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FUNDAMENTOS DA
NEUROPSICOPEDAGOGIA
CONTEXTUALIZANDO
T era uma garotinha de 8 anos, uma criança muito “danada”, não prestava
atenção na aula, não conseguia copiar todos os conteúdos e fazer as tarefas em
sala. Também não trazia as atividades de casa completas. Levantava de sua
carteira, queria mexer nas coisas de seus colegas e frequentemente tentava sair
da sala. Como se não bastasse, ela também batia nos seus colegas!
O serviço de orientação da escola, juntamente com a professora e a vice-
diretora, chamaram a senhora A, mãe de T, para uma reunião, e informaram que
T tinha sido avaliada por elas como tendo problemas de atenção. Assim, elas
estavam encaminhando a criança para uma consulta com um neurologista. A Sra.
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A disse que não faria esse encaminhamento, que sua filha era agitada em casa
também, mas que aquilo era uma coisa de criança, “uma criança danada, como
sempre tinha sido desde pequena”. No entanto, afirmou que sua filha não tinha
problema algum, que a conhecia bem e que não iria fazer tal avaliação, porque
sabia que depois ela teria que usar medicamentos, e isso ela não aceitaria. Então,
a equipe pedagógica deu um ultimato a Sra. A, dizendo que a questão seria levada
ao Conselho Tutelar, o qual iria acompanhar a criança em sua casa e também
faria uma avaliação da família e de seu contexto. A Sra. A disse que se quisessem
fazer isso, ficassem bem à vontade, mas que ela não deixaria sua filha fazer teste
algum, porque não tinha qualquer problema, era apenas uma criança agitada.
Sabia que era saudável, porque em outras atividades conseguia ter atenção e
excelente memória. Disse, ainda, que se o Conselho Tutelar fosse acompanhá-la
na sua residência, que deveria fazê-lo também na escola, para avaliar os
problemas da escola, e não apenas de sua família!
O que você acha dessa situação? Se você estivesse no lugar dessa mãe,
teria a mesma atitude que ela teve ou faria algo diferente? O que faria?
Atenção
Esse texto utiliza a indicação das referências bibliográficas por meio do sistema
numérico: pequenos números sobrescritos indicam a referência que pode ser
consultada ao final do documento. Quando mais de um número for indicado,
cada um deles remeterá a uma obra diferente. No caso de citações, o número
indica a obra e é seguido da indicação da(s) página(s). No exemplo acima (1,
p.38,39), temos a indicação do livro 1 nas referências, com as páginas 38 e 39,
de onde foi extraída a citação.
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A atenção não se constitui num único aspecto, mas em subsistemas
relacionados a diferentes tarefas. Por exemplo, a atenção temporal é diferente da
atenção espacial. Outro aspecto importante é a sua divisão entre voluntária
(executiva) e automática (reflexa). Esta, é relacionada a orientação diante de
estímulos inesperados do meio ambiente (ex. sinal sonoro anunciando o recreio).
Também é ativada por processos metabólicos e ações instintivas (como a busca
água e alimento, proteção e sexo). É automática ou involuntária e não consciente.
Já a atenção voluntária é descendente, definida de cima para baixo
(coordenada por estruturas corticais), a partir de intenções e planos, ou seja,
ocorre sob controle voluntário do organismo (como na leitura de um texto, que
implica a exclusão de estímulos distraidores). Assim, é chamada de endógena ou
intrínseca, ao passo que a atenção involuntária é chamada de exógena ou
extrínseca. Considerando que ela é ativada tanto por processos externos quanto
internos, podemos deduzir que a sua orientação reflete, em certa medida, uma
competição entre objetivos internamente definidos e demandas externas do
ambiente. Crianças e idosos têm mais dificuldades em usar a atenção voluntária,
visto que aquelas ainda não amadureceram as estruturas corticais necessárias
(ex. córtex pré-frontal) e os idosos podem apresentar disfunções dessas
estruturas, por causa da idade1, 2.
Cabe enfatizar que esse fantástico processo, que nos permite focalizar a
cada momento certas características de nosso mundo interno ou do ambiente
externo, deixando outras tantas de fora, é extremamente seletivo! A maior parte
das informações captadas nos receptores sensoriais periféricos não é
processada, por ser desnecessária e dispendiosa. Isso também ocorre com
aquelas advindas de nossos proprioceptores. Nosso sistema é econômico, por
isso, seleciona não conscientemente o que deve ser focado ou percebido. A
atenção é parte do sistema de seleção das informações ambientais e orgânicas
percebidas não conscientemente. Um exemplo é a estimulação do tecido das
roupas que usamos sobre a nossa pele. Estimulação essa que deixa de ser
percebida, pois não seria útil para nós tal percepção, ao contrário, poderia nos
atrapalhar em perceber outras coisas. Assim, estímulos que não são importantes,
ou que não se modificam com o tempo, deixam de ser percebidos. Mas ao
focarmos nossa atenção no contato das roupas com a pele voltamos a ter
tal percepção, ou seja, podemos modular nossa atenção conscientemente2, 3.
Atenção é uma janela aberta para o mundo (ou para dentro de nós), na qual
dispomos de uma lanterna que usamos para iluminar os aspectos que mais nos
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interessam, mas a maior parte da escolha do que focamos ocorre em níveis não
conscientes. Recebe influências do nível de alerta (ex. sono, vigília) e do nosso
estado emocional. Emoção é um sistema de avaliação, julgamento, do que é ou
não importante, bom ou ruim2,3. Quando focamos nossa atenção a certos
estímulos, processos não conscientes inibem estímulos distraidores. Uma série
de mecanismos neurológicos estão implicados nesse processo, como veremos.
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a dificuldades na concentração, na manutenção da atenção, na
orientação visual [...] e na execução de atividades visuais [...]. 4, p.107
Você já esteve numa festa e, conversando com algumas pessoas, ouve seu
nome ser mencionado por alguém com quem não estava conversando? Para que
você estivesse conversando com algumas pessoas, todos os demais estímulos
(outras conversas, música, ruídos, etc.) estavam sendo processados no nível
primário e filtrados para que não alcançassem a consciência. Entretanto, seu
nome, estímulo importante e que merece sua atenção, faz com que você module
a atenção na direção certa e procure ajustá-la para que possa escutar o assunto
a seu respeito. Está em curso um circuito orientador, no lobo parietal posterior
(vide Figura 2), o qual desliga o foco de um alvo concentrando em outro, podendo
trocar também o sistema sensorial (ex. foco na audição em vez da visão). O
tálamo também participa, selecionando o conteúdo e lhe atribuindo prioridade de
processamento para as regiões que vão detectá-lo e responder a ele1,2.
Além disso, vemos que o circuito executivo permite não apenas focar
voluntariamente nossa atenção, como mantê-la por um tempo
prolongado, inibindo estímulos distraidores. Neste nível, estamos na área do
córtex frontal, numa região anterior ou interna do hemisfério cerebral, conhecida
como giro cíngulo ou cingulado2.
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publicação do livro, The new unconscious16, com estudos sobre o inconsciente,
de pesquisadores destacados, sob as perspectivas social, cognitiva e
neurocientífica3.
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respostas automáticas, gerir de muitas formas, mais refinadas, a homeostase
básica e, por fim, adentrar na homeostase cultural17. Para Damásio17, existe uma
interação equilibrada e completar entre consciente e inconsciente. Por um lado,
processamentos não conscientes exercem controle sobre o nosso comportamento
e, por outro, estão, em média, sob controle ou modulação pelo consciente. Uma
parceria que deu certo.
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TEMA 3 – TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE –
TDAH
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ou hiperativa e ponto. Há uma imensa heterogeneidade manifestada em
comportamentos e atitudes que se diferenciam a depender de uma série
de fatores, sobretudo os interacionais e contextuais. Dito de outro modo:
se uma criança é, por exemplo, incrivelmente atenta a jogos eletrônicos,
como supor que uma imagem do cérebro possa demonstrar que ela não
se atenta apenas na hora de fazer a lição de casa? Acreditamos, desse
modo, que não se trata de desatenção, mas de deslocamento do foco
atentivo. Se houvesse uma “homogeneidade” nas atitudes, ou seja, se a
criança fosse sempre desatenta ou sempre hiperativa, suporíamos que
esse “comportamento atípico” poderia imprimir seus efeitos no cérebro
ou até mesmo ser consequência de uma alteração cerebral. 22, Locais 692-
698
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TEMA 4 - INTERVENÇÃO ESCOLARES NO TDAH
Para refletir sobre intervenções pedagógicas com alunos que parecem ser
portadores de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, vamos
considerar o Capítulo 9 da obra Neuroeducação e ações pedagógicas5.
O TDAH parece incluir comportamentos comuns na infância, porém de
forma intensa que não se modificam com as intervenções dos educadores.
Desatenção, atividade excessiva e/ou comportamento emocional impulsivo estão
presentes nas crianças, dificultando-lhes o aprendizado desde o começo da vida
acadêmica, trazendo-lhe rejeição e incertezas quanto a sua capacidade cognitiva,
o que costuma lhes reduzir a autoestima, dificultando ainda mais o processo5.
Para que as estratégias de intervenção sejam eficazes, é necessário um
trabalho em conjunto entre a família (pais) e a escola (professores/as).5
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Os autores apresentam as seguintes sugestões aos familiares: 5, p. 110
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h. O professor deve prescrever uma boa dieta
educacional, aumentando os canais de comunicação, da
autoestima.5, p. 112-113
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maturação e, o mais importante, tal processo é em grande medida consequência
da interação com a estrutura social e cultural. Ou seja, a estrutura educacional
pode tanto facilitar o desenvolvimento de habilidades executivas,
relacionadas a atenção a concentração, como retardá-las! Nesse ponto, a
ideia de considerar um padrão normal de desenvolvimento desvinculado do
ambiente é equivocada, vindo ao encontro de uma perspectiva naturalista,
artificial, no qual o indivíduo é a única fonte de suas dificuldades. Seis ou mais
das nove características indicadas para cada padrão principal, de desatenção
e/ou hiperatividade-impulsividade, como visto no Item 3.2, pode ter “impacto
negativo diretamente nas atividades sociais e acadêmicas/profissionais” mas, não
necessariamente indicam a presença de um transtorno do desenvolvimento
neurológico8. Essas características ou “sintomas”:
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foi pesquisado. No Brasil, essa prevalência vai de 5% e 8%, ou seja, 1 em cada
20 crianças, o frequente transtorno psiquiátrico é diagnosticado na infância10,12.
Jafferian e Barone10 desenvolveram um estudo sobre o efeito diagnóstico do
TDAH tem sobre os sujeitos e como a psicopedagogia pode intervir para
desconstruir esse rótulo. Concluem que:
[...] o diagnóstico tem o efeito de destino na vida do sujeito que fica sem
autonomia e que, com a intervenção psicopedagógica, o mesmo se
desveste do rótulo e sai do lugar que se encontrava. [...] o professor não
escuta a criança e não vê o porquê dela não aprender e esse professor
só reconhece a criança a partir do rótulo que carrega. Assim, esses
alunos rotulados ficam no lugar de incapazes, sem autonomia e não
correspondem ao esperado pelos professores. E isso pode ter como
consequência a "profecia autorrealizadora" [...].
FINALIZANDO
Que ótimo, chegamos ao final de mais uma etapa! Nossa primeira reflexão:
a atenção é crucial para a educação! A atenção executiva, voluntária e
consciente é uma função executiva, que amadurece lentamente, tendo seu
estabelecimento básico por volta dos sete anos de idade e sua consolidação no
final da adolescência. Tal amadurecimento varia entre os indivíduos e é mediado
pelas influências do meio, do qual destacamos a escola e a família. Então, a
medida que o córtex pré-frontal das crianças vai amadurecendo, elas se tornam
mais capazes de dirigir e sustentar sua atenção em estímulos relevantes,
excluindo daqueles irrelevantes. Mas e se ritmo desse amadurecimento for um
pouco lento, ou os métodos escolares não forem estimulantes, ou o contexto
familiar não for favorável? Teremos dificuldade de aprendizagem ou um transtorno
mental? Em contrapartida, a atenção automática funciona sem a intervenção da
consciência, é controlada por circunstâncias externas. Então, a forma de ensinar
precisa ser apropriada (estímulo ambiental significativo e prazeroso) para atrair e
manter a atenção dos estudantes. É triste notar que as intervenções escolares
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relacionadas ao TDAH, apresentadas no Tema 4, são em sua maioria elementos
neurodidáticos que precisariam embasar os métodos educativos e familiares. Se
assim fosse, talvez parte das dificuldades de aprendizagem não existissem.
Se pensarmos que tanto a forma executiva como automática da atenção
inclui processamentos não conscientes, tal como ocorre com a memória,
aprendizado, pensamento, tomada de decisão, compreensão e resolução de
problemas, podemos refletir que os métodos educacionais talvez estejam
desatualizados em relação a compreensão científica da mente humana. O que
não acontece como os jogos digitais, os quais, utilizando recursos intuitivos
básicos, explorando o sistema de recompensa e os processos atencionais
automáticos mediados pela emoção, prendem a atenção estimulam o
aprendizado implícito e explícito dos jogadores! Assim, conduzem-nos de níveis
mais elementares até aqueles sofisticados, que demandam todas as funções
executivas. Poderia uma criança com TDAH dedicar-se de forma eficaz e
concentrada a um jogo, obtendo sucesso crescente no seu desempenho?
A controvérsia do debate científico, cultural e econômico em torno dos
transtornos mentais e da medicalização da vida e da educação está posta. Nele,
os interesses econômicos subjacentes ao DSM-V vêm sendo desmascarados,
bem como os nefastos efeitos da medicalização. Voltando ao caso de T, vimos
que a Sra. A, consultou uma psicóloga, que fez algumas sessões com ela e sua
filha, algumas vezes em conjunto, outras individuais com uma ou com a outra.
Após essas sessões, a psicóloga informou que a criança era muito inteligente e
que não precisaria continuar fazendo as sessões psicológicas! Mas disse também
que a mãe deveria ser mais firme com T, para ensinar-lhe disciplina. Que deveria
dispor de mais tempo para sua filha, acompanhando-a nas tarefas escolares e em
atividades físicas, como correr, brincar, andar de bicicleta, para que a criança
gastasse um pouco mais de sua intensa energia. A Sra. A dispunha de pouco
tempo para cuidar de suas três filhas, visto que trabalhava durante um turno e
fazia faculdade no outro, estando presente com as crianças somente no período
noturno. Ainda assim, seguiu as recomendações da psicóloga, ensinando
disciplina e acompanhando sua filha nas tarefas escolares, as quais T inicialmente
não gostava de fazer. Depois, matriculou T em atividades de ginástica rítmica, as
quais agradaram muito a criança, vindo a beneficiá-la na coordenação motora,
disciplina, memória e relações sociais. E quanto aos resultados? Não surgiram
rapidamente, mas cerca de 2 dois meses e meio depois começaram a aparecer.
As queixas escolares diminuíram e o desempenho escolar de T passou a melhorar
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significativamente. Aos 10 anos de idade, T teve um “salto” em seu desempenho
acadêmico e social, passando a fazer sozinha suas tarefas escolares! Finalizou o
ensino médio com facilidade, sendo que antes do fim fez um curso pré-vestibular
e, aos 18 anos, passou no vestibular de uma universidade federal. Atualmente,
está no 4º ano do curso, sendo que durante esse período também manteve
atividades profissionais. A Sr. A se emociona ao contar essa história e perceber
tudo que sua filha fez, após ter sido “chamada de deficiente” e finaliza:
Gostaria de levar o histórico dela para aquela escola, para mostrar que
a minha filha que foi chamada de deficiente por eles, aos 21 anos está
quase se formando, trabalha e inclusive foi selecionada para apresentar
um artigo seu num congresso internacional. Se tivesse tanto problema
assim, não estaria fazendo tudo isso!
Qual é sua perspectiva agora sobre a atitude da Sra. A? Você acha que o
que ocorreu com ela pode estar ocorrendo com outras crianças?
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REFERÊNCIAS
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