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27 de agosto de 2015

Pediatria Clínica II - Aula 7


Classificação e Investigação Diagnóstica da Diarreia Crônica
Professora Adriane Celli
Diarreia crônica pode ser definida como aquela que dura mais de 14-30 dias e também
se caracteriza pelo aumento de volume e/ou frequência de evacuações com perda de água,
eletrólitos e nutrientes.
O intestino delgado é um órgão de absorção de água e nutrientes, e o intestino grosso
absorve água. O ID também é um local de digestão. A digestão inicia na boca com
mastigação, salivação e amilase salivar. No estômago temos a ação do HCl, Pepsina e
contrações. No duodeno, teremos a ação das enzimas pancreáticas amilase, tripsina e lipase e
também dos sais biliares que emulsificam lipídeos e formam micélias.
Os lipídeos são envolvidos pelos sais biliares, que se ligam a eles por sua porção
lipofílica. A lipase pancreática é uma enzima hidrofílica, e ela vai se ligar a porção hidrofílica
dos sais biliares, e assim a gordura será quebrada e ocorre a formação das micélias. As
micélias são absorvidas pelos enterócitos e formam os quilomicrons, que por exocitose vão
para os vasos linfáticos e veias. Os sais biliares são reabsorvidos pelo íleo terminal e voltam
para o ciclo entero hepático.

No intestino delgado ainda ocorre a hidrólise de dissacarídeos na borda em escova. Essa


borda tem dissacaridases: sacarase, lactase e maltase, que vão dar origem a glicose, galactose e
frutose. Se essa hidrólise não ocorrer, as bactérias consomem esses açúcares e realizam
fermentação.

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No cólon temos absorção de água e o material não digerido vai ser excretado nas fezes.
Avaliação da diarreia crônica
Precisamos saber a fisiopatologia da diarréia, para poder direcionar a avaliação, os
exames complementares e estabelecer um diagnóstico.
Anamnese - idade de início, relação com introdução de novos alimentos, características
das fezes (frequência, consistência, presença de muco, sangue, esteatorreia, melhora com
jejum), perda ou baixo ganho pondero-estrutural, história familiar (Chron, Doença Celíaca,
Atopia) e exame físico. Com esses dados, geralmente conseguimos afastar o principal
diagnóstico diferencial que é uma causa benigna de diarreia crônica, é a Diarreia Crônica
Inespecífica do Pré escolar, que ocorre entre 1 e 5 anos, e o paciente tem um bom ganho
ponderal. A anamnese também vai permitir direcionar para casos típicos, como doença
celíaca e fibrose cística.
Investigação inicial - Hemograma com VHS auxilia na doença inflamatória intestinal,
albumina baixa sugere desnutrição mais importante, beta caroteno, TAP e vitaminas A, D e E
auxiliam na investigação da absorção de gorduras, substâncias redutoras e pH nas fezes, indicam
açúcar nas fezes, pesquisa de leucócitos, positiva em infecções e doenças inflamatórias, e também
na alergia a proteína do leite da vaca. Investigamos ainda sangue oculto, gordura nas fezes,
parasitológico de fezes. Mesmo que o parasitológico for negativo, podemos tratar contra giárdia
que é a causa mais comum, pois muitas vezes ela não é detectada no exame. Podemos pedir
ainda coprocultura, criptosporidium que é comum em imunodeficientes e pacientes que
frequentam piscinas. A pesquisa de hifas e leveduras, assim como a investigação pra clostridium
difficile está indicada para pacientes que tomaram ATB recentemente.
Fisiopatologia da diarreia crônica
1) Alteração da digestão intraluminar: pode ocorrer por insuficiência pancreática
exócrina ou por deficiência de sais biliares na luz intestinal. A causa mais comum da
insuficiência pancreática endócrina é o diabetes, mas da exócrina é por pancreatite crônica
no adulto e fibrose cística na criança. Os sais biliares podem estar insuficientes na luz
intestinal por síndromes colestáticas, pois a bile não está chegando à luz intestinal, e também
por alterações na circulação enterohepatica dos sais biliares, como numa ressecção ileal,
Crohn e alterações no crescimento bacteriano.
2) Má absorção intestinal - pode ocorrer por alteração da mucosa, comum nas doenças
inflamatórias, celíaca, giardíase e alergia à proteína do leite de vaca.

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3) Fermentação - pode ocorrer por alteração de enzimas do bordo em escova e má
absorção de carboidratos. Isso pode ocorrer na intolerância a lactose, que pode ser do tipo
primária, geneticamente determinada, que a pessoa vai perdendo a produção da enzima ao
longo do tempo e chega um momento que ela acaba, causando os sintomas. A intolerância
secundária ocorre por uma outra doença, como por exemplo pela doença celíaca, em que há
um trauma direto à mucosa, e isso vai levar a deficiência da enzima lactase, desenvolvendo a
intolerância.
Investigação direcionada
Alteração da digestão intraluminar
A investigação do paciente com redução do sais biliares, podemos fazer o Sudam ou
teste de gordura nas fezes (análise das fezes na microscopia, com o corante de Sudam) mas o
ideal é dosar a gordura nas fezes. Geralmente a gordura fecal é mais de 30%, eles absorvem
só até 70% da gordura ingerida. Para aferir isso, você tem que colher as fezes do paciente por
no mínimo 48 horas, então aqui no HC não é tão usada, o diagnóstico é mais subjetivo.
Podemos fazer também a confirmação através da aferição direta da amilase e Bic no suco
duodenal. Também podemos investigar a presença de elastase nas fezes. Na alteração biliar,
podemos medir ácidos biliares nas fezes e no sangue.
Causas de insuficiência pancreática exócrina: fibrose cística, S. Shwachman, Pearson,
Johanson Blizzard. Causas de redução da concentração de sais biliares luz intestinal:
colestase, alteração circulação enterohepática(ressecção ileal, Crohn, super crescimento
bacteriano).
Má absorção intestinal
Como a alteração é a nível de mucosa, a biópsia intestinal é importante. As fezes são
líquidas e de cheiro ácido, pela fermentação dos açúcares. Tem esteatorreia leve, com
presença de 15 a 30% da gordura ingerida, ou seja, ele absorve mais de 70% da gordura.
O teste de absorção da xilose não é tão utilizado, mas você dá xilose por via oral e
depois dosa a xilose sérica, que se for menor do que 25 é porque não está absorvendo.
Antigamente era uma triagem pra quem iria pra biópsia, mas atualmente, quando suspeita-se
de má absorção já vai direto pra EDA e biópsia.
Investigação da doença celíaca: usamos os Ac antiendomísio e a transglutaminase tecidual
normalmente, mas tem ainda IgA anticorpo antigliadina e IgG anticorpo antigliadina, que
são menos sensíveis e específicos. O Ac antiendomísio é um exame dinâmico, examinador
dependente, então apresenta algumas limitações.

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A biópsia da doença celíaca vai apresentar atrofia de vilos, hiperplasia de criptas e
aumento de linfócitos intra-epiteliais e da lâmina própria. Normalmente, as vilosidades tem
3X o tamanho das criptas, na doença celíaca essa proporção é bem reduzida.
Alergia a proteína do leite de vaca: a maioria é não IgE-mediada, não adianta investigar
eosinofilia, IgE, IgE por RAST. Na biópsia temos alterações inespecíficas e atrofia parcial de
vilos. O diagnóstico é pela melhora com exclusão do leite da dieta e com a provocação da
diarreia.
Diarreia pós infecciosa - é multifatorial então podemos ter intolerância a carboidratos,
alergia a proteína do leite de vaca, persistência de patógenos e super crescimento bacteriano.
A biópsia é bem inespecífica.
Existem duas situações não muito comuns, que podem ser diagnosticadas pela biópsia
são:
Abetalipoproteinimia - paciente com deficiência da betalipoproteinase. Na biópsia
teremos enterócitos com gotículas de gordura. O colesterol e TG são baixos e temos ausência
de LDL e apoproteina B.
Linfangiectasia - na biópsia temos vilo distorcido por linfáticos dilatados. Temos
hipoalbuminemia, linfopenia e alfa-1-anti tripsina + nas fezes (enteropatia perdedora de
proteínas).
Diarreia por fermentação
As causas primárias são por deficiência da lactase, de sacarase isomaltase ou de glucose
galactose. As causas secundárias são por todas as doenças que causam atrofia de vilos (doença
celíaca, APLV, pós infecciosa, giardíase e doença de Crohn).
Esses pacientes têm fezes líquidas, ácidas, geralmente com gases e sem esteatorreia, a
menos que eles tenham o trânsito rápido.
O diagnóstico é por três exames: determinar a quantidade das enzimas por biópsia
intestinal, teste do H expirado após administração de CH e o mais usado é o teste de
tolerância à carboidratos. Medimos a glicemia em jejum, fornecemos o açúcar, e a curva de
glicemia deve aumentar no mínimo 20%, se não aumentar, ele não está absorvendo. Esse
exame é usado a partir dos 5 anos de idade, porque senão ele pode ter diarreia e desidratar. O
mais importante é ele desenvolver sintomas após a ingestão do açúcar, porque às vezes a
curva é normal mas ele tem a diarreia, ele pode ter só um intestino irritável, ele tem diarreia
mas não é por má absorção.

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O teste de H expirado, quando você dá o açúcar, você mede o H no ar expirado,
porque se ele tiver digerindo, ele vai expirar o H marcado. O ideal é fazer acima de 4 anos,
porque também pode dar diarreia. Pode dar falso negativo (ausência de bactéria
fermentadora na flora, uso antibiótico, trânsito rápido, bactéria que consome H) e falso
positivo(aumento no número de bactérias produtoras de H (i.e. uso atb), confusão com super
crescimento bacteriano).
No super crescimento bacteriano, podemos ter alteração da digestão intraluminar, má
absorção e fermentação. As causas podem ser anatômicas, por divertículos, estenose ou alça
cega, por dismotilidade, causada por pseudobstrução e neuropatia, ou também por excesso de
bactérias em cloridrico, fístula, ausência de válvula ileocecal.
A confirmação do super crescimento bacteriano pode ser por teste de H expirado, eles
fazem um pico precoce de hidrogênio. Podemos também fazer cultura de aspirado duodenal,
onde veremos um aumento de bactérias no duodeno.
Diarreia no período neonatal é bem raro ter essas doenças, mas elas são detectadas pela
biópsia intestinal: enteropatia tufting, enteropatia autoimune (AC anti-enterócitos) e atrofia
congênita dos microvilus.
Diarreia crônica por tumor produtor de hormônio - são mais raras na criança, é um
tipo de diarreia secretora, ou seja, ela não melhora com jejum. Os tipos de tumores são:
1. VIPoma- VIP no plasma, tumor no pâncreas ou duodeno (ganglioneuroma ou
neuroblastoma, feo) localização pelaTC, RNM.
2. Tumor carcinóide: 5-HI (ácido 5-OH-indolacético) na urina, localização por
radioisótopo marcado - C 11.
3. Gastrinoma: gastrina
4. Ca medular de tireóide: hipocalcemia
5. Mastocitoma: Bx intestinal
6. MEN (neoplasia endócrina múltipla)

Casos Clínicos - Diarreia Crônica


Caso 1
Paciente 6 meses, masculino. História de fezes líquidas, sem muco, pus ou sangue, 10
vezes ao dia, há 2 meses. Houve queda na curva de crescimento. De história mórbida
pregressa temos eczema e broncoespasmo. De antecedentes alimentares temos aleitamento
materno exclusivo até os 4 meses, depois leite de fórmula. Há um mês, foi introduzido
frutas,sucos e sopa. Não tem nada de história familiar.

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O diagnóstico provável é por alergia a proteína do leite de vaca (APLV), pela história
alimentar e de atopia. Para comprovar, podemos retirar o leite da dieta, pois é bem difícil
fazer o teste da xilose, ela não consegue tomar toda a dose. O tratamento vai ser dar só o leite
materno e a dieta complementar, sem esse leite de fórmula. A mãe também tem que ficar sem
leite de vaca e derivados, pois as vezes o Ag pode passar pelo leite materno. Se a mãe não
tiver leite suficiente, vamos tentar dar alguns medicamentos pra aumentar a produção, ou
leite de fórmula hidrolisado, em que a proteína é quebrada e não ativa o sistema imune. 10%
das pacientes podem desenvolver alergia a proteína hidrolisada, e para esses indicamos o leite
só com aminoácidos. O leite de cabra e de soja tem proteínas grandes, então pode ser feita
uma reação cruzada e causar alergia de qualquer forma. O leite de cabra ainda pode causar
anemia megaloblástica pela deficiência na absorção de ácido fólico.
O tempo para o tratamento ser eficaz é de 2 semanas, se tiver sangue nas fezes tem que
melhorar em até 4 semanas. Após esse período, aguardamos uma melhora do estado
nutricional, e podemos fazer o teste de provocação para poder confirmar o diagnóstico. Essa
alergia, normalmente vai ter uma intolerância induzida, com a retirada dos alimentos o
paciente vai ser dessensiblizado. Após uma dieta de seis meses, ele normalmente já vai ter
melhorado dessa alergia, então vamos fazer a dieta por seis meses, depois fazer o teste de
provocação, pra ver ser já dessensibilizou. 50% cura em um ano, e 90% em dois anos.
Caso 2
Paciente masculino de dez meses. Fezes líquidas, fétidas, volumosas e com brilho, sem
muco, pus ou sangue, 8 vezes ao dia, há 3 meses. Houve queda na curva de crescimento.
Aleitamento materno até os 8 meses, depois leite de fórmula. Frutas, sucos e sopa aos 4 meses.
Bolacha, pão e macarrão aos 6 meses. O pai tem diarreia crônica.
O diagnóstico provável é de doença celíaca, pela história de introdução de glúten na
dieta, história familiar de diarreia crônica e por ter também presença de gordura nas fezes. O
melhor exame de pedir é a transglutaminase tecidual, mas no HC fazemos Ac anti-
endomísio. Se der positivo, vamos fazer a biópsia confirmatória.
O tratamento vai ser a retirada do glúten da dieta dessa criança, e isso vai ser por toda a
vida. Retirada de trigo, cevada, centeio e aveia, pois a aveia está na verdade geralmente
contaminada com o glúten.
Caso 3
Paciente do sexo masculino, 11 meses. Fezes pastosas, fétidas, volumosas e com brilho,
sem muco, pus ou sangue, 8 vezes ao dia, há 6 meses. Houve queda na curva de crescimento

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e apetite voraz. Leite materno até os 10 meses, depois leite de fórmula, frutas sucos e sopas
aos 4 meses. Atualmente cardápio familiar. Tem de HMP infecção pulmonar de repetição. O
irmão foi a óbito aos 5 meses por diarreia crônica e desnutrição.
O diagnóstico mais provável é a fibrose cística, pela ausência de relação com a
alimentação, história familiar e história de infecções pulmonares. O diagnóstico desse
paciente pode ser pelos eletrólitos no suor, que vai ter cloro aumentado e poderia ser
confirmado pela alteração genotipica.
O tratamento vai ser pelo fornecimento de enzimas pancreáticas, reposição de
vitaminas ADEK e suplemento, pois ele tem um maior consumo calórico.
Caso 4
Paciente 5 meses, masculino. Fezes líquidas, cheiro ácido, sem muco, pus ou sangue, 6
vezes ao dia, há 1 mês. Não ganhou peso nesse período. Aparecimento de eritema na região
das fraldas. No início do quadro teve febre e vômitos por 2 dias. Aleitamento por fórmula
exclusivo.
O diagnóstico provável é de diarreia pós infecciosa, com desenvolvimento de
intolerância a lactose secundária. O melhor seria retirar a lactose da dieta. Mas no
diagnóstico podemos fazer substância redutora de pH, o melhor é fazer na hora pra não dar
falso positivo. O tratamento desse paciente é indicar o leite de fórmula sem lactose,
geralmente por um mês, porque essa intolerância é secundária.
Caso 5
Paciente de 2 anos, sexo masculino. Fezes líquidas, por vezes pastosas, sem muco, pus ou
sangue. 5 vezes ao dia há 3 meses. Bom apetite, bom ganho de peso. Ativo. Cardápio familiar
desde os 12 meses.
O diagnóstico provável pode ser de diarreia crônica inespecífica, ele tem apetite, não
tem perda de peso é ativo. Um diagnóstico diferencial sempre é a giárdia, então podemos
tratar o paciente nessa condição, mesmo sem confirmação diagnóstica, se ele melhorar pode
ser que essa seja a causa. A melhor conduta é tratar pra giárdia, substância redutora e pH pra
afastar intolerância a lactose, sangue oculto e leucócitos pra afastar causas inflamatórias, e
podemos pedir gordura e coprocultura. São geralmente os exames que vão excluir outras
causas.
O tratamento é reduzir a quantidade de suco, que tem muito sorbitol e piora a diarreia.
Não pode tirar fibra e gordura, porque a fibra aumenta o volume das fezes e a gordura
diminui o esvaziamento gástrico, e isso melhora a diarreia

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