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DOENÇA DO REFLUXO GASTROESOFÁGICO NO ADULTO

Pelo consenso de Montreal (2016)


Afecção decorrente do fluxo retrógrado de parte do conteúdo gastroduodenal para o esôfago, acarretando variável espectro
de sintomas e sinais esofagianos e/ou extra esofagianos, associados ou não a lesões teciduais.

Existe também o refluxo gastroesofágico fisiológico


• Presente no período pós prandial. Assintomático ou sintomas passageiros. Raramente ocorre no período noturno. Não
está associado a complicações.

Epidemiologia
• Doença crônica com sintomas recorrentes, com intensidade variável e de evolução benigna na maioria dos casos –
tranquilizar o paciente quanto a neoplasias.
• Presente em cerca de 20% da população ocidental
• Incidência no Brasil: 12% (20 milhões de indivíduos)
• Responsável por até 5% das consultas médicas da atenção primária de saúde
• Menor incidência nos países orientais: influência ambiental, alimentar, racial (multifatorial)
• Muito comum associado a outros sintomas:
 Dispepsia funcional 69% das vezes possuem sintomas típicos de DRGE
 Constipação crônica
 SII
• Aumento da prevalência diretamente relacionado ao aumento da obesidade na população.
• Redução na qualidade de vida: frequentemente associada a alterações do sono, consequências negativas nas
atividades sociais e laborativas com resultante impacto financeiro.

Fisiopatologia
• Desequilíbrio entre fatores defensivos e agressores
• Fatores defensivos:
 Barreira anti-refluxo: composta pelo esfíncter esofagiano inferior, ângulo de Hiss e ligamento frenoesofágico. Terço
distal do esôfago é intra-abdominal, que ajuda no efeito de válvula anti-refluxo.
 Resistência tissular da mucosa do esôfago: células resistentes, epitélio escamoso estratificado, junções
intracelulares importantes e evitam lesões da mucosa.
 Limpeza do ácido (clareamento esofágico): peristaltismo, secreção esofágica (muco), saliva – neutralizam o ácido.
• Fatores agressores
― Acidez gástrica: HCl produzido no estomago, pepsina
 Relaxamentos transitórios do esfíncter esofágico inferior – mais importante
 Diminuição do tônus do esfíncter esofágico inferior
 Esvaziamento gástrico retardado
 Clearance esofágico deficiente
 Alterações na barreira anti-refluxo
 Infecção por H. pylori não tem relação com DRGE → pacientes com DRGE com positividade na endoscopia para H.
Pylori = se assintomáticos não tem indicação de tratamento para H. pylori.
• Predisposição genética
• Hipersensibilidade visceral – pacientes sintomáticos x não sintomáticos quando expostos
• Fatores ambientais: obesidade, alergia alimentar, exposição ao cigarro, medicamentos (AINEs, anticolinérgicos, B2
agonistas, aminofiliina, nitrato, progesterona e estrógenos, bloqueador canal de cálcio)

Classificação
• Segundo a endoscopia: • Segundo Montreal
 Doença do refluxo não erosiva (50 a 70%) –  DRGE com sintomas esofagianos
mais prevalente na população  DRGE com sintomas extra-esofagianos
 Doença do refluxo erosiva
Sintomas presentes pelo menos 1 a 2 vezes por semana por mais de 4 semanas.

Quadro Clínico
Sintomas típicos
• Pirose (sensação de queimação retroesternal) – sensibilidade 75%, especificidade 83%
• Regurgitação (retorno de conteúdo ácido até a cavidade oral ou laringe) – sensibilidade 55% especificidade 63%
As manifestações clínicas não têm correlação com a gravidade das lesões esofágicas – alguns pacientes são muito
sintomáticos e de difícil resposta a tratamentos mas ao realizar endoscopia tem pouco ou nenhuma alteração. A clínica nem
sempre tem correlação com as esofágicas.

Sintomas atípicos (muitas vezes esses pacientes não têm os sintomas típicos de pirose e regurgitação)
• Disfagia
• Odinofagia
• Globus faríngeo: sensação de ter algo preso na garganta
• Náuseas
• Epigastralgia
• Sintomas da via aérea superior: laringite, faringite, rinite, otite, rouquidão, asma brônquica, dor torácica de origem
não cardíaca, tosse crônica
Excluir diagnósticos diferenciais nos sintomas atípicos!
• Tosse crônica, laringite crônica e asma são processos multifatoriais que podem ter o refluxo como fator potencial de
agravamento e, por isso, a DRGE pode não ser a única causa dessas manifestações (a DRGE só agrava os
sintomas dessas doenças, não é motivo delas)
• Presença de edema, eritema, nódulos e granulomas em prega vocal na laringoscopia não são específicas da DRGE.
• Dor torácica: Sempre afastar dor torácica de origem cardíaca apesar da DRGE ser a causa mais comum de dor torácica
(50%) de origem não cardíaca.
• Relação com apnéia obstrutiva do sono.

Tosse crônica
• Tabagismo e de irritantes ambientais • Tuberculose
• Asma ― Todos os pacientes com tosse crônica: radiografias de
• Secreção pós-nasal (Sinusopatia) tórax e seios da face dentro da normalidade

Diagnóstico
Anamnese
• Definir duração, intensidade e frequência dos sintomas, fatores de melhora ou piora.
• Hábitos alimentares
• Consumo de álcool, tabaco e drogas ilícitas.
• Verificar medicamentos em uso. Questionar uso regular de AINEs.
• Avaliar impacto na qualidade de vida dos pacientes.
Diagnóstico clínico: Sintomas típicos com frequência maior de 2 vezes na semana por mais de 4 semanas.

SINAIS E SINTOMAS DE ALARME – RED FLAGS


• Perda de peso • Icterícia
• Disfagia e/ou odinofagia • Linfonodomegalias
• Febre • Massa abdominal palpável
• Vômitos persistentes • História familiar de câncer do TGI
• Sangramento TGI • Mudança no padrão dos sintomas
• Anemia

Teste diagnóstico terapêutico


Uso de inibidor de bomba de prótons (IBP) em dose plena por período de quatro a oito semanas. Desde que pacientes:
• Adultos jovens com sintomas típicos e sem sinais/sintomas de alarme (+ de 50% das pessoas atendidas a nível
ambulatorial).
• Não confirma e nem exclui o diagnóstico DRGE
• Especificidade baixa: 24-65% - aplicado na atenção é básica é útil desde que cumprido todos os critérios
• Pode melhorar outras condições clínicas (úlceras pépticas, dispepsia funcional, pirose funcional).

Endoscopia digestiva alta


• Primeiro método diagnóstico de escolha.
• Visualização direta da mucosa. Avalia a extensão e gravidade da doença.
• Diagnóstico de complicações.
• Avalia resposta ao tratamento.
• Baixa sensibilidade 40-60%; alta especificidade 90%
 Sensibilidade baixa: 25 a 50% dos pacientes com sintomas típicos apresentam exame endoscópico normal (não
descarta a doença do refluxo), mas se tem presença de erosões no esôfago confirma a doença do refluxo (esofagite
erosiva)
 Alterações inespecíficas como edema e enantema do esôfago não são características da DRGE. A esofagite
erosiva fecha diagnóstico, a enantematosa não!
 O achado incidental e isolado de hérnia de hiato no exame endoscópico não deve ser necessariamente diagnóstico
de DRGE.
 Biópsias de esôfago têm indicação limitada apenas às complicações da doença: esôfago de Barrett, úlceras de
esôfago e estenose. Só erosões não tem indicação de biópsia.
Indicação endoscopia digestiva alta
• Sinais e sintomas de alarme.
• Paciente sem melhora clínica após 4 a 8 semanas de IBP em dose dobrada (após teste diagnóstico terapêutico).
• Paciente com mais de 50 anos com sintomas crônicos de DRGE (5 anos) – maior risco de desenvolver complicações
da DRGE, sendo o principal o esôfago de Barret.
• Reavaliação após tratamento de paciente com esofagite erosiva intensa.
• Acompanhamento esôfago de Barrett.

Exames complementares (não são de prática diária)


Manometria esofágica
• Não indicado na investigação inicial da DRGE
• Exame solicitado pelo especialista
• Indicações na doença do refluxo:
 Localizar o esfíncter esofágico inferior – antes da realização do exame pHmétrico
 Afastar acalasia e outros distúrbios motores do esôfago
 Pré-operatório cirurgia anti-refluxo
Manometria é um exame para avaliar movimento, capacidade e força da contração muscular dos esfíncteres e do corpo do
esôfago.

pHmetria de 24 horas
• Boa sensibilidade e especificidade.
• Exame solicitado pelo especialista. Pouco disponível no SUS
• Indicações:
 Pré-operatório cirurgia anti-refluxo.
 Avaliação de pacientes com sintomas típicos/atípicos com endoscopia normal e que são refratários ao tratamento
com IBP.

Impedâncio–pHmetria esofágica
• Melhor sensibilidade quando comparado à pHmetria – veio para substituir a pHmetria mas o acesso ainda é muito
restrito.
• Detecta a ocorrência de alterações na resistência à corrente elétrica através de eletrodos adjacentes posicionados no
interior do esôfago (de maneira sequencial) por meio de um dispositivo de sonsa.
• Avalia a natureza física (líquido, gasosa ou mista) e química (ácido, não ácido, levemente ácido) do refluxo.
• Diagnóstico de refluxo não ácido só consegue ser realizado pela Impedâncio-pHmetria: pacientes com pHmetria normal
e refratários ao tratamento com IBP.

Tratamento clínico
Objetivos: aliviar sintomas, cicatrizar as lesões da mucosa esofagiana e prevenir o desenvolvimento de complicações.
Envolve tratamento não farmacológico e farmacológico.

Tratamento não farmacológico


• Elevação da cabeceira da cama (15cm)
• Redução da ingestão dos seguintes alimentos, na dependência da correlação com os sintomas: gordurosos,
cítricos, café, bebidas alcóolicas, bebidas gasosas, menta, hortelã, produtos com tomate, chocolate. Avaliar se
causam piora, se não: não precisa tirar da dieta. Nem todos os pacientes são sensíveis a esses alimentos. Uma
dieta muito restritiva pode piorar a qualidade de vida.
• Cuidados especiais para medicamentos potencialmente de “risco”: anticolinérgicos, teofilina, antidepressivos
tricíclicos, bloqueadores de canais de cálcio, agonistas beta adrenérgicos, alendronato.
• Evitar deitar-se nas duas horas após as refeições.
• Evitar refeições copiosas, de grande volume (maior quantidade de refeições em porções menores)
• Redução drástica ou cessação do fumo.
• Redução do peso corporal – emagrecimento.
Todas essas medidas não farmacológicas:
→ Baixo nível de evidência científica na melhora na DRGE apesar de saber da melhora na sintomatologia do paciente
→ Redução de qualidade de vida dos pacientes – já tem piora na qualidade pelo DRGE, evitar piorar essa qualidade
com dietas muito restritivas.
→ Individualizar a dieta dos pacientes, levando em consideração as queixas particulares com relação a cada alimento.
→ Pacientes com distúrbio do sono decorrente de pirose noturna podem beneficiar-se da elevação da cabeceira da
cama (somente em pacientes com pirose e regurgitação noturna)
→ A redução do peso corporal deve ser recomendada de rotina para os pacientes obesos ou com sobrepeso.

Tratamento farmacológico
Antiácidos, alginatos e sucralfato
• Neutraliza a secreção ácida gástrica, servindo apenas para controle imediato dos sintomas.
• Há escassez de evidências que suportem o seu uso e o ganho terapêutico é pequeno.
• Alívio sintomático passageiro para indivíduos com sintomas esporádicos.

Bloqueadores dos receptores H2 da histamina (cimetidina, ranitidina, famotidina)


• Bloqueio competitivo do receptor H2, causando aumento do pH intragástrico.
• Opção de tratamento na DRGE não erosiva.
• Uso crônico leva a taquifilaxia com aumento da secreção de histamina – perde efeito da droga.
• Não indicado para o tratamento de doença moderada a intensa ou por período prolongado (usado mais como
sintomático com os antiácidos)

Procinéticos (metoclopramida, domperidona e bromoprida)


• Não indicados de forma rotineira
• Não melhora a cicatrização da mucosa
• Utilizados apenas em associação com IBP em pacientes com quadro de dismotilidade associada a DRGE (plenitude
pós-prandial) – associação de dispepsia funcional com DRGE: esses pacientes são beneficiados.

Inibidores da bomba de prótons (IBP)


• Inibem a produção de ácido pelas células parietais do estômago, reduzindo a agressão do esôfago pelo ácido.
• Tratamento de escolha inicial para DRGE por período de quatro a oito semanas com dose plena (Omeprazol 40mg).
Prescrição de 20mg = subdose, paciente não apresenta boa resposta.
• Os índices de cicatrização são elevados.
• Drogas seguras e eficazes para o tratamento prolongado
• Pode ser utilizado em gestantes quando há indicação clínica.
→ IBP x dose plena: → Pantoprazol 40mg
→ Omeprazol: 40mg → Rabeprazol 20mg
→ Lansoprazol 30mg → Esomeprazol 40mg
Para testes terapêuticos da doença do refluxo SEMPRE prescrever dose plena.
Não há diferença na resposta clínica ao tratamento com IBP quando se utiliza o IBP uma ou duas vezes ao dia ou entre os
diferentes tipos de IBP (20mg no café da manhã e na janta ou 40mg no café da manhã) – adesão maior do paciente com
posologia 1x/dia. Não existem estudos que demonstrem superioridade entre os IBP para o tratamento da doença do refluxo.
• Utilizar dose dobrada – 80mg (40mg antes do café da manhã e antes do jantar)
 Quando paciente não apresentar melhora dos sintomas com a dose de 40mg/dia
 Pacientes com complicações (estenose, úlcera ou esôfago de Barrett)
 Pacientes com manifestações atípicas – tosse, por exemplo
• Tratamento de manutenção: mínima dose capaz de manter o paciente assintomático (após 1 a 2 meses tentar reduzir
a dose).
 20 a 42% dos pacientes não respondem de maneira satisfatória ao tratamento com IBP – DRGE pode estar associada
à hipersensibilidade visceral.
 Uso de antidepressivos tricíclicos (amitriptilina) e inibidores da recaptação da serotonina (fluoxetina).
 Pacientes com pirose refratária ao tratamento com dose dobrada de IBP devem ser referenciados para uma
avaliação por um especialista.

Principais causas da DRGE refratária (não melhora metabolismo mais rápido do IBP – escape ácido
mesmo com a dose dobrada) mais rápido.
• Falta de aderência ao tratamento
• Dose inadequada de IBP (subdose) Tratamento com IBP é seguro?
• Erro de diagnóstico • Não aumenta risco de neoplasia gástrica
• Pirose funcional (hipersensibilidade) • Relação com pólipos de glândulas fúndicas – sem
• Refluxo gastroesofágico não ácido ou levemente risco aumentado de desenvolvimento de
ácido (só diagnosticado com a Impedâncio- neoplasia nesses pólipos.
pHmetria) • Relação com gastrite atrófica quando o H. pylori
• Esofagite eosinofílica está presente
• Esofagite por comprimidos • Aumento risco de fratura de bacia
• Diferenças no metabolismo do IBP (mais • Deficiência de magnésio, vitamina B12 e ferro
frequente em países do hemisfério norte): • Aumento de risco infecção por Clostridium
OBS: pacientes em uso crônico de IBP: dosar vitamina B12, avaliar ferro sérico e ferritina anualmente, avaliar risco de
fraturas e a presença de outros fatores de risco para osteoporose. Prescrição de IBP somente para pacientes com indicação.

Tratamento cirúrgico
• Descrita por Nissen (1956): confecção de uma válvula anti-refluxo gastroesofágica realizada com o fundo gástrico
(fundoplicatura).
• Fundoplicatura videolaparoscópica início da década de 90. Aumento significativo das indicações de cirurgia para o
tratamento da DRGE. Hoje em queda.
• Para indicação é necessário um diagnóstico confirmado da DRGE: clínica + exames complementares
• Avaliação risco cirúrgico
• Não indicado quando DRGE associado à obesidade. Alto índice de recidiva. Deve tratar obesidade
• Remissão dos sintomas em 3 anos: tratamento com IBP (93%) x cirurgia (90%)
• Recidiva dos sintomas num período variável entre 5 a 15 anos após a cirurgia
• Indicações:
 Tratamento de manutenção em pacientes com menos de 40 anos
 Pacientes que não toleram o tratamento medicamentoso ou com dificuldade financeira para comprar medicação
 Pacientes com regurgitação persistente a despeito do uso de IBP
• Complicações tardias: disfagia (incidência 8%) por conta da fundoplicatura.

Complicações
Esofagite
• Classificação de Los Angeles: grau A, B, C e D.
• A gravidade da esofagite não mostra correlação com a intensidade dos sintomas.
• Pacientes grau A e B podem fazer tratamento nas UBS
• Grau C e D devem procurar o especialista.
Úlcera esofágica (5%); hemorragia digestiva alta (<2%); estenose esofágica (1 a 20% - geralmente em pacientes com
DRGE de longa data, acamados com sequelas neurológicas)
Esôfago de Barrett (10 a 15%)
• Substituição do epitélio escamoso esofágico, em sua posição distal, por epitélio colunar glandular contendo células
caliciformes.
• Maior prevalência em homens acima de 50 anos. EDA > 40 anos com sintomas crônicos.
Adenocarcinoma esofágico (<1%)
• Complicação mais grave
• Evolução do Barrett

Conclusões
• DRGE é um grande problema de saúde pública e afeta 12% da população brasileira
• Obesidade é um dos principais fatores de risco associado a DRGE
• A anamnese é fundamental para o diagnóstico da DRGE, com atenção especial aos sintomas típicos e atípicos
(duração, intensidade, frequência, fatores desencadeadores, evolução) e impacto na qualidade de vida.
• Investigação de sinais e sintomas de alarme sempre devem ser realizadas
• Na atenção primária o teste terapêutico com IBP na ausência de sinais de alarme pode ser utilizado para diagnóstico
sem necessidade de se realizar outros testes diagnósticos.
• O tratamento clínico é o tratamento de escolha para controle dos sintomas.

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