Você está na página 1de 17

TEORIA DO PODER CONSTITUINTE

Razões do estudo da Teoria do Poder Constituinte:

1) Justificar a legitimidade do ordenamento jurídico, a partir da Constituição e


do seu "criador"

HERMAN HELLER: "As leis suscitam problemas de validade; a Constituição suscita


problemas de legitimidade". Partindo da figura da pirâmide jurídica de Kelsen (e
Merkl), uma Constituição não se fundamenta, juridicamente, em nenhuma norma
anterior, posto ser a norma primária do sistema jurídico. Daí que, nesse caso
específico, o que cabe é discutir quem está apto a redigi-la, quem está apto a fundar
a base do sistema jurídico. Em suma, quem possui legitimidade para tanto.

CANOTILHO: "O problema central de uma constituição reconduz-se à questão


nuclear da teoria do Estado e da filosofia do direito: a <<legitimação-legitimidade>>
de uma ordem constitucional no duplo sentido de justificação explicação de uma
ordem de domínio (estrutura de domínio) e de fundamentação última da ordem
normativa. O problema da legitimação não consiste só num debate filósofo-jurídico
sobre a fundamentação última das normas, mas também na justificação da existência
de um <<poder>> ou <<domínio>> sobre os homens e aceitação desse domínio por
parte deles. O aprofundamento do primeiro sentido, isto é, a <<justificação>> ou
<<crítica>> da <<legitimidade interna>> do direito (e, portanto, também do Direito
Constitucional) impor-se-á como uma necessidade jurídico-material quando se quer
defender o <<direito>> contra instrumentalizações arbitrárias e se tenta assegurar-
se-lhe um <<apoio>> ou <<fundamento específico>>, fonte da sua dignidade e
garante das suas pretensões" (“Constituição Dirigente”, p. 14/15).

2) Justificar os fatos que precedem uma ruptura constitucional:

2.1. Substituição de uma Constituição por outra, com alterações estruturais em um


sistema jurídico (revoluções, em sentido amplo), bem como, a mudança dos valores
básicos que fundam e dão sentido ao sistema jurídico;

2.2. Ou, simplesmente, a mudança da forma constitucional, sem a modificação dos


valores anteriores (substituição de um texto por outro texto).

PROBLEMA DA JUSTIFICAÇÃO DO ORDENAMENTO

NATUREZA DO PODER CONSTITUINTE

1) Posição positivista/normativista - É problema da política/poder, não do Direito.


(O "dever ser" não pode derivar do "ser"; a norma deriva de uma norma hipotética ou
pressuposta). O Direito preocupa-se com sua validade e, não, com sua legitimidade.
Daí ser inútil, e matéria não-jurídica, o problema do poder constituinte. Tal teoria deve
ser discutida pela Ciência Política, por exemplo. Para exemplo, foi descoberto um
parecer de Hans Kelsen a respeito da validade (porque não democrática e outorgada)
da Constituição ditatorial de Vargas, de 1937. O mestre de Viena não tinha dúvidas:
a Constituição, apesar de ilegítima, era válida e encontrava-se em vigor.

2) Posição não-positivista - A teoria do Poder Constituinte fundamenta o problema


da legitimidade do Direito, posto a partir da Constituição, que é obra daquele que
representa a Nação ou Povo. Diz Paulo Bonavides: "A teoria do poder constituinte é
basicamente uma teoria da legitimidade do Poder. (...) Poder constituinte sempre
houve em toda sociedade política (Notar que o autor alude ao poder constituinte da
“constituição institucional"). Uma teoria desse poder para legitimá-lo, numa de suas
formas ou variantes, só veio a existir desde o século XVIII, por obra da sua reflexão
iluminista, da filosofia do contrato social, do pensamento mecanicista anti-historicista
e antiautoritário do racionalismo francês, com sua concepção de sociedade” (p. 120).

TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE

A discussão sobre a titularidade do poder na comunidade é antiga, sendo já existente,


por exemplo:

a) nos diálogos de Platão (julgamento de Sócrates);

b) nos autores cristãos, ao fundamentar que todo poder temporal tem origem em um
mandamento de Deus (Santo Agostinho; Guilherme de Ockham; S. Tomás Aquino):
"Non est enim potestas nisi a Deo” (apud Carl Schmitt, “Teoria da Constituição”, p.
89);

c) na adaptação, pelos absolutistas, das teorias cristãs: “teoria do direito divino dos
reis”;

No Constitucionalismo Liberal (“O que é o Terceiro Estado?" do padre francês


Emmanuel Joseph Sieyès, 1789), a titularidade do poder é retirada de Deus e dada
ao “povo" ou “nação” (inexistia, ainda, uma separação conceitual entre esses dois
vocábulos). Em Sieyès, encontra-se a origem da "teoria do poder constituinte".
Resumidamente, em sua obra, há três grandes partes, com três questões colocadas:
1) "O que é o terceiro estado? - Tudo" - Formação da Nação ("contrato social")
- explicação não-teológica do fenômeno do poder no Estado/Nação
(secularização): "A nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua
vontade é sempre legal, é a própria lei" (p. 117); "a Constituição não procede
dos poderes constituídos, (...) mas de um poder específico que é o Poder
Constituinte. Este poder reside na nação que é a "origem de tudo"
2) "O que tem sido o terceiro estado? - Nada" - Formação da Constituinte -
"Se precisamos de Constituição, devemos fazê-la. Só a nação tem o direito de
fazê-la (p. 113); "Em cada parte, a Constituição não é a obra do poder
constituído, mas do poder constituinte" (pág. 117). Entra, aqui, a "Assembleia
Nacional Constituinte": não é necessário que todos os membros da Nação ou
do Povo (Sieyès afirma que esses dois termos devem ser sinônimos), (...)
exerçam individualmente o Poder Constituinte; podem dar sua confiança a
representantes que se reuniram em assembleia com esse único objetivo, sem
competências para exercer algum dos poderes constituídos. Basta a maioria
para expressar a “vontade geral” e, portanto, para que surja a Constituição.
3) "O que quer o terceiro estado? – Ser alguma coisa" - Constituição dos
“poderes constituídos" - Desse modo, todas as partes do governo dependem
em última análise da nação” (p. 117/118); "A nação se forma unicamente pelo
direito natural. O governo, ao contrário, só se regula pelo direito positivo” (p.
118);

A quem “pertence" o poder constituinte?


Paulo Bonavides: “Alguns juristas veem no poder constituinte "o problema
fundamental e primordial do Direito Constitucional", mas esse problema, após os
incisivos debates teóricos do século XVIII e XIX, permanecia de último um tanto
deslembrado dos tratadistas do direito público. (...) O poder constituinte tanto poderá
exprimir do ponto de vista sociológico um confisco ou uma usurpação de soberania
como um quadro de valores ou de legitimidade. (...) O direito constitucional da
liberdade lhe pertence. Esse poder constituinte das teses liberais e democráticas da
nação e do povo soberano é o único legítimo para instituir um Estado de Direito.
Outros poderes constituintes poderão existir, têm existido, nosso País mesmo já os
conheceu em manifestações que não enaltecem o passado das instituições. Nunca
porém lograrão eles fazer Constituições capazes de exprimir a vontade legítima do
povo ou conter a verdadeira dimensão da soberania nacional. É portanto o poder
constituinte da nação soberana, se o exercício único e exclusivo pelo povo, ou por
suas Constituintes, aquele que cabe na legítima tradição constitucional do país"
(Curso, p. 146). Tanto esse fato é verdade que Luís Roberto Barroso completa:
“Quase todos os regimes políticos, mesmo as ditaduras mais retrógradas, por tributo
à virtude, invocam os elevados direitos incorporados ao patrimônio da humanidade.
Apenas cuidam de evitar que eles se tornem efetivos" (p. 55/56).

"POVO" - ambiguidade e significado da expressão (talvez, a expressão mais


invocada e menos esclarecida no direito constitucional, já que mesmo o mais
autoritário dos regimes o invoca para exercer o poder):
1) Canotilho - "forças políticas dominantes";
2) Costantino Mortati - "grupos mais ou menos amplos da população cujas
orientações refletem e são expressão de uma determinada estrutura e distribuição
de forças e interesses".

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


POVO NAÇÃO
Preâmbulo; Art. 13 – “unidade espiritual
Art. 1°, parágrafo único
Art. 14

Martin Kriele: "O poder Constituinte o exerce o povo: a soberania do povo significa,
em primeiro lugar, a soberania para decidir sobre a constituição. Esgota-se no ato de
realizar a constituição e permanece latente na constituição como poder constituído
até um novo ato de ditar a constituição" (p. 317).
"A soberania do povo não significa, pois, que o povo exerce o poder, senão que
o poder está dividido e exercido por diversos órgãos constitucionais, "provém" do
povo. Dentro do Estado Constitucional também o povo tem tão somente certas
competências e direitos, a saber, as eleições e votações (art. 14, CF 1988), a
participação nos partidos políticos (art. 17), associações (art. 5°, XVII a XXI) e
reuniões (art. 5°, XVI), o direito de petição (art. 5°, XXXIV, "a”), a formação da opinião
pública (arts. 220 a 224). Para o Estado Constitucional, a soberania do povo significa,
portanto, que o poder constituinte e a titularidade do poder estatal os têm o povo.
Posto que o conceito de soberania do povo se esgota nestes dois elementos, a
soberania do povo é perfeitamente compatível com a afirmação de que não há
nenhum soberano dentro do Estado Constitucional. A soberania do povo só aparece
no começo ou no fim do Estado Constitucional, quando este é criado e quando ele é
abolido. A soberania do povo pode, por conseguinte, constituir a liberdade e com ela
a democracia. Ali onde como no continente europeu dos sécs. XVII e XVII, se havia
imposto a soberania monárquica, o Estado constitucional só pode ser criado
apelando à soberania do povo e ao seu poder constituinte" (p. 317/318).

EXERCÍCIO DO PODER CONSTITUINTE


Embora sendo o titular do poder constituinte, não é o povo que exerce esse mesmo
poder, diretamente, dada a impossibilidade fática de uma "reunião de todos" para
deliberar sobre a Constituição normativa (o texto final a ser aprovado). Ganha relevo,
aqui, o problema da "Assembleia Constituinte", e, também, o problema da invocação
do povo como "titular" do poder constituinte, embora possa haver a sua ausência (ou
proibição) de participar do processo constituinte. Dai trabalhar-se com a dicotomia
"poder constituinte material" (a ideia de direito que se pretende e que emana de seu
titular) e "poder constituinte formal" (quem, efetivamente, "escreve" a Constituição).

PODER CONSTITUINTE MATERIAL E FORMAL

Jorge Miranda: "distinguimos entre um poder de autoconformação do Estado


segundo certa ideia de Direito e um poder de decretação de normas com a forma e
a força jurídica próprias das normas constitucionais. (...) O poder constituinte material
precede o poder constituinte formal. Precede-o logicamente, porque a ideia de Direito
precede a regra de Direito, o valor comanda a norma, a opção política fundamental
a forma que elege para agir sobre os factos. E precede-o historicamente, porque
(sem considerar, mesmo, a Constituição institucional de antes do constitucionalismo),
há sempre dois tempos no processo constituinte, o do triunfo de certa ideia de Direito
ou do nascimento de certo regime e o da formalização dessa ideia ou desse regime"
(Manual, vol. II, p 62/63, sem destaque, no original).

Tipos de poder constituinte formal:

1) Democrático: Poder constituinte com origem popular e plural (Assembleia


Nacional Constituinte). Seu produto é a Constituição promulgada.
2) Autoritário/Aristocrático/Totalitário: Poder constituinte sem origem popular,
redunda na Constituição outorgada.
3) Misto: há outorga, com posterior referendo ou ratificação popular (ou de uma
Assembleia Constituinte). Origina a Constituição semi-outorgada.
4) Super-democrático: Promulgação por Assembleia Constituinte, seguida de
ratificação Popular (França, 1946: reprovação popular do texto redigido pela
Assembleia constituinte).

Resumo histórico do Poder Constituinte no Brasil:


1824 - outorgada por Dom Pedro I;
1891 - texto referendado pelo Congresso, com origem na imposição militar;
1934 - Congresso constituinte;
1937 - golpe do estado novo;
1946 - Congresso constituinte;
1967 – materialmente imposta pelo governo militar/pós 64 (com aprovação formal do
Congresso ordinário);
1988 - Congresso constituinte.

Paulo Bonavides - "As duas crises constituintes" no Brasil:


1) Titularidade do poder constituinte (sujeito do poder constituinte) - nunca
houve, na história constitucional do Brasil, uma Assembleia Constituinte
exclusiva (eleita e reunida apenas para redigir uma Constituição). O Poder
Constituinte originário, no Brasil, ou derivou de outorgas (1824, 1937 e
1967/69) ou semi-outorga (1891). Nos demais casos (democráticos) - 1934,
1946 e 1988 sempre foi eleito um Congresso-Constituinte, ou seja, o Poder
constituinte esteve misturado com um dos poderes que, depois de escrita a
Constituição, seria um dos poderes constituídos (o Poder Legislativo). E não há
como negar que isso rompe não só com a teoria do poder constituinte como
implica uma confusão entre “criador" e “criatura", que favorece a legislação em
causa própria, na instituição de dispositivos constitucionais que favoreçam a
atividade do Poder Legislativo (o que, efetivamente, aconteceu na história
brasileira).
Tampouco deve-se descartar ausência de um genuíno “espaço público”, no Brasil,
diverso do “espaço privado”, cada qual com seus fundamentos e princípios
próprios e diferenciados. Ou, parafraseando o título da obra de Raymundo Faoro,
no Brasil, o poder do Estado sempre teve certos donos ("Os donos do Poder") e a
coisa pública sempre foi tratada como propriedade privada e, não, como a res
publica. Este “dono” é expressamente invocado nos Preâmbulos das
constituições.
2) Objeto (a Constituição) - trata do problema da ausência da força normativa do
texto, quando comparado à realidade brasileira.
(capítulos “O Poder Constituinte" e "A Reforma da Constituição", in Direito
Constitucional, de Paulo Bonavides).

ESPÉCIES DE PODER CONSTITUINTE

1. Poder Constituinte Originário - poder de estatuir uma Constituição.


2. Poder Constituinte Derivado - poder de modificar ou emendar uma
Constituição.
3. Poder Constituinte Decorrente - nos Estados federais, o poder dos
Estados-membros de terem suas Constituições estaduais, nos
limites estabelecidos pela Constituição federal.

PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

Por ser manifestação da Nação/povo, que funda o Estado, o poder constituinte,


do ponto de vista estritamente jurídico, tem por característica ser:
1) Inicial - não se funda, juridicamente, em uma ordem jurídica anterior; ao
contrário, ele é que vai construir uma nova ordem, é o início da nova ordem;
2) Autônomo - 2.1) há auto definição das regras de atuação (o próprio Poder
constituinte decide pelo procedimento a ser adotado para confecção da
Constituição); 2.2) decide, com exclusividade, a matéria da Constituição
formal;
3) Incondicionado - não respeita eventuais normas jurídicas ou direitos a ele
anteriores (e.g., direitos adquiridos).

LIMITES NÃO-JURIDICOS DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO

Canotilho cita que dados históricos, "realidades culturais", não são limites jurídicos,
mas podem limitar - extra juridicamente - a atıvidade do poder constituinte originário.
Exemplos de Canotilho: a instituição da família poligâmica, a abolição do direito de
propriedade privada ou a negação dos direitos fundamentais em um Estado ocidental
contemporâneo. Em um exemplo mais próximo, pode-se afirmar que seria
inconcebível que o Poder Constituinte brasıleiro de 1986/88 adotasse um sistema de
governo não democrático, face ao momento histórico em que o mesmo manifestou-
se (oposição aos governos militares de 1964/85). Para exemplos desses limites, na
história constitucional do Brasil, o artigo de Raul Machado Horta "Reflexões sobre a
Constituinte" (in RIL 89/10). Assim é que Marcelo Rebelo de Souza, citado por Jorge
Miranda, nota que "Quer o poder constituinte formal, quer o poder constituinte
material são limitados pelas estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais
dominantes da sociedade, bem como pelos valores ideológicos de que são
portadores" (op. cit. vol. II, pág. 87).

PROBLEMA DAS RUPTURAS


Trata do surgimento de novas Constituições, com ou sem a quebra radical da ordem
anterior. É o segundo campo de aplicação da teoria do poder constituinte.
1. REVOLUÇÕES - Rupturas radicais, que destroem as estruturas anteriores, criando
novas estruturas.
"Nada é mais gerador de Direito do que uma revolução, nada há talvez de mais
eminentemente jurídico do que o ato revolucionário" (Jorge Miranda, vol. II, pág. 67).
a) Ruy Ruben Ruschel (in "O poder constituinte e a revolução", CDCCP 2/110),
constitucionalista gaúcho, citando o italiano Mario Cattaneo, chama de revolução,
quando a mudança de Constituição ocorre por meios não previstos na anterior
Constituição (sistema jurídico novo contrário ao sistema anterior).
b) Carré de Malberg (1922), jurista francês, estabeleceu a clássica dicotomia, não
apenas do ponto de vista jurídico:
1) Revoluções - rupturas populares;
2) Golpes de Estado - rupturas "aristocráticas", realizadas por órgão ou ente do
próprio poder constituído.

2. TRANSIÇÕES - São rupturas não radicais, não-abruptas e que, diversamente das


revoluções, não necessariamente negam todo o sistema jurídico anterior, mas negam
seus fundamentos. "Menos estudado, não só por acontecer muito menos mas
também por ser mais difícil de registar (ou de fixar o momento em que se verifica,
com todo o rigor, a mudança de regime ou de Constituição material)". (...) "Ora,
também aqui há um poder constituinte originário (ainda que possa, parecer encoberto
por outro poder, designadamente o de revisão). A natureza do evento e o seu alcance
negador do regime politico precedente e criador de outro regime político assinalam
bem uma decisão fundamental, a adopção de uma nova ideia de Direito, o erigir de
um novo fundamento de validade. Nem se conteste a autonomia do conceito,
aduzindo que, por se tratar de transmutação ou abuso de poder atribuído a certo
órgão, no fundo não há diferença em relação ao golpe de Estado. Não é assim,
porque na transição constitucional se respeitam as competências e os processos de
agir instituídos pela Constituição em vigor: o Rei absoluto, por ser Rei absoluto, vem
autolimitar-se; tal como a própria Constituição pode prever uma revisão total" (Jorge
Miranda, vol. II, págs. 69/70, com grifos nossos). Feita a distinção entre "revolução"
e “transição", pode-se concluir, com a lição de José Fernando de Castro Farias:
"Estabelecida uma visão de Revolução mais aprofundada, que não se restringe
apenas ao aspecto jurídico, fica evidenciado que não existe uma necessária relação
entre o Poder Constituinte e Revolução. No processo constituinte nem sempre se
verifica a existência de uma dualidade de poderes, fenômeno típico dos processos
revolucionários, assim, o Poder Constituinte não se manifesta obrigatoriamente em
momentos de crise revolucionária, ou seja, a Revolução não é necessariamente
veículo do Poder Constituinte. (...) o Poder Constituinte, de um modo geral, se
manifesta em períodos (revolucionários ou não) de ruptura, de reformulação ou de
reajustamento de ordem jurídico-político, com o intuito de criar uma nova organização
jurídico-política do Estado. Portanto, mais correto seria afirmar que o exercício do
Poder Constituinte verifica-se naqueles momentos de transição da estrutura jurídico-
política de uma dada sociedade, podendo também coincidir, mas não
necessariamente, com um processo de crise revolucionária" (op. cit., p 106).

Carl Schmitt (in “Teoria da Constituição”, 1928) - Sobre o problema das rupturas, a
classificação de Schmitt, citada, ainda, por sua clareza didática:
1) "Destruição" da Constituição - Quando existe a "supressão da Constituição
existente (e não apenas de uma ou várias leis constitucionais), acompanhada da
supressão do Poder constituinte em que se embasava" (op. cit., p. 115). Note-se
como Schmitt funde, num só conceito, a dicotomia "revolução" e "golpe de Estado",
teorizada, em 1922, por Carré de Malberg. Exemplo: a Constituição brasileira de 1937
destrói a Constituição de 34 e o poder constituinte muda de titularıdade (do povo para
Getúlio Vargas).
2) "Supressão" da Constituição - Quando o mesmo poder constituinte "põe de
lado" o texto anterior e o substitui por outro texto constitucional.
3. "Revisão" da Constituição - Modificação do texto constitucional, com ou sem
previsão expressa dessa modificação no texto que está sendo modificado (porque,
repita-se, na teoria schmittiana interessa mais a "decisão" do poder constituinte do
que o "texto" constitucional).
4. "Quebramento" da Constituição - Violação (descumprimento) do texto
constitucional, em casos excepcionais.
5. "Suspensão" da Constituição - Trata-se de, temporariamente, não aplicar
qualquer dispositivo constitucional. Foi utilizada por Hitler, durante o governo nazista,
relativamente à Constituição de Weimar, de 1919.

Luís Roberto Barroso (in “Interpretação”, p. 59 e segs.) formula outra classificação:


1) Continuidade formal - "Quando a sucessão da ordem constitucional se dá com
observância das regras vigentes (...) apesar da alteração normativa".
2) Descontinuidade formal - "Quando uma nova ordem constitucional implica
ruptura, revolucionária ou não, com a ordem constitucional anterior."
3) Descontinuidade material - "a situação em que, além da ocorrência de uma
ruptura formal (ou eventualmente sem ela), verifica-se também uma "destruição" do
antigo poder constituinte por um novo poder constituinte, "alicerçado num título de
legitimidade substancialmente diferente do anterior".

Bibliografia
BONAVIDES, Paulo (capítulo "O Poder Constituinte", apud “Curso”);
GONÇALVES, Silvia D. S. de Lima ("Poder constituinte: filosofia ou dogmática
jurídica", in CDC 10/68);
WOLKMER. Antônio Carlos ("Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária",
in RIL 124/179).

PODER CONSTITUINTE DERIVADO (OU INSTITUÍDO OU DE 2º GRAU)


"A Constituição é um documento que aspira à permanência, mas não à perenidade"
(Luís Roberto Barroso, in “Interpretação e Aplicação da Constituição”, p. 59).
Seguindo as teses de Sieyès, se a Nação é a única titular do poder constituinte, pode
ela também modificar a sua criação (a Constituição), quando assim entender. A essa
competência reformadora da Constituição denominamos poder constituinte derivado
ou instituído. Diz Klaus Stern: "o reconhecimento de que uma constituição não pode
ser "eterna" e que necessita de vez em quando adaptar-se, faz necessárias as regras
sobre a sua revisão. (...) A todas é comum que se trata de uma competência
extraordinária tanto do ponto de vista jurídico-material como procedimental. (...) A
frequência no exercício do poder de reforma da constituição converteu-se
ocasionalmente em critério de medida da qualidade de uma constituição" (op. cit.,
págs. 325 a 327). E afirma Luís Roberto Barroso: "No caso brasileiro, seria ingênuo
supor que uma sociedade marcada pelo autoritarismo anacrônico das relações
políticas e sociais, envolvida em inerente esforço para atingir a contemporaneidade,
pudesse ter uma Constituição com foros de definitividade. A despeito desta
constatação, e em irônico paradoxo, mal oposto tem feito a tragédia do nosso
constitucionalismo pouco amadurecido: a tentação permanente de reformar a Lei
maior, sob a inspiração de fatores contingenciais e efêmeros, aferidos por critérios
políticos menores" (op. cit., pág. 45).
Diversamente do poder constituinte originário, que, teoricamente, desconhece limites
jurídicos à sua atividade, o poder constituinte derivado (e por ser derivado) está
limitado por uma série de obstáculos já previstos na Constituição para sua
modificação ("limites explícitos").
Se na teoria de Sieyès "poder constituinte" e "poderes constituídos" não devem ser
confundidos, a prática tem demonstrado que as Constituições têm atribuído, via de
regra, o "poder constituinte derivado" ao Congresso ou Parlamento (Poder
Legislativo). Essa confusão de órgãos ou entes, entretanto, não deve obscurecer
que, ao modificar formalmente o texto constitucional, o Legislativo age não como
poder constituído, mas como "poder constituinte derivado". Dificilmente têm ocorrido
casos de convocar-se (ou haver tal previsão constitucional) uma assembleia
exclusiva apenas como fim de atuar como "poder constituinte derivado". No máximo,
há plebiscitos ou referendos populares, especialmente, quando inexiste consenso
sobre as matérias que serão modificadas. A Suíça é exemplo de país que,
tradicionalmente, utiliza-se das consultas populares para a tomada de decisões sobre
a modificação de sua Constituição.

A Constituição brasileira de 1988 instituiu dois diferentes tipos de processos para a


modificação de seu texto: revisão e emendas.
Tais processos distinguiam-se, conceitualmente, a partir da Constituição de 1934,
porque as revisões determinavam modificação no texto original da Constituição. As
emendas, por sua vez, eram apenas acréscimos ao texto do constituinte originário
(inspiração na Constituição norte-americana, de 1787, que só possui "emendas":
acréscimos ao texto do documento original). A diferença, atualmente, diz respeito
apenas ao procedimento (mais ou menos flexível) de modificação. Por fim, nas
Constituições de 1824 e 1891, encontramos, ainda, a expressão "reforma" da
Constituição.

1) REVISÃO - Art. 3°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) -


"A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação
da Constituição pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional,
em sessão unicameral".

A origem dessa "revisão" está na Constituição portuguesa (1976), no seu art. 284,
parte primeira, ao dizer que "A Assembleia da República pode rever a Constituição
decorridos cinco anos sobre a data da publicação de qualquer lei de revisão". Isso
significa, em regra, que, somente decorridos cinco anos da anterior revisão, pode a
Constituição portuguesa ser novamente modificada. Excepcionalmente, a segunda
parte do mesmo artigo permite revisões em prazo menor, mas, somente, "por maioria
de quatro quintos dos Deputados em efetividade de funções", o que, praticamente,
inviabiliza uma revisão face a tal exigência de quórum.
Diversamente do caso português, a CF de 1988 só previu uma revisão, a qual foi
realizada no transcorrer dos anos de 1993 e 1994, tendo sido feitas, no total, seis
emendas de revisão. Sobre a revisão constitucional brasileira de 1993, indica-se a
leitura da Revista de Informação Legislativa n. 120, que dedicou todo o volume para
esse tema. Esgotada a possibilidade da revisão, por ser dispositivo transitório, resta,
hoje, a segunda forma de modificação da Constituição, prevista esta no texto
principal, que é o procedimento de emendas à Constituição.

REVISÕES À CONSTITUIÇÃO DE 1988


N° DATA TEMA DA REVISÃO
1 02.03.1994 Criou o Fundo Social de Emergência - anos de 1994/1995
2 09.06.1994 Disciplinou a convocação, para depoimento, de Ministros e
funcionários públicos pelo Congresso - art. 50 e § 2°
3 09.06.1994 Modificou as regras sobre nacionalidade - art. 12
4 09.06.1994 Regras sobre inelegibilidades de políticos cassados - art.
14, §9°
5 09.06.1994 Redução do mandato presidencial de 5 para 4 anos art. 82
6 09.06.1994 Proibiu a renúncia de parlamentar processado quando a
pena puder ser a perda do mandato art. 55, § 4°

2) EMENDAS À CONSTITUIÇÃO - Art. 60, incisos e parágrafos. O constituinte de


1988 colocou o tema das "Emendas à Constituição" na Secção VIII, que trata do
“Processo Legislativo”, evidenciando uma certa confusão entre Poder Constituinte
Derivado e Poder Constituído (Congresso Nacional). No particular, melhor solução
teria sido situar o procedimento das Emendas em capítulo próprio.
Especificamente em relação ao texto constitucional, encontramos quatro grandes
limitações para a realização de emendas à Constituição:
1) Limites "subjetivos" ou "orgânicos": relativos ao sujeito ou órgão titular para
proposição de emendas - art. 60, I, Il e II.

2) Limites temporais: Em certos períodos, veda-se a possibilidade de emendas:


2.1) art. 60, § 1 - que remete para os arts. 34, 36, 136 e 137;
2.2) art. 60, § 5° - que remete para o art. 57.

3) Limites procedimentais: (rigidez, propriamente dita) - art. 60, § 2°.


Somados aos previstos no Regimento Interno do Congresso Nacional, há uma série
de atos procedimentais relativos à tramitação das propostas de emenda
constitucional. A saber:
- Apresentação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC);
- Leitura da PEC na chamada Ordem do Dia;
- Votação da admissibilidade (se não fere a Constituição) da emenda na Comissão
de Constituição e Justiça (se não aprovada, a matéria é arquivada; se aceita, a PEC
é enviada para a Comissão Especial);
- Designação pelo Presidente da Câmara de uma Comissão Especial, que
preparará o parecer sobre o mérito da PEC, para ser votado em Plenário;
- Instalação da Comissão Especial;
- Escolha do Relator da PEC, na Comissão;
- Parecer do Relator;
- Votação do parecer do Relator pela Comissão Especial,
- Publicação do resultado da votação pela Mesa da Câmara;
- Votação, em Plenário, em 1° turno;
- Intervalo obrigatório de cinco reuniões;
- Votação plenária, em 2° turno;
- Remessa da Proposta de Emenda aprovada ao Senado Federal;
- Leitura da PEC no Senado;
- Envio à Comissão de Constituição e Justiça, com prazo de 30 dias para parecer;
- Discussão da PEC pelo prazo de trinta dias;
- Leitura do parecer da Comissão, em Plenário;
- Votação da matéria, em Plenário, em 1° turno;
- Intervalo de cinco dias, no mínimo, para nova discussão (e votação);
- Votação plenária, em 2° turno;
- Havendo qualquer alteração no texto, pelo Senado, a PEC volta à Câmara para
análise da matéria modificada;
- Ao final, segue-se à promulgação.

Convém observar, ainda, quanto ao procedimento, que, nas emendas, não há lugar
para o veto (ou sanção) da mesma pelo Presidente da República (como acontece
com as leis ordinárias e complementares). A emenda é promulgada "pelas Mesas da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem"
(art. 60, § 3).

4) Limites materiais explícitos (ou expressos) - art. 60, § 4°. São as denominadas
"cláusulas pétreas", matérias que não podem ser objeto de modificação, enquanto a
atual Constituição estiver em vigor. A origem de tal tipo de cláusula está na
Constituição francesa de 1884, que vedava, expressamente, a modificação da forma
republicana de governo (impedindo, assim, a restauração da monarquia). A partir da
nossa Constituição de 1891, passamos a conhecer tal tipo de dispositivo (ela
afirmava que a federação era indissolúvel). Já na CF/67 havia uma cláusula pétrea,
que vedava a proposta de emenda "tendente a abolir a Federação e a República"
(art. 47, § 1). Sob a Constituição de 1988, a seguinte jurisprudência:
STF, ADIn n° 939 (RDA 198/123) - "Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto,
de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser
declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é
de guarda da Constituição (art. 102, I, "a", da CF).
A Emenda Constitucional n° 3, de 17-03-1993, que, no art. 2°, autorizou a União
a instituir o I.P.M.F., incidiu em vicio de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo
2° desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III "b" e "VI",
da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas
imutáveis (somente eles, não outros):
1- o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5°, § 2°,
art. 60, § 4°, inciso IV, e art. 150, III, "b" da Constituição;
2-o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio,
rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, § 4°,
inciso I, e art. 150, VI, "a", da CF), (...)".

STF, ADIn n° 466-2, (medida liminar) - "impossibilidade jurídica de controle abstrato


preventivo de propostas de emenda não obsta a sua fiscalização em tese quando
transformadas em emendas à Constituição. Estas - que não são normas
constitucionais originárias - não estão excluídas, por isso mesmo, do âmbito do
controle sucessivo ou repressivo de constitucionalidade. O Congresso Nacional, no
exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função
reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte
originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder
reformador (CF, art. 60, parágrafo 1°), identificou, em nosso sistema constitucional,
um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As
limitações materiais explicitas, definidas no parágrafo quarto do artigo 60 da
Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido
ao Poder legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados.
A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o
controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta, de
constitucionalidade". A propósito, o controle a que se refere o STF, nesta última frase
do julgado, é o controle de constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário,
existente sob duas diferentes vias: por "ações diretas de inconstitucionalidade"
(realizado apenas pelo STF, que verifica, independentemente de um caso concreto,
se uma norma é ou não compatível com a Constituição), ou o controle em concreto
(quando qualquer juiz, antes de decidir um caso concreto, verıfica se a norma
aplicável ao caso é, ou não, constitucional).
O Supremo tem aceito que parlamentares impetrem Mandado de Segurança
ainda no curso do processo de tramitação da proposta de emenda que viole cláusula
pétrea:
STF, Mandado de Segurança n° 21.642 (RDA 191/200) - "- O controle de
constitucionalidade tem por objeto lei ou emenda constitucional promulgada.
- Todavia, cabe ser exercida em caso de projeto de lei ou emenda constitucional
quando a Constituição taxativamente veda sua apresentação ou a deliberação.
- Legitimidade ativa privativa dos membros do Congresso Nacional".
STF, MS 21.747 (RDA 193/266) - "- Cabe mandado de segurança, no curso do
processo legislativo, contra emenda constitucional que viole o art. 60, § 4° da
Constituição.
- A legitimidade ativa é de congressista, cujo direito subjetivo é ofendido, e não de
partido político". No voto do Relator Ministro Celso de Mello, lê-se "o processo de
formação das espécies normativas revela-se, ainda que em caráter excepcional,
suscetível de controle pelo Poder Judiciário, sempre que houver possibilidade de
lesão à ordem jurídico-constitucional. Esse processo de positivação do direito
subordina-se a esquemas rigidamente previstos e disciplinados na Constituição. Em
consequência, a observância das normas constitucionais condiciona a própria
validade formal dos atos normativos editados pelo Poder
Legislativo. (...) Essa intervenção judicial no procedimento de elaboração das normas
destina-se, respeitados os aspectos discricionários concernentes às political
questions e aos atos interna corporis (RTJ 102/27 - 112/598 - 112/1023) a garantir,
de modo efetivo, a supremacia da Constituição".

4.1. Limites materiais e direitos fundamentais (art. 60, § 4°, IV) - quais categorias
de direitos fundamentais podem ser modificadas? A CF só diz serem cláusula pétrea
os "direitos e garantias individuais", a maioria absoluta deles encontrando-se no art.
5°, da CF.
Outra discussão surge a partir do art. 5°, XXXVI. Diz ele que a lei não poderá
prejudicar o "direito adquirido".
A propósito, a seguinte jurisprudência indireta sobre o tema:
STF, RE n° 94.414 (RTJ 114/237), ainda sob a CF 1967/69: "Não há direito adquirido
contra texto constitucional, resulte ele do poder constituinte originário, ou do poder
constituinte derivado".
STF, ADIN n° 493 (RTJ 143/724) - "O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição
Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção
entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei
dispositiva.
A partir de tais julgados, não é irrazoável supor que emendas constitucionais
podem alterar ou suprimir certas categorias de direitos fundamentais (desde que não
sejam direitos e garantias "individuais", por força do art. 60, § 4º, CF).

4.2. A teoria do "núcleo essencial" - há julgado do STF sob o regime da anterior


Constituição, dizendo que "o fato de determinada emenda afetar aspectos
relacionados com o conteúdo de princípios protegidos pelas cláusulas pétreas não é
suficiente para acoimá-la de inconstitucional" (RTJ 99/1031). Tratava-se de ação que
visava a impugnar a prorrogação dos mandatos em curso de Prefeitos, Vice-Prefeitos
e Vereadores, porque tal ato estaria ferindo uma característica essencial do princípio
republicano que é a temporariedade dos mandatos eletivos. Logo, embora o tema
fosse referente a uma cláusula pétrea (República), não estava sendo afetada a
"essência" da cláusula pétrea.
Parece haver a adoção da teoria alemã do "núcleo essencial": o aspecto
"pétreo" refere-se a um núcleo essencial do instituto protegido, e não ao modo como
o mesmo é protegido. Haveria, assim, uma distinção, que remonta à filosofia
aristotélica, entre "essência" (definição da própria coisa, o núcleo caracterizador do
instituto jurídico) e "propriedades" (predicados de uma coisa, que não são sua
essência). Por analogia, as propriedades, o gênero e os aspectos acidentais de um
instituto jurídico poderiam ser suprimidos sem que isso ferisse uma cláusula pétrea.
Mas a "essência" do instituto seria imodificável. Problema de natureza concreta é
saber onde termina a essência e começam as propriedades e acidentes de um
instituto jurídico, a fim de saber-se até onde o regime jurídico relativo a esse instituto
pode ou não ser modificado.
4.3. A "cláusula geral" do art. 5º, § 2º - Diz o dispositivo "Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte".
Tal parágrafo permite a existência de outros direitos e garantias individuais
(cláusulas pétreas, portanto) em outros artigos da Constituição, que não o próprio art.
5°. Tal discussão já foi enfrentada no STF, que concluiu afirmativamente, quando a
Emenda Constitucional n° 3, que instituiu o IPMF (imposto provisório sobre
movimentações financeiras), afirmou que algumas garantias individuais da Ordem
Tributária Constitucional não seriam aplicáveis a tal tributo.
STF, ADIN 939 (RDA 198/123) "A Emenda Constitucional n° 3, de 17-03-93,
que, no art. 2°, autorizou a União a instituir o I.P.M.F. incidiu em vicio de
inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2° desse dispositivo, que, quanto a tal
tributo, não se aplica “o art. 150, III, "b" e VI”, da Constituição porque, desse modo,
violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros):
1° - o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art.
5°, § 2°, art. 60, § 4° inciso IV e art. 150 III “b" da Constituição); (...)”

LIMITES MATERIAIS IMPLÍCITOS


Tese que trata da possibilidade de existirem outros limites materiais ao Poder
Constituinte derivado que não aqueles expressamente vedados.
Nelson de Souza Sampaio (O Poder de Reforma Constitucional. Livraria Progresso.
Salvador. 1954) foi pioneiro no trato do tema, quando apontou quatro grandes limites
materiais implícitos no Constitucionalismo moderno:
1) direitos fundamentais;
2) titularıdade do poder constituinte;
3) titularidade do poder de reforma constitucional;
4) as regras de procedimento de revisão ou emenda.

Vê-se um exemplo de limite implícito no voto do Ministro Moreira Alves,


proferido na ADIN n° 830: "O art. 2° do ADCT por ter conferido ao eleitor, mediante
plebiscito, o poder de definir a forma e o sistema de governo, retirou essas matérias
da competência do Poder de Reforma (poder Constituinte derivado, que é exercido
pelo Congresso Nacional), o que implica dizer, em última análise, que, às matérias
insusceptíveis de ser objeto de emenda constitucional por parte do poder Constituinte
derivado aludidas no § 4° do artigo 60 da Constituição, se acrescentam essas duas,
sendo, pois o artigo 2° do ADCT uma cláusula pétrea implícita para esse Poder
Constituinte...” (in RDA 198/205).
Por fim, seria de perguntar-se:
a) se há (ou não) possibilidade de emenda supressiva do próprio art. 60, § 4°, do
texto constitucional;
b) se há (ou não) possibilidade de modificar-se o teor das próprias cláusulas pétreas
para, depois, modificar-se aquilo que era tido como clausula pétrea.
A partir dos julgados do STF, acima apostos, parece ser inviável a possibilidade
jurídica.

MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS OU MODIFICAÇÕES INFORMAIS


O termo "mutações constitucionais" foi lançado na doutrina alemã, no final do século
passado, por Paul Laband e, após, por George Jellinek. Inexiste um conceito
consensual, mas não é errado dizer que as "mutações" contrapõem-se às reformas
expressas ou formais da constituição (cf. Klaus Stern, op. cit., pág. 334). Ainda na
lição de Stern, mutação é "o fenômeno por meio do qual se produz uma modificação
no modo de aplicação das normas constitucionais, de forma tal que às palavras do
texto constitucional, que permanecem sem modificação, se lhes atribui pouco a
pouco um sentido distinto do que se lhes havia atribuído originariamente. Ou, dito
com mais brevidade: mediante a mutação constitucional muda o sentido de uma
norma constitucional sem que haja se modificado o seu texto" (op. cit., pág. 335).
No Brasil, a obra de Anna Cândida da Cunha Ferraz ("Processos informais de
mudança da constituição") é, praticamente, ímpar no tema. Divide a autora as
mutações em dois grandes grupos:
1) mutações constitucionais;
2) mutações inconstitucionais.

1. MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS – São, basicamente, de dois tipos:


1.1) a interpretação constitucional (que vai evoluindo com o passar do tempo) e
que se divide em "interpretação constitucional legislativa", "interpretação judicial"
"interpretação constitucional administrativa" e outras modalidades: "autêntica",
"popular" e "doutrinária";

1.2) o costume constitucional, o qual "Deverá ser tido como norma não escrita,
materialmente constitucional porque versando matéria constitucional, porém sem a
eficácia ou o valor jurídico de norma constitucional escrita (...) Consequentemente,
decorre logicamente que o costume não reforma e, portanto, não revoga a
Constituição" (op. cit., págs. 185/186). Mas, segundo a autora, e apoiada em Pontes
de Miranda, o costume constitucional poderia revogar uma lei infraconstitucional
(pág. 186).
Para que haja um costume constitucional, por fim, deve-se formar ele a partir
da prática ("usos e costumes") dos órgãos competentes que aplicam, veiculam as
normas constitucionais (pág. 187).
Função dos costumes - 1) auxiliar a interpretação constitucional; 2) integração das
lacunas constitucionais (desde que se aceite a tese da existência de lacunas no
ordenamento) (Págs. 191 a 196).
Exemplos da autora: o não cumprimento pelo Executivo de lei federal ou
estadual tida como inconstitucional, embora sem a declaração da
inconstitucionalidade pelo Judiciário.

2. MUTAÇÕES INCONSTITUCIONAIS - Ferraz divide as mutações inconstitucionais


em dois grupos:
2.1 PROCESSOS ANÔMALOS – são, basicamente, três:
2.1.1. a INÉRCIA, ou seja, "inatividade consciente na aplicação da Constituição"
(pág. 218). Na Constituição de 1988, foram previstas duas ações judiciais para esse
problema: o mandado de injunção (art. 5°, LXXI) e a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2°);
2.1.2. o DESUSO que consiste "na inobservância (a) consciente, (b) uniforme, (c)
consentida, (d) pública e (e) reiterada por longo tempo de uma disposição
constitucional" (pág. 234).
2.2.3 MUDANÇAS TÁCITAS - seriam contradições vindas de reformas/emendas
realizadas com imperfeição técnica. Exemplo: a emenda constitucional n. 8, de 1977,
deu nova redação a incisos do art. 151 e, quando publicada, faltou a menção a um
parágrafo único, parte desse mesmo artigo. Teria, então, sido revogado ou não o
referido parágrafo?
2.2 PROCESSOS MANIFESTAMENTE INCONSTITUCIONAIS - toda a série de atos
que "provocam mudanças contra a Constituição" (pág. 243), e vão contra o texto
constitucional ou o espírito desse texto.
Talvez o exemplo mais notório seja o da reedição das medidas provisórias pelo
Presidente da República (art. 62, da CF 1988), sabendo-se que elas substituíram o
decreto-lei como forma de atividade legislativa pelo Executivo, e cuja intenção, ao
criar-se a medida provisória, era justamente dificultar essa atividade do Poder
Executivo. Chegou-se ao ponto de o Executivo reeditar MP que havia sido declarada
inconstitucional pelo STF. Vejamos alguns trechos do julgado do STF sobre esse
tema (ADIN 293 – medida liminar, pleno do STF, in RTJ 146/707) "O que justifica a
edição das medidas provisórias é a existência de um estado de necessidade que
impõe ao poder Executivo a adoção imediata de providências de caráter legislativo,
inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação (...) O conteúdo jurídico
que elas veiculam somente adquirirá estabilidade normativa, partir do momento em
que (...) houver pronunciamento favorável e aquiescente do único órgão
constitucionalmente investido do poder ordinário de legislar, que é o Congresso
Nacional (...) A rejeição parlamentar de medida provisória - ou de seu projeto de
conversão - além de desconstituir-Ihe ex tunc a eficácia jurídica, opera uma outra
relevante consequência de ordem político-institucional, que consiste na
impossibilidade de o Presidente da República renovar esse ato quase legislativo (...)
Modificações secundárias de texto, que em nada afetam os aspectos essenciais e
intrínsecos da medida provisória expressamente repudiada pelo Congresso Nacional
constituem expedientes incapazes de descaracterizar a identidade temática que
existe entre o ato não convertido em lei e a nova medida provisória editada. (...) A
Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao
império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste -
enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as
liberdades não serão jamais ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a
tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada"
Outro tema que seria exemplo é o "voto de liderança" para aprovação de leis
pelo Congresso (quando deveria ser exigida a votação, sempre, em plenário). Ver,
no sentido da inconstitucionalidade do voto de liderança, o parecer do então
Procurador-Geral Eleitoral Sepúlveda Pertence (ex-Ministro do STF), in RDP 92/116.

PODER CONSTITUINTE DECORRENTE


Do mesmo modo que o "poder constituinte derivado", os limites ao poder constituinte
dos Estados-membros estão estabelecidos na Constituição Federal (v. art. 25,
especialmente). Assim, "tais diplomas são elaborados no exercício de competência
derivada da própria Constituição Federal, a cujos princípios estão subordinados"
(Luís Roberto Barroso, in Interpretação, p. 55). Sendo o Brasil um Estado que se
proclama "federal", tal tema deveria ter fundamental importância. Mas se não o tem
(e se pouco se ouve falar da Constituição gaúcha, por exemplo), é sinal que o modelo
federal brasileiro não é lá tão federal quanto apregoa. Para uma simples análise,
basta averiguar o currículo das Faculdades de Direito (de qualquer lugar do Brasil) e,
dificilmente, encontrar-se-á uma disciplina que estude o direito dos estados-
membros.
Sobre o "poder constituinte decorrente", há importante obra de Anna Cândida
da Cunha Ferraz, ainda sob a vigência da Constituição anterior: "Poder Constituinte
do Estado-membro".
Doutrina:
Grupenmacher, Betina Treiger. "Poder constituinte decorrente e autonomia do
estado-membro no direito constitucional brasileiro" (in CDCCP 16/268).
STF, julg. em 18.05 88 (RTJ 127/394) - "Ainda que se admita (...) que os Estados-
membros possam, em virtude do poder constituinte decorrente que têm, adotar o
controle de constitucionalidade das leis estaduais ou municipais em face de suas
Cartas Magnas por meio de representação de inconstitucionalidade de ato normativo
em tese, mister se faz que o modelo federal seja seguido, inclusive no tocante a
titularidade desse processo, e isso porque não é cabível aos Estados-membros o
estabelecimento de controles de constitucionalidades diversos dos fixados na
Constituição Federal”.

BIBLIOGRAFIA CITADA:

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. "Teoria geral do Poder Constituinte", in RIL


74/33.
________."Teoria geral da revisão constitucional e teoria da constituição originária"
in RDA 198/39;
BONAVIDES, Paulo. Capítulo "O Poder Constituinte" apud Direito Constitucional
e/ou Curso de Direito Constitucional;
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. "Mutação, reforma e revisão das normas
constitucionais”, in CDC 5/5;
GARCIA, Maria. "Poder Constituinte derivado", in CDC 11/31;
GONÇALVES, Silvia Dias Soares de Lima. "Poder constituinte: filosofia ou dogmática
jurídica", in CDC 10/68;
HORTA, Raul Machado. "Permanência e mudança na Constituição", in RDA 188/14;
PINTO FERREIRA, Luís. "Teoria geral do Poder Constituinte. As Constituições do
Brasil e a Constituição da 6° República", in RIL 87/139;
SHIRAI, Masako. "A problemática da democracia como processo de
democratização", in CDCCP 9/73;
SILVA, Maria de Lourdes Seraphico Peixoto da. "Aspectos da legitimidade da
Constituição de 1988 e suas implicações no exercício do poder", in CDCCP 10/87;
SILVÉRIO, Paulo Roberto Mendonça. "O instituto jurídico dos direitos adquiridos e a
"cláusula pétrea" dos direitos e garantias individuais", in RIL 128/69;
WOLKMER, Antônio Carlos. "Legitimidade e legalidade: uma distinção necessária",
in RIL 124/179.

Você também pode gostar