Você está na página 1de 15

3.

O FURTO INSIGNIFICANTE DE ALIMENTOS, FAMÉLICO E O PUNITIVISMO

3.1 O abandono da fragmentariedade e da intervenção mínima do direito


penal – análise dos julgamentos do STJ de maio/2020 a maio/2021

3.2 Antes de famélico, insignificante

3.3 Como o punitivismo cresce desprezando a insignificância

3.4 Os furtos insignificantes e os delegados de polícia

3. O FURTO INSIGNIFICANTE DE ALIMENTOS, FAMÉLICO E O PUNITIVISMO

O princípio da insignificância é amplamente explorado na jurisprudência


brasileira, especialmente em relação aos crimes de furto ligados à questões raciais.
Para alcançar os objetivos da pesquisa, adotou-se o método desenvolvido na
obra Metodologia de Análise de Decisões - MAD.
O recorte objetivo foi o princípio da insignificância aplicado ao crime de furto
famélico, com foco no Superior Tribunal de Justiça, cujas decisões têm relevância
em todo o país, e o período estabelecido abrange as decisões mais entre maio de
2020 e maio de 2021.

3.1 O ABANDONO DA FRAGMENTARIEDADE E DA INTERVENÇÃO MÍNIMA


DO DIREITO PENAL - ANÁLISE DOS JULGAMENTOS DO STJ DE MAIO/20 A
MAIO/21 – DADOS

O direito penal abrange diversas condutas, sendo que os crimes


contra o patrimônio são amplamente discutidos em relação à insignificância.

Estudos mostram que muitos casos tratados como insignificantes


pelos Tribunais envolvem tipos de furto, e essa insignificância surgiu como
uma forma de lidar com casos de pequenas lesões patrimoniais. No entanto,
ainda não há um critério objetivo para determinar o que é insignificante no
direito penal brasileiro.

A doutrina tem buscado definir o que seria considerado um valor


pequeno para distinguir o crime privilegiado do furto simples. A falta de
critérios efetivos gera dificuldades e insegurança jurídica na aplicação da
insignificância. Alguns Tribunais têm adotado o percentual de 10% do salário
mínimo como limite para aplicar o princípio da insignificância, mas há
decisões que elevam esse patamar para cerca de 30%.

A falta de consenso e um parâmetro mais eficiente tem levado ao


desprezo de princípios fundamentais do direito penal, como a
fragmentariedade e a intervenção mínima. A fragmentariedade busca
preservar espaços de liberdade, enquanto a intervenção mínima impede a
criminalização de fatos irrelevantes. O exercício do poder punitivo deve ser
sempre a última opção, considerando os efeitos estigmatizantes e a violação
à dignidade da pessoa humana.

De modo não ser forçoso concluir que o direito penal não tem sido
utilizado como ultima ratio, e tampouco tem se furtado de analisar condutas
insignificantes.

De acordo com dados do Ministério Público Federal em 2020, os


casos de crimes insignificantes perante o Supremo Tribunal Federal e o
Superior Tribunal de Justiça totalizaram 802. Desses casos, 63,6% (438
casos) eram relacionados ao delito de furto, incluindo furto simples (228
casos), furto qualificado (202 casos) e furto privilegiado (8 casos).

É importante ressaltar que a intenção não é legitimar o sistema penal


ou a pena, nem atribuir um caráter meramente utilitarista à insignificância
com o objetivo de reduzir a carga processual dos tribunais. A conceituação
adotada segue a abordagem destacada por Rafael Fagundes.

A aplicação da insignificância não está baseada na existência de


um desinteresse estatal na repressão desses fatos. A
insignificância é uma consequência necessária dos princípios da
lesividade e proporcionalidade, que instrumentaliza na dogmática
penal o requisito jurídico da alteridade. Portanto, seu
reconhecimento não é um favor concedido ao agente pelo
julgador, nem está vinculado ao interesse/desinteresse do Estado
nessa conduta.

No sistema processual penal brasileiro, nos casos em que os agentes não


possuem foro especial por prerrogativa de função, os processos são conduzidos nas
varas criminais de primeira instância, com a possibilidade de interposição de
recursos para os Tribunais de Justiça estaduais.
Em certas situações previstas na legislação, é possível que esses processos
cheguem aos Tribunais Superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o
Supremo Tribunal Federal (STF). Para que um grande número de processos que
poderiam se enquadrar na insignificância chegue a essas instâncias superiores, é
necessário que os órgãos julgadores anteriores tenham negado o seu
reconhecimento. Isso demonstra um abandono dos princípios da fragmentariedade e
da ultima ratio do direito penal ao desconsiderar tantos casos que são comuns na
realidade.
Neste estudo, foram analisadas decisões judiciais que chegaram ao Superior
Tribunal de Justiça, obtidas através do site oficial da Corte Superior, no período de
um ano. Essas decisões tratavam especificamente de furtos de alimentos, remédios
e produtos básicos de higiene, ocorridos principalmente em supermercados e
grandes lojas varejistas. Em todos os casos, houve a restituição total dos bens às
vítimas. O valor desses produtos variou desde um máximo de R$ 440,00 até um
valor irrisório de R$ 14,00.

3.2 ANTES DE FAMÉLICO, INSIGNIFICANTE

O debate público em torno da questão criminal está fortemente influenciado


pelo senso comum criminológico. Rafael Fagundes explica que esse senso comum
cria a percepção equivocada de que vivemos uma emergência penal que requer
medidas enérgicas para ser solucionada. Aumento de penas e flexibilização das
garantias são consideradas insuficientes para conter o avanço da criminalidade.
Zaffaroni argumenta que o sistema penal sempre fabrica novas emergências,
permitindo a adoção de medidas excepcionais direcionadas ao inimigo.
As agências acadêmicas desempenham um papel importante na contenção
do poder punitivo ao desenvolver teorias capazes de desmontar o senso comum
criminológico. Elas atuam como um "dique de contenção" contra as formas mais
irracionais de exercício desse poder.
Nesse contexto, é fundamental analisar o caráter famélico do furto de forma
subsidiária à insignificância, e não o contrário, como demonstram as decisões
analisadas. Isso se deve, em primeiro lugar, à questão da análise dos elementos da
teoria do delito e, em segundo lugar, porque subverter essa lógica e deixar de
aplicar imediatamente a insignificância significa não apenas ignorar os princípios que
constituem um direito penal adequado ao regime democrático, mas também ampliar
a atuação repressiva do Estado.
A teoria do crime adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro é sistemática,
o que significa que os elementos da fase anterior devem ser cumpridos para que a
fase sucessora possa ser considerada. Para que uma conduta seja considerada
criminosa, além de estar descrita como crime na lei penal (ou seja, ser típica), ela
deve ser contrária à ordem jurídica (antijurídica) e ocorrer quando não estão
presentes as chamadas "causas de justificação".
Raizman ensina que a antijuridicidade é um juízo definitivo sobre a proibição
da conduta, considerando a ordem jurídica como uma unidade e afirmando que a
conduta é ilícita. Entre as causas de justificação previstas no ordenamento jurídico
brasileiro, podemos citar o legítimo exercício de um direito, a legítima defesa, o
estado de necessidade e o estrito cumprimento de um dever legal.
Neste trabalho, será especialmente analisada a figura do estado de
necessidade, que ampara a situação do furto famélico.

O artigo 24 do Código Penal, assim dispõe:

Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para


salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem
podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício,
nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Em resumo, o estado de necessidade ocorre quando se causa um mal


para evitar outro, desde que não seja razoável exigir o sacrifício do bem
protegido. Os requisitos para sua configuração são: i) existência de uma
situação de necessidade ou perigo, que pode ser proveniente da natureza,
de terceiros ou até mesmo do próprio agente, desde que não tenha sido
provocada dolosamente por ele, e essa situação deve ser atual ou iminente;
ii) a ação de proteção deve ser razoável, ou seja, não pode haver outro meio
menos lesivo disponível; iii) é necessário proteger um bem jurídico, seja
próprio ou de terceiro; iv) o autor não deve ter a obrigação de suportar a
situação de perigo, pois caso contrário estaria cumprindo um dever legal.

O furto famélico, embora não esteja previsto de forma específica no


Código Penal, é uma construção doutrinária adotada pela jurisprudência
como uma situação que exclui a culpabilidade. É definido como o furto
cometido por uma pessoa em extrema miséria e necessidade de alimento
para si ou para sua família. Nesse caso, o furto famélico é considerado
típico, mas não ilícito, devido ao estado de necessidade em que se encontra
o agente.

Conforme explicado por Nucci, o artigo 24 do Código Penal é aplicável


quando há o sacrifício de um direito (patrimônio) para proteger outro de
maior valor (vida, integridade física ou saúde humana), desde que esse
sacrifício seja indispensável e inevitável.

Desenvolve Higor Vinicius Nogueira Jorge que:

O furto famélico ocorre nas situações em que a pessoa em estado


de extrema penúria tem a inadiável necessidade de se alimentar, e
com este fito, subtrai algo de terceiro. O furto famélico não é um
crime, pois o agente está subtraindo coisa alheia para que ele ou
outrem não morra ou sofra lesão fisiológica decorrente da
inanição, de modo que este era o único procedimento que ele
poderia dispor. O agente não será punido, pois a sua conduta não
é criminosa, ele age em estado de necessidade, que é uma causa
de exclusão de antijuridicidade. As causas de exclusão de
antijuridicidade são normas que permitem a prática de um fato
descrito na lei como delituoso. Exemplo: Se Brutus furta César, ele
será punido, entretanto se Brutus estava passando fome e furtou
César com o intuito de se alimentar, não haverá punição, pois, o
estado de necessidade permite que o ato reputado como ilícito
seja praticado.

É importante considerar que a vida e a saúde são valores jurídicos


que prevalecem sobre os demais. No entanto, a doutrina e a jurisprudência
são rigorosas ao aplicar a exclusão da ilicitude no caso de furto por
necessidade extrema. Se não estiverem presentes os requisitos que
configuram o estado de necessidade, não se trata de furto por fome.

Existe jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de que,


para reconhecer o estado de necessidade no caso de furto por fome, é
essencial comprovar plenamente a adversidade financeira enfrentada pelo
indivíduo, demonstrando a impossibilidade absoluta de se sustentar.

Em um Recurso Especial julgado no Superior Tribunal, referente à


tentativa de furto de uma peça de carne de 4,5 quilos, avaliada em R$
103,42, foi mantida a decisão do tribunal que negou a ocorrência do furto por
fome, uma vez que os funcionários do estabelecimento afirmaram que a ré
não aparentava estar em situação de necessidade, pois estava bem vestida
e chegou ao local de carro. Portanto, a exclusão da ilicitude não foi
considerada viável.

Além disso, os alimentos subtraídos devem ser capazes de saciar a


fome. Quais alimentos são considerados capazes de saciar a fome fica a
critério de cada juiz. Nesse sentido, pode-se inferir de um recente julgamento
do Superior Tribunal de Justiça, no caso do Habeas Corpus 635647, que
energéticos, refrigerantes e doces não são considerados alimentos
adequados para esse propósito.

Não é o caso de reconhecimento de fruto famélico. Isso porque,


embora o recorrente relate que estava em situação de rua, não há
nos autos qualquer indicativo que estivesse em estado de
necessidade, nos termos que a lei estabelece. Observo por
oportuno que a Defesa não comprovou, conforme possibilita o artigo
156 do Código de Processo Penal, que não havia outra maneira de
saciar a fome. [...] Aliás, no caso em tela, os produtos subtraídos
pelo recorrente não indicam que seria ao caso de se aplicar a
citada excludente, uma vez que, o réu furtou significativa
quantidade de mercadorias, inclusive entre os produtos há treze
latinhas de energético, refrigerantes e doces, não se vislumbrando
que pretendia saciar a fome ingerindo tais mercadorias. Ora, se a
família passava por necessidade, com certeza não seriam tais
gêneros que os alimentaria, nem mesmo, a um curto espaço de
tempo.

No contexto do estado de necessidade, é fundamental que o meio


escolhido seja o menos prejudicial a outro bem jurídico. Por exemplo, de
acordo com Rogério Greco, se alguém furta em um supermercado e, em vez
de escolher um pacote de feijão, opta por uma peça de bacalhau, não pode
se beneficiar do estado de necessidade por não ter escolhido o meio menos
prejudicial.

Um exemplo relevante é a decisão no Habeas Corpus 594715,


relatado pela Ministra Laurita Vaz, que foi julgado pelo Superior Tribunal de
Justiça em maio de 2020. Nesse caso, o réu era acusado de tentar furtar
duas peças de Filé Mignon, avaliadas em R$ 95,26. A ministra manteve a
parte da sentença condenatória que afirma:

“No caso concreto, não se verifica a condição de extrema


miserabilidade que possa justificar a lesão do patrimônio alheio
(...) anote-se, por outro lado, que o réu tentou furtar duas peças de
Filé Mignon, carne nobre e de preço relativamente alto, o que não
se coaduna com a tese de furto famélico, justificando o seu não
acolhimento”.

Guilherme Nucci explica que atualmente nem toda situação pode ser
considerada como furto por necessidade extrema, reservando tal hipótese
apenas para casos excepcionais. Por exemplo, ele menciona o caso da mãe
que, tendo um filho pequeno doente, subtrai um litro de leite ou um
medicamento por não ter condições financeiras de adquirir o bem essencial
para aquele momento.

Essa afirmação doutrinária é confirmada pelo voto do ministro Luiz


Fux no julgamento do HC 119.672/SP em maio de 2014, que tratava da
tentativa de furto de um pacote de fraldas avaliado em R$ 45,00. O ministro
reconheceu a atipicidade da conduta devido à sua insignificância e
mencionou o furto por necessidade extrema, com base nas circunstâncias do
caso, como um estado de necessidade presumido.

Portanto, entre as decisões analisadas neste estudo, também estão


aquelas que envolvem furto ou tentativa de furto de produtos de higiene,
medicamentos e alimentos.

Para que a conduta seja considerada antijurídica, é necessário que


ela seja típica, ou seja, cause lesão a um bem jurídico. Além disso, para
justificar a punição, essa lesão deve ser penalmente relevante. No caso dos
crimes patrimoniais, como o furto, independentemente do objeto que se
tentou subtrair, se a lesão causada for insignificante, ocorre a exclusão da
tipicidade material da conduta. Nesses casos, Fagundes destaca que o
critério predominante para avaliar a insignificância é o desvalor do resultado.

Portanto, se a insignificância da ação for evidente, não é necessário


discutir se o furto é por necessidade extrema ou se os requisitos do estado
de necessidade estão presentes. O que importa é a atipicidade da conduta
devido à ausência de lesão. Conforme as decisões selecionadas para este
estudo indicam, a insignificância da ação deve ser analisada em primeiro
plano e não como uma alegação subsidiária ao furto por necessidade
extrema.

3.3 COMO O PUNITIVISMO CRESCE DESPREZANDO A


INSIGNIFICÂNCIA

O processo de criminalização envolve diversas agências, como as


legislativas, responsáveis pela elaboração das leis penais, as policiais, que
exercem a seletividade e identificação das condutas criminalmente proibidas,
as judiciárias, encarregadas do julgamento e imposição de penas, as
prisionais, que cuidam da execução das sanções pelos condenados, além da
academia, que desempenha um papel ativo na elaboração de discursos que
legitimam ou questionam o sistema penal e a atuação repressiva do Estado,
e a mídia, que também desempenha um papel importante nesse processo.

Todos os envolvidos nesse processo têm contribuído para a expansão


do punitivismo quando não agem no sentido de limitar sua atuação.
Fagundes destaca a problemática da "apropriação política da questão
criminal para fins exclusivamente eleitoreiros", evidenciando como interesses
políticos muitas vezes influenciam na abordagem e no discurso em torno da
criminalidade.

Essa dinâmica de atuação das agências envolvidas no processo


criminalizante pode levar a um aumento do punitivismo na sociedade, com
consequências negativas para o sistema penal e para a busca por uma
justiça mais equilibrada e efetiva. É importante refletir sobre essas questões
e buscar formas de limitar o punitivismo, promovendo uma abordagem mais
justa e humanizada do sistema de justiça criminal.

Desprovida de qualquer solução real para os problemas dos quais


devem cuidar, as agências políticas elegeram a pena como a
solução mágica e imediata de todos os conflitos. Seja qual for a
crise do momento, a solução para os problemas é sempre a
mesma: mais crime, mais pena, mais punição. Ignora-se ou finge-
se ignorar, o enorme fracasso da sanção penal como forma de
resolução de conflitos (justamente porque ela não os resolve,
apenas os congela) e a falácia em que as funções manifestas da
pena consistem.

A imprensa desempenha um papel fundamental na formação do discurso em


torno do aumento da criminalidade. Através de uma abordagem extremamente
emotiva, voltada para disseminar o medo e a insegurança, a imprensa amplifica a
percepção comum sobre o crime. Esse senso comum criminológico, além de
reforçar a crença na pena e em suas funções óbvias, também propaga a ideia falsa
de impunidade e de que as garantias constitucionais do acusado são obstáculos à
justiça, como explicado por Fagundes.

Salo de Carvalho aborda o conceito de punitivismo, destacando que a


formação do imaginário social sobre crime, criminalidade e punição é influenciada
por imagens publicitárias, muitas vezes exagerando os problemas relacionados à
questão criminal. A supervalorização de eventos episódicos e excepcionais como
regra, juntamente com a distorção ou incompreensão de importantes variáveis pelos
formadores de opinião pública, especialmente os meios de comunicação de massa,
fortalece a vontade de punir característica do punitivismo contemporâneo.

Esses conceitos internalizados e difundidos no imaginário popular afetam


diretamente o Poder Judiciário. Em resposta à pressão popular e midiática baseada
no senso comum criminológico, os juízes passam a impor penas mais severas,
promovendo o encarceramento em massa e restringindo as garantias individuais, a
fim de apresentar resultados na contenção da criminalidade.

Assim, surge a cultura de que a prisão é a solução rápida e eficaz para


resolver o problema. No entanto, Tiago Joffily e Airton Gomes Braga explicam que
não há evidências empíricas que comprovem uma relação entre encarceramento e
redução da criminalidade. Pelo contrário, vários estudos empíricos mostram que não
há relação entre esses dois fenômenos, havendo um consenso de que altas taxas
de encarceramento não contribuem para a redução da criminalidade.

O senso comum criminológico enraizado no judiciário leva os juízes a


negarem o reconhecimento da insignificância de um delito que não causa um dano
relevante a um bem jurídico. Eles se baseiam em argumentos moralistas de
reprovação, abandonando a técnica jurídica e a contenção do poder punitivo que
deveriam ser características do sistema.

Conforme ensina Nilo Batista:

Quando se habilita poder punitivo a partir de uma consideração moral sobre o


sujeito, está-se, na verdade, penalizando o ser; está-se, na verdade,
praticando uma culpabilização de autor não muito diferente daquela baseada
na perigosidade; está, na verdade, regressando à Inquisição.
A construção de Nilo Batista pode ser exemplificada ao analisar os casos que
chegaram ao Superior Tribunal de Justiça entre maio de 2020 e maio de 2021. Das
36 decisões proferidas, a maioria baseou-se em discursos voltados para o acusado,
em vez de analisar a gravidade do delito. Em 29 casos, os bens foram integralmente
restituídos à vítima. Dos casos em que houve tentativa de subtração, 11 não
ultrapassaram R$ 40,00, 23 não chegaram a R$ 100,00 e 9 casos foram acima de
R$ 100,00, chegando a um máximo de R$ 440,00.
Dentre esses casos, em 27 deles o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a
insignificância do delito ou o caráter famélico do furto, excluindo a ilicitude da ação.
A aplicação da insignificância variou entre valores mínimos de R$ 23,00 até R$
181,99.
Nos outros 9 casos em que a insignificância não foi reconhecida, mesmo com
restituição integral dos bens, as decisões foram baseadas em motivos subjetivos. A
reincidência e o caráter subjetivo do acusado foram considerados. No entanto,
utilizar a reincidência como fundamento para não reconhecer a insignificância é um
equívoco, pois pertence à fixação da pena, não à análise da afetação ao bem
jurídico.
Outro motivo para não aplicar a insignificância é o argumento de que isso
estimularia a prática de delitos. No entanto, essa visão não considera que o
reconhecimento da insignificância busca racionalizar o poder punitivo e evitar a
aplicação desnecessária e arbitrária da pena.
Em resumo, a jurisprudência carece de critérios objetivos e previsíveis para a
aplicação da insignificância. Muitas vezes, decisões baseiam-se em critérios
subjetivos e punitivistas, em vez de considerar a lesividade real do fato. É importante
que o sistema penal não seja responsável por coibir condutas insignificantes, mas
sim pela justiça e contenção do poder punitivo.

3.4 OS FURTOS INSIGNIFICANTES E OS DELEGADOS DE POLÍCIA

Os Delegados de Polícia desempenham um papel fundamental na aplicação


adequada do princípio da insignificância no direito brasileiro, permitindo que os
princípios da fragmentariedade e intervenção mínima sejam plenamente aplicados.
O Delegado de Polícia é a autoridade policial responsável por garantir a legalidade e
a justiça.
O Delegado de Polícia é designado para o cargo através de concurso público
de provas e títulos, conforme estabelecido na Constituição Federal e na Lei
Orgânica das Polícias Civis. É exigido que o candidato seja bacharel em Direito.

No exercício de suas funções, o Delegado de Polícia preside o inquérito


policial, elabora o auto de prisão em flagrante e determina outras diligências.
Segundo Guilherme Nucci, o Delegado, como juiz do fato típico, tem autonomia para
não lavrar a prisão em flagrante se constatar a insignificância do fato.

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou que, quando um Delegado de


Polícia se depara com uma situação de flagrante delito, deve cumprir estritamente o
dever legal e proceder à atuação em flagrante. A análise da insignificância cabe
exclusivamente ao Poder Judiciário, conforme estabelecido no julgamento do HC
154.949/MG.

Em suma, os Delegados de Polícia têm a responsabilidade de aplicar


corretamente o princípio da insignificância, sendo o primeiro filtro para identificar
casos em que o fato é insignificante e não necessita de persecução penal. A decisão
final sobre a aplicação desse princípio cabe ao Poder Judiciário.Coadunando o
entendimento do Superior Tribunal, Cleber Masson explica que:

O Superior Tribunal de Justiça entende que somente o Poder Judiciário é


dotado de poderes para efetuar o reconhecimento do princípio da
insignificância. Destarte, a autoridade policial está obrigada a efetuar a
prisão em flagrante, cabendo-lhe submeter imediatamente a questão à
autoridade judiciária competente. Como já se decidiu, no momento em
que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o
dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência
do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior
pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso
concreto.

Como mencionado anteriormente, a insignificância tem impacto na tipicidade,


de modo que a ausência ou mínima afetação ao bem jurídico resulta na atipicidade
do fato.

Em um sistema jurídico baseado em um Estado Democrático de Direito, onde


a lesividade é fundamental para justificar o poder punitivo, o Delegado de Polícia
pode optar por não lavrar a prisão em flagrante quando perceber a flagrante
insignificância da lesão ao bem jurídico. No entanto, o Delegado não tem autoridade
para arquivar o inquérito policial por conta própria, de acordo com o artigo 17 do
Código de Processo Penal. No entanto, com base em uma avaliação das
circunstâncias do caso concreto e constatando a atipicidade do fato, o Delegado
pode decidir não lavrar o Auto de Prisão em Flagrante ou até mesmo não instaurar o
inquérito policial.

Dessa forma, o Delegado de Polícia age dentro dos limites legais de sua
função e busca evitar prisões injustas e arbitrárias, além de conter a irracionalidade
punitiva. É importante destacar novamente a necessidade de critérios objetivos e
seguros para a aplicação do princípio da insignificância, a fim de auxiliar o trabalho
do Delegado de Polícia.

Entretanto, mesmo na ausência desses critérios, isso não impede a


Autoridade Policial de aplicar o princípio da insignificância, pois ela possui ampla
autoridade jurídica para verificar a presença ou ausência de tipicidade no caso
concreto. Como explicado por Policial Rebelo (2000, p. 45), citando Carlos Alberto
Marchi de Queiroz:

[...] apesar de o artigo 17 do CPP determinar que a autoridade policial não


pode mandar arquivar os autos do inquérito policial, os delegados de polícia
paulista há muito vêm aplicando o Princípio da Insignificância. Queiroz
sugere que a falta de amparo legal para a aplicação do princípio não
invalida e nem compromete o comportamento da autoridade policial, uma
vez que a insignificância é detalhe que se mede pelo conhecimento direto e
imediato da realidade social do plantonista ou do titular da unidade policial,
por dispor de condições jurídicas amplas de dimensionamento e de
verificação do mal do processo em face do mal da pena. Portanto, a
autoridade policial, que na solidão dos pretórios policiais compõe as partes em
conflito, não age segundo ditames do direito alternativo, mas sim assentada
no pragmatismo jurídico, sem ofensa ao ordenamento vigente, em
comportamento que coloca ao lado da Justiça e do Direito.

A aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia


desempenha um papel crucial na redução da irracionalidade punitiva, ao limitar o
poder punitivo quando a tipicidade material está ausente, reafirmando os valores
democráticos do direito penal diante da falta de lesividade ao bem jurídico.
DECISÕES ANALISADAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1662535.


Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Publicado em 19 de maio de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1878180. Relator: Ministro


Nefi Cordeiro. Publicado em 03 de junho de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1873887. Relator: Ministro


Nefi Cordeiro. Publicado em 17 de junho de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1861351. Relator: Ministro


Sebastião Reis Júnior. Publicado em 19 de junho de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 577389. Relator: Ministro


Felix Fischer. Publicado em 25 de junho de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1676578.


Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Publicado em 26 de junho de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1880065. Relator: Ministro


Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 04 de agosto de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1627756.


Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Publicado em 05 de agosto de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1612506.


Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Publicado em 13 de agosto de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 611655. Relator: Ministro


Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 14 de setembro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 614083. Relator: Ministro


Sebastião Reis Júnior. Publicado em 23 de setembro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1612506. Relator: Ministra


Laurita Vaz. Publicado em 23 de setembro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 617312 Relator: Ministro


Sebastião Reis Júnior. Publicado em 05 de outubro de 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 594715. Relator: Ministra
Laurita Vaz. Publicado em 23 de outubro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial


1750514. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 26 de
outubro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 611907. Relator: Ministro


Antônio Saldanha Palheiro. Publicado em 29 de outubro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 624056. Relator: Ministro


Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 12 de novembro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1717229.


Relator: Ministro Antônio Saldanha Palheiro. Publicado em 02 de dezembro de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 635647. Relator: Ministro


Felix Fischer. Publicado em 01 de fevereiro de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1704620.


Relator: Ministro Antônio Saldanha Palheiro. Publicado em 01 de fevereiro de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1726414.


Relator: Ministro Antônio Saldanha Palheiro. Publicado em 01 de fevereiro de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1908932. Relator: Ministro


Antônio Saldanha Palheiro. Publicado em 01 de fevereiro de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 642811 Relator: Ministro Joel
Ilan Paciornik. Publicado em 08 de fevereiro de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial


1627935. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Publicado em 17 de fevereiro de
2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial


1667410. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Publicado em 17 de fevereiro de
2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial


1786074. Relator: Sebastião Reis Júnior. Publicado em 09 de março de 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 635647. Relator: Ministro
Felix Fischer. Publicado em 29 de março de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1929036.


Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 08 de abril de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 640929. Relator: Ministro


Antônio Saldanha Palheiro. Publicado em 19 de abril de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1762053.


Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Publicado em 22 de abril de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 660182. Relator: Ministro


Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 23 de abril de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 646809. Relator: Ministro


Olindo Menezes. Publicado em 29 de abril de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 657067. Relator: Ministro


Rogério Schietti Cruz. Publicado em 03 de maio de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1834910.


Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 13 de maio de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1804615.


Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 17 de maio de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1834910.


Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Publicado em 13 de maio de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1905940.


Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Publicado em 24 de maio de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1906502.


Relator: Ministro Olindo Menezes. Publicado em 24 de maio de 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1826777.


Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Publicado em 27 de maio de 2021.

Você também pode gostar