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III.

EXPOSIÇÃO ANALÍTICA DE UM CASO CONCRETO

Nesta parte do estudo será apresentada uma decisão judicial de


segunda instância publicada recentemente (em agosto de 2019) para, a partir
dela, fazer uma análise jurídica das implicações da responsabilidade civil no
âmbito do direito à saúde no Brasil.

O Acórdão é de um processo da Comarca de Novo Hamburgo, da


Relatoria do Desembargador Dr. Eduardo Kraemer da Nona Câmara Cível de
Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que
decidiu um caso bastante complexo de diagnóstico e omissão médica a um
paciente, causando-lhe inúmeros danos, com efeitos ricochetes à sua
parentalidade.

Apelação Cível Nº 70080045503 (Nº CNJ: 0369762-93.2018.8.21.7000).

III.I – RESUMO DO ACÓRDÃO

Foram partes litigantes do processo, como apelantes e como apelados,


as seguintes: 1. Fundação de Saúde Pública de Novo Hamburgo (FSNH); 2.
Município de Novo Hamburgo; 3. Diego Teixeira de Oliveira (a vítima); 4.
Adelino Gonçalves de Oliveira e Graci Maria Teixeira de Oliveira (pais da
vítima)1.

Conforme se infere do Acórdão, a ação proposta pelos autores decorreu


da acusação de negligência, por parte da equipe de profissionais que atendiam
em postos de saúde e hospital na cidade de Novo Hamburgo, na demora
excessiva em diagnosticar apendicite. Somente mais tarde, devido às inúmeras
complicações, o atendimento adequado foi efetivado, com realização de
cirurgia de emergência, quando o autor procurou médicos de forma privada em
outro hospital.

1
Inicialmente, isto é, em sede de primeiro grau, as partes haviam, ainda, aposto como ré o Estado do
Rio Grande do Sul, cuja participação no polo passivo foi excluída em sentença por ilegitimidade.
Assim resumiu o caso o EE. Des. Relator com base nas passagens –
transcrevidas na literalidade no Acórdão – das perícias realizadas nos
prontuários médico-hospitalares, os quais chegaram a receber o encômio de
“verdadeiro libelo demonstrativo dos equívocos médicos”:

“O autor consultou e num primeiro momento, até pelas eventuais


dificuldades em efetuar diagnósticos médicos, a hipótese médica foi
de intoxicação gástrica. A primeira hipótese de diagnóstico ocorreu
em 07 de abril.

As dores persistiram e o autor compareceu ao atendimento médico no


dia 08 de abril. 09 de abril, no dia 10 de abril, em duas oportunidades,
e no dia 10 de abril.

Necessário salientar que na primeira oportunidade o paciente


apresentava quadro febril. Obviamente nas vezes seguintes o quadro
febril ficou mascarado, eis que lhe ministraram remédios que
manifestamente controlam a elevação da temperatura.

Não obstante a medicação voltou a atendimento médico em 12 de


abril com dor e febre. Apenas neste momento foi solicitada tomografia
computadorizada e RX. O médico que lhe atendeu, provavelmente
sem o laudo da tomografia computadorizada, e apenas com
afirmação verbal do radiologista, conforme se depreende do
documento de fls.86/v, asseverou a que a tomografia descartou o
quadro de apendicite. A afirmação sem fundamento com o laudo de
fl.97.

É o primeiro equívoco de interpretação da tomografia


computadorizada, eis que o laudo revela provável abscesso, com
processo inflamatório e apendicite complicada.

Revela-se lamentável a conclusão.

Os erros e não acertos não se limitam a tal circunstância.

O autor DIEGO voltou a consultar no dia 14 de abril de 2013 com um


cirurgião.

Inacreditável o procedimento do médico cirurgião.

O paciente realizou os seguintes exames:

- tomografia computadorizada com laudo indicando apendicite


complicada.

- hemograma com presença de granulações tóxicas nos neutrófilos.

Não obstante a presença de tais informações o médico cirurgião


continuou a ter como hipótese de diagnóstico GASTROENTERITE,
fls.86/v.

Como o quadro persistiu o autor procurou médico, no sistema privado


de saúde, e face à gravidade, internou no HOSPITAL REGINA no dia
15 de abril de 2013, às 17 horas e 13 minutos e já às 19 horas e 10
minutos estava no bloco cirúrgico para realizar o procedimento
médico necessário.

A prova produzida é cristalina a indicar graves erros na condução do


paciente.

A ausência de adequado diagnóstico colocou em risco a vida do autor


e trouxe ao mesmo graves complicações.

Em decorrência do tardio diagnóstico do quadro de apendicite ocorreu


a necessidade de efetuar ILEOSTOMIA com colocação de bolsa de
colostomia.

A negligência e a imperícia dos profissionais médicos que atenderam


a DIEGO junto a rede pública apresenta elevado grau.”

No final, acordaram por unanimidade em negar provimento ao apelo da


Fundação de Saúde Pública de Novo Hamburgo, dar provimento ao apelo do
Município de Novo Hamburgo e dar provimento ao recurso adesivo.
Confirmaram a decisão de primeira instância quanto às condenações e ainda,
com o provimento do recurso adesivo, acrescentaram a condenação por danos
reflexos aos genitores no valor de R$ 5.000,00 para cada.

A condenação, à época, havia estabelecido à título de danos materiais o


valor de R$ 17.335,37; à título de danos morais à vítima (Diego) o valor de R$
10.00,00; e, por fim, à título de danos estéticos, mais o valor de R$ 10.000,00.

As demais implicações condenatórias, como sucumbências e custas


judiciais, ou como o arbitramento dos valores condenatórios, não serão
expostas por não serem objeto de apreciação do presente.
III.II – ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE

A Corte reconheceu a preliminar de ilegitimidade passiva do Município


de Passo Fundo e a excluiu da lide por entender ter o fato ocorrido nas
dependências administradas por entidade com personalidade jurídica diversa,
no caso, a Fundação de Saúde Pública de Novo Hamburgo – FSNH.

Assim dispôs:

“Examino a segunda preliminar que diz com a ilegitimidade passiva


do Município de Novo Hamburgo em decorrência do ilícito ter ocorrido
nas dependências de fundação municipal (FUNDAÇAO DE SAÚDE
PÚBLICA DE NOVO HAMBURGO).

Não resta dúvida que a eventual falha foi produzida pela FUNDAÇAÕ
DE SAÚDE PÚBLICA DE NOVO HAMBURGO.

A FUNDAÇAO DE SAUDE PÚBLICA foi criada pela lei municipal


469/01.

É evidente que existem duas personalidades jurídicas distintas – o


Município e a Fundação.

Os eventuais atos ilícitos cometidos pela Fundação não podem


ensejar solidariedade direta do Município, justamente pela
personalidade jurídica distinta.

Responde em primeiro lugar a Fundação. A personalidade jurídica


própria, a autonomia gerencial e orçamentária acarreta seu dever de
responder pelos danos que eventualmente causar a terceiros. A
responsabilidade do Município é subsidiária e apenas pode ocorrer
nas hipóteses de extinção ou absorção do patrimônio – não é a
hipótese.

Assim estou acolhendo a preliminar de ilegitimidade do Município e


estou julgando extinto o processo em relação à municipalidade de
Novo Hamburgo.”

Na mesma esteira o nobre Des. Presidente Tasso Cauby Soares


Delabary, que assim dispôs:
“Inicialmente, comungo do entendimento de que não é o caso do
município figurar no polo passivo da demanda, haja vista, conforme
apropriadamente referido no voto, o fato (erro médico) que constitui a
causa do pedido, foi produzido nas dependências e por prepostos do
hospital demandado, cuja personalidade jurídica é distinta do
município, constituindo-se em uma autarquia, com absoluta
autonomia. Por essa razão, não existe liame jurídico que determine a
participação do município como demandado na presente ação.”

Portanto, a condenação se deu em relação a Fundação e não ao


Município, revelando assim a aplicação correta da legislação e da doutrina, já
que, ainda que esta possa ser mantenedora, aquela possui sua gerência
administrativa e responsabilidade própria. Nos dizeres do relator: “a prova
produzida se revela suficiente para ensejar a responsabilidade da FUNDAÇÃO
ré.”

Houve também a inovação, com relação a sentença de primeiro grau,


relativa a condenação da ré FSNH ao pagamento de indenização em danos
morais por ricochete aos autores genitores da vítima paciente.

Assim dispôs o relator:

“A prova produzida, não resta dúvida, acarretou graves reflexos na


vida de ADELINO e GRACI.

A sentença não admitiu a condenação por que entendeu os reflexos


ocorridos se encontram dentro de uma normalidade da vida em
família.

Imagino que os fatos constantes nos autos permitam uma reflexão


diversa.

Os elementos probatórios constantes nos autos revelam que os


autores, incluindo a vítima DIEGO e seus pais, não pessoas de
posses reduzidas.

Os valores dispendidos, por obvio, apresentam um significado diverso


de eventuais valores solvidos por alguém em uma situação
econômica mais privilegiada.

É evidente que tais pagamentos – tratamento na esfera privada –


revela sacrifício e perda da utilização destes valores para de alguma
forma minimizar a sofrida existência.

Em segundo os cuidados que os genitores se deparam com o seu


filho não são normais.

A substituição da bolsa de COLOSTOMIA revela o grau de


envolvimento dos genitores com o filho.
Revela o grau de sofrimento que os pais se viram envolvidos.

Entendo perfeitamente caracterizado os danos reflexos em relação


aos autores ADELINO GONÇALVES OLIVEIRA e GRACI MARIA
TEIXEIRA DE OLIVEIRA.”

Esse tipo de dano – dano reflexo – é particularmente interessante ao


revelar a profundidade com a qual a responsabilização civil por danos pode
causar, em especial a responsabilização civil por danos médicos.

Particularmente por último, importa notar que nenhum dos integrantes do


corpo técnico do hospital chegou a ser acionado. Apesar de tanto a sentença
quanto o acórdão terem reconhecido graves erros médicos no tratamento do
paciente, por negligência na análise dos exames e dos diagnósticos, nenhum
deles sequer foi chamado à responsabilidade, seja pelo acionamento
propriamente dito, seja pela denunciação à lide pelo direito de regresso. Não
há deliberação nem sobre a ligação do médico para com a fundação!

Veja-se o que dispôs o Des. Presidente Delabary em seu voto:

“Veja-se, inclusive, que houve leitura incompleta do laudo de exame,


onde restou visível a indicação de processo infeccioso, o que permitia
a revisão do diagnóstico para identificação de distúrbio no apêndice e
modificação do tratamento o que, contudo, não foi adotado pelo
esculápio, ocasionando todo o agravamento do quadro de saúde do
paciente, que somente foi revertido pelo atendimento em outro
hospital, onde atendido, de pronto, houve a identificação do quadro
de abdômen agudo e de septicemia devido a apendicite supurada,
determinando a intervenção cirúrgica através de campo aberto, pois
inviabilizado o procedimento por videolaparoscopia, face ao evoluído
quadro de septicemia.

Destarte, inafastável o reconhecimento de responsabilidade do


nosocômio demandado, cujos prepostos, por imperícia e negligencia,
permitiram que o paciente, ora autor, sofresse de grave risco de
morte, por tardarem em efetuar o correto diagnóstico de processo de
apendicite.”

Há uma clara identificação de erro por parte do esculápio, como


preposto do nosocômio que agiu com culpa por imperícia e negligência
(acrescentou ainda a imperícia). Contudo, não sabe-se porque as partes não
acionaram ou denunciaram a lide.

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