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revista da número 9

setembro de 2003
abem

A música e o cérebro: algumas


implicações do
neurodesenvolvimento para a
educação musical
Beatriz Ilari
Departamento de Artes - UFPR
beatriz.ilari@elf.mcgill.ca / beatrizilari@yahoo.ca

Resumo. Este artigo tem como objetivo discutir alguns resultados de pesquisas recentes sobre o
desenvolvimento do cérebro e as implicações destas na área da educação musical. Na primeira parte
do artigo há uma breve introdução ao cérebro e seu desenvolvimento, incluindo suas partes, sinapses
e lateralização. Em seguida, são discutidos os sistemas envolvidos no neurodesenvolvimento, bem
como os fatores que influenciam o desenvolvimento do perfil da mente de cada criança. As questões
da inteligência e do talento são abordadas na terceira parte do artigo. Algumas implicações dos estudos
da neurociência para a educação musical são discutidas na quarta e última parte do artigo, na qual
diversas sugestões para o ensino e para a avaliação também são propostas.

Palavras-chave: desenvolvimento do cérebro, cognição, educação musical

Abstract. This paper aims to discuss recent brain development research and some of its implications
for music education. In the first part of the paper there is a brief introduction to the brain and its development,
including its parts, synapses and lateralization. The second part includes a discussion on the systems
involved in neurodevelopment and the factors that influence the development of the mental profile of
each individual child. Issues such as intelligence and talent are tackled in the third part of the article. The
implications of neuroscience research for music education are discussed in the fourth and last part of the
article, in which suggestions for education and assessment are also proposed.

Keywords: brain development, cognition, music education

Introdução

As descobertas recentes da pesquisa cien- são causadas quando alguém sofre um acidente e
tífica sobre o cérebro exercem um fascínio enorme o cérebro é lesado (Marin; Perry, 1999; Morato,
sobre todos nós. Isso ocorre porque praticamente 2000; Peretz, 2001; Peretz et al., 2002). Não há
todas as atividades de nossa vida cotidiana estão novidade alguma em dizer que o cérebro controla
relacionadas ao funcionamento desse importante nossas ações e pensamentos, entre elas nossas
orgão vital (Herculano-Houzel, 2002). Hoje em dia, atividades musicais. Nesse contexto, este artigo
todos nós sabemos qual a importância do cérebro tem como objetivo descrever alguns resultados de
no desenvolvimento humano e também na apren- pesquisas recentes da neurociência sobre o de-
dizagem e na cognição. Sabemos também dos atra- senvolvimento da mente, bem como discutir as im-
sos cognitivos e motores e das deficiências que plicações destas na área da educação musical.

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ILARI, Beatriz. A música e o cérebro: algumas implicações do neurodesenvolvimento para a educação musical. Revista da ABEM,
Porto Alegre, V. 9, 7-16, set. 2003.
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Antes de mais nada, é necessário fazer uma trilhões de sinapses ocorrem entre as células ce-
breve introdução ao cérebro e suas principais ca- rebrais. Por se tratar de um orgão auto-organizável,
racterísticas, incluindo as questões das sinapses o cérebro do bebê é faminto de novas experiênci-
e da lateralização. Em seguida, aprenderemos so- as que o transformarão em redes neurais para a
bre os oito sistemas que constituem o neurodesen- linguagem, o raciocínio lógico, o pensamento raci-
volvimento (Levine, 2003) e os fatores que influen- onal, a resolução de problemas e os valores mo-
ciam no desenvolvimento da mente da criança. rais (Kotulak, 1997). Essas redes neurais já estão
Também discutiremos a questão da inteligência e sendo formadas antes mesmo de o bebê comple-
do talento e retomaremos alguns estudos específi- tar um ano de idade. São elas que permitem a as-
cos sobre o funcionamento do cérebro na presen- sociação de idéias e o desenvolvimento de pen-
ça de estímulos musicais. Para concluir, discutire- samentos abstratos, que constituem as bases da
mos as contribuições e implicações dos estudos inteligência, imaginação e criatividade. Contudo,
da neurociência para a aprendizagem e a cognição essas redes podem ser destruídas quando as ex-
musical das crianças. periências na infância são destituídas de estimu-
lação mental ou sobrecarregadas de estresse
Uma breve introdução ao cérebro humano (Kotulak, 1997).
A idéia do cérebro como orgão da sensação Em seu livro, Kotulak (1997) fala de quatro
e da inteligência existe desde a Antiguidade. Con- fases principais do desenvolvimento estrutural do
tudo, foi apenas no século XIX que surgiram os cérebro. A primeira fase ocorre durante o estágio
primeiros estudos científicos sobre o cérebro fetal. Nos primeiros meses da vida fetal, bilhões de
(Morato, 2000). O interesse pela cognição surgiu células são formadas. Metade delas morre; estí-
também nessa mesma época, quando a psique mulos externos organizam algumas e eliminam
deixou de ser vista como um atributo divino e pas- outras para formar a estrutura básica do cérebro,
sou a ser vista como um atributo humano. Desde ou seja, a estrutura que caracteriza e diferencia as
então, o estudo do cérebro vem avançando de crianças em meninos e meninas. A segunda fase
maneira rápida e significativa. se dá logo após o nascimento, quando surgem
Em linhas gerais, o cérebro pode ser defini- trilhões de conexões entre as células, que formam
do como um labirinto em forma de noz, mais ou os “mapas mentais” do cérebro, responsáveis, en-
menos do tamanho de duas mãos fechadas colo- tre outras coisas, pela visão, linguagem e audição.
cadas frente a frente, e composto por aproximada- Na terceira fase, que vai dos 4 aos 10 anos de ida-
mente 12 bilhões de células (Campbell, 1996). de, novos aprendizados reorganizam e reforçam
Segundo Campbell (1996), o cérebro se parece com as conexões entre as células do cérebro humano.
uma série de montinhos e linhas de massa cinzen- Novas conexões são formadas à medida que no-
ta e rosa, com uma textura macia. As células do vos conhecimentos são adquiridos. A quarta e últi-
cérebro, também conhecidas por neurônios, rece- ma fase ocorre após os 10 anos de idade. Ainda
bem, analisam, coordenam e transmitem informa- capaz de sofrer mudanças físicas, o cérebro apren-
ções (Kotulak, 1997). No decorrer da vida, o cére- de e memoriza informações no decorrer de toda a
bro aprende e memoriza através de constantes vida (Kotulak, 1997). Segundo Herculano-Houzel
mudanças em sua imensa rede de conexões entre (2001), alguns neurônios novos aparecem no cé-
neurônios. Essas conexões são chamadas rebro do adulto porém, somente em algumas par-
sinapses, e ocorrem em decorrência de estímulos tes específicas do cérebro. São muitos os mistéri-
provenientes do meio (Kotulak, 1997). Muitas os da mente que a neurociência vem procurando
sinapses formam conexões sólidas com as células investigar. Contudo, para fins deste artigo, nós nos
do cérebro e se tornam partes do cérebro em de- concentraremos no cérebro em formação, ou seja,
senvolvimento. Já as outras sinapses, as desco- no cérebro da criança, e deixaremos de lado as
nexas, desaparecem com o tempo (Herculano- especificidades do cérebro adulto. Entretanto, uma
Houzel, 2001). De acordo com Kotulak (1997), essa introdução superficial às partes principais do cére-
é a maneira que o cérebro encontra para eliminar bro se faz necessária, bem como uma rápida intro-
sinapses em excesso, para que as restantes, ain- dução ao conceito de lateralização.
da em quantidade considerável, possam formar um
Lateralização: os hemisférios do cérebro
cérebro funcional.

O desenvolvimento estrutural do cérebro A neurociência já mapeou o cérebro. O cé-


rebro do ser humano normal é composto por duas
Logo após o nascimento, o cérebro do bebê metades ou hemisférios: o direito e o esquerdo. Os
passa por um crescimento fantástico, no qual hemisférios são unidos por diversos feixes de fi-

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bras de comunicação, sendo o corpo caloso o mai- Os oito sistemas do neurodesenvolvimento e


or deles (Carneiro, 2001). Embora os hemisférios o perfil da mente
direito e esquerdo pareçam ser idênticos a olho nu,
existem diferenças fundamentais entre eles. Na Como já ficou dito, existem cerca de 30 mi-
maioria das pessoas, o hemisfério direito coman- lhões de sinapses que formam uma rede no cére-
da o lado esquerdo do corpo, e o hemisfério es- bro humano. Essa rede suporta uma quantidade
querdo comanda o lado direito do corpo. Carneiro enorme de conexões, desconexões, conexões es-
(2001) nos ensina que diversas investigações já tranhas ou mal feitas, ou seja, uma variedade enor-
comprovaram que o predomínio de um lado do cor- me de combinações de possibilidades que afetam
po sobre o outro (como no caso da dextralidade, o neurodesenvolvimento. Algumas conexões per-
ou seja, dos membros que usamos “melhor” do que mitem que as crianças adquiram certas habilida-
outros) tem bases neurofisiológicas e des específicas, como tocar violão ou memorizar
neuroanatômicas, e pode ainda ser generalizável uma série de jogadas numa partida de xadrez. As
para outras áreas das funções cerebrais. conexões do cérebro originam diferentes compor-
tamentos, movimentos, percepções e habilidades.
Aliás, essa é outra diferença fundamental dos Para melhor compreendê-las, é interessante ver
hemisférios cerebrais: as funções que cada um dos como se organizam em “construtos do neurodesen-
hemisférios comanda. De maneira geral, a lingua- volvimento”ou sistemas, como sugere Levine
gem, o raciocínio lógico, determinados tipos de (2003). Estes sistemas não existem de maneira iso-
memória, o cálculo, a análise e resolução de pro- lada, mas estão entrelaçados e combinados entre
blemas são comandados pelo hemisfério esquer- si. São eles:
do do cérebro, freqüentemente citado como hemis-
fério dominante ou principal. Já as habilidades 1) Sistema de controle da atenção – respon-
manuais não-verbais, as intuições, a imaginação, sável pelo direcionamento e distribuição da
os sentimentos e a síntese são comandadas pelo energia mental dentro do cérebro. É esse
hemisfério direito (Cardoso, 2001; Carneiro, 2001). controle que mantém a criança concentra-
Com relação à percepção de sons, Carneiro (2001) da, permitindo que dê atenção exclusiva a
sugere que é predominantemente no hemisfério uma determinada tarefa e ignore as distra-
esquerdo que se percebem os sons relacionados ções.
com a linguagem verbal, e no hemisfério direito que
são percebidos a música e os sons emitidos por 2) Sistema da memória – responsável pelo
animais. armazenamento de informações, é importan-
tíssimo no aprendizado de qualquer discipli-
Embora se diga que a percepção da música na. Devido ao fato de a música ser uma arte
se localize primordialmente no hemisfério direito temporal (isto é, que existe num determina-
do cérebro, sabe-se hoje que o aprendizado musi- do tempo e espaço), o sistema da memória
cal depende dos dois hemisférios, uma vez que ele tem uma importância fundamental para a
é interdependente de outras funções cerebrais, educação musical.
como a memória, a linguagem verbal, a resolução
de problemas e a análise, entre outras. A propósi- 3) Sistema da linguagem – responsável pela
to, sabe-se hoje que o cérebro do músico treinado detecção dos diferentes sons de uma língua,
é diferente do cérebro do não-músico (veja Costa- pela habilidade de compreender, lembrar e
Giomi, 2001). Enquanto o não-músico processa utilizar um vocabulário novo, pela capacida-
informação musical primordialmente no hemisfério de de expressão de pensamentos na forma
direito do cérebro, o músico treinado processa in- da fala ou escrita, e pelo ritmo de compre-
formação musical nos dois hemisférios, e apresenta ensão com que o indivíduo atende às expli-
uma quantidade maior de conexões entre os he- cações e instruções verbais.
misférios durante as atividades de escuta musical
(Bever; Chiarello, 1974), o que indica uma escuta 4) Sistema de orientação espacial – respon-
musical analítica. Esse e outros estudos (Besson sável pela capacitação do indivíduo para li-
et al., 1998; Costa-Giomi, 2001) sugerem que a dar ou criar informações organizadas em
aprendizagem e o treino musical exercem efeitos Gestalt, em padrões visuais ou em configu-
sobre a atividade cerebral e a lateralidade. Seja rações específicas. A orientação espacial
como for, não se pode falar em lateralidade e nos permite perceber que várias partes se
neurodesenvolvimento sem falar nos sistemas que encaixam em um todo, como num quebra-
compõem o desenvolvimento e o perfil da mente. cabeça.

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5) Sistema de ordenação seqüencial – res- senvolvimento das crianças. A pobreza, por exem-
ponsável pela capacitação do indivíduo para plo, afeta o modo de vida, o desenvolvimento das
lidar com as cadeias de informação que têm comunidades, os níveis de estresse dos indivídu-
uma ordem ou seqüência. No caso da músi- os, o acesso à informação e, logicamente, os valo-
ca, é esse sistema que permite ao aluno com- res e interesses das famílias e das crianças que
preender o conceito de escalas e seqüência fazem parte das mesmas. Relacionado a este, está
musical. o terceiro fator listado por Levine (2003): o fator
cultural. A cultura de onde a criança vem exerce
6) Sistema motor – responsável pelas co- uma influência enorme sobre o desenvolvimento
nexões entre o cérebro e os diversos mús- da criança. Ao compararmos o cotidiano de crian-
culos do corpo humano. Por exemplo, o sis- ças de culturas diferentes, como, por exemplo, uma
tema motor possibilita que uma determina- criança brasileira, uma berbere-marroquina e uma
da criança toque violino ou pratique um es- alemã, notamos algumas diferenças fundamentais.
porte. A cultura exerce um papel preponderante, da ali-
mentação ao modo de vestir, da língua falada aos
7) Sistema do pensamento superior – res-
comportamentos.
ponsável pelo raciocíno lógico, pela resolu-
ção de problemas, pela formação e utiliza- Como não poderia deixar de ser, o meio so-
ção de conceitos, pela compreensão de cial também exerce uma influência considerável
como e onde as regras são aplicadas e váli- sobre o desenvolvimento da mente da criança.
das, e pela percepção do ponto central de Sabemos hoje que os amigos das crianças são fi-
uma idéia complexa. guras importantes, que exercem um papel primor-
dial no desenvolvimento do perfil da mente. Um
8) Sistema do pensamento social – respon-
exemplo típico é o caso da criança que estava indo
sável pela capacidade de interagir através
muito bem na escola até conhecer um amigo X,
de relações interpessoais e de pertencimento
que foi chamado de “má influência” por ter ajudado
em um grupo. Na educação musical, é o sis-
a despertar na criança outros interesses que não
tema de pensamento social que permite que
os escolares. Ou então o caso do adolescente que
as crianças façam música de câmara ou can-
se apaixona por uma determinada causa (política
tem juntas em um coral.
estudantil, esporte, música) por influência de um
O desenvolvimento do cérebro depende, líder na turma. Ambos os exemplos ilustram bem a
entre outras coisas, do desenvolvimento dos siste- influência do meio social no desenvolvimento do
mas acima citados. Além disso, Levine (2003) cita perfil da mente.
diversos fatores que influem no desenvolvimento
do perfil da mente de cada criança. Enquanto al- A saúde física e mental constitui um quinto
guns fatores são mutáveis e podem ser modifica- fator de influência no neurodesenvolvimento. Des-
dos pelos pais e educadores, há outros que são nutrição, enfermidades, deficiências e doenças
fixos e que, portanto, estão além do controle hu- congênitas e traumas físicos são alguns exemplos
mano. Como exemplo, a herança genética que a de como a saúde pode afetar o desenvolvimento
criança recebe dos pais, apesar de todos os avan- do cérebro humano durante o período escolar. Cri-
ços científicos dos últimos tempos, ainda não pode anças portadoras de síndrome de Down, por exem-
ser alterada. Querendo ou não, há certas caracte- plo, apresentam algumas dificuldades característi-
rísticas dos pais (como a facilidade para aprender cas na aprendizagem, e necessitam de uma edu-
línguas estrangeiras ou a aptidão especial para cação especial. O mesmo ocorre com as crianças
jogar futebol) que também são transmitidas aos portadoras de diversas síndromes. A desnutrição
seus filhos. Como sugere Levine (2003), embora a também influencia na saúde. As crianças desnutri-
genética seja poderosa, isso não nos impede de das e mal alimentadas freqüentemente apresen-
trabalhar nossas próprias deficiências e dificulda- tam dificuldades cognitivas e motoras, resultado da
des. A herança genética constitui, obviamente, o fome numa época em que o cérebro está em pleno
primeiro fator que influencia o neurodesenvolvi- desenvolvimento e necessita de alimento para
mento. transformá-lo em energia. A saúde é, sem sombra
de dúvida, um fator de extrema importância no de-
Vida familiar e o nível de estresse são ou- senvolvimento da mente humana.
tros fatores que influenciam o desenvolvimento do
perfil da mente da criança. Nós sabemos muito a As emoções também influenciam o
respeito da influência das condições socioeco- neurodesenvolvimento infantil. Tomemos por exem-
nômicas nas relações entre pais e filhos e no de- plo uma criança que vive a experiência da separa-

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ção dos pais após anos de crises conjugais e vio- cem uma influência fundamental no desenvolvimen-
lência doméstica. As emoções que essa criança to do perfil mental de cada criança.
experimenta podem afastá-la das atividades esco-
lares e dos amigos, vindo a prejudicar seu desen- Ainda com relação à experiência educacio-
volvimento, e tendo conseqüências sérias na for- nal, Levine (2003) discute como o estilo de vida
mação de seu perfil mental. pode influenciar o estilo de aprendizagem de cada
criança. Segundo ele, vários aspectos da vida con-
A experiência educacional constitui o oitavo temporânea são, de fato, nocivos ao pleno desen-
e último fator de influência na formação do perfil volvimento do cérebro bem como da formação do
da mente da criança, citado por Levine (2003). O perfil da mente de cada criança. A televisão e os
autor entende experiência educacional como o jogos eletrônicos, a linguagem simples, as músi-
modo e a qualidade da educação recebida. A cri- cas infantis que são repetitivas e supersim-
ança que estuda em uma escola voltada para o plificadas, entre outros, incentivam atitudes passi-
desenvolvimento do raciocínio lógico e a resolu- vas e pouco estimulam o cérebro e funções como
ção de problemas terá um perfil mental bastante a resolução de problemas, a memória e o sistema
diferente de uma segunda criança que freqüenta motor. Em contrapartida, Levine também chama
uma escola que incentiva a mera repetição e nossa atenção para o caso das crianças
memorização de frases. Embora cada criança te- superestimuladas, cujas mentes e corpos estão
nha um modo singular de aprender (isto é, algu- sobrecarregadas. Em ambos os casos, vê-se o re-
mas crianças aprendem com maior facilidade quan- flexo do estilo de vida moderna no desenvolvimen-
do têm imagens e diagramas de apoio; outras pre- to do perfil da mente das crianças.
ferem o aprendizado através da repetição de con-
ceitos e fórmulas), é importante lembrarmos que A Figura 1, abaixo, ilustra os fatores que influ-
tanto o modo quanto a qualidade do ensino exer- enciam o neurodesenvolvimento de cada criança.

Herança
Genética
Meio Emoções
ambiente

Família Perfil do Meio social-


neurodesenvolvimento amigos
da criança

Fatores
Culturais Saúde
Experiência
educacional

Figura 1: Os fatores que influenciam o desenvolvimento do perfil da mente de cada criança (adaptado de Levine, 2003, p. 31).

Do nascimento à idade adulta, o cérebro ta, ora de maneira subliminar. Por essa razão, é
passa por uma quantidade enorme de transforma- importante delinearmos o conceito de inteligência,
ções através de experiências e estímulos. Estes de modo que ele possa ser aplicável às práticas
auxiliam no desenvolvimento de cada um dos oito educacionais.
sistemas e dão origem a diferentes comportamen-
tos, movimentos, percepções e habilidades. Cada Inteligência e cérebro
criança tem um cérebro diferente, assim como um Testes de inteligência, inatismo e aquisição
perfil da mente único, este último formado por di-
versos fatores. Em outras palavras, o desenvolvi- A idéia de equacionar o cérebro com a inte-
mento do cérebro da criança é um processo extre- ligência é antiga. Gould (1981) nos ensina que, por
mamente complexo e dependente de uma combi- muitos anos, persistiu a idéia de que a inteligência
nação de muitos fatores. Entretanto, quando fala- humana era um correlato do tamanho do cérebro.
mos em desenvolvimento do cérebro, o conceito Por exemplo, o célebre psicólogo Alfred Binet
de inteligência sempre surge, ora de maneira dire- (1857-1911), cujo nome é mais comumente asso-

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ciado aos testes de Q.I. (Quociente de Inteligên- cias múltiplas, do americano Howard Gardner
cia), investigou e formulou teorias sobre a inteli- (1983). Baseado em pesquisas da neurobiologia,
gência humana baseadas em observações Gardner notou a existência, ainda que aproxima-
comportamentais e medidas dos crânios humanos. da, de áreas distintas de cognição no cérebro, cada
Em 1904, Binet foi comissionado pelo ministério uma específica para um tipo de competência e
da educação francês para criar técnicas para iden- processamento de informações (Antunes, 2002),
tificar crianças com problemas de aprendizagem Com isso, Gardner sugeriu que a inteligência não
escolar. Foi então que surgiu, possivelmente, um é unitária, mas, sim, compartimentada por compe-
dos primeiros testes sistemáticos de inteligência: tências específicas. Quando publicou a primeira
a escala Binet. Alguns anos depois, a escala Binet edição de sua teoria em 1983, Gardner propôs a
foi modificada e se transformou no chamado teste existência de pelo menos oito inteligências. São
Stanford-Binet, ainda hoje bastante utilizado na elas: a inteligência lingüística ou verbal, a lógico-
América do Norte para medir o quociente de inteli- matemática, a espacial, a musical, a cinestésica
gência das crianças e adultos. corporal, a naturalista, a intrapessoal e a inter-
pessoal. Cada uma dessas inteligências aparenta
Segundo Gould (1981), o próprio Binet sali- estar localizada em uma parte distinta do cérebro
entou que os testes de sua escala deveriam ser humano. Todo ser humano possui todas essas in-
utilizados apenas como diagnóstico e nunca como teligências, embora cada indivíduo tenha algumas
uma forma de segregar indivíduos. Infelizmente, os delas mais predominantes do que as outras. Por
testes nem sempre foram utilizados da maneira que exemplo, há indivíduos que têm uma predominân-
ele recomendou. Em decorrência da superva- cia das inteligências cinestésica-corporal e
lorização da inteligência e daqueles que a possu- interpessoal, enquanto em outros predominam as
em no mundo ocidental (Gardner, 1983), muitos inteligências musical e lógico-matemática. Uma vez
relatos de preconceitos, injustiças e segregações que nossa preocupação aqui é com a cognição
decorrentes dos resultados de testes administra- musical, é importante discutirmos a questão da in-
dos em massa são encontrados na literatura. Há teligência musical em maior profundidade. Por uma
muita controvérsia, ainda hoje, a respeito dos be- questão de espaço, deixaremos a discussão sobre
nefícios e prejuízos decorrentes da aplicação de as demais inteligências para uma outra ocasião.
testes como o Stanford-Binet, bem como da vali-
dade de seus resultados. A inteligência musical

Contudo, não se pode negar que a existên- A inteligência musical é provavelmente a


cia dos testes de inteligência traz à tona a antiga mais discutida de todas (Antunes, 2002). Em prati-
discussão sobre o inato versus o adquirido camente todas as culturas do mundo, fala-se em cri-
(Newcombe, 2002; Spelke, 2000). Quando pensa- anças com “maiores aptidões”, “com bom ouvido para
mos em inteligência ou ainda em talento, sempre música” ou “com talento musical”, e crianças “que
remetemos a essa questão. Há quem acredite que não levam jeito para música”. Ou seja, ainda existe
a hereditariedade e o código genético é que deter- muita confusão entre a inteligência musical e o ta-
minam o que somos e como seremos. Ou seja, al- lento. Mesmo assim, é importante salientar que es-
guns seres humanos já nascem inteligentes ou ses termos não são sinônimos. Segundo Antunes
talentosos enquanto outros são menos dotados, e (2002), é notável o fato de o talento ser geralmente
assim permanecerão. Uma segunda corrente su- visto como uma característica excludente. Em ou-
gere que somos um produto de nosso meio. Em tras palavras, o talento não existiria em todos, mas
outras palavras, que as experiências adquiridas em apenas em alguns seres “privilegiados”. Uma segun-
vida é que resultam na inteligência e no talento do da característica do talento é a idéia bastante difun-
ser humano. Entretanto, há hoje uma forte tendên- dida de que o talento é inato, fixo e já vem “pronto”,
cia em se pensar que a combinação das caracte- ou seja, que a criança talentosa já nasce assim e
rísticas inatas e adquiridas é que nos transforma não necessita de muito treino ou aperfeiçoamento.
em quem somos; que, em última análise, é essa Já a inteligência é bastante diferente. A teoria de
combinação que impulsiona o desenvolvimento de Gardner (1983) sugere que todos os seres normais
nossa inteligência. Mas como definir inteligência, (isto é, não portadores de doenças congênitas como
esse termo tão usado em nossas vidas cotidianas? autismo ou síndrome de Down) possuem todos os
tipos de inteligência, todos abertos ao desenvolvi-
A teoria das inteligências múltiplas mento. Ou seja, diferentemente do talento, a inteli-
gência musical é um traço compartilhado e mutável,
Com relação à inteligência, uma das teorias isto é, um traço que todos possuem em um certo
mais aceitas na atualidade é a teoria das inteligên- grau e que é passível de ser modificado.

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A inteligência musical pode ser definida Janelas de oportunidades


como a capacidade de percepção, identificação,
Um outro conceito, comumente associado à
classificação de sons diferentes, de nuances de
teoria de Gardner, é o que os neurobiólogos cha-
intensidades, direção, andamento, tons e melo- mam de “janelas de oportunidades”. Essas janelas
dias, ritmo, freqüência, agrupamentos sonoros, são, na verdade, os períodos em que as crianças
timbres e estilos, entre outros (Antunes, 2002). parecem ter maiores facilidades para desenvolve-
A inteligência musical inclui também as diver- rem cada tipo de inteligência. É importante notar que
sas formas envolvidas no “fazer música”, tais o aprendizado não se limita ao “período de abertura”
como execução, canto, movimento e represen- de cada janela. Em outras palavras, todas as inteli-
tações inventadas (veja Ilari, 2002b). Na escola gências podem ser estimuladas e desenvolvidas no
decorrer da vida. Contudo, é durante o período de
Projeto Zero, da Universidade de Harvard, onde
“abertura” das janelas que tal estimulação e desen-
Gardner formulou e testou sua teoria, a educa- volvimento se dão de forma mais eficiente (Antunes,
ção musical das crianças incluía uma variedade 2002; Gardner, 1983). Na Figura 2, adaptada de
enorme de atividades e métodos de avaliação, Antunes (2002, p. 22-23), estão destacados os perí-
que serão discutidos na parte final deste artigo. odos de maior abertura de cada janela.

Tipo de Hemisfério Períodos de Desenvolvimento Como estimular


Inteligência abertura da cerebral/cognitivo
janela
Espacial Direito Dos 5 aos 10 Aperfeiçoamento da Exercícios físicos,
anos de idade coordenação motora; jogos, movimentos,
percepção do corpo mapas e
no espaço. representações de
sons e melodias.
Lingüística ou Esquerdo Do nascimento Conexões que Jogos vocais,
verbal aos 10 anos de transformam sons em conversas, estórias,
idade palavras com sentido. lendas, rimas,
parlendas, estórias
musicadas.
Musical Direito Do nascimento A partir dos 3 anos, Canto, audição,
aos 10 anos de as áreas do cérebro movimento, dança,
idade* que dominam a jogos musicais,
coordenação motora identificação de sons,
são muito sensíveis e e outras atividades
já permitem a que desenvolvam o
execução musical. ouvido interno.
Cinestésica Esquerdo Do nascimento O cérebro Brincadeiras que
corporal aos 6 anos desenvolve a estimulam o tato,
capacidade de paladar e o olfato,
associação entre a mímica, interpretação
visualização e o ato de movimentos, jogos
de agarrar um objeto. e atividades motoras
diversas, com ou sem
objetos.
Interpessoal e Lobo frontal Do nascimento à As conexões entre os Brincadeiras,
Intrapessoal puberdade circuitos do sistema demonstrações de
límbico aumentam e afeto e de limites,
se tornam bastante estímulo às
sensíveis aos descobertas pessoais
estímulos provocados e também ao
por outros seres. compartilhamento de
objetos e idéias.
Naturalista Lado direito Do nascimento A conexão de Estimular a
aos 14 anos* circuitos cerebrais percepção do ar, da
transforma os sons água, da temperatura
em sensações. através de jogos.
Lógico- Lobos Do nascimento A cognição é Desenhos,
matemática parietais aos 10 anos desenvolvida através representações,
esquerdos das ações da criança jogos, atividades
com os objetos do musicais, resolução
mundo, e suas de problemas simples
expectativas em em diversas áreas e
relação aos mesmos. que estimulem o
raciocínio lógico.
* Idades diferentes são apresentadas por Antunes (2002). Alteração da autora.

Figura 2: Janelas de oportunidades

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É importante notar que os períodos de aber- aprendizado de conceitos, idéias, formas de soci-
tura das janelas não foram fixados em caráter defi- alização e cultura, sempre através das atividades
nitivo, e podem mudar profundamente de acordo musicais.
com os avanços da ciência. Por exemplo, embora
Antunes (2002) sugira que as janelas de oportuni- Muitos educadores questionam quais as for-
dade para o estímulo e desenvolvimento das inte- mas de estimular o desenvolvimento do cérebro e
ligências musical e lógico-matemática se abram a da inteligência musical de cada criança. Há até
certos mitos em relação a isso, como por exemplo
partir de, respectivamente, 3 e 1 ano de idade, as
a idéia errônea de que utilizamos somente 10% da
pesquisas recentes da psicologia cognitiva já indi-
capacidade de nosso cérebro (Herculano-Houzel,
caram que tais aprendizados ocorrem com um re-
2002). Muitos livros e vídeos sugerem fórmulas
lativo sucesso antes mesmo dos bebês completa- mágicas e exercícios que visam o desenvolvimen-
rem 1 ano de vida (ver Ilari, 2002a; Spelke, 2000). to pleno do cérebro como um todo ou de um dos
Com o avanço das pesquisas científicas e as des- hemisférios (ver Campbell, 1996). Segundo Her-
cobertas sobre as capacidades dos bebês e crian- culano-Houzel (2002), embora esta “neuróbica”,
ças pequenas, é possível que essa estimativa seja como ela os chama, tenha alguma base nas des-
profundamente alterada nos próximos anos. Ainda cobertas científicas, não há nenhuma garantia de
assim, ela nos dá uma noção geral do quanto a que funcione. Cabe então apelarmos para o bom
infância é um período propício para o desenvolvi- senso, ou para a idéia de que o cérebro saudável
mento do cérebro da criança. é o cérebro ativo (Herculano-Houzel, 2002). Em
outras palavras, ninguém precisa fazer mágica:
Implicações para a educação musical para desenvolver a inteligência musical e o cére-
bro da criança, basta fazer música.
Os estudos da neurociência apontam para a
infância como um período propício para o desen- É importante que o educador utilize uma gran-
volvimento do cérebro. Tudo indica que do nasci- de variedade de atividades e tipos de música. Can-
mento aos 10 anos de idade, o cérebro da criança tar canções em aula, bater ritmos, movimentar-se,
está em pleno desenvolvimento e apresenta as dançar, balançar partes do corpo ao som de música,
melhores “condições” de aprendizado, as chama- ouvir vários tipos de melodias e ritmos, manusear
das janelas de oportunidades. As conexões do cé- objetos sonoros e instrumentos musicais, reconhe-
rebro infantil dão origem aos diversos sistemas do cer canções, desenvolver notações espontâneas
neurodesenvolvimento, que por sua vez auxiliam antes mesmo do aprendizado da leitura musical,
no desenvolvimento das diversas inteligências. Os participar de jogos musicais, acompanhar rimas e
estímulos, desde que não em demasia, podem be- parlendas com gestos, encenar cenas musicais, par-
neficiar o meurodesenvolvimento como sugerem, ticipar de jogos de mímica de instrumentos e sons,
para o cérebro como um todo, Cardoso e Sabbatini aprender e criar histórias musicais, compor canções,
(2000): inventar músicas, cantar espontaneamente, construir
instrumentos musicais; essas são algumas das ativi-
A educação de crianças em um ambiente sensorialmente dades que devem necessariamente fazer parte da
enriquecedor desde a mais tenra idade pode ter um musicalização das crianças. Todas essas atividades
impacto sobre suas capacidades cognitivas e de memória
são benéficas e podem contribuir para o bom desen-
futuras. A presença de cor, música, sensações (tais como
a massagem do bebê), variedade de interação com volvimento do cérebro da criança. O canto, os jogos
colegas e parentes das mais variedades idades, musicais, a execução instrumental, a construção de
exercícios corporais e mentais podem ser benéficos instrumentos musicais, a composição e a notação
(desde que não sejam excessivos). (Cardoso; Sabbatini, são discutidas em maiores detalhes a seguir. A mai-
2000).
or parte dessas atividades integra o currículo de edu-
Cardoso e Sabbatini (2000) sugerem que a cação musical da escola Projeto Zero.
música pode constituir um estímulo importante para
O canto infantil e o movimento corporal
o desenvolvimento do cérebro da criança. O hábi-
to de cantar e dançar com bebês e crianças, pre- O canto acompanhado por gestos e movi-
sente em praticamente todas as culturas do mun- mento corporal faz parte da musicalização de cri-
do (Ilari; Majlis, 2002), auxilia no aprendizado mu- anças em todas as partes do mundo, especialmen-
sical, no desenvolvimento da afetividade e sociali- te da educação musical das crianças pequenas em
zação, e também no progresso da aquisição da lin- idade pré-escolar e daquelas nas primeiras séries
guagem (Ilari, 2002a; Costa-Giomi, 2001). Quan- do ensino fundamental. Tanto o canto quanto o
do a criança está em idade escolar, o aprendizado movimento em resposta aos estímulos sonoros fa-
musical, além de ter valor em si mesmo, também zem parte de comportamentos que muitos psicólo-
exerce uma segunda função, que é o ensino e o gos e educadores consideram naturais e espontâ-

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neos das crianças pequenas. O ato de cantar, es- A composição e a improvisação musical
pontaneamente ou de forma dirigida em sala de
aula, pode ativar os sistemas da linguagem, da O ato de compor música envolve a experi-
memória, e de ordenação seqüencial, entre outros. mentação com sons, a utilização do ouvido interno
Já o movimento corporal parece ajudar a desen- e a resolução de problemas. Ao compor uma can-
volver os sistemas de orientação espacial e motor. ção, a criança pode estar ativando os sistemas de
Sem falar que, quando o canto acompanhado de controle da atenção, da memória, da linguagem,
movimentos corporais acontece em salas de aula, de ordenação seqüencial e de pensamento supe-
as crianças ainda têm a possibilidade de desen- rior, entre outros. Independentemente de ser re-
volver o sistema de pensamento social. Através do presentada graficamente, as canções e obras com-
canto acompanhado por gestos e movimentos cor- postas pelas crianças parecem ser benéficas ao
porais, a criança pode vir a ter pelo menos seis neurodesenvolvimento. Entre essas composições
sistemas de seu cérebro estimulados. estão as canções espontâneas e improvisadas das
crianças pequenas. A improvisação musical, acom-
Os jogos musicais
panhada ou não de gestos e movimentos corpo-
Os jogos musicais, quando utilizados de for- rais, também pode servir para ativar os sistemas
ma lúdica, participativa e não-competitiva, podem motor e de orientação espacial.
constituir uma fonte rica de aprendizado, motiva-
ção e neurodesenvolvimento. Em geral, os jogos A notação musical
acontecem em aulas coletivas, o que obviamente A questão do uso da notação musical é bas-
visa a estimulação dos sistemas de orientação es-
tante controversa na educação musical moderna.
pacial e do pensamento social. Jogos de memória
Alguns educadores ainda acham que a notação tra-
de timbres, notas e instrumentos, dominós de cé-
dicional deve ser introduzida “de cara”, tão logo a
lulas rítmicas ou instrumentos musicais e brinca-
criança inicie seu treino musical. Mesmo assim, há
deiras de solfejo podem ativar os sistemas de con-
muitos educadores como, por exemplo, os da es-
trole de atenção, da memória, da linguagem, de
cola Projeto Zero que investem na chamada “cons-
ordenação seqüencial e do pensamento superior.
trução da notação” a partir daquilo que a criança
Já os jogos que utilizam o corpo, tais como mímica
traz consigo. Esse processo se inicia com a utiliza-
de sons imaginários, brincadeira da cadeira, canti-
ção de representações musicais que são inventa-
gas de roda, encenações musicais e pequenas
das pela criança. Através dessas representações,
danças podem incentivar o sistema da memória,
é possível detectarmos alguns aspectos da
de orientação espacial, motor e de pensamento
cognição musical infantil (Ilari, 2002b). As repre-
social, entre outras. Além de prazerosos, os jogos
sentações das crianças diferem de acordo com as
musicais de participação ativa podem constituir
diferentes idades e fases do aprendizado musical.
exemplos típicos do “aprendizado divertido”.
Enquanto as crianças bem pequenas (3 a 5 anos)
A execução instrumental utilizam muitos desenhos que ilustram a letra das
canções, as crianças maiores (6 a 10 anos) repre-
Tudo indica que o aprendizado instrumental sentam ritmos e alturas com símbolos inventados
auxilia no desenvolvimento dos sistemas de con- e desenhos. Contudo, quando a notação musical
trole de atenção, de memória, de orientação espa- tradicional é introduzida, a maioria das crianças
cial, de ordenação seqüencial, motor e de pensa- apresenta dificuldades em representar canções
mento superior. Quando o aprendizado instrumen- usando símbolos inventados (Ilari, 2002b). Ainda
tal ocorre em grupos (Suzuki, Orff) e/ou quando há assim, a utilização de notações tradicionais e in-
apresentações e recitais familiares, as crianças têm ventadas pode auxiliar no desenvolvimento dos sis-
oportunidades de desenvolver o sistema de pen- temas de orientação espacial, de ordenação
samento social. Ou seja, apesar de todas as suas seqüencial e do pensamento superior.
dificuldades inerentes, o aprendizado instrumental
aparenta ser benéfico para o desenvolvimento do A construção de instrumentos musicais
cérebro infantil. Entretanto, é importante que o edu-
Além de divertidos, os projetos de constru-
cador esteja atento à adequação do instrumento
musical para cada criança. Assim como sugeriu Carl ção de instrumentos musicais podem constituir ex-
Orff, é recomendável a utilização de instrumentos periências ricas de aprendizado, como sugere o
simples e de fácil execução para as aulas de currículo da escola Projeto Zero (Koetszch, 1997).
musicalização das crianças bem pequenas. Dessa Ao construir um instrumento, as crianças experi-
forma, desenvolve-se um senso de competência mentam com os sons produzidos por diferentes ti-
na criança pequena, que pode inclusive motivá-la pos de materiais, aprendem “na prática” sobre os
a tocar um instrumento musical “mais difícil” em fase diversos tipos de instrumentos, discutem algumas
subseqüente de seu desenvolvimento. questões de física (proporções de tamanho de ins-

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trumentos e alturas das notas musicais, materiais tar uma atenção especial ao desenvolvimento in-
e timbres, entre outras). Tudo indica que a cons- dividual de cada criança, não como alguém que
trução de instrumentos musicais é benéfica para o quer simplesmente diagnosticar, mas como alguém
desenvolvimento dos sistemas do pensamento su- que quer ajudar o aluno a desenvolver sua inteli-
perior, de ordenação seqüencial, motor e de con- gência musical e construir seu conhecimento, in-
trole da atenção. A construção de instrumentos centivando suas propensões e sanando suas difi-
musicais, entre outras, é mais um exemplo de ati- culdades. Os sistemas do neurodesenvolvimento
vidade musical prazerosa e enriquecedora. podem ser úteis para que o educador detecte quais
as facilidades e quais as dificuldades de cada alu-
Considerações finais no, em cada estágio de seu desenvolvimento. Como
sugere Levine (2003), é importante que o educa-
A maioria de nossas atividades musicais tem dor seja capaz de reconhecer as particularidades
potencial para auxiliar no desenvolvimento do cé- de cada aluno, bem como os fatores que estão in-
rebro das crianças. Cada atividade, quando cuida- fluenciando o seu aprendizado. Além disso, o edu-
dosamente planejada e realizada, parece benefici- cador deve se lembrar que além do desenvolvimen-
ar os sistemas do neurodesenvolvimento, alguns to do cérebro e da inteligência musical, a educa-
mais do que outros. Por isso, o educador necessi- ção musical da criança deve ser divertida, de modo
ta estar atento e planejar suas aulas com muito zelo a desenvolver prazer, cultura e gosto musical du-
e cuidado. Entrementes, o educador precisa pres- radouro nestes futuros adultos.

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