
historicamente, as transformações societárias ocorridas nos séculos XVIII, XIX
e XX, no “Ocidente”. Neste sentido, ela também se situa no espaço: seu berço
indubitavelmente é a Europa. Seus efeitos propagam-se posteriormente pelo
hemisfério norte, especialmente pelos países do Atlântico Norte (FREITAG,
Bárbara. Habermas e a Filosofia da Modernidade. In: Perspectivas, São Paulo,
V.16, 1993, p. 23).

Faça uma breve dissertação de no máximo uma página discutindo:

1 Os fatores históricos e políticos que contribuíram para a construção da


modernidade.

2 Como se caracterizou o Direito Moderno.

105
106
UNIDADE 3

FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO


E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta última unidade tem por objetivos:

• bases teóricas, filosóficas e políticas sob as quais se edificou o Positivismo


Jurídico;

• compreender a Teoria Kelseniana de Direito, como a bem-sucedida


cientifização do Direito Positivista, bem como os desafios e problemáticas
legadas;

• identificar as bases da Teoria Crítica e da Crítica Jurídica – origens e


propostas;

• problematizar a Teoria Crítica do Direito no âmbito da cultura jurídica


brasileira contemporânea;

• discutir os principais desafios filosóficos e teóricos do Direito


Contemporâneo à luz do Novo Constitucionalismo.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em dois tópicos. Ao final de cada um deles você
encontrará atividades que o auxiliarão no aprendizado.

TÓPICO 1 – OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO


JUSFILOSÓFICO MODERNO

TÓPICO 2 – DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

107
108
UNIDADE 3
TÓPICO 1

OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO


JUSFILOSÓFICO MODERNO

1 INTRODUÇÃO
Por meio do estudo das Unidades 1 e 2 já compreendemos conceitos
fundamentais de filosofia e da filosofia do Direito; e a trajetória histórica do pensamento
filosófico pré-moderno. Este é o momento de nos aproximarmos da atualidade e
refletirmos acerca dos elementos, características e fundamentos da Filosofia Moderna
do Direito com vistas a compreendermos a legitimidade do Direito contemporâneo,
discutindo os desafios que se colocam ao jurista e visualizarmos formas de superação
de problemáticas que dificultam a efetividade da justiça.

A concepção moderna de Direito é o resultado de uma convergência


de fatores e elementos sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais cuja
maior expressão é o liberalismo, que em sua vertente filosófica é, em síntese, uma
concepção doutrinária que, com base em ideias iluministas elaboradas entre os
séculos XVII e XVIII na Europa, defende a não intervenção do Estado no controle
da economia e da vida social.

Para o jusfilósofo Norberto Bobbio (2000, p. 17), “o liberalismo é uma


concepção política segundo a qual o Estado possui poderes e funções limitados,
se contrapondo, portanto, ao Estado Absolutista”.

Entretanto, destaca Bobbio (2000) que o modelo liberal passou


historicamente por inúmeras transformações, havendo uma diferenciação entre
as distintas etapas do liberalismo, que foram desde a absoluta não intervenção
estatal – na sua versão clássica – até uma intervenção necessária a fim de impedir a
dominação dos mais fortes sobre os mais fracos – liberalismo social. Salienta ainda
que o pressuposto filosófico do liberalismo é a doutrina dos direitos do homem,
segundo a qual todos os homens, independentemente de sua condição ou origem,
são portadores de direitos essenciais, como a vida, liberdade, autodeterminação,
segurança, felicidade, entre outros. São estes exatamente os direitos que devem
ser assegurados pelo Estado, sendo este ente político o único poder legítimo de
definir o que “é Direito” e “de direito”.

109
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

A lógica liberal, em suas múltiplas faces e versões, que vão desde o


liberalismo filosófico até o político e econômico, tornou-se o principal ideário do
mundo moderno. Uma análise histórica e política mais atenta permite compreender
o liberalismo, defendido pelas revoluções burguesas que destituíram a nobreza
do poder e romperam com o poder político papal desde os séculos XVII e XVIII,
como defesa de valores individuais burgueses bastante convenientes para os
interesses da burguesia que emergia e se consolidava naquele momento histórico.
Sem dúvida, eram necessários meios de legitimação das novas formas de aquisição
e concentração de riquezas que iam sendo elaboradas e uma justificação racional
deste novo modelo de vida e de mundo que estava nascendo.

Dentre os pensadores iluministas que elaboraram as bases do liberalismo


moderno podem ser destacados: John Locke  (1632-1704), Voltaire  (1694-1778),
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), David Hume (1711-1776), Adam Smith (1723-
1790), Immanuel Kant (1724-1804), dentre outros.

O Iluminismo, no qual o Direito Moderno é edificado, pode ser


resumidamente compreendido a partir das seguintes características:

Valorização da razão acima da fé, devendo ser o conhecimento acerca da


natureza, da sociedade e da política, produto da investigação e experiência objetiva.

Forte oposição ao absolutismo político e aos privilégios da nobreza e da Igreja.

Defesa da liberdade na política, economia e escolha religiosa incluindo a


igualdade de todos perante a lei, uma vez que “Os homens nascem e são livres e
iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade
comum”. (art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789).

Defesa dos interesses individuais, naturais e inerentes à condição humana.

Particularmente, para o Direito interessa também a forma e dinâmica de


estruturação de poder que foi elaborada e consolidada.

A organização centralizadora de poder que se institui sob a forma


secularizada monárquica de Estado absolutista transforma-se no
Estado nacional, liberal e representativo do século XVIII, gerenciador
das leis do livre mercado do liberalismo econômico e tutor das relações
de competição privada.
[...]
Neste novo cenário de rupturas e de gradual secularização está que
a nascente ciência jurídica moderna não só se revela como produção
de uma específica formação social e econômica, mas, principalmente,
consolida-se no processo de junção histórica entre a legalidade estatal
e a centralização burocrática. Trata-se da tendência, que acabaria
sendo predominante, do Direito identificado com a legislação posta
pela autoridade revestida de poder máximo e, ainda mais, o Direito
como criação do Estado (WOLKMER, 2006, p. 107-108).

110
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

É sob esta perspectiva que é elaborado o Direito Moderno e a lógica


de saber acerca do direito, como já anteriormente estudado, marcadamente
centralizada no positivismo jurídico.

NOTA

O positivismo jurídico acabou por eliminar todas as especulações idealizadas


e metafísicas acerca do direito, reduzindo Direito às categorias de legalidade vigentes.
Nesta ótica, a formalização do positivismo jurídico encontra legitimidade na explicação da
objetividade coercitiva, na previsibilidade e segurança jurídica.

Conclui-se que:

• A concepção jurídica normativa moderna é elaborada desde a existência e


forma de organização do Estado.
• O Positivismo Jurídico foi a melhor e mais sofisticada elaboração concreta da
lógica de Direito Moderno.
• Tem como maior característica o formalismo legal.
• O processo de codificação do século XIX foi o mais eficiente instrumento de
legitimação e operacionalidade do Direito.

2 HANS KELSEN E A PURIFICAÇÃO DO DIREITO


Na perspectiva moderna, compreender o Direito se reduz à reprodução do
texto legal, tornando o trabalho do jurista uma mera exegese limitada à subsunção
do texto legal ao fato da vida social desde um raciocínio lógico dedutivo.

O paradigma da subsunção é o modelo de racionalidade jurídica que


vai dominar a prática do direito na perspectiva positivista. Trata-se de uma
concepção que entende que a aplicação do direito ao caso concreto é resultado de
um pensamento silogístico no qual o juiz fixa:

• o fato como premissa maior;


• o sistema normativo como premissa menor;
• o direito do caso concreto como conclusão necessária e inquestionável.

Este modelo pressupõe:

• o direito como um sistema autossuficiente e coerente;


• o raciocínio lógico é a metodologia adequada para fixar o justo do caso concreto;
• há possibilidade de distinção entre fato (premissa maior) e direito (premissa
menor);

111
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

• a decisão, justo do caso concreto, é resultado do necessário e inquestionável


“enquadramento” (subsunção), extraindo daí os efeitos legais e jurídicos para
o caso concreto.

Observe que a base e justificativa dessa ideia é que o direito posto (direito
positivo) tem a capacidade de resolver todos os casos concretos e a atividade
jurídica é um ato neutro (independente de valores morais e éticos) e imparcial.
Resume-se na famosa frase: “Dê-me o fato que te darei o direito”!

Ainda que se possa discutir se o Direito é uma ciência própria ou um


saber da prática, a verdade é que desde o início do século XX poucos foram os
autores que ousaram desafiar esse paradigma hegemônico, especialmente após
o advento da obra “Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen, pensador que se
esmerou em demonstrar como a pureza metodológica do Direito é a principal
característica de sua cientificidade.

Como veremos adiante, essa “pureza” é exatamente o objeto maior de


crítica do positivismo jurídico.

Afirma o jusfilósofo mexicano Jesus Antonio de La Torre Rangel: “[...]


um dos maiores problemas da ciência do Direito é a sua arbitrariedade, por ser
constituída de leis arbitrárias que se modificam com o tempo, pois uma mera
palavra do legislador converte bibliotecas inteiras em lixo” (2006, p. 32).

O direito, nesta perspectiva, é transformado em uma ciência dogmática


estática, reservando ao jurista o papel de reprodutor de códigos e leis, eliminando
qualquer discussão acerca dos valores, interesses e necessidades sociais que estão
subjacentes à norma jurídica e como isso, além de empobrecer o papel do direito,
o transforma em instrumento de reprodução de uma ordem política posta.

Antes de irmos adiante, vamos brevemente compreender o pensamento e


a importância de Hans Kelsen.

FIGURA 25 - HANS KELSEN


Hans Kelsen – jurista e filósofo nascido em 11 de
outubro de 1881, na cidade de Praga (Boêmia austríaca),
pertencente ao então Império Austro-húngaro. Falecido
em 19 de abril de 1973 em Berkeley, Califórnia-EUA.
Um dos mais importantes e discutidos pensadores do
direito contemporâneo.

FONTE: <http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/42/paginas-da-
historia-hans-kelsen-158859-1.asp>. Acesso em: 20 ago. 2016.

112
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

Em meio à profunda crise teórica em fins do século XIX e início do XX,


Kelsen é um marco divisório para o positivismo jurídico, inaugurando o chamado
normativismo positivista e superando a esgotada concepção exegética.

Com base na sólida e rigorosa metodologia científica e constitucionalista


– tendo redigido a Constituição da Áustria –, inaugura a técnica de controle de
constitucionalidade através de tribunal específico.

E
IMPORTANT

Controle da constitucionalidade é um dos conceitos centrais para o


direito contemporâneo. Trata-se de técnica de verificação de adequação vertical que
obrigatoriamente deve existir entre as normas infraconstitucionais e a Constituição. É uma
análise crítica comparativa entre o ato legislativo/normativo e a Constituição, tendo como
pressuposto que no Estado de Direito nenhum desses atos pode ferir ou contrariar a Lei
Fundamental.

A base política e jurídica do controle de constitucionalidade é o pressuposto de supremacia


da Constituição escrita, por tratar-se de norma fundamental que se sobrepõe a todas as
demais e ter seu procedimento de criação – o poder constituinte originário é um ato político
e não jurídico – distinto dos demais.

Em síntese, ao que está em desacordo com a Constituição, ponto máximo do vértice do


sistema normativo, deve ser declarada a não possuir validade política e jurídica.

Os pressupostos para o controle da constitucionalidade são, basicamente: a existência de uma


Constituição rígida, escrita e que não pode ser modificada por procedimentos infraconstitucionais;
e a existência de um órgão/tribunal que garanta a supremacia constitucional.

Kelsen contribui decisivamente para a autonomia científica do Direito,


sobretudo com a publicação da obra “Teoria Pura do Direito”, em 1934 – com segunda
edição em 1960 –, sendo esta a mais destacada produção do autor ao lado de “Teoria
Geral do Direito e do Estado” e “Teoria Geral das Normas” (obra póstuma).

A “Teoria Pura do Direito” é a obra pioneira que distingue duas esferas


distintas: o fenômeno jurídico – manifestação social e valorativa do Direito
– e a ciência do Direito – entendimento técnico procedimental científico desta
manifestação. E é nesta distinção que vamos encontrar a base da teoria kelseniana,
qual seja: direito e moral.

Segundo tal perspectiva, o órgão julgador (Estado) não está legitimado a


julgar de acordo com convicções políticas/morais, mas sim de acordo com o sentido
do fato dado pelas normas estatais. É nesta dimensão que deve ser compreendida
a famosa dicotomia “ser”, mundo dos fatos/da vida social; e “dever ser”, direito
positivado/o fato como deve ser; ou seja, a preocupação de Kelsen é diferenciar o
direito como é (vigente) da valoração moral do conteúdo ou sentido normativo.
113
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

ATENCAO

O “dever ser” é sempre produto de uma vontade política legítima e o “ser” é


produto da vontade politicamente sem legitimidade.

Alguém pode exigir que outro faça ou deixe de fazer algo por entender
moralmente justo (prescrever uma ação ou omissão), mas não pode obrigar ao
sujeito fazer ou deixar de fazer o que quer. Por quê? Exatamente porque não
possui legitimidade política para tal exigência. E a ciência do Direito permite a
abstração do direito do mundo dos fatos sociais.

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito


positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do
Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais
ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio
objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito?
Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito,
ou como deve ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito [...]
De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem se
confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria
política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas
ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita
conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar
o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por
ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta
evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da
ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza
do seu objeto (KELSEN, 2006, p. 1).

Lendo atentamente as primeiras palavras da obra, não é difícil concluir


que o objetivo de Kelsen é depurar o Direito, entendido exclusivamente como
Direito Positivo, de outras formas de conhecimento, compreendendo-o como
ciência em si mesma. Para Bittar e Almeida (2001, p. 324):

Com os pilares teóricos fixados no método positivista é que Kelsen


(Teoria Pura do Direito) procurou delinear uma Ciência do Direito
desprovida de qualquer outra influência que lhe fosse externa.
Assim, alhear o fenômeno jurídico de contaminações exteriores à sua
ontologia seria conferir-lhe cientificidade. Nesse sentido, o isolamento
do método jurídico seria a chave para a autonomia do Direito como
ciência. Dessa forma, por meio das ambições de sua teoria, ter-se-ia
uma descrição do Direito que correspondesse apenas a uma descrição
pura do Direito.

114
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

Fica evidente em Kelsen que a atividade do jurista é, a partir de um sistema


normativo previamente definido, chegar à norma do caso concreto, não cabendo
nesta análise os valores que antecedem a elaboração da norma. Exatamente por esta
concepção é que Direito e Estado seriam “duas faces” de uma mesma “moeda”.

Outro conceito-chave da teoria kelseniana é o conceito de validade da norma.

Validade deve ser compreendida como a qualidade e condição da norma


quando ela é emanada de um órgão político competente e se elaborada de
acordo com o procedimento, modo, hierarquia, estrutura e lógica prevista pelo
ordenamento jurídico.

ATENCAO

Validade não significa que a norma é certa ou errada, justa ou injusta; mas elaborada
de acordo com os pressupostos estabelecidos de maneira formal pelo sistema normativo.

A validade normativa deve ser compreendida a partir do fundamento


de validade de todo sistema normativo: a norma hipotética fundamental
(Grundnorm). A recíproca e hierárquica relação de validade entre as normas que
compõem o sistema é definida a partir do fundamento último de validade de
todo ordenamento jurídico, formando uma espécie de “pirâmide” cujo vértice é
a norma fundamental.

Segundo uma teoria jurídica positivista, a validade do Direito positivo


se apoiar numa norma fundamental que não é uma norma posta mas
uma norma pressuposta e que, portanto, não é uma norma pertencente
ao Direito positivo cuja validade objetiva é por ela fundamentada,
e também no fato de, segundo uma teoria jusnaturalista, a validade
do Direito positivo se apoiar numa norma que não é uma norma
pertencente ao Direito positivo relativamente ao qual ela funciona
como critério ou medida de valor, podemos ver um certo limite
imposto ao princípio do positivismo jurídico (KELSEN, 2006, p. 238).

Há um pressuposto de validade de todo sistema, uma norma não jurídica,


mas política, que estabelece uma espécie de estrutura hierárquica de normas onde,
em tal escalonamento, no ápice, ponto mais alto da hierarquia, há uma última
norma que não é a norma constitucional de um Estado, mas um pressuposto
inexistente fisicamente, mas existente logicamente.

115
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Claro que esse conceito é um dos grandes problemas da teoria de Kelsen! Qual
o pressuposto de validade, norma hipotética fundamental, justo? Qualquer sistema
que a define é justo? Para Kelsen essa não é uma questão jurídica e sim política.

Todo sistema hierárquico requer um “ponto final” de referência para


não regressar ad infinitum, além de que, se não há um pressuposto de validade,
pode ser aceito qualquer um. O que se pode afirmar é que o limite de validade
aceito pelo pacto social são os valores que constituíram a ordem constitucional,
e é a partir daí que deve raciocinar o jurista, funcionando como um princípio/
fundamento de legitimidade de todo sistema.

Desde esse conceito de validade não é difícil compreender que Kelsen


nos leva a compreender que Direito é um sistema de normas hierarquicamente
definidas desde a ordem política e jurídica estabelecida segundo um pressuposto
de validade, norma hipotética fundamental, e que permite o controle de
constitucionalidade das normas.

Para Fábio Ulhoa Coelho (2001, p. 43-44), a validade da norma, portanto,


está condicionada a três pressupostos:

• Competência da autoridade que a editou, derivada da norma


hipotética fundamental.
• Mínimo de eficácia, possibilidade de produzir os efeitos jurídicos a
que se destina, sendo irrelevante a sua inobservância episódica ou
temporária – porque as normas jurídicas não perdem a validade por
‘desuso’.
• Eficácia global da ordem de que é componente.

Como se conclui, o método kelseniano tem que ser compreendido como


a busca de uma tentativa de autonomia da ciência do Direito, não como o estudo
ou a teoria de uma ordem jurídica particular, mas compreender as estruturas
sobre as quais se constrói o Direito Positivo e a universalização destas estruturas.
Exclui-se qualquer preocupação sociológica ou juízo acerca do justo, uma vez que
o que importa para a Teoria Pura é compreender os pressupostos de validade,
vigência e eficácia da norma jurídica.

A ciência, para Kelsen, deve, por exemplo, diferenciar-se da política.


O político e o jurídico devem ser separados para que a ciência jurídica
não se contamine com elementos de natureza política, correndo o
risco de perder sua independência. A ciência não é ciência de fatos,
de dados concretos, de acontecimentos, de atos sociais. A ciência,
para Kelsen, é a ciência do dever-ser, ou seja, a ciência que procura
descrever o funcionamento e o maquinismo das normas jurídicas
(BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 330).

Isso significa que o objeto do Direito nessa concepção pode e deve ser
estudado como algo diverso/separado dos fenômenos sociais e estudar a ciência
jurídica é independente da realidade social. Esta é uma das grandes problemáticas

116
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

do positivismo jurídico, devendo o jurista limitar-se ao Direito posto, estabelecido


pelas relações de poder, não observando as questões valorativas, éticas ou sociais
que o conduziriam à realidade social.

O Direito normativo/dogmático, e somente este, é seu objeto de


estudo. Diante disso, o jurista não precisa ficar indiferente no que diz
respeito a valores éticos, morais e sociais; ele pode criticar o Direito
positivo e esforçar-se para modificá-lo, alcançando assim sua reforma
e a estruturação de algumas normas quando julgar necessário (LIXA;
SPAREMBERGER, 2016, p. 36).

O postulado central do positivismo é a crença epistemológica de que o


sentido do justo está expresso na letra da lei. Como parte integrante da mesma
crença, os ideais de plenitude, coerência, universalidade e a-temporalidade do
sistema normativo permitem, enquanto instância racional, a elaboração de ficções
hermenêuticas, como a “vontade do legislador” e “vontade da lei", de múltiplas
funções práticas e ideológicas. Inicialmente estes postulados justificam a atividade
compreensiva do direito como ato formal, excluindo qualquer possibilidade de
criação por parte do intérprete e inferência de elementos substanciais, em nome
da igualmente ficção “segurança jurídica” (LIXA, 2013).

Em tal perspectiva, as aparentes ambiguidades, insuficiências, lacunas,


ou até mesmo contradições do sistema, poderiam ser solucionadas com critérios
hermenêuticos adequados e análise mais detalhada do significado do texto legal.
Esta “flexibilidade dogmática” seria necessária para resolver as dificuldades
práticas, solucionadas com a reportação do intérprete à mente do legislador,
compreendendo o caso concreto tal qual teria sido previsto ou poderia resolver o
elaborador da lei (LIXA, 2013).

Enfim, o postulado da vontade do legislador permitiria ao intérprete


superar os silêncios, imprecisões e contradições do texto legal, mantendo as
exigências procedimentais do formalismo em sua aplicação.

Distintas teorias elaboradas sob o rótulo de “hermenêutica jurídica”,


assim como admitem a “vontade do Estado” como instância política legítima de
produção do direito, característica maior do positivismo jurídico, identificam esta
como instância racional do direito, o “espírito da lei” ou “espírito do legislador”.
Correntes que chegam a soluções técnicas e conclusões normativas próximas,
tratando a norma jurídica como algo pensado e concebido fora do sujeito,
cuja operacionalidade depende de um processo racional formalista capaz de
reproduzir a ordem jurídica-política instituída.

Assim, a operacionalidade técnica do sistema normativo acaba por identificar


metodologia da ciência jurídica com procedimento interpretativo, confundindo-
se a esta metodologia, e por vezes absorvendo, com o ato hermenêutico. Trata-
se, sobretudo, de uma racionalidade cognitiva-instrumental específica do direito
moderno que pretende solucionar o problema básico da atividade jurídica como a
correta e segura determinação do sentido prático da ordem normativa.

117
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

O desafio kelseniano de depurar a ciência jurídica acaba por deixar em


aberto os fundamentos da interpretação e aplicação normativa ao demonstrar
que a interpretação é um ato de decisão, de vontade ou mesmo de poder político.
Esta afirmação acaba por criar um vazio epistemológico para as tradicionais teses
de segurança jurídica, neutralidade, objetividade e previsibilidade penosamente
mantidas desde o século XIX e que serão revistas pelas correntes críticas do
Direito (LIXA, 2013).

3 CRISE E CRÍTICA: OS LIMITES DA RACIONALIDADE


JURÍDICA MODERNA
A razão libertadora, um dos mais audaciosos projetos da Modernidade,
foi idealizada desde seu início para carregar em si um conjunto de representações
e perspectivas que pareciam representar a realização de um grande sonho da
humanidade.

O projeto da modernidade foi construído graças a um enorme esforço


intelectual de pensadores iluministas que pretendiam desenvolver uma
ciência objetiva, uma moralidade e uma concepção de lei que fossem
universalmente válidas pela intrínseca lógica de suas proposições
gerada pelo acúmulo de conhecimento produzido por sujeitos livres
e criativos aliados pelo objetivo comum de buscar emancipação e
enriquecimento (HABERMAS, 1992, p. 109-110).

Esta racionalidade aplicada à organização social prometia como resultado


a certeza de uma sociedade estável, democrática e justa. Assim, a justificativa de
necessidade de submissão social e política à razão científica era a promessa de
segurança definitiva contra qualquer imprevisibilidade do mundo natural, e com
tal discurso justificador a ciência submeteu a natureza em toda sua dimensão (a
humana e não humana).

Entretanto, como pondera David Harvey (1993, p. 23), “há uma suspeita
de que o projeto iluminista estava condenado a voltar-se contra si mesmo e
transformar a busca de emancipação num sistema universal de opressão em nome
da liberdade humana, e esta espécie de tragédia anunciada tornou-se realidade
no início do século XX”.

O otimismo, em relação aos frutos da ciência, foi dolorosamente rompido


pelos eventos que marcaram o século XX. Sem dúvida, a maior catástrofe humana
foi a Segunda Guerra Mundial, cuja lembrança, com os episódios de Auschwitz e
Hiroshima, tornou-se insuportável. Nos anos 50 a Europa, e com ela boa parte da
humanidade, deixou de acreditar no futuro e, como consequência, a ciência perde
grande parte da autoridade que até então possuía. Esta desilusão não pode ser
dissociada das guerras mundiais.

A entrada para o século XX rapidamente tornou-se um desencanto,


ficando evidente que a Modernidade, com suas grandes promessas, havia se
transformado em um projeto fracassado.
118
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

Segundo dados oficiais, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),


embora nem todos os continentes tenham sido palco dos conflitos, o número de
mortos atingiu a cifra de 15 a 65 milhões de pessoas. Nem todos foram mortos
diretamente em campos de batalha, mas com seus “efeitos colaterais”, como a
“Gripe Espanhola” que se alastrou pelo mundo.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o número de mortos


estimados é de 40 a 72 milhões de pessoas, sendo 62% civis (alguns em campos
de concentração por sua etnia, condição física, sexualidade etc.; outras, vítimas
de armas de destruição em massa, como a bomba atômica). São por demais
conhecidas as imagens desoladoras dessa trágica fase da história.

Já no fim da Segunda Guerra Mundial, durante o conhecido Julgamento


de Nuremberg no dia 25 de novembro de 1945, oficiais nazistas foram levados a
julgamento por diferentes ações, como extermínio em massa, tortura, privação de
liberdade de civis, experimentos com seres humanos etc.

NOTA

Nuremberg é um momento histórico em que o positivismo jurídico é colocado


em questão. Os acusados alegavam em sua defesa que estavam agindo sob a égide do
Direito e proteção de um Estado Constitucional!

Vamos ler a transcrição de parte da sentença que reproduz a defesa dos


acusados:

[...] a defesa propõe a tese de que estes indivíduos cometeram atos que,
independentemente do valor ou desvalor moral, foram perfeitamente
legítimos de acordo com a ordem jurídica do tempo e local em que
foram realizados. Os acusados, segundo essa tese, eram funcionários
públicos estatais que agiram em plena conformidade com as normas
jurídicas vigentes, determinadas por órgãos legítimos do Estado
nacional socialista. Não só estavam autorizados a fazer o que fizeram,
como também, em alguns casos, eram legalmente obrigados a fazê-
lo. A defesa nos relembra um princípio elementar de justiça, que a
civilização que nós representamos aceitou há muito tempo e que o
próprio regime nazista ignorou: esse princípio, usualmente enunciado
com a expressão latina ‘nullun crimen, nulla poena sine lege pravia’,
proíbe impor uma pena por um ato que não era proibido pelo direito
vigente no momento de seu cometimento (SANTIAGO NINO, 2010,
p. 20-21, grifos nosso).

A atrocidade e o extermínio de milhões de seres humanos foram feitos sob


a proteção da lei. Seriam então atos legais e justos? Esta era a discussão central! O
resultado você já sabe: todos foram condenados! E desde aí o positivismo jurídico
não mais encontra defensor.
119
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Para compreender todo o julgamento também devemos ler parte da sentença


condenatória, que é uma das críticas mais contundentes ao positivismo jurídico:

O princípio moral de que as normas jurídicas vigentes devem ser


obedecidas e aplicadas é um princípio plausível, visto que está
vinculado a valores como segurança, ordem, coordenação de
atividades sociais etc., mas é absurdo pretender que ele seja o único
princípio moral válido. Há outros princípios igualmente válidos,
como os que consagram o direito à vida, à integridade física, à
liberdade etc. Em certas circunstâncias excepcionais, a violação
desses últimos princípios, em que se incorreria se fossem respeitadas
as regras jurídicas, seria tão drástica e grosseira que justificaria a
desobediência ao princípio moral que prescreve ater-se ao direito
vigente. Essas circunstâncias ocorreram durante o regime nazista, e
não se pode duvidar que os funcionários desse regime não podiam
justificar em termos morais as atrocidades que cometeram com base
no fato de estarem elas autorizadas ou prescritas pelo direito vigente
(SANTIAGO NINO, 2010, p. 29).

DICAS

Sobre a discussão acerca dos atos de extermínio cometidos pelo regime nazista
serem ou não legítimos há dois filmes excelentes que recomendamos:

“O Leitor” - filme teuto-americano de 2008, dirigido por Stephen Daldry e baseado no


romance Der Vorleser, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink.

“Hannah Arendt” - filme de drama teuto-francês de 2012, uma obra biográfica sobre a
filósofa política alemã de origem judaica, Hannah Arendt, envolvida em um dos grandes
julgamentos de nazistas da história e sobre o qual ela posicionou-se de maneira inesperada,
mas própria de um filósofo e cientista político.

O positivismo jurídico, diante do desencanto com o projeto civilizatório


da Modernidade, perda de perspectiva, era previsível desde o início da
modernidade, implícito nas suas incompatíveis promessas anunciadas de
controle, previsibilidade, paz social, “ordem e progresso” sem fim etc.

A razão moderna embrionariamente carregava consigo a exigência de


uma crítica. Crítica que, como afirma Michel Foucault (s.d., p. 35), é uma atitude
própria da civilização moderna, um movimento:

[...] pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre


seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade;
pois bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da
indocilidade refletida. A crítica teria, essencialmente por função, o
desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra,
a política da verdade.

120
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

A razão herdada do século XIX que havia possibilitado uma ciência


positiva assentada numa lógica instrumental e a edificação do Estado como
aparato legítimo de racionalização da economia e da sociedade pode ser apontada
como a causa do surgimento de um movimento crítico na Alemanha da primeira
metade do século XX, que demonstrou os elos entre a ingenuidade do saber
científico com as formas de dominação construídas pela sociedade moderna. A
empreitada da Escola de Frankfurt de deslocar a crítica para a esfera do poder
permitiu compreender a falsa ideia que o saber possui de si mesmo e como a
aproximação desmedida entre ambos – saber e poder – produziu consequências
desastrosas e irremediáveis.

A Teoria Crítica, como enfrentamento à lógica de ciência positiva, surge


em um momento histórico de otimismo na realização da revolução operária. A
Revolução Russa de 1917 e os levantes operários alemães de 1918 e 1923 davam
mostras de que a Revolução do Proletariado não era uma utopia, mas um projeto
político e social possível. O novo horizonte teórico construído a partir das obras
de Lukács e Korsch, importantes pensadores revolucionários, representava
alternativa ao leninismo e sua concepção naturalista da história. Na Alemanha,
forças reacionárias organizam-se, em 1933, no Partido Nacional Socialista,
permitindo que Hitler chegasse ao poder. Instaura-se um período de perseguição
e aniquilamento da organização operária.

FIGURA 26 - THEODOR ADORNO E MAX HORKHEIMER


Theodor Adorno  (1903-1969) e Max
Horkheimer (1895-1973), dois grandes expoentes
da Escola de Frankfurt, juntamente com Walter
Benjamin,  Herbert Marcuse,  Jürgen Habermas  e
outros.

FONTE: <http://brasilescola.uol.com.br/cultura/industria-cultural.htm>. Acesso em: 20 ago. 2016.

A Teoria Crítica, que acabou por nominar o movimento dos intelectuais


vinculados à Escola de Frankfurt, tem sua origem em 1937, quando Max Horkheimer
a utiliza num escrito (Teoria Tradicional e Teoria Crítica) para indicar um ideário
contraposto ao paradigma cartesiano. Ao todo são cerca de 12 ensaios publicados
entre os anos de 1933 e 1940, na maioria, escritos durante seu exílio em Nova York.

O projeto de aliar a teoria marxista com as distintas disciplinas da


ciência social através de uma metodologia fecunda e orientada filosoficamente
representava, para Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola de Frankfurt,
uma forma de mediação necessária a partir do esgotamento no século XIX
das premissas idealistas da filosofia da história hegeliana, que, até então,
121
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

representavam a tradição teórica capaz de aliar análise empírica da realidade e


reflexão filosófica, mas esvaziadas por terem sido absorvidas pelo positivismo e
a metafísica contemporânea.

A base da Teoria Crítica de pensar uma filosofia da história a partir da pesquisa


social, buscando meios cognitivos que possam mediar as relações sociais com uma
ideia transcendental de razão, conduziu a uma sistemática crítica ao positivismo
como tentativa metodológica de visualizar um conceito interdisciplinar de pesquisa.

O sistema ideal é o sistema unitário da ciência que, nesse sentido, é


todo-poderoso. E porque no objeto tudo se resolve em determinações
intelectuais, o resultado não representa nada consistente e material: a
função determinante, classificadora e doadora de unidade é a única
que fornece a base para tudo, e a única que todo esforço almeja. [...]
Segundo esta lógica, o progresso da consciência da liberdade consiste
propriamente em poder expressar cada vez melhor, na forma de
quociente diferencial, o aspecto do mundo miserável que se apresenta
aos olhos do cientista (HORKHEIMER, 1989, p. 38).

A esta tradição, Horkheimer dá o nome de “Teoria Tradicional” ou


hipotético-dedutiva. A “Teoria Crítica” é crítica da “Teoria Tradicional” sob um
ponto de vista ético. Admitindo a impossibilidade de abandono absoluto com as
realizações teóricas passadas, diferencia ambas propostas quanto à atitude do
sujeito, ou seja, na relação do cientista para com a sociedade.

ATENCAO

A Teoria Crítica é uma concepção teórica que não perde de vista seu contexto
social de origem e sua possibilidade de aplicação prática, pretendendo cumprir a tarefa de
transformação radical da ordem social existente.

FIGURA 27 - PENSADORES DA ESCOLA DE FRANKFURT E IDEALIZADORES DA TEORIA CRÍTICA

FONTE: <mosqueteirasliterarias.comunidades.net/a-escola-de-frankfurt>. Acesso em: jul. 2016.

122
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

Tal proposta exigia uma permanente reflexão no sentido de esclarecer seu


papel no processo histórico, o que até então não era metodologicamente possível
pela rígida divisão entre filosofia e ciência.

A Teoria Crítica, buscando edificar o pensador social num agente de


transformação, parte da eliminação da natural separação entre indivíduo e
sociedade na medida em que, reconhecendo os limites de sua base social, busca
um comportamento orientado para uma emancipação do todo social. A intenção
do comportamento crítico é ultrapassar o da práxis social dominante.

O projeto da Teoria Crítica não desejava ser messiânico no sentido de


propor um novo modelo político, mas o de desalienação como possibilidade de
emancipação. E é exatamente aí que o conhecimento encontra seu lugar: o de admitir
como pressuposto de racionalidade a permanente dinâmica social, articulando,
assim, a reflexão teórica com o processo histórico-social. Em outras palavras,
o objeto privilegiado da Teoria Crítica é a investigação acerca da articulação
dialética entre os processos de conhecimento e transformação social. A pretensa
isenção defendida pela Teoria Tradicional mostrava-se insustentável e deveria ser
repudiada pelas consequências contra os humilhados da história. Havia servido de
perverso instrumento de legitimação de formas alienantes e alienadas de formas
de vida humana, legitimando racionalmente o enigma da “servidão voluntária”.

Os desdobramentos da “Escola de Frankfurt” e da “Teoria Crítica” são tão


vastos que é uma tarefa quase impossível estabelecer uma unidade teórica. Talvez
o mais apropriado seja considerar as tendências progressivamente estabelecidas
e mantidas graças à perseverança do “espírito crítico” que ultrapassou distintos
momentos do século XX. O primeiro período encerra-se pelo confronto com o
fascismo, quando o Instituto é fechado, em março de 1933, por ser considerado
responsável pelas “tendências hostis” ao Estado nazista. Inicia-se um período
histórico de ameaça não apenas para os membros do Instituto, mas da própria
civilização ocidental. A amarga experiência psicológica e intelectual do exílio
produziu um estado de espírito que é espelhado nos escritos dos teóricos críticos
que observam o mal desejando compreender por que a humanidade mergulhava
num novo tipo de barbárie ao invés de chegar a um estágio mais humano.

Como nunca foi possível admitir-se uma unidade na Escola de Frankfurt,


sobretudo nos primeiros momentos, não se pode falar em seu declínio. Teoria
Crítica e Escola de Frankfurt em sentido mais amplo, independente de Adorno
e Horkheimer, foram símbolos institucionais de um pensamento dedicado à luta
contra todas formas de dominação, mantendo dentro da tradição marxista uma
permanente abertura para com múltiplos diálogos teóricos. O grande projeto
de um conhecimento interdisciplinar de uma sociedade emancipada. Seus
elementos mais consistentes sempre foram a firme posição ética, a angústia com
o destino da humanidade e a preocupação humanista com o futuro da civilização
ocidental, e, neste sentido, a Teoria Crítica representou um ideário irradiador,
serve como documento de constatação da desintegração da sociedade liberal
burguesa europeia moderna, escrito, em não raras vezes, de maneira trágica por
pensadores rebeldes desta mesma sociedade.

123
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Em síntese, como produto do cenário filosófico de fins da primeira metade


do século XX, marcado pelo pessimismo e descrença do pós-guerra, tornou-se
urgente a tarefa de lançar um novo olhar sobre um mundo alienado, aniquilado
e sem esperança emancipatória. É neste contexto que deve ser compreendida a
Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica, como defesa de uma insurgência contra o
positivismo que pretende aliar o conhecimento científico acerca dos fatos sociais
à reflexão filosófica (FREITAG, 1986).

Este é o ponto de partida para uma oposição às profundas contradições


sociais e as formas de pensamento que as legitimam, que foi assumido por
Theodor Adorno e Max Horkheimer, que defenderam a Teoria Crítica como
alternativa e espécie de libelo fundamental de oposição ao capitalismo através do
qual assume-se o compromisso com a construção de uma sociedade justa e livre.

Os defensores da Escola de Frankfurt fazem uma nítida separação entre


teoria científica e teoria crítica. Diferem quanto ao seu fim na medida em que as
teorias científicas têm o propósito de fazer “uso instrumental” do mundo exterior,
capacitando seus agentes para controlar e cumprir de forma eficaz os fins escolhidos,
ao passo que a Teoria Crítica pretende emancipação e esclarecimento, tomando a
reflexão crítica como forma de libertação das coações ocultas do saber hegemônico.

Ainda diferem quanto à estrutura cognitiva. As teorias científicas são


objetificantes por não serem em si parte do domínio que pretendem conhecer.
Por outro lado, a Teoria Crítica é autorreferente, na medida em que ela própria
é objeto do que descreve. Finalmente, diferem quanto à aceitabilidade cognitiva.
As teorias científicas requerem confirmação empírica através da observação e
experimentação, enquanto a Teoria Crítica é aceita reflexivamente.

Um traço marcante da Teoria Crítica é a oposição ao positivismo e ao


empirismo, destacando e denunciando a crescente racionalidade instrumental e
tecnológica que toma conta da sociedade ocidental como forma de dominação.
A observação de que o mundo é reduzido a objeto de exploração técnica é
relacionada pelos pensadores da Teoria Crítica ao método elegido pelas Ciências
Sociais, considerando a consciência científica a principal fonte de declínio cultural
através do qual a humanidade ingressou numa nova barbárie.

4 A REVISÃO DOS FUNDAMENTOS DO DIREITO NO


BRASIL: CRISE E CRÍTICA
A entrada do pensamento crítico no direito se intensifica a partir da
década de 60 desde a influência de pensadores e das ideias que vinham da
Escola de Frankfurt e das teses de pensadores como Michel Foucault. Na Europa
as inovações da Teoria Crítica encontravam um terreno fértil no ambiente pós-
guerra, que projetavam no campo jurídico a desmistificação do jusnaturalismo e
do positivismo.

124
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

Antonio Carlos Wolkmer (2015), retomando a trajetória do pensamento


jurídico crítico europeu, lembra que a crítica jurídica se consolidou inicialmente
na França por volta dos anos 70, culminando com o “manifesto” da Associação
Crítica do Direito em 1978, atingindo, em seguida, a Itália, Espanha, Bélgica,
Alemanha, Inglaterra e Portugal.

Na América Latina, os “ventos” inovadores chegam por volta da década


de 80, com o engajamento de juristas progressistas e comprometidos com a
superação dos obstáculos políticos que impediam a construção e efetivação da
democracia.

Este movimento de renovação do pensamento jurídico recebe a adesão


de pensadores brasileiros em inúmeras faculdades de direito, que acabaram
por serem pioneiros de uma pedagogia jurídica emancipadora. As perspectivas
epistemológicas, apesar de múltiplas, tinham como ponto em comum a defesa
do rompimento com o positivismo legalista e revelando o caráter dominador e
centralizador do direito hegemônico (LIXA, 2015).

A Teoria Crítica trouxe consigo o impacto do questionamento do


papel ideológico do direito na medida em que, diferentemente
da concepção moderna de ciência, coloca no interior da discussão
jurídica as contradições e ambiguidades inerentes ao direito moderno,
buscando tomar o direito como instrumento não de manutenção da
ordem estabelecida, mas a possibilidade de emancipação do sujeito
histórico tradicionalmente submerso em determinada normatividade
repressora, mas também discutir e redefinir o processo de constituição
do discurso legal mitificado e dominante (WOLKMER, 2015, p. 18).

Mostrava-se assim um horizonte inovador, mas que trazia consigo a


necessidade de rompimentos e abandonos teóricos.

Nas três últimas décadas do século XX o cenário social, político e


econômico brasileiro provocou, de forma crescente, um profundo mal-estar na
cultura jurídica brasileira.

O saber jurídico moderno, até então uma sólida ciência que sustentava a
racionalidade e autonomia do direito, viu-se esgotado.

O horizonte projetado como futuro, não de mera continuidade do passado


ou presente, mas da promessa de cumprir o desejado e, quem sabe, até o sonhado,
indicava o inverso: sua derrota.

Apesar de algumas vitórias, chegava o momento de admitir os limites


do exercício do poder em “nome da lei e ordem”, mas algumas destas próprias
vitórias serviam para confirmar a poderosa e revolucionária certeza de que as
lutas se orientam segundo um horizonte de futuro e não para uma enganosa visão

125
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

profética. Diante da esperança, toda derrota representava, tão somente, mais um


momento de luta, e com esta certeza ia se resistindo à prisão, exílio, tortura e, até
mesmo, o doloroso sacrifício de vidas amadas.

A consciência jurídica crítica emerge num novo momento histórico


brasileiro quando é iniciado o rompimento com o poder ditatorial, em fins dos
anos 80, e a ação de novos atores sociais vai indicando que não se tratava somente
de buscar novos conteúdos teóricos.

O problema da crise da razão jurídica não era tão somente um problema


de conteúdo, tampouco de metodologia. Era muito mais que isto. O momento
apontava o esgotamento do pensamento tradicional, era um problema político
que trazia consigo profundas implicações de conhecimento. Assim, construir
um saber contra-hegemônico era uma questão epistemológica de consequências
políticas irrenunciáveis.

A capacidade de percepção da complexa realidade não era tão somente


uma questão de troca de paradigmas. Vivia-se coletivamente uma experiência
que possibilitava, de um lado, a potencialização do reconhecimento da falácia
do saber científico único e neutro, denunciando a existência de outros espaços
de construção de saber; e, de outro, a necessidade de perspectivas coletivas de
transformações políticas. Tratava-se de encontrar racionalidades alternativas
num novo e complexo tempo e superar a angústia da impotência do que não se
pôde ou não se quis evitar.

Foi sendo, desde então, estabelecida uma trajetória fragmentada e por


muitas vezes polêmica, autodenominada “crítica do direito”. Um corpo de ideias
produzidas a partir de distintos marcos teóricos que buscaram estabelecer um
diálogo flexível, podendo-se identificar, desde então, um conjunto de vozes
dissidentes com objetivo irrenunciável de revisão epistemológica, reconhecendo
os limites e funções, declaradas ou não, do saber jurídico oficial, a crítica do
direito desloca seu eixo (LIXA, 2010).

Embora sem ter cumprido a tarefa de construir uma Teoria Crítica do


Direito, talvez por vocação da própria atitude crítica de constituir-se mais num
movimento político permanente de insubordinação à verdade, ou pela sua
própria natureza, condenada a impossibilitar e identificar a unidade, o certo é que
pode-se analisar a trajetória histórica deste movimento-ação insurgente brasileiro
como tentativa de resgate de elementos, fragmentos e experiências, em não raras
vezes negligenciadas e marginalizadas, que podem indicar o que, efetivamente,
se encontra agonizante e o que resta a ser retomado como guia para edificação de
um novo saber emancipatório.

126
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

FIGURA 28 - DIREITO ACHADO NA RUA

FONTE: <https://petdirunb.wordpress.com/tag/direito-achado-na-rua/>. Acesso em: jul. 2016.

A construção de uma teoria crítica do direito brasileiro pode ser analisada


a partir dos movimentos que foram edificados, desde uma pluralidade teórica e
diretriz política de ação e de intensidade variável, algumas mais, outras menos
bem-acabadas, vão identificando e cimentando o que podemos vislumbrar como
uma hermenêutica jurídica crítica brasileira.

Um ponto de partida para a construção do pensamento jurídico crítico


é a Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), descrita por Roberto Lyra Filho um
pouco antes de sua morte (ocorrida em 11 de junho de 1986). Fundada por ele em
Brasília, cujo boletim era a Revista de Direito & Avesso (publicado desde 1982),
acabou por conquistar adeptos militantes em todo Brasil e germinando como
movimentos críticos do direito que se seguiram entre as décadas de 80 e 90.

FIGURA 29 - ROBERTO LYRA FILHO


Roberto Lyra Filho nasceu no Rio de Janeiro em 13
de outubro de 1926. Sociólogo e jurista, exerceu atividade
artística e literária (sob o pseudônimo mais conhecido
de Noel Delamare), destacando-se como penalista na
vida acadêmica e fora dela. Foi professor titular da
Universidade de Brasília até o ano de 1984, quando se
transfere para São Paulo, ano em que profere conferência
memorial para estudantes de Direito (Centro Acadêmico
XI de Agosto) sobre sua visão crítica do direito. Foi autor
de inúmeras obras jurídicas, sempre marcadas por seu
pensamento socialista, que é reconhecido por Marilena
Chauí como uma Nova Filosofia Jurídica que devolve ao Direito sua dignidade
política. Seus escritos são marcados pela indissociável relação entre direito e
política, numa época em que esta era atitude corajosa e assumida por poucos.
FONTE: <http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/p/roberto-lyra-filho.html>. Acesso em: 20 ago. 2016.

127
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Os trabalhos de Roberto Lyra explodem entre as décadas de 70 e 80


como manifestos de desejo de uma prática jurídica inovadora e politicamente
comprometida. Aponta o que via como tarefa cotidiana do jurista: a permanente
luta pela vida democrática e garantia de direitos fundamentais. Como pensador
de seu tempo, assume de forma corajosa a necessidade de releitura do marxismo
pelos juristas, colocando em questão a incorreta concepção segundo a qual Marx
teria negado o direito.

Seus trabalhos demonstram que é possível captar a dialética e


materialismo histórico, os “fios condutores” do ideário marxista, como métodos
de superação do tradicional positivismo e jusnaturalismo que impregnavam a
cultura jurídica nacional. Analisa a decadência da cultura jurídica dominante
na obra Para um Direito sem Dogmas (publicada em 1980), buscando as origens
da ciência dogmática do direito. Demonstra que o conservadorismo jurídico
esteve historicamente relacionado à necessidade de manutenção dos interesses
dominantes, e o direito utilizado segundo o jogo de conveniências das elites.
Denuncia a necessidade de superação do modelo hegemônico de direito através
da renovação teórica e prática, já que a ciência dogmática do direito moderno foi
o instrumento ideológico privilegiado da burguesia e serve mais como entrave do
que propriamente de garantia emancipatória.

Com o amadurecimento da Nova Escola Jurídica Brasileira, suas propostas


inovadoras foram inseridas em inúmeros campos jurídicos, contribuindo
desde a democratização do ensino do direito, com implementação de projetos
interdisciplinares que realimentaram o debate acerca da função e modos de produção
do saber jurídico, até fundamentar as práticas políticas em defesa da democracia
assumida pelos juristas a partir da década de 80. A metodologia crítica dialética de
Roberto Lyra, além de reconhecida como uma nova prática por inúmeros pensadores
do direito no Brasil, do porte do professor José Eduardo Faria, da Universidade de
São Paulo, Luis Alberto Warat e Antonio Carlos Wolkmer, da Universidade Federal
de Santa Catarina, e militantes do “direito insurgente” como Miguel Pressburger,
alcança círculos acadêmicos estrangeiros, tornando-se um ponto de ancoragem para
os movimentos que se seguiram no Brasil nas décadas de 80 e 90.

FIGURA 30 - COMPROMISSO POLÍTICO E JURÍDICO


Charge história da época onde é clara
a necessidade de compromisso político e
jurídico com as classes populares.

FONTE: <http://mestresdahistoria.blogspot.com.br/2014/11/confira-correcao-das-questoes-de.
html>. Acesso em: 20 ago. 2016.

128
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

Iam sendo descobertos no Brasil novos sujeitos de direito e novas fontes


de direito, crescendo a preocupação em garantir a democratização política e
jurídica. Embora já crescendo no Brasil um grupo de juristas críticos, restava
ainda a necessidade de um fato aglutinador, o que foi propiciado pelos eventos
que culminaram com o surgimento do movimento do Direito Alternativo (DA).
Amilton Bueno de Carvalho (2005, p. 73), retomando a história do movimento,
lembra que:

O início do engajamento de juízes – que acabaram por ser os pioneiros


- deu-se em meio à discussão pré-Constituinte de 1985, quando a
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul promoveu encontros para
fazer sugestões à Constituição em projeto de elaboração e durante
os debates um deles se declara publicamente socialista, provocando
perplexidade, para os que por força ideológica não poderiam admitir
um posicionamento político de um juiz, e alívio para outros que
descobriam não serem sós e tampouco exóticos por se identificarem
com as lutas populares, e em todo o país iam surgindo declarações de
juízes com o desejo de reconstrução democrática comprometida com
a inclusão das vítimas da história. A partir de então formou-se um
grupo de estudos para repensar o direito a partir do desejo de um
novo modelo de sociedade.

O gênero alternatividade, categoria abstrata e genérica, carrega a ideia


de “alter” (o alternativo) como luta permanente à emancipação de “sujeitos
preferenciais”: os oprimidos. Lembra Celso Luiz Ludwig (2006) que são inúmeros
os pensadores do direito, cada um a seu modo, que trilham o caminho do uso do
direito em favor daqueles para os quais tradicionalmente foi negada a justiça e o
direito: o uso do direito a favor da emancipação da classe trabalhadora (Nicolas
M. López Calera, Pietro Barcellona, Luigi Ferrajoli, Modesto Saavedra...);
alternatividade identificada com os interesses do povo, dos pobres, dos
marginalizados.

Autores nacionais que defendem um direito insurgente a favor dos


oprimidos (Miguel Pressburger); ao lado do povo marginalizado, oprimido e
espoliado (Antonio Carlos Wolkmer); aliado aos interesses das classes subalternas
(Wilson Ramos Filho); a defesa de proteção dos interesses das massas oprimidas
(Lédio Rosa de Andrade); declaradamente comprometido com os pobres
(Amilton Bueno de Carvalho); e tantos outros que foram somando a imensa
massa de juristas comprometidos com um direito emancipatório e garantidor das
condições necessárias à vida com dignidade (RANGEL, 2006).

Em fins da década de 70, parte da classe média, que havia apoiado o golpe
de 64, graças ao medo produzido pela propaganda anticomunista por setores
conservadores da Igreja Católica, diante das frequentes denúncias de tortura e
morte de estudantes, cassações de políticos, ausência de liberdade de expressão e
perseguições a sindicatos, acaba por afastar-se do governo militar.

129
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

FIGURA 31 - MANIFESTAÇÕES POPULARES EM BRASÍLIA DURANTE A CONSTITUINTE DE 88

FONTE: <http://www.educacional.com.br/reportagens/20AnosConstituicao/constituinte.asp>.
Acesso em: 20 ago. 2016.

No início dos anos 80 o regime estava saturado e o movimento popular


cresce e torna-se imprescindível uma ampla negociação entre a oposição e a base
governista. Embora houvesse um forte apelo político para convocação de uma
Assembleia Nacional Constituinte originária e exclusiva, como forma de garantir o
máximo possível de participação popular, acabou-se por instaurar, em 1986, uma
Constituinte dentro do próprio Congresso Nacional e dependente das estruturas e
interesses existentes, mas sem perder o rumo da história. Aquele foi um momento
em que se fundou a mentalidade de um novo constitucionalismo, quando o direito
passou a ser o instrumento transformador da Nova República Democrática.

Apesar de contestável a legitimidade da Assembleia Constituinte, o


processo instaurado em 86 carregava consigo as contradições e esperanças de
um Brasil que ia saindo dos “anos de chumbo”. A legitimidade da Constituinte
acabou sendo construída pelo amplo movimento de participação da sociedade
civil através de sindicatos, associações de classe, enfim, das várias iniciativas
populares de participação, mas que apesar disto ainda eram evidentes as posições
ideológicas, políticas e jurídicas antagônicas herdadas da ditadura. De um lado

130
TÓPICO 1 | OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MODERNO

os conservadores, que representavam os interesses da elite nacional, tentavam


amarrar um texto constitucional que mantivesse seus privilégios econômicos;
de outro os progressistas, que se organizavam para elaborar uma Constituição
garantista, dirigente e programática. Deste embate de forças políticas o resultado
foi a elaboração de uma Carta Constitucional norteada pelos princípios do Estado
Democrático de Direito, que conferiu à “República” brasileira a tarefa de conferir
eficácia ao programa constitucional definido.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, seja por trazer


em si difícil travessia democrática, seja por uma euforia contida depois de longos
anos de negação de vida política, com seus vícios e virtudes, inaugura uma fase
inédita no país, quando supera-se o “velho constitucionalismo” e funda-se um
modelo de Estado com a qualidade de Democrático de Direito.

Sem adentrar na complexidade do tema do moderno constitucionalismo,


o certo é que com o modelo adotado no Brasil há uma inovação no ordenamento
jurídico-político, uma vez que a fórmula política nominada “Estado Democrático
de Direito” supera os modelos anteriores.

O novo constitucionalismo, embora nascido em tradicionais centros


europeus, no Brasil representa simultaneamente conquista e desafio. Conquista
no sentido de possibilitar uma cidadania ativa através de instrumentos
democráticos na intervenção das condições reais de existência dos brasileiros,
fixando obrigações dirigentes para o Estado.

O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da


realidade social, já que ultrapassa o conteúdo material da vida humana, passando
a irradiar valores de democracia em todos os sentidos da vida da Nação, inclusive
na jurídica.

Por outro lado, a nova fórmula política é obrigada a conviver com o velho
positivismo jurídico que povoa o imaginário dos juristas através da dogmática
e seus instrumentos técnico-operacionais, o que coloca em risco e fragiliza o
modelo democrático duramente conquistado. Este é um desafio que vem sendo
enfrentado pela via hermenêutica enquanto condição de possibilidade de
compreender a disfuncionalidade entre o direito, que pelo novo constitucionalismo
é um instrumento de garantia e transformação social, as instituições políticas
encarregadas de conferir eficácia ao modelo democrático de Estado e a crescente
complexidade das demandas sociais. Indo nesta direção, vai-se construindo um
novo paradigma no pensamento jurídico brasileiro, autodenominado crítico, cuja
gigantesca tarefa é servir de condição de possibilidade da ordem democrática e
resistência ao estrito formalismo legalista.

131
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você viu:

• O Positivismo Jurídico como resultado de uma convergência de fatores


teóricos, políticos e sociais cujo resultado foi a redução do Direito ao Direito
Estatal negando as demais fontes produtoras da norma jurídica bem como
produzindo uma separação entre Direito e Moral.

• A “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen publicada nas primeiras décadas


do século XX é um divisor de águas no Positivismo Jurídico e na racionalidade
jurídica moderna, inaugurando uma nova etapa – normativismo jurídico – bem
como uma nova concepção acerca do saber jurídico, a cientifização do direito.

• Os eventos que se seguiram a II Guerra Mundial – o holocausto e os regimes


ditatoriais – deixaram evidente a necessidade de rever a aproximação entre
Direito e Moral e desde aí passa a ser marcante uma concepção acerca do que
se convencionou chamar de Teoria Crítica do Direito.

• A emergência do chamado Novo Constitucionalismo ou Constitucionalismo


Contemporâneo como possibilidade de renovação do Direito, uma vez que,
além do Constitucionalismo ter sido a face do Direito que se sustentou no início
do século XXI, foi capaz de aproximar Direito, Moral e Ordem Democrática.

132
AUTOATIVIDADE

Após o estudo realizado sobre Positivismo Jurídico e o pensamento de


Hans Kelsen, abordado neste tópico, responda a seguinte questão:

Qual o sentido de “Pureza” do Direito defendido por Kelsen?

133
134
UNIDADE 3
TÓPICO 2

DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

1 INTRODUÇÃO
Na entrada para o século XXI anuncia-se o esgotamento da modernidade.
A “liquificação” da modernidade, pergunta Zygmunt Bauman (2001, p. 9), “não
foi um processo que esteve desde o início presente no discurso moderno? Não foi
o “derretimento dos sólidos” seu maior passatempo e principal realização? Não
foi a modernidade “líquida” desde sua concepção?” Os “sólidos” destruídos pela
modernidade, no final do século XX, para Bauman, passaram a apresentar sinais
de maior liquidez.

FIGURA 32 - “PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA” DE SALVADOR DALI (1931) - MUSEU DE ARTE


MODERNA DE NOVA YORK

FONTE: <https://mestresdapintura.com.br/blog/os-relogio-derretidos-de-dali/>.
Acesso em: 20 ago. 2016.

135
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Os confrontos passaram a ser inevitáveis e os sintomas de mudança e


descrença vão rearticulando as condições sociais e políticas, parecendo indicar
uma nova condição humana e novas técnicas redefinem as relações de poder.

As instituições e convicções defendidas pela modernidade parecem


debilitadas. Os velhos e tradicionais partidos políticos e tradições ideológicas
cedem espaço a movimentos sociais inéditos que vão se identificando
coletivamente. As “sólidas” redes de interações sociais modernas cedem espaço
ao multi (multiétnico e multicultural). Os referenciais de identificação não são
mais elementos de uma cidadania individualizada. A fragmentação justifica
a dominância do discurso do “mundo único”, e o global e local tornam-se
visceralmente associados sob o lema “pense global, haja local”.

Muitos pensadores, nas três últimas décadas do século XX, passaram


a apontar para o novo fenômeno multifacetado monoliticamente chamado
de globalização. Ao que parece, por força da tradição universalizante do
ocidentalismo, há uma tendência dominante de apresentar a globalização como
linear e consensual, ocultando impactos e as interações com o sistema mundial de
dominação cujos efeitos agravam dramaticamente a exclusão e as desigualdades
econômicas, fragilizando o tradicional conceito de Estado-Nação, além de
promover migrações em massa, agravando e promovendo conflitos étnicos e
políticos, degradação ambiental, dentre outros.

“A pobreza produzida maciçamente torna-se banal ao lado de uma


competitividade que tem a guerra como norma, eliminando qualquer forma
de compaixão” (SANTOS, 2011, p. 46). O individualismo domina para além da
vida econômica e invade a ordem política e os espaços territoriais. “Vão sendo
implantados novos valores aos objetos e aos seres humanos que tomam como
parâmetro uma suposta contabilidade global que mercantiliza todos os subsistemas
da vida social, rompendo solidariedades numa batalha sem quartel” (SANTOS,
2011, p. 48). Por imposição do mercado, o consumismo move a vida pública e
privada. Um novo fundamentalismo que emagrece moral e intelectualmente as
pessoas, reduzindo a visão de mundo e fazendo esquecer qualquer relação entre
o consumidor e o ser humano.

Em finais do século XX a novidade é a sensação de naufrágio não


apenas dos projetos individuais, mas de incertezas acerca do futuro coletivo, da
possibilidade de uma forma correta de partilhar a existência e dos critérios de
compreensão acerca dos acertos e erros da experiência humana.

“O otimismo civilizatório, produto do esforço iluminista que abraçou a


ideia de progresso e foi capaz de romper com o passado através da secularização
e dessacralização do conhecimento” (HARVEY, 1993, p. 24).

O Iluminismo tomou o progresso como lema para a secularização e


dessacralização do conhecimento em nome da liberdade humana. A ciência
prometia emancipação e o otimismo era o estímulo para as novas doutrinas
fundadas na razão humana universal, mas as esperanças que tornavam
suportáveis as perversidades modernas em finais do século XX desaparecem e as
contradições internas e inconfessáveis do projeto iluminista evidenciam-se.

136
TÓPICO 2 | DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

2 A NOVA CONDIÇÃO NO COTIDIANO


O empobrecimento globalizado e a desconstrução das instituições tradicionais
encontram no discurso da pós-modernidade uma justificação para a condição humana
em finais do século XX, como uma teoria que abarca o que não é homogêneo, flexível
e volátil. O ceticismo é a consequência do esfacelamento da noção de totalidade e
retiram-se de cenas as tradicionais formas de engajamento revolucionário.

Apenas as microrrevoluções passam a ser possíveis, já que as alternativas


abrangentes e universais são condenadas ao fracasso, e o passado parece
aprisionar o presente.

É um novo palco da história, constituído por múltiplos momentos


e elementos que comportam inúmeras leituras. O “cenário” de confiança,
estabilidade e previsibilidade, necessário à construção de uma identidade
individual, arquitetado e erigido coletivamente, criou as estruturas fundamentais
do imenso edifício do que veio a ser a civilização moderna. Tais estruturas
acabaram abaladas pela impossibilidade de ajuste entre a volúvel escolha
individual e os pré-requisitos funcionais do coletivamente.

As múltiplas compreensões acerca dos riscos e incertezas que afetam o


cotidiano do planeta, do fim da crença na certeza, previsibilidade e controle sob
a qual se forjou a civilização ocidental moderna vai construindo um movimento
intelectual complexo e ambíguo, estruturado de forma difusa e que vai sendo
provisoriamente rotulado de pós-modernidade.

Trata-se de um conjunto de atitudes abertas e indeterminadas, moldadas


por uma grande diversidade de correntes intelectuais e culturais: pragmatismo,
existencialismo, marxismo, psicanálise, feminismo, hermenêutica, desconstrução e
filosofia pós-empirista da ciência, além de outras. Estas são bases epistemológicas a
partir das quais confluem princípios compartilhados que conduzem essencialmente
à crença na falibilidade e relatividade do conhecimento subjetivamente determinado
e marcado indelevelmente pelo pluralismo de valores e escolhas. São tempos
difíceis, onde há tanto para transformar e repensar e, ao mesmo tempo, é um
enorme desafio construir ou reconstruir um pensamento crítico (TARNAS, 2011).

3 PALEOPOSITIVISMOS, JUSCONSTITUCIONALISMOS
E RENOVAÇÃO CRÍTICA NO BRASIL

Sem dúvida, uma das pautas centrais do Direito contemporâneo é a sua


constitucionalização e fundamentos legitimadores.

As velhas concepções assentadas no paradigma juspositivista legalista,


chamado por alguns de paleopositivismo, que tem como raciocínio acerca do
Direito uma lógica autossustentadora e autojustificadora, em fins do século

137
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

XX são substituídas pelo que vai se autodenominando neopositivismo ou


neojuspositivismo subordinando o Direito ao sentido constitucional, que,
embora redefinido pelo princípio da legalidade substancial que vincula o sentido
normativo à coerência dos princípios e fundamentos constitucionalmente
estabelecidos, mantém o velho paradigma da legalidade formal de produção.

“Mais recentemente, acentuadamente a partir das três últimas décadas do


século XX e início do XXI, com a entrada em cena das democracias participativas,
os direitos fundamentais ganham novo status político e jurídico, constituindo a
esfera do não decidível” (FERRAJOLI, 2015, p. 20), definindo limites políticos e
jurídicos tanto da produção das normas como de sua interpretação, que implicam
em exigir que a produção e interpretação das normas sejam não só originadas
segundo procedimentos democráticos e através de um Poder Legislativo legítimo,
mas que sejam estáveis, prospectivas, gerais e públicas, invertendo a tradicional
relação entre o direito e a política.

A lógica constitucionalizadora do direito ganha impulso maior, sobretudo


nas últimas décadas do século XX. Esta etapa é marcada no plano teórico pelo
esvaziamento das imagens e discursos representativos da racionalidade moderna,
o que acaba por criar um complexo debate no qual são criadas novas rotulações.
Instala-se um tempo dos “pós”, “de(s)” e “neo(s)”.

São incorporadas inéditas expressões que significam tentativas de rotular


situações às quais ou se defende, e se tenta promover, ou se rechaça, mas há
o que parece ser um ponto de convergência: o esgotamento das categorias da
modernidade e das grandes utopias que serviram para construir o horizonte de
futuro moderno, tomando-se a crítica à modernidade o ponto de partida para sua
própria superação (LIXA, 2015).

Para autores como Zizek (2012), a complexidade sem fim do mundo


contemporâneo possibilita o surgimento de conceitos opostos que parecem
inquestionáveis, tais como a intolerância como tolerância, religião como senso
comum racional etc. Enfim, vive-se um tempo em que é grande a tentação de
gritar: “chega de bobagem!”. Talvez seja essa, diz Zizek, a manifestação do desejo
de estabelecer uma linha demarcatória entre a fala lúcida e sã e a bobagem, reação
que tem servido para despertar a ira da ideologia predominante.

O senso comum de nossa época diz que, em relação à antiga distinção


entre ‘doxa’ (opinião acidental/empírica, sabedoria) e Verdade, ou
ainda mais radicalmente, entre conhecimento positivo empírico e fé
absoluta, hoje é preciso traçar uma linha entre o que se pode pensar e
o que se pode fazer (ZIZEK, 2012, p. 20).

É na tentativa de ir além do mero pensar, neste contexto dos


“pós”/”de(s)”/“neo(s)” e com desejo de fazer a reinvenção, é que no Brasil se edificam
e consolidam correntes no Direito que se autodenominam críticas, como já analisado.
Sinais de esgotamento que vão conduzindo para o interior do campo jurídico o
pensamento crítico, inaugurando, assim, uma discussão inédita e fértil (LIXA, 2015).

138
TÓPICO 2 | DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

A ordem política e jurídica colocada em marcha no Brasil com a


Constituição de 1988 e o inédito momento histórico, somados, representavam a
superação do autoritarismo, exclusão social e violação de direitos fundamentais
que, desde os primórdios da invenção colonialista, vinham constituindo uma
patologia crônica exposta no grave quadro social que se delineava.

A grande maioria dos juristas entra em sintonia com as tendências


constitucionalistas que apontavam como grande desafio garantir a efetividade
das constituições democráticas.

Até então, historicamente, os comandos jurídicos e políticos


constitucionais, de fato, estavam nas mãos dos detentores dos poderes
político, econômico e social e, finalmente, o país começou a ‘levar a
sério’ a Constituição e, apesar das dificuldades enfrentadas, tais como
a desigualdade e o patrimonialismo que ainda povoam as instituições
nacionais, os avanços em relação ao passado são inquestionáveis
(SARMENTO, 2010, p. 3-4).

Logo após a homologação da Constituição de 1988, juristas, como Luis


Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève, passaram a militar a concepção de que
a Constituição, enquanto norma jurídica, deveria ser aplicada comumente pelos
juízes, defendendo um constitucionalismo de efetividade, independentemente
de qualquer mediação legislativa.

E
IMPORTANT

Há de se destacar a obra “Direito Constitucional e a Efetividade das Normas”,


de Luis Roberto Barroso, publicada no início da década de 90 e “A Teoria Constitucional
e o Direito Alternativo: para uma dogmática constitucional emancipatória”. In: Uma vida
dedicada ao Direito: uma homenagem a Carlos Henrique de Carvalho publicada em 1995.
Estas obras são marcos importantes para esta nova etapa do pensamento jurídico brasileiro.

[...] o que viria a tirar do papel as proclamações generosas de direitos


contidas na Carta de 88, promovendo justiça, igualdade e liberdade. Se,
até então, o discurso da esquerda era de desconstrução da dogmática
jurídica, a doutrina da efetividade vai defender a possibilidade de um
uso emancipatório da dogmática, tendo como eixo a concretização da
Constituição (SARMENTO, 2010, p. 248).

Desde aí se aprofundaram e se radicalizaram os estudos da hermenêutica


jurídica. Influenciados pelo “giro” linguístico da filosofia e a entrada do
pensamento de Ronald Dworkin, Robert Alexy, John Rawls, Hans Georg
Gadamer, Jurgen Habermas, entre outros, juristas como Lenio L. Streck e
Eros Roberto Grau refundam o pensamento jurídico brasileiro denunciando e
renunciando ao velho positivismo e seus procedimentos hermenêuticos. Nesta

139
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

nova etapa, ou quadra da história, como prefere Lenio L. Streck nominar este
inédito momento de redefinição, é acentuada a natureza valorativa do Direito e
dos princípios constitucionais (LIXA, 2015).

Nesse contexto, lembra Daniel Sarmento (2010, p. 249), “há uma verdadeira
febre de trabalhos sobre teoria dos princípios, ponderação de interesses, teorias
da argumentação, proporcionalidade, razoabilidade etc. e se incorpora no
pensamento jurídico crítico brasileiro o neoconstitucionalismo”. Tratava-se de
um momento de conquistas e necessidades de que fossem garantidas.

Entretanto, já na primeira década do século XXI, muitos se davam conta


de que o neoconstitucionalismo não era a superação do velho positivismo. Como
afirma Streck (2011), não é porque o neoconstitucionalismo tem um discurso
axiologista e valorativo que é superado o positivismo formal legalista.

As teorias “pós”/“neo” positivistas acabaram por caírem na incerteza


e indeterminação do Direito. Seguramente o ‘relativismo’ e a ‘teoria
da argumentação’ foram mal incorporados no pensamento brasileiro e
decreta-se a ‘morte do método’ e em seu lugar passa a reinar absoluta
incerteza e relativismo nas decisões judiciais. Possivelmente são os
efeitos perversos de uma lógica colonizada que insiste em ser mantida
na cultura jurídica brasileira (STRECK, 2011, p. 37).

Não é novidade, desde Kelsen, que o julgador tem um espaço discricionário


em aberto e que desde muito foi desmistificado o juiz “boca da lei”, mas como
adverte Streck (2011), deve-se estar atento ao “pós-positivismo à brasileira”:

[...] é preciso estar alerta para certas posturas típicas do ‘pós


positivismo à brasileira’, que pretende colocar o rótulo de novo em
questões velhas, já bastante desgastadas nessa quadra da história,
quando vivenciamos um tempo de constitucionalismo democrático.
Ainda hoje presenciamos defesas vibrantes de ativismos judiciais para
implementar e concretizar os direitos fundamentais, tudo isso sempre
retornando ao mesmo ponto: a ideia de que, no momento da decisão,
o juiz tem um espaço discricionário no qual pode moldar sua vontade
[...] (STRECK, 2011, p. 38).

Em síntese, com as concepções e modelos “descobertos” no Brasil em


fins do século XX, sobretudo com a entrada em cena do neoconstitucionalismo, é
decretada a “morte do método”.

Para Ferrajoli (2012), nestes tempos de total impotência e decadência


da política, predomina um constitucionalismo principialista, momento quando
se leva em conta todas as suas implicações, coloca em perigo a separação dos
poderes, o princípio da legalidade e submissão do juiz somente à lei: em síntese,
todos os princípios do estado de direito. “Diante da angustiante constatação,
pergunta o pensador garantista italiano: quais alternativas se pode contrapor a
esta orientação que coloca o Direito em uma espécie de “loteria do protagonismo
judicial”? É momento de profundo e profícuo debate das vias possíveis de
solução” (FERRAJOLI, 2012, p. 245).

140
TÓPICO 2 | DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

Uma das possibilidades é apontada por Ferrajoli (2012, p. 251) ao propor


como ponto de partida para a definição do horizonte hermenêutico os direitos
fundamentais consagrados na ordem constitucional.

Isto é, não dar lugar à antinomia e lacunas, com todos os espaços


de discricionariedade política deixados em aberto, de um lado, pela
proibição de produzir normas incompatíveis com os princípios
constitucionais e, de outro, pelas possíveis formas e graus de
observância da obrigação de sua atuação.

Ferrajoli (2012) chama a atenção para o fato de que todas as soluções,


principalmente as mais controversas, não podem ser consideradas “verdadeiras”
ou “objetivamente corretas”, uma vez que cada decisão, no campo hermenêutico,
poderia ser considerada como condição de possibilidade de decisão definida a
partir do horizonte compreensivo e, portanto, é inevitavelmente orientada por
opções morais e políticas do intérprete. O autor conclui dizendo que:

Os juízes não serão nunca, porque não poderão nunca sê-lo, simples
bocas da lei, como desejavam os iluministas. Nem poderão jamais
alcançar verdades absolutas, mesmo que seja na forma da verdadeira
resposta correta. O reconhecimento desta imperfeição, ou se quiser,
aporia, repito, é um fato de saúde institucional: gera o hábito da
dúvida, a consciência do erro sempre possível, a disponibilidade
para escutar todas as razões opostas que se confrontam no juízo, a
prudência – a partir da qual advém o belo nome “juris-prudência”
– como estilo moral e intelectual da prática jurídica e, em geral, das
nossas disciplinas (2012, p. 254).

Em síntese, frente à complexidade do fenômeno jurídico contemporâneo


e a permanente reconstrução e vigilância da ordem democrática no Brasil, são
possíveis múltiplas possibilidades de soluções para a “questão hermenêutica”,
uma vez que o legislador e nem mesmo o Estado são detentores de todas as
hipóteses de interpretação e aplicação da norma jurídica, o que evidentemente
descortina a grande falácia do mito fundador do direito moderno: a certeza e
segurança nascida da plena razão estatal. Em que pese o esforço de correntes
jurídicas contemporâneas que se autorreferem como críticas, resta em aberto um
espaço jurídico que ainda não pôde ser preenchido pelas práticas fundadas nestas
correntes. É possível pensar uma alternativa às práticas alternativas e reinventar a
crítica desde as experiências democráticas participativas (LIXA, 2015).

Adotando a sugestão de Boaventura de Sousa Santos (2001) no que chama


de sociologia das emergências, que é a prática de ampliar o presente reconhecendo
o que foi subtraído pela sociologia das ausências, hermeneuticamente ampliando
os espaços de possibilidades de compreensão do direito para além do Estado, é
possível identificar agentes, práticas e saberes com tendências de futuro sobre as
quais é possível ampliar as expectativas de esperança. Trata-se de uma ampliação
sobre as potencialidades e capacidades ainda não reconhecidas e necessariamente
movendo-se no campo das experiências sociais que desde as práticas do
reconhecimento, transferência de poder e mediação jurídica são legítimos espaços
de luta por dignidade humana e direitos fundamentais.

141
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

É indo nesta direção que é possível falar-se em reconhecer o mundo


social como mundo de possibilidade compreensiva e, portanto,
fonte de uma nova racionalidade hermenêutica. Trata-se de uma
perspectiva pluralista de direito que reconhece múltiplos espaços
de fontes normativas, apesar de na maioria das vezes ser informal e
difusa (WOLKMER, 2012, p. 155).

O pluralismo é uma fonte de inúmeras possibilidades de regulação. Para


Antonio Carlos Wolkmer (2012, p. 158):

O pluralismo enquanto concepção filosófica se opõe ao unitarismo


determinista do materialismo e do idealismo modernos, pois advoga a
independência e a inter-relação entre realidades e princípios diversos.
Parte-se do princípio de que existem muitas fontes ou fatores causais
para explicar não só os fenômenos naturais e cosmológicos, mas,
igualmente, as condições de historicidade que cercam a vida humana.
A compreensão filosófica do pluralismo reconhece que a vida
humana é constituída por seres, objetos, valores, verdades, interesses
e aspirações marcadas pela essência da diversidade, fragmentação,
circunstancialidade, temporalidade, fluidez e conflituosidade.
[...]
O pluralismo, enquanto “multiplicidade dos possíveis”, provém não
só da extensão dos conteúdos ideológicos, dos horizontes sociais e
econômicos, mas, sobretudo, das situações de vida e da diversidade
das culturas.

Em meio à discussão plural e decolonial nas primeiras décadas do século


XXI chegam ao poder, em vários países latino-americanos, governos progressistas
que avançaram no campo da democratização, políticas sociais e integração regional.

Neste marco, os governos populares da Bolívia, Equador e


Venezuela em especial, foram implantando um novo paradigma
constitucional a partir da plurinacionalidade, demodiversidade,
novos direitos vinculados a uma racionalidade reprodutiva da vida
que expressamente deseja a vontade descolonizadora como conteúdo
fundamental do projeto político em marcha nestas nações (MEDICI,
2012, p. 56).

Neste novo cenário, novos e distintos campos se tocam – o estatal e o social;


o interno e o externo; o formal e o substancial – em que mundos normativos, práticas
e saberes dialogam, se desentendem e interagem tornando possível reconhecer os
pontos de contato entre a tradição moderna ocidental e os saberes leigos.

4 PENSAMENTO CRÍTICO CONSTITUCIONAL:


RENOVAÇÃO POLÍTICA, JURÍDICA E FILOSÓFICA
A entrada para o século XXI, particularmente na América Latina, é marcada
pela inegável necessidade de renovação e redefinição do pensamento jurídico.

É necessário quebrar o fascínio pelo “colonialismo mental” e assumir


o comando do pensamento jurídico local, criando uma “democracia
de alta energia”. É necessário quebrar definitivamente com o fascínio

142
TÓPICO 2 | DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

epistemológico colonizador e a hegemônica idealização sistemática


jurídica do pensamento alemão e americano no sentido de repensar
o direito e suas práticas para além do formalismo renovado do século
XXI pelo discurso neoconstitucionalista. Disponível em: <http://
jota.uol.com.br/critica-ao-pensamento-juridico-brasileiro-segundo-
mangabeira-unger>. Acesso em: 20 ago. 2016.

Romper com a tradição liberal eurocêntrica implica reconhecer


inicialmente a particulariedade do direito brasileiro e sua constitucionalidade.
Embora sem querer entrar na discussão da face perversa da judicialização da
política, ou mesmo do ativismo judicial, o certo é que a importação desatenta
da tradição constitucional eurocêntrica e sua consequente fragmentação do
poder, autêntico “loteamento do Estado”, acaba por criar uma das perversas
e problemáticas formas de governo, na qual acaba sendo o Judiciário de fato o
administrador do Estado.

A base de uma proposta constitucional crítica, para Martín (2014), é a


repolitização do constitucionalismo. Se a ordem econômica global neoliberal
invadiu todo sistema político e social subsumindo o direito, não se trata de
“despolitizar” o direito que conduz à eliminação e/ou ocultação do conflito e
declarar o “fim da história política do direito”, “repolitizar” pode ser considerado
um resgate da história e da natureza do constitucionalismo.

Historicamente, o constitucionalismo, desde seu início, é “politizado” não


apenas no sentido convencional de direito constitucional, mas seu fundamento e
legitimação: o conflito. O avanço do público paulatinamente foi se transformando
em fins do século XX como lugar privilegiado de defesa do “interesse geral”,
acentuando o conflito entre o “público/privado”.

A integração, articulação do conflito e coexistência pacífica de seus


elementos definidores é o que pode representar alternativa à dinâmica
constitucional.

Quanto à sua natureza, a Constituição é um programa aberto e


impulsionador de valores da ordem social do tempo presente, portanto, a crítica
constitucional é tarefa de apropriação de conteúdos desde a realidade em sua
dinâmica e complexidade; sua exterioridade; e sua impureza.

Para pensadores como Boaventura de Souza Santos, assiste-se a um


sistema político que encontra-se definitivamente em alerta, cuja natureza da
judicialização da política conduz à politização da justiça. O processo político de
judicialização da política é resultado do enfrentamento político do Judiciário ao
quadro de emissão dos demais poderes em instalar as políticas de efetivação dos
direitos. Isto porque o Judiciário, como Poder neutro, não é fonte de direito novo.

O afastamento da lei inconstitucional é restauração da ordem ofendida.


A judicialização da política traz consigo a prerrogativa da iniciativa de criação
do direito novo, feito a partir de amplas possibilidades de princípios e valores,
ensejando uma discricionalidade que compromete a imparcialidade, a principal
razão de transferência ao Estado juiz do poder de dizer o direito.
143
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

NOTA

“Isso ocorre quando atuam para atender demandas sociais que não foram
satisfeitas a tempo e a hora pelo Poder Legislativo, bem como para integrar (completar) a
ordem jurídica em situações de omissão inconstitucional do legislador”. Justificativa para a
prática do ativismo judicial segundo o Min. Luís Roberto Barroso. Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2015-dez-07/judicializacao-nao-confunde-ativismo-judicial-barroso>.

A expansão do Direito e do Estado para a vida social que vem definindo


um ativismo ilegítimo acaba por transferir para o Judiciário um poder
extremamente amplo, cujo exercício é problemático, tanto pela impossibilidade
operacional do Judiciário em atender à imensa gama de demandas, como pelo
despreparo técnico de juízes. Se, de um lado, o Judiciário, ao assumir esferas
políticas que ultrapassam seus limites, compreende democracia como a garantia
de direitos individuais e coletivos que permitem condições materiais básicas
de vida, e, portanto, de efetivo exercício de cidadania, de outro, a democracia
também demanda o respeito a um amplo espaço de decisão política, incluindo os
movimentos sociais como legítimos representantes da luta pela concretização e
efetivação de direitos fundamentais.

Contra a tendência de judicialização da vida e da política, surge a


repolitização do constitucionalismo como contratendência às consequências
disfuncionais do Direito e do Estado. O Estado Democrático de Direito no Brasil
colocou em cena os movimentos sociais, que, na luta ou procura pela efetivação
de demandas, sentem-se impotentes e ficam ao desalento ao se confrontarem com
um sistema judiciário composto por autoridades de linguagem incompreensível
e presença arrogante.

Tal repolitização necessita ter como ponto de partida a elevação da


participação popular na política, criando mecanismos para resolução de conflitos
de forma a estabelecer no Estado um poder popular e pluralista cuja prática destina-
se a resgatar grupos que se encontram em situação de subjugação ou exclusão
sem que consigam, por si mesmos, atender suas necessidades. Dessa maneira,
simultaneamente, se enriquece a democracia com mecanismos participativos
diretos, resgatando o constitucionalismo primeiro que está além do convencional
e dominante. Trata-se de reconhecer as novas realidades constituintes cotidianas
cujos atores, como sujeitos históricos, são os que dinamizam, desde a estrutura
social, política e econômica, carregam em si a potencialidade transformadora que
vai reconfigurando a ordem jurídica.

144
TÓPICO 2 | DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

5 NOVOS MARCOS FILOSÓFICOS DO DIREITO


CONTEMPORÂNEO
Ignácio Ellacuria, no texto “Filosofia para que?” lembra que Sócrates não
foi o primeiro filósofo, mas nele surgiu uma forma singular de filosofar: a reflexão
como forma de compreender a si mesmo para tornar-se um ser político e assim
politizar a cidade (SENET, 2012).

De certa maneira, Ellacuria nos ajuda a responder à primeira questão


que propomos no início deste estudo: para que e por que filosofar? Para alguns,
filosofar é um ato de mera erudição intelectual. Será realmente que foram séculos
de história e conhecimento acumulado de forma inútil?

No mesmo texto, Ellacuria lembra que Kant afirmava que não se pode
ensinar filosofia, mas o máximo que se pode fazer é ensinar a filosofar. O que
realmente Kant nos diz? Que a filosofia não é somente um privilégio de seres
sábios e isolados do mundo, mas que o conhecimento filosófico nos permite
adquirir uma habilidade revolucionária: para descobrir que, mais que conhecer
a realidade, precisamos transformá-la! Que esta transformação deve ter um
propósito orientado por nós e para nós.

Desde de início vimos que a atitude socrática foi revolucionária, porque


passa a conceber o conhecimento como produto ao mesmo tempo humano e
político, possui como objetivo a reta humanização e reta politização, e desde aí se
pode falar em filosofia.

ATENCAO

No sentido da tradição socrática, o ato de filosofar tem como pressuposto permitir


a conexão entre si mesmo (saber metodologicamente construído) e a realidade. Portanto,
a reflexão não é mero ato de conhecimento ou apreensão da realidade e das coisas, mas
permite conferir sentido para a vida humana e para a própria filosofia. Neste sentido, filosofar
é o processo libertador e desidealizador de permanente dúvida e negação que depende da
capacidade crítica, o que é chamado por dogmáticos como heresia e revisionismo. Assim, a
filosofia adquire seu maior sentido: a compreensão de que é necessária a libertação.

O que é a libertação que a filosofia pode trazer para o pensador do Direito?

Para o filósofo e pensador latino-americano Enrique Dussel (2012, p. 67):


a filosofia deve, em primeiro lugar, libertar a si mesma.

145
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Na história, ao menos desde os gregos, a filosofia esteve frequentemente


atada ao carro do poder – é verdade que sempre houve, também,
contradiscursos filosóficos de maior ou menor criticidade: de nossa
parte, desejaríamos nos inscrever nessa tradição anti-hegemônica, ao
etnocentrismo regional.
Na Modernidade o etnocentrismo europeu foi o primeiro
etnocentrismo mundial [...] o mundo ou a eticidade do filósofo – como
é o de um sistema hegemônico (grego, bizantino, mulçumano, cristão
medieval e, principalmente, moderno) – pretende se apresentar como
o mundo humano por excelência; o mundo dos outros é barbárie,
marginalização, não ser.

Portanto, filosofar é uma tomada de consciência que pressupõe o


questionamento, algo mais do que a mera reprodução de conceitos ou concepções
alheias. É um compreender o presente a partir das condições históricas concretas
de sua superação.

Para Gadamer (2004), a apropriação de sentido é algo mais que o mero


conceito ingênuo de compreensão, é sempre uma forma de apropriação sob
estruturas de pré-juízos aos quais o sujeito que compreende é colocado à frente
daquilo que se quer compreender.

Neste sentido, para Leopoldo Zea (2005), um ser humano é definido pela
história, e o que este humano pode ou não ser depende da tríplice dimensão
histórica: ao que dá sentido ao fato, ao que se faz e ao que se pode continuar
fazendo. “Segundo a dimensão vital adotada por este ser histórico e hermenêutico,
a compreensão da história define escolhas: a afirmação e conservação do passado,
a esperança no presente ou a mudança permanente no futuro” (p. 85).

Partindo do horizonte compreensivo historicamente construído e atitude


filosófica de ampliação do presente com vistas a um futuro mais generoso é que
se pode refletir acerca das experiências coletivamente partilhadas no espaço
geopolítico, filosófico, jurídico e cultural brasileiro.

No sentido gadameriano, o estabelecer um horizonte, uma perspectiva


de mundo, que possibilita o confronto – oposição do novo (presente, atual e
questionador) ao antigo (dominante, a tradição) – do que permanece oculto pelos
paradigmas dominantes. Como resistências a serem superadas. “O novo deixaria de
sê-lo se não tivesse que se afirmar contra alguma coisa” (GADAMER, 1999, p. 14).

Portanto, refletir sobre a situação do presente representa possibilidade de


ampliação de compreensão da realidade e ampliar o horizonte compreensivo.

Ter horizonte significa não estar limitado ao que há de mais próximo,


mas poder ver além disso. Aquele que tem horizonte sabe valorizar
corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro dele,
segundo padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A
elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do
horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam
frente à tradição (GADAMER, 2004, p. 452).

146
TÓPICO 2 | DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

Se estivermos atentos à vida cotidiana ao nosso redor não é difícil perceber


que tem sido muito diferente do que os iluministas e seus herdeiros haviam
previsto e planejado. Seguramente, por esta razão não faltaram pensadores que
nas três últimas décadas do século XX passaram a apontar para o novo fenômeno
multifacetado monoliticamente chamado de Crise da Modernidade e de sua
racionalidade justificadora.

Ao que parece, por força da tradição universalizante do ocidentalismo, há


uma tendência dominante de apresentar a Modernidade como linear e consensual,
ocultando suas contradições e limites, particularmente as visibilizadas no Direito
(LIXA, 2013, p. 286).

Possivelmente seja hora de buscarmos identificar novos paradigmas,


para tanto, é necessário adquirir o hábito de indignar-se e assumir uma atitude
filosófica em relação ao Direito e à realidade em que vivemos. A tarefa não é fácil
e obrigatoriamente devemos superar alguns obstáculos. David Sánchez Rubio
(2014) aponta quais são os difíceis obstáculos:

• Limites epistemológicos:
o a maneira como aprendemos e nos acostumamos a compreender o que é
Direito é assentada no paradigma da simplicidade. Isto é, considera o Direito
em si mesmo, sem diálogo, vínculo e relações com demais campos do saber;
o a redução do Direito ao Direito Estatal ignorando outras formas de expressão
jurídica (pluralismo jurídico), acreditando que Direito é somente norma ou
instituição, a pesada herança do positivismo jurídico;
o a separação entre Direito e prática, somente se preocupando com as categorias
teóricas, e os conceitos dogmáticos que devem ser “decorados” e reproduzidos;
o abstração do mundo jurídico do mundo da vida, e com isso abstraindo as
ideias, conceitos e teorias da realidade que nos leva a confundir ideia com a
própria realidade.
• Limites axiológicos:
o os valores e princípios éticos que norteiam o agir jurídico apenas são os
produzidos pelo Judiciário e/ou instrumentos estatais, sendo apenas uma
questão definida por “especialistas”. Vida, liberdade, dignidade, solidariedade
etc. são valoradas a partir de abstrações estranhas ao tempo e espaço real dos
seres humanos a que estão relacionados;
o separação entre saber científico e saber moral e ético. Com a pretensão de
eximir a ciência do Direito de responsabilidade social, se reduz o campo do
político negando e/ou ocultando que toda ação humana é uma ação política e
uma forma de exercício de poder, o que acaba por retirar dos seres humanos
sua capacidade de criação de valores.
o o mundo contemporâneo com sua cultura consumista e neoliberal acaba por
mercantilizar a própria vida e os seres humanos, fragmentando e reduzindo
as relações fraternas e solidárias.
• Limites culturais:
o juntamente com esse modo de vida contemporâneo e seu Direito regulador –
liberal e individualista – é imposta a homogeneização de todas as instâncias
da vida sob um único modo de vida e como se compreende essa vida.
147
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Indo nessa direção é preciso reconstruir um Direito crítico e comprometido


com a vida, através do critério e do princípio de produção, reprodução e
desenvolvimento da vida humana em todos os seus sentidos. No mundo
contemporâneo, pensar o Direito de forma crítica e inovadora é um desafio,
sobretudo no contexto latino-americano, onde coexistem distintas culturas e
visões de Direito.

Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2001):

Temos o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza

Temos o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos


descaracteriza.

São os novos desafios que nos convidam a mergulhar na preocupação


filosófica. Tarefa difícil, mas necessária.

Para encerrar, vamos lembrar uma estória contada pelo sociólogo Herbert
José de Sousa, o Betinho, que usava para explicar a tenacidade que tinha para levar
adiante seu trabalho quando ele mesmo já estava condenado, por enfermidade
incurável, à morte:

Diz a lenda que havia uma imensa floresta onde viviam milhares de
animais, aves e insetos. Certo dia uma enorme coluna de fumaça foi avistada ao
longe e, em pouco tempo, embaladas pelo vento, as chamas já eram visíveis por
uma das copas das árvores. Os animais, assustados diante da terrível ameaça de
morrerem queimados, fugiam o mais rápido que podiam, exceto um pequeno
beija-flor. Este passava zunindo como uma flecha indo veloz em direção ao
foco do incêndio e dava um voo quase rasante por uma das labaredas, em
seguida voltava ligeiro em direção a um pequeno lago que ficava no centro
da floresta. Incansável em sua tarefa e bastante ligeiro, ele chamou a atenção
de um elefante, que com suas orelhas imensas ouviu suas idas e vindas pelo
caminho, e curioso para saber por que o pequenino não procurava também
afastar-se do perigo como todos os outros animais, pediu-lhe gentilmente que o
escutasse, ao que ele prontamente atendeu, pairando no ar a pequena distância
do gigantesco curioso. 

– Meu amiguinho, notei que tem voado várias vezes ao local do incêndio, não
percebe o perigo que está correndo? Se retardar a sua fuga talvez não haja
mais tempo de salvar a si próprio! O que você está fazendo de tão importante?

– Tem razão, senhor elefante, há mesmo um grande perigo em meio àquelas


chamas, mas acredito que se eu conseguir levar um pouco de água em cada
voo que fizer do lago até lá, estarei fazendo a minha parte para evitar que
nossa mãe floresta seja destruída.

148
TÓPICO 2 | DIREITO CONTEMPORÂNEO – DESAFIOS E DILEMAS

Em menos de um segundo o enorme animal marchou rapidamente


atrás do beija-flor e, com sua vigorosa capacidade, acrescentou centenas de
litros d’água às pequenas gotinhas que ele lançava sobre as chamas.

Notando o esforço dos dois, em meio ao vapor que subia vitorioso dentre
alguns troncos carbonizados, outros animais lançaram-se ao lago formando
um imenso exército de combate ao fogo.

Quando a noite chegou, os animais da floresta, exaustos pela dura


batalha e um pouco chamuscados pelas brasas e chamas que lhes fustigaram,
sentaram-se sobre a relva que duramente protegeram e contemplaram um luar
como nunca antes haviam notado.
FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=PlP-Xt4LLNg>. Acesso em: 20 ago. 2016.

Podemos até nos desanimarmos e ficarmos exaustos por filosofar, mas


vamos aprender a ver o mundo do Direito de uma maneira muito diferente da
que estamos acostumados. Isso vale muito a pena!

LEITURA COMPLEMENTAR

O JUIZ E A JURISPRUDÊNCIA – UM DESABAFO CRÍTICO

Amílton Bueno de Carvalho

O novo juiz (é possível?)

Marcado pelo meu local de fala (daí porque suspeito), entendo que o papel
do juiz é muito forte como agente criador da jurisprudência, evidente que sem
descaracterizar a importância do provocador, detonador, balizador, de todo o
processo de onde emerge o ato decisório: o advogado e o promotor de justiça. Daí
porque pretendo demonstrar como vislumbro este pequeno burguês com sede de
poder que em determinado momento de sua vida ingressa na “casta da magistratura”. 

Fique claro: as eventuais críticas à magistratura representam, antes de


mais nada e acima de tudo, profunda declaração de amor a ela: acredito que o
juiz pode e deve ser agente do processo de democratização da sociedade e com
potencialidade muito maior do que os próprios pensadores percebem. É amor e
não ódio (ou “amoródio”, como diria um psicanalista). É respeito e não desdém,
é confiança na dignidade da função! 

149
UNIDADE 3 | FILOSOFIA MODERNA DO DIREITO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

Tenho que para que o Juiz possa se completar tanto no plano individual,
quanto como agente social, há requisitos que me parecem indispensáveis e que
têm sido omitidos tanto por aqueles que olham a magistratura de fora, quanto por
aqueles que pretendem ver a magistratura a partir de seu próprio local de fala. 

Os que miram desde fora – como regra – dão menor importância ao juiz.
É tido como mero aplicador da lei, ou instrumento do poder dos doutrinadores
que necessitam, para provar suas “verdades”, que os magistrados as cumpram,
ou, finalmente (e agora dentro do Poder Judiciário), como cumpridores de
ordens do Tribunal, via jurisprudência. Enfim, instrumento de ponta do dono da
lei ou do dono do saber ou da hierarquia do Poder. Por outro lado, os próprios
críticos não têm dado real importância à atividade específica do julgador: o juiz
é conservador, não crítico, alienado. 

Outrossim, e n’outra ponta, quando o julgador fala de si mesmo emerge


discurso efetivamente alienado dando a si próprio ares de divindade. O exemplo
palmar desta ótica (aqui manifestada com todo o respeito) é a “Prece de um Juiz”, do
magistrado aposentado João Alfredo Medeiros Vieira, vertido para quinze línguas.
E assim começa a prece: “Senhor! Eu sou o único ser na terra a quem tu deste uma
parcela da tua onipotência: o poder de condenar ou absolver meus semelhantes.
Diante de mim as pessoas se inclinam; à minha voz acorrem, à minha palavra
obedecem, ao meu mandado se entregam… Ao meu aceno as portas das prisões
se fecham… Quão pesado e terrível é o fardo que puseste em meus ombros!… E
quando um dia, finalmente, eu sucumbir e já então como réu comparecer à Tua
Augusta Presença para o último juízo, olha compassivo para mim. Dita, senhor, a
tua sentença. Julga‑me como um Deus. Eu julguei como homem”.
 
O texto explica‑se por si só. E o que é pior: nós (juízes e povo) acreditamos
na ideia do mito juiz‑divindade. Não nos ocorre sequer a possibilidade de não
existir Deus (como ficaria o sentido da prece?), ou de que o poder de condenar
ou absolver passa muito mais pelo que quer a autoridade policial; que as pessoas
inclinam‑se perante o juiz por receio e não por respeito (aliás, nós sabemos que
nem o advogado gosta de juiz: lisonjeia‑o apenas para aguçar sua onipotência);
que as portas da prisão dependem mais da correlação de forças que ocorre no
presídio ou da boa ou má vontade do carcereiro; que o fardo é pesado (?) mas
nem tanto como o daquele que passa fome!
FONTE: <https://ensaiosjuridicos.wordpress.com/2013/04/11/o-juiz-e-a-jurisprudencia-umdesabafo
-critico-amilton-bueno-de-carvalho/>. Acesso em: 20 ago. 2016.

150
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você viu que:

• O contexto político, social e econômico de fins do século XX não permite mais


a sustentação do discurso tradicional do Direito brasileiro, em particular,
havendo uma reorientação no sentido de constitucionalizar os pressupostos e
práticas jurídicas.

• O marco teórico e político exige uma redefinição dos pressupostos ideológicos


e hermenêuticos no sentido de busca de novos fundamentos filosóficos e
éticos do Direito, representando, neste momento, a Filosofia Crítica Latino-
Americana como uma alternativa rica e inovadora.

• Assumir um posicionamento filosófico crítico e libertador no sentido de


orientar nossas práticas para a emancipação humana e social implica uma
permanente atitude de inquietação e desejo de transformação desde uma
formação acadêmica consistente e de profundo compromisso.

151
AUTOATIVIDADE

Considere a figura a seguir:

FONTE: <https://blogdotarso.com/2013/04/03/charge-igualdade-no-liberalismo-versus-
constituicao-social-e-democratica-de-direito/>. Acesso em: 20 ago. 2016.

Com base nos conhecimentos abordados neste tópico, como você


interpreta o conceito de igualdade e justiça representado na charge acima?

152
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