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“Aulas no século XXI são um escândalo.

Com aulas ninguém aprende”


Entrevista a José Pacheco Fonte: Observador 10 Abril 2016

in http://observador.pt/especiais/jose-pacheco-aulas-no-seculo-xxi-sao-um-escandalo-aulas-ninguem-aprende/

José Pacheco tem 64 anos e é mestre em Educação da Criança, pela Universidade do Porto.
Chegou a fazer parte do Conselho Nacional de Educação e ganhou prémios pelo projeto que
coordenou na Escola da Ponte. Há 10 anos decidiu mudar-se e rumou ao Brasil, onde é
responsável por mais de 100 projetos para um novo modelo de ensino. No ano em que a Escola
da Ponte faz 40 anos, o Observador pôs-se à conversa com o seu principal fundador.

Crítico do modelo tradicional de ensino, que afirma ser do século XIX, o professor defende a
aprendizagem numa escola sem aulas, nem turmas, nem ciclos. Uma mudança radical na forma
como vemos a escola pública? Sim. Mas possível de implementar, e com sucesso, garante.

Porque é que há 40 anos sentiu necessidade de mudar a forma como dava aulas? O que o
levou a iniciar o projeto “Fazer a Ponte”?

Porque me vi incompetente e antiético. Incompetente porque não conseguia ensinar todas as


crianças e muitas reprovavam, e antiético porque reconhecia que não ensinava todos e
continuava a trabalhar do mesmo modo. E quando encontrei duas professoras que faziam a
mesma pergunta que eu — “Porque é que damos a aula tão bem dada e há alunos que não
aprendem?” — descobrimos a resposta: se nós dávamos as aulas e eles não aprendiam, eles não
aprendiam porque nós dávamos a aula. É isso mesmo. Para nós foi perder o chão. Nós só
sabíamos dar aula. Por isso não fui eu que fiz a Ponte, foi muita gente. Talvez eu fosse um
despoletador do projeto. E o que fizemos foi algo intuitivo e amoroso: continuámos a dar aulas,
porque criança não é cobaia, mas simultaneamente introduzimos nas nossas práticas, em equipa,
algumas metodologias, técnicas, espaços de convivência, que foram dando forma a um novo
projeto.

Na Escola da Ponte não há turmas, nem testes

A Escola Básica da Ponte, no concelho de Santo Tirso, marca a diferença no ensino público
português há 40 anos. Nesta escola não há ciclos, nem turmas, nem testes. A escola organiza-se
em núcleos de projeto e são os alunos, em conjunto com os “tutores”, que definem,
quinzenalmente, os objetivos de aprendizagem e vão sendo avaliados à medida que vão dizendo
que “já sabem” aquilo a que se propuseram. Na última avaliação externa, levada a cabo pela
Inspeção-Geral da Educação, a escola foi avaliada com Muito Bom em todos os parâmetros.

Um projeto mais baseado na autonomia?

Na autonomia, na responsabilidade e na solidariedade, que foram os três valores matriciais do


projeto. As escolas são as pessoas e as pessoas são os seus valores. A escola não são edifícios,
são projetos que partem de valores e de princípios e nós fomos indo ao encontro de uma
concretização desses valores.

E as mudanças começaram logo a apresentar resultados?

Houve uma melhoria cognitiva, mas nós fomos além. Nós fizemos pela primeira vez aquilo que
hoje se chama de educação integral. Compreendemos que teríamos de mexer não só no nível
cognitivo, mas também no domínio atitudinal, sócio moral, ético, estético, emocional, espiritual.

Mas a forma de ensinar mudou repentinamente?

Não. De início dávamos aula durante a maior parte do tempo, porque era aquilo que nos tinham
ensinado a fazer, mas fomos introduzindo alterações. Passámos de uma cultura de solidão para
uma cultura de equipa, de corresponsabilização. Essa reelaboração da nossa cultura pessoal e
profissional custou tempo e sofrimento. Decidimos habitar um mesmo espaço, derrubar paredes,
juntar alunos. Compreendemos que sozinhos não poderíamos ensinar tudo a todos. Mas se
estivéssemos em equipa, com um projeto, e autonomizássemos o ato de aprender, poderíamos
responder efetivamente às necessidades de cada jovem. Ao fim de oito anos estava já a escola
toda com um modelo diferente. E nós descobrimos uma coisa fundamental, que é que um
professor não ensina aquilo que diz, ele transmite aquilo que é. Um professor tem que ser um
tutor e um mediador de aprendizagens. E a aprendizagem acontece quando há um vínculo afetivo
entre quem supostamente ensina e quem supostamente aprende.

"Não faz sentido alunos do século XXI terem professores do século XX, com propostas teóricas
do século XIX, da Revolução Industrial."

40 anos depois, como está a Ponte? E como está o ensino em Portugal?

Tenho estado ausente e sinceramente posso estar muito desfasado da realidade portuguesa, mas
tenho os meus netos e o meu filho que é professor e vou tendo retorno. Tenho tido algumas
informações que me levam a crer que todas as engenharias curriculares feitas até hoje, pouco ou
nada fizeram mudar a escola. Todos já perceberam que o modo como trabalham não ensina todos
e que isso contraria aquilo que é o direito à educação e que é um dever do Estado. As escolas têm
excelentes professores, mas a trabalhar do modo errado. Não faz sentido alunos do século XXI
terem professores do século XX, com propostas teóricas do século XIX, da Revolução Industrial.
A grande questão é que as escolas têm sido geridas por burocratas e não por pedagogos e as
políticas públicas têm sido desastrosas: mais exames, mais alunos por turma.

Quer dizer que não concorda com os exames.

Mais exames não vão melhorar o sistema porque não é a preocupação com o termómetro que faz
baixar a temperatura. Mais exames para quê? Os exames não avaliam nada. O teste é o
instrumento de avaliação mais falível que existe. Conceber itens de teste, garantir fidelidade e
tudo mais é um exercício extremamente rigoroso, assim como assegurar que as condições são as
mesmas para todos quando se aplica o teste. E corrigir o teste também introduz uma
subjetividade enorme. Além disso, esses instrumentos de avaliação apenas “provam” a
capacidade de acumulação cognitiva, de armazenamento de informação em memória de curto
prazo, para debitar no exame e esquecer.

Então como se deve avaliar as aprendizagens dos alunos?

Através de uma avaliação formativa contínua e sistemática, que é o que não se faz nas escolas.
Nas escolas aplica-se teste e dá-se uma nota sem saber o que se faz. Há quem confunda avaliação
com classificação e dê a nota a partir dos resultados dos testes. Eu sei que se alega considerar
uma percentagem da nota dada a partir da avaliação de atitudes. Porém, não se apresenta os
instrumentos de avaliação, que permitam medir atitudes como a autonomia, a criatividade. Diria
que essa avaliação é feita a ‘olhómetro’.

E era de esperar que o ensino público português, passados estes 40 anos, mantivesse um
modelo tradicional de aulas?

Eu acredito nos professores, na escola, mas não com as medidas político-educativas que são
tomadas. Injeta-se na escola cada vez mais objetivos por pressão corporativa. Injeta-se nas
escolas áreas que não faz sentido algum. Por exemplo, criar uma aula de área de projeto? Projeto
é o projeto da escola, é o projeto educativo. Educação para a cidadania? Nós não ensinamos para
a cidadania, nós educamos na cidadania. Cidadania não é uma hora por semana, é todo o tempo
de escola. Andamos a brincar com coisas sérias. Está tudo errado.

E porque ninguém muda? A mudança não passa também pelos professores?

Os professores têm uma cultura em tudo contrária à mudança. Eles são ótimas pessoas,
maravilhosas. Repare, professor é a única profissão em que o estágio é feito antes de tirar o
curso. Fazem 12 anos a ouvir aulas, entram na faculdade e ouvem aulas, e vão dar aulas. Podem
até ouvir falar dos Piagets da vida, mas os estágios são feitos em escolas tradicionais, onde estão
excelentes professores tradicionais que trabalham no paradigma do século XIX ou XVIII. Este
modelo de escola, desde o século XIX, que subdivide a escola em ciclos, em anos, em turmas,
em horário padrão, isso é cartesianismo. Aulas? Aulas no século XXI são um escândalo! Em
aulas ninguém aprende! Eu aceito quem conteste o que eu digo, mas ninguém contesta porque é
uma verdade.

"A aprendizagem acontece quando há um vínculo afetivo entre quem supostamente ensina e
quem supostamente aprende."

Mas é possível alunos de idades diferentes, todos juntos, aprenderem, na mesma sala, o que
é suposto para a sua idade?

Porque não? Ninguém aprende com quem sabe a mesma coisa, ninguém aprende com quem tem
a mesma idade. Eu falo daquilo que eu faço [no Brasil] e que tem excelentes resultados. Estou a
falar de projetos que produzem excelência académica e inclusão social e onde não há
organização por idades. Onde as escolas não têm casa de banho do aluno separada de casa de
banho do professor, onde os auxiliares de ação educativa ensinam a limpar aqueles que sujam,
onde a educação acontece. Onde não há aulas, nem turmas, nem anos, que são dispositivos sem
sentido nenhum, sem fundamentação científica. Concebeu-se uma nova construção social de
aprendizagem onde todos aprendem e são felizes. Isso é possível. Eu provo isso em mais de 100
projetos no Brasil e mais meia dúzia em Portugal.

E como vê a figura do chumbo?

A reprovação é a prova de que realmente a escola não funciona como deveria. Muitas vezes se
diz que os professores são exigentes quando reprovam. A pergunta que eu faço é: se a escola
melhor é a que mais alunos reprova, o melhor hospital é o que mais doentes mata? Quando as
pessoas nem sequer refletem sobre isso… Quanto às classes de apoio, planos de recuperação,
isso é tudo um enfeite que não resulta, porque aquilo que não se ensina em oito meses, não é em
um mês de plano com mais do mesmo que se vai ensinar. Não é com mais horas de aula que se
vai ensinar mais, é com outro tipo de aprendizagem.

Mas se o aluno não conseguir atingir as metas de aprendizagem… como se faz?

Compreendo a insistência. Nas escolas que, infelizmente, ainda vamos tendo, há alunos que não
conseguem atingir metas. E é preciso acrescentar aulas de recuperação, “explicações”, “planos
educativos individuais” e outros paliativos. Mas, nos projetos que acompanho, todos os alunos
alcançam as metas. Porque trabalhamos a montante, para não ter de remediar a jusante;
investimos na prevenção, para não tentar remediar depois. Nesses projetos, não há “alunos que
não conseguem atingir metas”. Portanto, nada é preciso fazer, a não ser desenvolver um trabalho
escolar coerente com a Lei de Bases. Em cada escola a seu modo, não há receitas.

"Mais exames não vão melhorar o sistema, porque não é a preocupação com o termómetro que
faz baixar a temperatura."

Mas concorda que é difícil mudar este paradigma.

Se fosse fácil já tinha mudado. É difícil, é difícil…

Então como se pode fazer esta mudança?

Eu defendo sempre múltiplos caminhos. Um deles é que nós deveremos, nas escolas que
despertam para a necessidade de mudar, trabalhar com aqueles professores que tomaram
consciência e com coragem, lentamente, respeitando a criança, começar a desenvolver o projeto
educativo da escola. Porque os projetos educativos das escolas não são cumpridos. E então esse
núcleo de projeto, respeitando quem não queira, tem de avançar com autonomia pedagógica.

Aqui e ali têm sido anunciados alguns projetos inovadores, como as salas de aula do futuro.
Isto pode ser o início da mudança?

Não, de modo algum. A aula híbrida, como vejo por aí, é aula. Não tem de haver aula. E as novas
tecnologias podem ser importantes, se não forem mitigar o modelo de escola, enfeitar as aulas
com quadros interativos ou um portátil por aluno. Quando um aluno está com acesso à
informação na Internet ele não aprende, ele precisa da intervenção do adulto, do mediador da
aprendizagem, que o ajude a passar da informação caótica para o conhecimento e do
conhecimento para uma ação e isso chama-se projeto. E ao passar do conhecimento para a ação
desenvolve competências. Isso não acontece numa aula.

Mas nessas salas o professor está lá apenas a guiar o grupo de alunos que tem de buscar as
respostas.

Perante o quê? Um projeto? E lança perguntas significativas para os alunos? A aprendizagem


tem de partir de necessidades, desejos, sonhos, algo concreto, que eu sinto que a comunidade
precisa. É a partir dessa necessidade, com a introdução de projetos de pesquisa e roteiros de
estudo, que as coisas acontecem.

"A pergunta que eu faço é: se a escola melhor é a que mais alunos reprova, o melhor hospital é o
que mais doentes mata?"

Pode-me dar um exemplo prático de como isto pode funcionar?

Há um jovem que se queixa que lhe põem o lixo à porta na sua rua e ele percebe que tem de
acabar com essa situação. Ele junta-se com outros jovens e vai fazer um projeto para acabar com
a lixeira. Ele vai ter de fazer roteiros de pesquisa para perceber porque é que há lixo, o que é o
lixo, o que é isso de recolha seletiva de lixo. Ele vai ter de reunir muitos objetivos do currículo
nacional, de ciências, matemática, estudo do meio, português, para resolver. Mas não ensinamos
tudo assim. Há objetivos que é impossível incluir nesses projetos que partem das necessidades,
então aí nós fazemos os projetos paralelos, alternativos, porque não podemos permitir que a
criança não aprenda todos os objetivos do programa.

Esses projetos funcionam de acordo com o modelo tradicional de aulas?

Não! Vou perguntar-lhe e assim pergunto a muita gente: sabe fazer a raiz quadrada? Já não se
lembra! Sabe qual a fórmula para calcular o volume da esfera? Não, pois não? Eu posso
continuar a perguntar-lhe coisas do ensino básico e você não sabe. E agora pergunto: não teve
aulas sobre isso? Aprendeu? Não. Numa aula não se aprende nada. Aprende-se no contexto de
projetos, com roteiros de pesquisa, com mediação pedagógica devidamente feita e com avaliação
formativa contínua e sistemática, preferencialmente com portefólios digitais de avaliação. É isto.

E é possível fazer diferente e cumprir com os programas, currículos e alcançar metas de


aprendizagem?

Só é possível cumprir com tudo isso fazendo diferente, porque do modo que a escola funciona o
currículo não é cumprido. Os projetos não são cumpridos.

Que conselho deixa ao ministro da Educação?

Não sei. Mas posso propor que ele reúna com gente que já faz diferente para melhor cá ou se
quiser ir lá fora vai ver que lá fora acontecem coisas muito boas em centenas de lugares, em
muitos países. Esqueçam a Finlândia e o Norte da Europa.

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