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Ano letivo 2018/2019 Resumos de

Introdução ao
Estudo do Direito
Tratado do Direito Civil V – António
Menezes Cordeiro

Simão Fino
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Exercício jurídico
Atuação humana relevante para o direito. Traduz a concretização, por uma pessoa, de uma
situação, ativa ou passiva, que lhe tenha sido conferida pelo direito.

O exercício jurídico implica uma decisão do agente. Procede a uma concreta aplicação jurídico-
normativa, dando azo, pela síntese facto-valor que opera, a uma nova situação jurídica.
Modalidades e delimitações:

• Exercício de direitos – atuações possibilitadas pela permissão específica de aproveitamento


do bem em causa (venda de uma coisa ou cobrança de um crédito)
• Exercício de liberdades – sujeito move-se ao abrigo de permissões genéricas (celebração de
um contrato)
• Cumprimento de obrigações – concretização da conduta a que o agente estava adstrito
• Outras posições
1. Exercício puramente jurídico – condutas significativas para o campo do direito
(aceitação de uma proposta ou invocação de um prazo)
2. Exercício material – implica imediatas modificações de tipo físico (ato de consumo
alimentar ou uma edificação).

Pode ser:

❖ Exercício direto – levado a cabo pelo próprio agente interessado


❖ Exercício indireto – colaboração de uma outra pessoa: representante, mandatário ou gestor

Diversas rubricas atinentes ao exercício: legitimidade, representação, repercussão no tempo, abuso


de direito, colisão de direitos, tutela privada e provas.
Legitimidade
Qualidade de um sujeito que o habilite a agir no âmbito de uma situação jurídica considerada.

Enquanto as liberdades podem ser exercidas por todos, as situações jurídicas só são atuáveis pelos
sujeitos a que respeitem ou que disponham de especial habilitação jurídica: apenas esses sujeitos
detêm a necessária legitimidade.

Obs: a legitimidade não vem expressamente referida no CC, em termos gerais. Trata-se de uma
elaboração doutrinária italiana.
Figuras afins
Titularidade: qualidade de um sujeito enquanto beneficiário de uma situação jurídica ativa,
designadamente de um direito; mas o sujeito pode, em concreto, carecer de possibilidade de agir
no âmbito dessa situação (menores)

Adstrição: o sujeito vinculado a uma obrigação pode não ter a liberdade de a cumprir
(menoridade)

Capacidade (de gozo ou exercício): a legitimidade equivale a uma realidade específica, enquanto
a capacidade de gozo é genérica: uma pessoa pode ser plenamente capaz, mas não ter habilitação
ara exercer um acerta situação jurídica: por falta de titularidade, por exemplo.

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Modalidades
Legitimidade direita: assiste de modo automático ao titular ou destinatário de uma situação.

Legitimidade indireta: exige um ato suplementar de legitimação: uma procuração, por exemplo.

Legitimidade ativa: desencadear de uma conduta: exercício de um direito ou o cumprimento de


uma obrigação

Legitimidade passiva: beneficiar dessa conduta: posição do proponente face à aceitação.

Legitimidade jurídica: possibilidade de desencadear puramente exercícios jurídicos (vender).

Legitimidade material: consumir ou construir.

Legitimidade inicial: quando o agente esteja, no momento em que começa o exercício, habilitado
para ele.

Legitimidade superveniente: na falta de habilitação, o exercício decorre a descoberto, só


subsequentemente se verificando a sua legitimação.

Legitimidade processual: aptidão para, perante certa ação, estar em juízo.

Legitimidade civil: suscetibilidade de concretizar exercícios extrajudiciais de posições civis.


Legitimidade negocial, obrigacional, real, familiar ou sucessória
A legitimidade opera como uma noção civil. Perante uma situação jurídica, haveria que perguntar
quem tem competência para agir no seu interior.

A legitimidade, enquanto qualidade do sujeito reportada a determinada SJ, deriva de uma ou mais
ocorrências ou conjunções: os factos legitimadores.

❖ O facto legitimador por excelência é a titularidade.

Havendo titularidade, poderá, todavia, faltar a legitimidade. Exige-se então um novo facto
legitimador, a que chamamos de autorização.

A autorização pode ser necessária para a proteção do agente; para a proteção da contraparte ou de
terceiros e perante a pluralidade de interessados.

A autorização é, em regra, prévia ao ato, de modo a conferir ao seu autor, a necessária


legitimidade. Sendo subsequente podemos falar em: confirmação (125º), ratificação (268º),
reconhecimento (1061º) ou em consentimento (1372º).

Como já enunciado, a legitimidade não surge, em termos gerais, no CC.

A regra básica relativa à legitimidade resulta do artigo 892ºCC, quanto à venda de bens alheios –
“É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar
(…)”.

A falta de legitimidade conduz à nulidade, quando esteja em causa a transmissão de bens. De todo
o modo, a falta de legitimidade pode ser suprida, prévia ou subsequentemente.
Simão Fino
A legitimidade complementa, no plano do exercício, as esferas de liberdade representadas pelas SJ
e, em especial, pelo Direito subjetivo, permitindo apurar a idoneidade dos desempenhos
normativos. A legitimidade prolonga a ideia de permissão específica. A base da legitimidade
residirá na autonomização das esferas jurídicas. Num prisma técnico, constitui uma instância de
compatibilização entre as diversas posições subjetivas.

Carvalho Fernandes: a legitimidade corresponde à “suscetibilidade de uma pessoa exercer um


direito ou cumprir uma vinculação resultante de uma relação existente entre essa pessoa ou a
vinculação em causa”. Qualidade da pessoa, em virtude de uma relação entre ela e o direito, e não
a própria relação em causa.

Ex: pode o vendedor não ser titular da coisa, mas, todavia, ter legitimidade para a venda – que
poderia decorrer de uma procuração, de uma autorização, mas com efeitos representativos ou
subsequente ratificação. Ou seja: de relações entre o próprio sujeito e o titular e não entre ele e a
coisa.

O juízo de legitimidade reque, para além do momento jurídico-subjetivo próprio da titularidade,


uma valoração global de ordem sistemática que permita, in casu, assegurar a ausência de
delimitações negativas ao exercício pretendido.
Representação
(A atuação em prol de outrem)
Desde logo, há pessoas a quem não pode deixar de se reconhecer um mínimo de posicionamento
jurídico estão impedidas, pela natureza das coisas, de se autodeterminarem pessoal e livremente:
tal a situação dos menores de tenra idade e dos dementes. Há que contar também pessoas que,
embora naturalmente capazes são, contudo, desconsideradas pelo direito, em certas épocas
históricas ao ponto de não se lhes reconhecer o exercício pessoal e livre (escravos).

De todo o modo, há uma ideia unitária subjacente: o exercício por parte de uma pessoa em prol de
outrem.

A representação traduz uma forma de cooperação entre os seres humanos.


No direito romano
Nesta época, a noção de representação era desconhecida. Dominava o brocardo por pessoa livre
não há nada que possamos adquirir. Contudo, existia a figura do procurator. Na se trataria, todavia
de uma verdadeira figura e própria representação, uma vez que a atividade do representante não
se projetava, de modo automático, na esfera do representado. Os vínculos representativos apenas
eram negados em homens livres: a atividade dos filhos-família ou pelos escravos repercutia-se de
imediato na esfera do pater.
O direito comum
Na Idade Média, as necessidades do comércio à distância e a insegurança de algumas deslocações
levaram a um desenvolvimento de esquemas de representação. O desenvolvimento não foi fácil. A
escolástica mantivera o princípio da proibição da representação direta, negando que, em
consequência de um ato voluntário, se pudessem produzir efeitos jurídicos em esfera alheia.

O passo decisivo para a representação como figura geral foi nos séculos XVII e XVIII.

Simão Fino
Sistema do Código de Napoleão:
A representação, quando voluntária, surge interligada com o mandato. Pelo mandato são, pois,
conferidos poderes de representação.

Na verdade, o mandato é um contrato, tendo a representação dele decorrente natureza contratual.


O mandatário só fica eficazmente obrigado, perante o mandato, se for capaz; mas o mandatário
incapaz pode contratar válida e eficazmente, em nome e por conta do mandante.

A doutrina francesa reconhece a figura do mandato aparente. Permite esta figura que o
mandatário que ultrapasse os seus poderes, possa vincular o “representado”. É em primeiro lugar
necessário que o terceiro – portanto: a pessoa que tenha contratado com o falso mandatário
aparente – esteja de boa fé.
Jhering – doutrina alemã: distinção entre mandato e procuração
O contrato de mandato aplicava-se antes de mais às relações entre o mandante e o mandatário;
daria corpo a uma prestação de serviços que deve observar o que tenha sido acordado entre as
partes.

Pelo contrário, a procuração ficava melhor às relações entre o mandante e terceiros; asseguraria
poderes de representação. Corresponde a um ato unilateral revogável. O título constitutivo da
representação voluntária é a procuração.
Teorias da representação
Na representação uma pessoa atua manifestando uma vontade que depois se vai repercutir direta
e imediatamente na esfera jurídica de outrem.

❖ Teoria do dono do negócio ou da vontade – o representante seria apenas o porta voz do


representado. O representado pode exteriorizar a sua declaração de vontade através da fala ou
de uma carta; pode usar para esse efeito um terceiro como instrumento, de tal maneira que
esse terceiro só opere como um órgão do verdadeiro contratante (Savigny).
❖ Teoria da representação – a vontade estaria presente apenas no próprio representante. A
representarão assume um papel importante precisamente nas circunstâncias em que o
representado ou principal não tenha informações claras sobre as possibilidades contratuais:
caberá então ao representante, presente no terreno, eleger as melhores hipóteses. Explicando-se
que os efeitos do negócio se repercutissem na esfera no representado através de três pontos:
1. Teoria da ficção: embora a vontade relevante surja no representado, tudo se passaria
como se o representado agisse.
2. Teoria da separação entre a causa e os efeitos: A primeira processar-se-ia na esfera do
representante; os segundos na esfera do representado.
3. Teoria da mediação: a condução de um negócio através de representante pressupõe uma
colaboração entre ele e o principal: a atuação de ambos é necessária para permitir o
resultado final. O dos efeitos negocias na esfera do representado.

Não se ignora que a teoria da representação pode ficar na órbita do dogma da vontade. Haverá
que recorrer ao contexto sistemático. Um representante, por ter recebido os necessários poderes de
uma outra pessoa, celebra um negócio esclarecendo na altura que o faz em nome e por conta do
representado – contemplatio dominus. Quando o representante não manifestasse, de todo, a
contemplatio, o negócio celebrar-se-ia na sua própria esfera.
Simão Fino
Requisitos:
❖ Vontade do dominus (principal) em conceder os poderes de representação
❖ Vontade do representante de celebrar o negócio
❖ Vontade do representante de pretender fazê-lo não para si, mas para o dono, dizendo-o
(contemplatio dominus)
Representação orgânica
Teoria da representação: a pessoa coletiva seria incapaz de agir, ficando de agir, ficando numa
situação similar à dos menores. E como eles, careceria de ser representada.

Teoria orgânica: a pessoa coletiva traduz uma realidade autónoma, tendo vias próprias de
atuação. Ela agiria através de órgãos próprios, não cabendo falar de suprimentos de incapacidade.

MC: na verdade não há representação orgânica. As pessoas coletivas dispõem de órgãos, com
certas fórmulas de preenchimento. A atuação dos órgãos é a da pessoa coletiva, numa lógica
própria do modo coletivo de funcionamento do Direito.

A pessoa coletiva pode como qualquer pessoa singular, constituir representantes voluntários,
procuradores aos quais se aplicará a doutrina comum da representação. A referência a uma
“representação” orgânica deve-se apenas a uma emergência conceitual.

As regras sobre representação não são excecionais. Nada impede que elas possam ser úteis no
tocante à integração dos esquemas coletivas, quando lacunosos.
Representação legal
Os pais, enquanto representantes dos seus filhos, não os representam no sentido comum de se
autodeterminarem com contemplatio domini, de tal forma que os atos praticados se
consubstanciem nas esferas dos “principais”. Eles estão, sim, abrangidos de poderes funcionais. É
um imperioso dever ético e, depois jurídico, agir em defesa dos filhos, praticando os atos para
tanto necessário.

A representação voluntária visa ampliar a vontade e o raio de ação do principal, enquanto a


“representação” legal pretende a proteção patrimonial e pessoal dos jovens seres humanos ou de
certos deficientes.

A “representação” legal, foi surgindo mercê das restrições impostas à atuação do pater ou tutor.

Em suma: a representação equivale, tecnicamente, a um direito potestativo do representante,


direito esse que lhe permite, em certas circunstâncias e invocando a contemplatio domini,
produzir efeitos jurídicos na esfera do representado. Para além do poder básico de provocar
efeitos jurídicos na esfera do representado, ele vai dispor de múltiplas posições instrumentais,
ficando ainda adstrito a diversos deveres. Sendo um direito potestativo, a situação do
representante enquanto tal e, ainda, um direito funcional. O representante não é livre ou não é
inteiramente livre - dentro da permissão que lhe assiste.

Assim, a representação decorre da presença, na esfera do representante, de um direito potestativo


funcional de agir em nome de outrem e por conta do dominus ou representado, fazendo surgir, na
esfera deste, o produto dos negócios celebrados.

Simão Fino
O sistema português da representação
(desde as ordenações)
Mandato como o contrato pelo qual uma pessoa comete a outra a administração graciosa de um
negócio seu.

Correia Telles: a representação era reportada, apenas à representação sucessória.

Código de Seabra

Dá-se contrato de mandato ou procuradoria, quando alguma pessoa se encarrega de prestar, ou


fazer alguma coisa, por mandato ou em nome de outrem. O mandato só pode ser verbal ou
escrito.

Relação entre mandato e procuração: diz-se procuração o documento, em que o mandante ou o


constituinte, exprime o seu mandato. A procuração só pode ser pública ou particular.

A receção do pandectismo

Nem sempre o mandato envolve representação: o mandatário poderia encarregar-se de celebrar o


negócio jurídico no seu próprio nome (Guilherme Moreira).
Mandato
No direito português, a representação voluntária resulta da procuração.

Para surtir os seus efeitos a procuração postula um negócio subjacente, que a complete e lhe dê
um sentido. Encontramos, que no regime da procuração, que no do mandato, diversos elementos
que documentam a existência de um contágio entre ambas as figuras.

O contrato de mandato remonta ao direito romano, assentando na amizade, sendo, por isso,
essencialmente gratuito. Teve, de igual modo, lugar no código de Napoleão.

Na preparação do CC de 1966 (PT) optou-se pelo esquema pandectístico, com a separação entre o
mandato e a procuração e a consequente possibilidade de admitir um mandato com representação
e um mandato sem ela. De todo o modo, os textos foram muito alterados nas denominadas
revisões ministeriais.

De entre as alterações, importa enunciar:

❖ Eliminação do mandato judicial


❖ Separação entre o mandato e a procuração
❖ Mandato ganhou um sentido mais objetivo, mais profissionalizante.

Relativamente às disposições gerais que o CC dedica ao mandato, resulta que o mesmo implica ao
mandatário:

✓ A prática de um ou mais atos jurídicos


✓ Por conta de outrem (significa que os atos a praticar pelo mandatário se destinam à esfera
do mandante/”no interesse de alguém”)

O mandato presume-se gratuito ou oneroso consoante esteja fora ou dentro do exercício da


profissão do mandatário.

Simão Fino
Tratando-se de mandato oneroso, a retribuição é remetida, sucessivamente – artigo 1158º/2 CC –
para:

✓ O acordo das partes (recurso a este em especial no exercício da advocacia)


✓ As tarifas profissionais
✓ Os usos
✓ Os juízos de equidade

Mandato geral: abrange uma generalidade de atos (1159º/1).

Mandato especial: reporta-se a atos concretos (1159/2).

Ambos pressupões, além do dever de prestar principal, a execução de todas as tarefas acessórias
necessárias – 762º/2.

A pluralidade de mandatários dá lugar a tantos mandatos quantas as pessoas exigidas (1160º)


Posição do mandatário (1160º)
➢ Deveres de atuação
➢ Deveres de informação e comunicação
➢ Deveres de prestação de contas
➢ Deveres de entrega
Os deveres de atuação constituem o núcleo do mandato: visa-se a prática de atos previstos no
contrato.

O artigo 1162ºCC permite ao mandatário não executar o mandato ou afastar-se das instruções
recebidas “(…) quando seja razoável supor que o mandante aprovaria a sua conduta, se
conhecesse certas circunstâncias que não foi possível comunicar-lhe em tempo útil”.

O dever e comunicação, nos termos do artigo 1161º CC, parece cingir-se:

➢ À execução do mandato
➢ À sua (eventual) não execução
➢ Às razões desta última

A prestação de contas findo o mandato ou quando o mandante o exigir, postula negócios


patrimoniais, com movimento recíprocos e, possivelmente, uma conta-corrente.

Código de Napoleão: dever de fazer um relatório sobre tudo o que tenha sucedido.

A obrigação final da entrega abrange uma atividade material de entrega de dinheiro. Além do
dinheiro há que restituir documentos e objetos envolvidos.

(O mandatário – sem representação – deve (re)transmitir para o mandante os direitos adquiridos


em execução do mandato: uma obrigação autonomizada no artigo 1181º CC)

O mandatário pode, na execução do mandato, fazer-se substituir por outro ou servir-se de


auxiliares:

❖ Fazer-se substituir se o mandante o permitir ou se essa faculdade resultar do mandato


❖ Recorrer a auxiliares se o contrato não o excluir ou se o tipo de mandato em causa não implicar
o contrário

Simão Fino
Quanto à pluralidade de mandatários: quando tenham o dever de agir conjuntamente, responde
cada um pelos seus atos, salvo cláusula em contrário.
Posição do mandante
➢ Fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato
➢ Efetuar pagamentos a vários títulos
O mandatário ode abster-se de executar o mandato enquanto o mandante se encontrar em mora
quanto ao cumprimento (1168º CC), à exceção dos gratuitos, visto não ser um contrato “bilateral”
nem estarem em causa prestações recíprocas/sinalagma (428º CC).

Os pagamentos são:

➢ Retribuições
➢ Reembolso das despesas
➢ Indemnização pelo prejuízo sofrido em consequência do mandato, mesmo na ausência de
culpa do mandante.
A cessação do mandato
Esta pode ser por revogação ou por caducidade.

O artigo 1170º/1 CC proclama a livre revogabilidade do mandato por qualquer das partes, mesmo
quando haja convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.

Se, porém, o mandato tiver sido conferido também o interesse do mandatário ou de terceiro, não
pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrida justa causa.

A livre revogabilidade do mandato, excluída a hipótese supra evidenciada, pode, todavia, quando
exercida, dar azo a um dever de Indemnizar a outra parte do prejuízo que ela sofre - 1172º CC,
segundo:

✓ Se se tiver convencionado o direito à indemnização


✓ Se tiver sido estipulada a irrevogabilidade ou renúncia à revogação: apesar das cláusulas
em questão não impedirem a revogação, são válidas quanto à indemnização.
✓ Se a revogação provier do mandante e se reportar a mandato oneroso conferido por certo
tempo ou para certo assunto ou no caso de não ter havido a conveniente antecedência
✓ Se a revogação provier do mandatário e não tiver havido a referida antecedência
conveniente.

Havendo justa causa, não se justifica qualquer indemnização.

O que se encontra aqui em jogo é a designada tutela da confiança que a parte lesada não poderá
ter deixado de depositar na subsistência do vínculo do mandato.

Havendo pluralidade de mandates e tendo o mandato sido conferido “para assunto de interesse
comum”, a revogação só opera se realizada por todos (1173º CC).

Simão Fino
Casos de caducidade:

✓ Morte ou interdição do mandante ou do mandatário e inabilitação do mandante, se o


mandato tiver por objeto atos que não possam se praticados sem intervenção do curador.
✓ Decurso do prazo a que esteja sujeito, pela obtenção do resultado que vise e pela ocorrência
de condição resolutiva.

O mandato não caduca:


✓ Pela morte, interdição ou inabilitação do mandante, quando tenha sido conferido também
no interesse do mandatário ou de terceiros.

Nos outros casos, só caduca quando conhecida pelo mandatário ou quando, da caducidade, não
possam resultar prejuízos para o mandante ou para os seus herdeiros.

Evidentemente, e no caso da morte, se o mandato não caduca, deverá entender-se que se


transmitiu aos seus sucessores (2024º/2025º).

Por seu turno, a morte, interdição ou incapacidade natural do mandatário determinam, na esfera
de herdeiros ou convenientes, a obrigação de prevenir o mandante e de tomar as medidas
adequadas, até que ele próprio esteja em condições de providenciar – 1176º CC.

Havendo pluralidade de mandatários, o mandato caduca em relação a todos, salvo declaração em


contrário – 1177º (inspiração Código Italiano).
Mandato com representação
✓ Sendo o mandatário também representante, é aplicável, cumulativamente com as regras do
mandato, o disposto nos artigos 258º CC e seguintes.
✓ O mandatário representante deve agir não só por conta do mandante, mas, também, em seu
nome (contemplatio domini).
✓ A revogação e a renúncia da procuração implicam revogação do mandato.

Assim, no mandato com representação, prevalece o regime da procuração do mandato.


Mandato sem representação
Aquele que é exercido em nome do mandatário (sem contemplatio domini)

O mandatário poderá, porventura, ter poderes de representação: se não os exercer declarado, na


contratação, que age em nome do mandante, os direitos adquiridos e as obrigações assumidos
operam na esfera do próprio mandatário.

Não deixa de haver mandato. E, assim, o mandatário fica obrigado a transferir para o mandante os
direitos adquiridos em execução do mandato (1181º/1)

Pelas mesmas coordenadas, deve o mandante assumir as obrigações contraídas pelo mandatário.

Os bens adquiridos pelo mandatário e que devam ser transferidos para o mandante não
respondem pelas obrigações deste, desde que o mandato conte de documento anterior à data da
penhora desses bens e na tenha sido feita a inscrição da aquisição quando sujeita a registo.

Simão Fino
Caracterização do mandato
❖ É um contrato consensual – a lei não o sujeita a nenhuma forma solene
❖ É um contrato sinalagmático perfeito – as prestações a que o mandante se encontre adstrito não
equivalem às adstrições do mandatário
❖ É um contrato supletivamente gratuito – presumir-se-á oneroso no âmbito da profissão do
mandatário.

O mandato apresenta-se como um contrato típico, por excelência, da prestação de serviços. Sob a
representação terá de haver condutas humanas (logo: serviços) e condutas que redundem numa
prestação de serviços públicos.
Requisitos, modalidades e figuras semelhantes
O funcionamento da representação depende, em cada caso concreto, da presença de um negócio
jurídico ou de um ato a ele assimilável. A representação implica uma atividade jurídica. Trata-se
de uma atividade humana, logo livre: requer autonomia e margens de decisão por parte do
representante. Se este tiver apenas, como margem, o transmitir pela própria boca a vontade do
representado, já não haverá representação: apenas um mero núncio ou “representante de
declaração”.

O representante não se limita a fazer tal declaração, por forma a que seja imputada ao
representado: ele desenvolve os necessários preliminares, conclui, sendo o caso, negócios
preparatórios e, depois, declara e recebe declarações. Todo o negócio está aqui em causa. O perfil
do mandato está bem presente.
A representação funciona perante três requisitos:
❖ Uma atuação jurídica em nome de outrem
❖ Por conta dessa mesma pessoa
❖ E dispondo o representante de poderes para o fazer

Atuação em nome de outrem – nomine alieno – o representante deve agir esclarecendo a outra
parte e todos os demais interessados de que age nessa qualidade. Se ele não invocar
expressamente, de modo a que seja entendido, já não haverá representação.

➢ A representação é um direito – representante poderá ou não exercê-lo


➢ O terceiro, com quem contacte, tem todo o direito de conhecer a outra parte

O representante deve aturar por conta do representado. A ação representativa visa a esfera
jurídica do representado. O representante age no âmbito da autonomia privada do representado.

Havendo contemplatio domini, isto é, invocando o representante que está a agir em nome do
principal, fica implícito que o faz por conta deste.

O representante deve, por fim, ter poderes para atuar eficazmente em nome do dominus, também
dito principal ou representado: os poderes de representação. No domínio da representação
voluntária, tais poderes provêm de um negócio a tanto dirigido: a procuração ou um negócio
misto que, no seu seio, tenha elementos de procuração.

Simão Fino
Modalidades de representação
✓ Legal – conjunto de esquemas destinados a suprir a incapacidade de menores/interditos
✓ Orgânica – as pessoas coletivas são representadas, em princípio, pela administração – artigo
163º - segundo o professor MC em rigor aqui no há verdadeira “representação”, uma vez
que os “representantes” integram órgãos da “representada”
✓ Voluntária – a que tenha na sua base a concessão, pelo representado e ao representante, de
poderes de representação.
Figuras semelhantes
1. Representação mediata ou imprópria
2. Gestão de negócios – o agente/gestor age em nome do dono, mas sem invocar poderes de
representação; os negócios que pratique inscrevem-se na esfera do dominus, se houver
ratificação (praticar atos materiais em nome de outrem – MBB) – artigo 471º
3. Contrato para pessoa a nomear – parte reserva-se ao direito de nomear terceiro que adquira
os direitos e assuma as obrigações do contrato
4. Recurso a núncio – limita-se a transmitir a mensagem sem margem de decisão
5. Ratificação – permite a eficácia do ato em causa na esfera da pessoa por conta da qual foi
praticado
6. Aprovação – valoriza a conduta do agente ilibando-o das responsabilidades
7. Consentimento – agente é autorizado a agir em nome próprio na esfera alheia: a procuração
visa a pessoa, enquanto o consentimento visa o bem.
O Regime da Representação
O negócio celebrado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que
lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado – artigo 258º. Como se vê,
a lei autonomiza a atuação nomine alieno.

A repercussão dos negócios na esfera do principal:

✓ É imediata – opera no preciso momento em que o negócio ocorra


✓ É automática – não se exige qualquer outro evento para que ela ocorra

Associada à representação, existirá uma situação subjacente: em regra, um mandato.

Elementos subjetivos:

Como já evidenciado, existem dois intervenientes: representado e representante.

Pela teoria do dono do negócio, apenas a vontade do representado teria relevância; pela da
representação, contaria tão-só a vontade do representante.

O código civil, no seu artigo 259º, deu corpo a uma combinação de ambos.

Relativamente ao procurador, artigo 263º, este não necessita de ter mais do que a capacidade de
entender e querer exigida pela natureza do negócio que deva efetuar.

Mais, a má fé do representado – artigo 259º/2 – prejudica sempre, mesmo que o representante


esteja de boa fé

Simão Fino
Numa situação de representação, o representante age em nome do representado: dá a conhecer,
aos interessados o facto de representação. O destinatário da conduta tem o direito – 260º/1 – de
exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes: doutro modo, a
representação não produzirá efeitos.

Constando os poderes de representação num documento, pode o terceiro exigir cópia dele
assinada pelo representante – 260º/2. Reforça-se a confiança do terceiro e encontra-se um esquema
destinado a responsabilizar o representante.
Negócio consigo mesmo
Dispondo de poderes de representação, o representante poderia ser levado a usá-los num contrato
em que, ele próprio, fosse a outra parte. Nessa eventualidade surge um conflito de interesses, que
explica a restritividade da lei.

Para resolver o problema, o artigo 261º distingue três hipótese:

✓ O negócio celebrado pelo representante consigo mesmo e em nome de outrem – comprar o


que tinha poderes para vender, por exemplo.
✓ O negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, mas em representação de um
terceiro – comprar o que tinha poderes para vender, fazendo-o com poderes de outro
terceiro – 261º/1.
✓ O negócio celebrado por pessoa a quem o representante tivesse subestabelecido os seus
poderes de representação, com o próprio representante.

O legislador considera o negócio celebrado consigo mesmo anulável, independentemente de ser


ou não prejudicial. Ficam ressalvadas as hipóteses de o representado ter dado o seu assentimento
ao negócio em causa ou de, por natureza, não poder haver conflito de interesses. O representado
decidirá, em última instância, se o negócio lhe convém ou se, pelo contrário, pretende impugná-lo.

Além do negócio consigo mesmo, há que referir outras hipóteses de conflitos de interesses.

Quando uma mesma pessoa surja como representante, em simultâneo, de duas pessoas que
tenham interesses opostos? Traduzir-se-á na incompatibilidade de procuração paralela das
relações subjacentes respetivas. A boa fé que acompanha as relações em causa- 762º/2 – obrigará o
procurador a dar conta, ao representado, do conflito existente. Nada podendo fazer por essa via, o
“duplo” procurador coloca-se no âmbito do artigo 335º: conflito de direitos (ou deveres). Terá de
ponderar a situação, procurando harmonizar as posições em presença. Sacrificará uma delas (ou
ambas), de acordo com a natureza da situação. À partida, e com conhecimento de causa, ela não
pode aceitar procurações incompatíveis, sob pena de responder pelos prejuízos.
A Procuração e o Negócio-Base
A representação voluntária é dominada pela procuração – 262º - ato pelo qual se confirma, a
alguém, poderes de representação e exprime o documento onde esse negócio tenha sido exarado.

É um negócio jurídico unilateral: implica liberdade de celebração e de estipulação e surge perfeita


apenas com uma declaração de vontade. Não é necessária qualquer aceitação para que ela
produza os seus efeitos. O beneficiário que não queira ser procurador terá de se limitar a
renunciar a ela, assem a extinguindo – 265º/1. A renúncia pode ser tácita. Tal sucederá,

Simão Fino
designadamente, quando a procuração se integre numa proposta de contrato (mandato) que não
seja aceite.

Em princípio, a procuração pode ter por objeto a prática de quaisquer atos, salvo disposição legal
em contrário - o testamento, por exemplo.

A procuração deve submeter-se aos preceitos gerais, com relevo para os artigos 280º e seguintes
CC. A procuração poderá ser nula quando o seu objeto for indeterminável.

A procuração deve revestir a forma exigida para o negócio que o procurador possa realizar.
Poderá ser verbal quando vise negócios consensuais, devendo ser passada por escrito sempre que
seja essa a forma requerida para o negócio a celebrar. Nos casos em que o negócio a concluir exige
escritura pública deverá assumir uma das três formas referidas no artigo 116º/1 do CNot.

✓ Instrumento público
✓ Documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial de letra e
de assinatura
✓ Documento autenticado

Obs: as procurações passadas a advogados não carecem de intervenção notarial.

Obs: As procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de atos para os quais são
conferidos esses poderes.
Poderes gerais e poderes especiais:
PG: permite ao representante a prática de uma atividade genérica, em nome e por conta do
representado.

PE: destina-se à prática de atos específicos.

*Encontramos esta distinção presente no artigo 1159º CC relativamente ao mandato. É aplicável à


procuração, na base dum argumento histórico, dum argumento sistemático e dum argumento
lógico a fortiori.
O negócio-base; relevância na procuração:
A procuração promove a concessão de poderes de representação enquanto que o mandato dá azo
a uma prestação de serviço. A efetiva concretização dos poderes implicados por uma procuração
pressupõe, pois, um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio base.

Normalmente, o negócio-base será um contrato de mandato. A extensão da procuração, as suas


vicissitudes, a natureza geral ou especial dos poderes que ela implique e o modo por que eles
devem ser exercidos dependerão, também do contrato-base.
Regras quanto ao procurador e à substituição:
O procurador não necessita de ter mais do que a capacidade de entender e querer exigida pela
natureza do negócio que haja de efetuar – 263º. O artigo 264º/1 admite a substituição do
procurador em três hipóteses:

❖ Se o representante o permitir
❖ Se a faculdade de substituição resultar do conteúdo da procuração
❖ Se essa mesma faculdade resultar da relação jurídica que a determina
Simão Fino
Quando haja substituição, esta pode operar com ou sem reserva.

Substituição com reserva: o procurador não é excluído, mantém-se.

Substituição sem reserva: o procurador é excluído.

Autorizada a substituição, pergunta-se em que medida o procurador primitivo é responsável,


perante o representado, pelos atos praticados pelo novo procurador.

O procurador só responde se tiver agido com culpa na escolha do substituto ou nas instruções que
lhe deu.

Exceção: Quando o negócio-base implique o regime comum do artigo 800º/1, o procurador


primitivo responde nos termos gerais.

Por fim, quanto ao artigo 264º/4, este admite que o procurador se sirva de auxiliares na execução
da procuração. Contudo, esta possibilidade pode ser afastada por cláusula em contrário.
A cessação da procuração:
São três as fórmulas de extinção da procuração, segundo o artigo 265º71 e 2:

❖ Renúncia do procurador
❖ Cessação do negócio-base
❖ Revogação pelo representado

O procurador pode sempre renunciar à procuração. Há a possibilidade de qualquer das partes lhe
pôr cobro. Todavia, a renúncia súbita a uma procuração pode prejudicar o representado. Assim, o
procurador poderá ter de indemnizar se causar danos e a sua responsabilidade emergir da
relação-base. Estando em causa um mandato com representação, por exemplo, a renúncia à
procuração implica a sua revogação – 1179º - aplicando-se, consequentemente, o 1172º, quanto à
obrigação de indemnização.

A cessação do negócio base acarreta o termo da procuração que, em princípio, não se mantém sem
aquele. A lei admite, todavia, que a procuração subsista “se outra for a vontade do representado”.
Nessa altura, os poderes mantêm-se, aguardando o consubstanciar de outra situação de base que
dê sentido ao seu exercício.

Tratando-se do mandato – 1174º - ele caduca por morte ou interdição do mandante ou do


mandatário ou ela inabilitação do mandante, se o mandato tiver por objeto atos que não possam
ser praticados sem intervenção do curador. Contudo, nos termos do artigo 1175º: a morte,
interdição ou inabilitação do mandante, não faz caducar o mandato quando este tenha sido
conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro; nos outros casos, a caducidade só
opera quando o mandatário tenha conhecimento do evento ou quando da caducidade não possam
resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros.

Estas regras aplicam-se à procuração no caso de morte, interdição ou inabilitação do representado.

A morte, interdição ou incapacidade natural do representante, por aplicação também direta ou


analógica do artigo 1176º/1, obriga os herdeiros deste a prevenir o representado e a tomar as
providências adequadas até que ele próprio esteja em condições de providenciar: o nº2 do conceito

Simão Fino
faz recair, sobre as pessoas que convivam com o mandatário, uma obrigação idêntica, no caso de
incapacidade natural deste.

E na pluralidade de representantes, funcionará o artigo 1177º: a procuração caduca em relação a


todos, ainda que a causa de caducidade respeite apenas a um deles, salvo se outra for a vontade
do representado.

A propósito também da revogação da procuração, o artigo 265º/3 prevê a hipótese de uma


procuração conferida também no interesse do procurador ou de terceiro: será, então, irrevogável.

A revogação, tal como a renúncia, pode ser expressa ou tácita (por exemplo, no caso de outra
pessoa ser nomeada para a prática dos mesmos atos, nomeadamente no mandato).

Em qualquer caso, o representante deve restituir, ao representado, o documento onde contém os


seus poderes, de modo a evitar que terceiros possam ser enganados quanto à manutenção de
poderes do representado.
A tutela de terceiros
A representação voluntária serve os interesses próprios do representado. Mas, a representação
traduz ainda uma especial forma de cooperação entre os seres humanos, permitindo a divisão de
tarefas e, desse modo, o incremento geral de riqueza.

Através da representação, o representante contrata com terceiros. A procuração não pode, pois,
ser tratada como uma relação exclusiva entre o representante e o representado.

Todo o comércio assenta, hoje, em redes de fenómenos representativos.

Embira implicado na procuração, o terceiro contratante não intervém. O direito dispensa, por isso,
uma tutela de terceiros. Preferiu, ao invés, recorrer a um novo corpo de regras que, relacionadas
com terceiros e, por vezes, contra a corrente da própria procuração, visam dispensar a necessária
tutela.
A proteção perante as modificações e a extinção da procuração (266º):
❖ Tratando-se de modificações ou de revogação da procuração devem elas ser levadas ao
conhecimento de terceiros por meios idóneos; sob pena de lhes não serem oponíveis senão
quando se mostre que delas tinham conhecimento no momento da conclusão do negócio

A doutrina italiana apela, seja para o facto de a procuração ser normalmente, comunicada ao
terceiro interessado, seja mesmo para a tese de que a declaração de extinção tem o terceiro como
destinatário.

Teoria da aparecia jurídica: entende que a procuração se extinguiu efetivamente, mantendo


alguma eficácia.

Teoria do negócio jurídico: a procuração só se extingue quando a sua cessação seja conhecida
pelos terceiros a proteger. Este diploma admite a procuração por comunicação direta feita ao
terceiro que irá contratar com o representante.

No Direito Português, a teoria do negócio jurídico noa terá quaisquer fundamentos nas fontes.
Queda optar pela teoria da aparência – 266º.

Simão Fino
Em suma: o artigo 266º protege os terceiros ou certos terceiros perante modificações ou perante a
revogação da procuração de que não tivessem, de uma ou de outra, sem culpa, conhecimento.

Procuração Tolerada: alguém admite, repetidamente, que um terceiro se arrogue seu


representante. Quando tal suceda, reconhecem-se ao “representante” aparente, autênticos poderes
de representação. Não se aceita que, por esta via, surja uma verdadeira procuração.

Procuração aparente: alguém se arroga representante de outrem, sem conhecimento do


“representado”. Porém, o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível designadamente
na vigilância dos seus subordinados, poderia (e deveria) prevenir a situação. Teríamos, assim, a
aparência de representação como elemento objetivo, e como elemento subjetivo a negligência do
“representado”.
Esquema:

• Aparência de representação
• Negligência do “representado” que devia ser mais diligente e prevenir a situação vigiando
os seus subordinados.
• Desconhecimento do falso apresentado
• Boa fé dos 3ºs que confiam na existência dos poderes.
• EX: supermercado
Em ambos os casos teria de se exigir a boa fé por parte do terceiro protegido: a tutela não opera
quando ele conhecesse ou devesse conhecer a falta de procuração.
Obs: estes dois institutos – procurações toleradas e procuração aparente - não são consagradas no
nosso Ordenamento Jurídico.

MC – no Direito português encontramos a procuração institucional:


Na falta de procuração, e mesmo em situações de tolerância ou de aparência, nada há que,
objetivamente, faculte a aplicação do referido artigo 266º.

Fora de qualquer provisão específica, a confiança só é protegida, no Direito Português, através da


boa fé e do abuso de direito. Assim, não admitimos a “procuração tolerada” nem a “procuração
aparente” a não ser como figuras de estilo para designar a proteção abaixo referida.

O Direito Português vigente comporta um dispositivo em torno do qual se afigura possível


construir uma ideia de procuração institucional, destinada a assegurar o tráfego jurídico e a
proteger terceiros.

(Um negócio celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz perante o principal
se tiverem existido razões ponderosas, objetivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias
do caso, que justifiquem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do agente, desde que o
principal tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro)

Requisitos:

❖ Atuação em nome alheio


❖ Terceiro de boa fé
❖ Confiança justificada
❖ Para a qual tenha contribuído o principal

Simão Fino
O primeiro, terceiro e quarto requisitos fundem-se num só. A boa fé do terceiro resulta da
aparência global da agência com representação.

Falaremos então numa procuração institucional: surge sempre que uma pessoa, de boa fé, contrate
em termos tais que, de acordo com os dados socioculturais vigentes e visto a sua inserção
orgânica, seja tranquila a existência de poderes de representação (Decreto-lei nº 178/86, artigo
23º/1).
Procuração post mortem:
De acordo com o artigo 265º a morte do representado não implica, necessariamente, a caducidade
da procuração. Por exemplo: ocorrendo a morte do comerciante, prosseguem os negócios
concluídos pelos trabalhadores e agentes, agora com efeitos na esfera dos sucessores.

Nas situações individualizadas, a procuração tende, porém, a caducar pela morte do representado,
em virtude da cessação da relação subjacente.

É frequente, nos termos do artigo 1170º/2, na prática jurídica, passarem-se procurações relativas a
negócios concretos, no interesse também do representante, irrevogáveis e eficazes post mortem.

Por exemplo:

O terceiro, perante uma procuração irrevogável e eficaz post mortem, fica latamente protegido.
Representação sem poderes:
Ato praticado em nome e por conta de outra pessoa sem que, para tanto, existam os necessários
poderes de representação – 268º.

À partida o negócio deveria ser nulo. Todavia, o mesmo poderá ser favorável ao dominus – 471º.
Nesse sentido, o negócio é ineficaz em relação ao dominus se não for, por ele, ratificado – 268º/1.

A ratificação surge como um ato jurídico tido restrito pelo qual o “representado” acolhe o negócio
em causa na sua esfera jurídica.

A ratificação do ato não se confunde com a sua aprovação prática – artigo 469º. A aprovação
implica que o dominus renuncie a eventuais indemnizações e que está disposto a compensar o
“representante” pelas despesas e danos que ele tenha sofrido com a sua atuação. É ainda a
vontade do “representado” de não invocar os mecanismos do incumprimento eventualmente
perpetrado pelo falsus procurator.

O ato praticado sem poderes traduz uma violação contratual – pode haver ratificação, mas não
aprovação, de tal modo que se mantenha a responsabilidade contratual do mandatário.

O negócio celebrado sem poderes, mesmo quando represente uma violação de direitos do
dominus ou traduza o incumprimento de um contrato celebrado entre ele e o gestor, pode vir a ser
aproveitável, seja intrinsecamente, seja através de outras vantagens que o dominus consiga
negociar. A ratificação coloca-se nesse plano específico, não prejudicando o caráter jurídico e
eticamente reprovável da conduta do agente.

A ratificação está sujeita à forma requerida para a própria procuração – 268º/2 – e tem eficácia
retroativa, sem prejuízo dos direitos de terceiros. Se for negada, o negócio ficará sem quaisquer
efeitos, salvo se outra coisa se inferir do seu próprio teor.

Simão Fino
Não havendo ratificação, o negócio mantém-se; todavia, é ineficaz em relação ao
“representado”. O próprio terceiro fica vinculado a ele.

❖ No caso de o terceiro ter conhecimento da falta de poderes do representante, no momento da


conclusão, o terceiro pode fixar um prazo para que sobrevenha a ratificação: se o prazo for
ultrapassado, considera-se negada a ratificação – 268º/3 – ficando o negócio sem efeito. Se tal
prazo não for fixado, o terceiro sujeita-se a que o “representado” protele, indefinidamente, a
situação. Pelo 411º, admite-se que o terceiro possa pedir ao tribunal que fixe ao “representado”
um prazo razoável para que ratifique (ou rejeite) o negócio, sem o que este caducará.
❖ No caso de ele não ter tal conhecimento, o terceiro pode, a todo o tempo, revogar ou rejeitar o
negócio em causa.
O abuso de representação:
A este instituto reporta-se o artigo 269º determinando, nessa eventualidade, a aplicação do regime
da representação sem poderes, “… se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso”.

O abuso de representação traduz a situação na qual os poderes efetivamente existentes sejam


separados pelo ato praticado.

Em termos gerais, o abuso de representação vem a ser o exercício dos inerentes poderes em
oposição com a relação subjacente: há uma violação dos deveres de lealdade que a ele postula e do
escopo.

Ex: A atribui poderes a B para comprar um computador que necessita de levar para as aulas de
Direito Processual Civil, de modo a conseguir acompanhar tudo o que é dito. B compra um
computador de 100kg. Neste caso, estamos perante abuso de direito, uma vez que B efetivamente
tem poderes para comprar um computador, mas desvia-se do escopo (comprar um computador
para as aulas, subentendendo-se, prático).
A repercussão do tempo nas situações jurídicas
O ser humano é transitório, tendo procurado responder à consciência da mortalidade.

O Direito Civil, regulando a vida e a morte e a sua repercussão sobre os direitos e as obrigações,
ocupa-se da estabilidade das situações jurídicas. Estas, através do fenómeno da sucessão mortis
causa e sempre que tenham relevância económica, são virtualmente imortais.

Desde logo, o ser humano adquire diversas características, com a passagem do tempo, pelo que
encontramos regras sobre a menoridade, cessação do contrato de trabalho, aposentação…

Numa segunda área de repercussão, o tempo age sobre as fontes do Direito: a lei nova substitui a
velha, obrigando a estabelecer normas de conflito, para enquadrar situações que, com ambas,
convivam.

Em rigor, não é o temo que age. Antes de verificam modificações sucessivas as fontes.

Todas estas ocorrências traduzem como uma resistência do Direito ao tempo. O Direito implicará
sempre o vetor humano que consiste em segurar, em função de determinadas coordenadas e de
acordo com uma ideia de Justiça, uma realidade em permanente mutação (O contrato deve ser
cumprido porque, num certo momento temporalmente limitado, se assistiu a uma contratação).

Simão Fino
Condicionalismos histórico-culturais:
Ao longo da história foram acolhidos institutos diversificados relativos ao tema em estudo. A
evolução da usucapião e da prescrição, abaixo referida, documenta-o desde o Direito romano.
Foram feitos muitos progressos: mas nunca de obteve um quadro final claro. Ainda hoje se
articulam diversos institutos, de contornos menos coincidentes, em séries que continuam a
progredir.

O tema da repercussão do tempo nas SJ tem merecido um escasso interesse doutrinário.


Particularidades do Código Civil:
O nosso CC tem quatro artigos – 296º; 297º; 298º e 299º ditos “disposições gerais”, tendencialmente
aplicáveis aos diversos institutos que, em concreto, exprimam a repercussão do tempo nas SJ. Com
isso, distingue-se dos Códigos alemão, francês e italiano, que não fizeram tal tentativa.
Enumeração dos institutos:
De acordo com o artigo 298º são três as distintas figuras:

❖ Prescrição
❖ Caducidade
❖ Não-uso

Quanto à prescrição, dispôs-se que lhe estavam sujeitos os direitos disponíveis ou que não fossem,
por lei, declarados isentos da prescrição – 298º/1.

Quanto à caducidade – 298º/2 – as suas regras são aplicáveis quando, por força da lei ou da
vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo.

Finalmente, quanto ao não-uso – 298º/3 – a lei começa por isentar certos direitos reais de gozo da
prescrição, submetendo-os, depois ao não-uso, “… nos caos, especialmente, previstos na lei”.

Em termos histórico-culturais e jurídico-científicos, há uma clara primazia da prescrição.


A contagem dos prazos
“Prazo” designa sempre um período de tempo. O tempo é contado de acordo com as unidades
próprias: o ano, o dia, o mês ou a semana.

Em Direito distinguem-se dois tipos de prazos: os civis e os processuais.

Na origem temos o problema de saber se o tempo se conta momento a momento a momento ou


por anos, meses ou dias.

O primeiro seria o mais justo, mas levantaria infindáveis discussões. Assim optou-se pelo
cômputo civil: dia a dia; ano a ano; mês a mês; e não momento a momento.

Ex: uma pessoa faz anos no dia em que nasceu, por ser o dia em si, não faz anos às horas, desse
dia, em que nasceu.

O tempo da prescrição conta-se por anos, meses e dias e não de momento a momento, exceto nos
casos em que a lei expressamente o determinar.

Simão Fino
O dia em que começa a correr a prescrição conta-se por inteiro, ainda que não seja completo, mas o
dia em que a prescrição finda deve ser completo.
O cômputo dos prazos:
O artigo 279º contém regras gerais sobre a contagem dos prazos:

❖ Se o prazo se tiver iniciado pela lei velha e a lei nova o encurtar: reinicia-se a contagem, à luz
da lei nova e à data da vigência desta; posto isso, aplica-se o da lei velha ou o da lei nova,
consoante o que primeiro expirar – 279º/1.
❖ Na mesma situação e se a lei nova alongar o prazo: este tem aplicação, mas computa-se, nele, o
tempo decorrido desde o início – 279º/2.
A Prescrição
No direito romano não encontramos uma figura que se identifique com a prescrição ou mais
genericamente com um princípio de sensibilidade dos direitos do decurso do tempo. Adiantam os
autores que os problemas da certeza e da segurança eram quase indiferentes aos cidadãos
romanos.

Na lei das XII Tábuas, encontram-se manifestações da eficácia do tempo, mas pela positiva: como
fator de constituição ou de consolidação de posições jurídicas.

O usus traduzia o controlo material de uma coisa, em termos que mais tarde vieram a ser
aproximados da possessio e que, hoje, desembocam na posse.

No direito romano a transmissão da propriedade de uma coisa noa operava automaticamente


através do contrato. Este apenas permitia investir o adquirente do usus da coisa. Quando esse usus
se prolongasse por dois anos, operava a aquisição do domínio por usucapio.

Nas codificações assistiu-se a uma simplificação geral do tema da prescrição. Foram reduzidos
certos prazos e suprimidas algumas modalidades.
Reforma da prescrição no BGB:
O sistema da prescrição foi alterado em profundidade, quer quanto às soluções, quer quanto à
conceitualização. Mas sempre dentro da linguagem do BGB e, naturalmente: de acordo com
parâmetros jurídico-científicos.

Houve uma enorme redução do prazo ordinário da prescrição: passando este de 30 para 3 anos,
sem, contudo, deixar de considerar diversos prazos especiais; como, por exemplo, o direito
relativo a prédios (prescrevem em 10 anos).

Relativamente ao início da prescrição ordinária, esta ocorre aquando do conhecimento das


circunstâncias constitutivas.

No tocante aos prazos não ordinários da prescrição – isto é: fora da situação dos três anos, agora
generalizada – a prescrição inicia-se com o surgimento da pretensão.
A experiência portuguesa: nota histórica
Inicialmente, as Ordenações Afonsinas dão conta de um costume, registado por D. Afonso III,
segundo o qua a prescrição não poderia ocorrer entre irmãos.

Simão Fino
D. Afonso V fixaria o prazo geral da prescrição em 30 anos, matéria esta inserida nas posteriores
Ordenações – Manuelinas e Filipinas, respetivamente.

O código de Seabra vai titular sobre esta matéria, definindo prescrição como: “Pelo facto da posse
adquirem-se coisa e direitos, assim como se extinguem obrigações pelo facto de não ser exigido o
seu cumprimento. A lei determina as condições e o lapso de tempo, que são necessários, tanto
para uma como para outra coisa”.

A aquisição de coisas ou direitos era a prescrição positiva; a desoneração de obrigações, a


negativa.

Na tradição canónica inserida nas Ordenações, o Código de Seabra associava ainda a prescrição
(negativa) à boa-fé. A contagem iniciar-se-ia assim que a obrigação fosse exigível.
A Prescrição: Regime Vigente
São nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a facilitar
ou a dificultar por outro modo as condições em que ela opere os seus efeitos – 300º - paralelamente
´´e proibida a renúncia antecipada à prescrição – 302º/1.

A prescrição seria, assim, um instituto integralmente imperativo. As partes poderiam fixar os


prazos: mas apenas de caducidade – artigo 330º/1. A prescrição visa a segurança jurídica das
relações jurídicas, pelo que o próprio encurtamento dos prazos estaria vedado às partes.

À medida que o tempo passe, o devedor irá ter uma crescente dificuldade em fazer prova do
pagamento que tenha efetuado. Ninguém vai conservar recibos/comprovativos anos a fio. A não
haver prescrição, o devedor veria comprometer as suas hipóteses de regresso, sempre que
estivessem em causa situações subjetivamente complexas.

Em suma: o devedor nunca ficaria seguro de ter deixado de o ser, fiando numa posição
permanentemente fragilizada.

A prescrição serviria ainda escopos de ordem geral, atinentes à paz jurídica e à segurança.

A prescrição visa, no essencial, tutelar o interesse do devedor.


A renúncia à invocação da prescrição:
A prescrição não pode ser dificultada ou excluída, nem mesmo por acordo das partes. Depois de
ter decorrido o seu prazo e de se ter constituído o direito potestativo de a invocar, o artigo 302º/1
admite a renúncia. A renúncia será assim uma declaração unilateral, recipienda, visando a
extinção do direito potestativo de invocar a prescrição. A renúncia à prescrição é operativa
quando o devedor conhecesse ou devesse conhecer o decurso do seu prazo.

Nos termos do artigo 302º/2 a renúncia pode ser tácita:

❖ Renúncia tacitamente à prescrição quem, depois de decorrido o prazo prescricional, reconheça


a dívida exequenda, obrigando-se a pagá-la (estão em jogo deveres morais).
❖ Há renúncia quando se admita que a dívida de capital e juros subsiste, apesar de decorrido o
prazo.
❖ Há também quando o devedor de uma obrigação prescrita proponha ao credor formas de
pagamento.

Simão Fino
❖ Há, igualmente, renúncia tácita quando o devedor declare, após a prescrição, que pagará
quando receber determinadas indemnizações.

A lei é clara: não pode haver negócios que dificultem, para o futuro, a prescrição.

Supremo Tribunal, por assento, determina:

❖ A renúncia à prescrição permitida pelo artigo 302º do Código Civil só produz efeitos em
relação ao prazo prescricional decorrido até ao ato de renúncia, não podendo impedir os
efeitos de ulterior decurso de novo prazo.

A prescrição tem também na origem a inatividade do devedor, que poderá não pagar
conscientemente. Se for incapaz, desaparece essa dimensão pretendida e calculada.

A prescrição é uma posição privada concedida no interesse do devedor. Este usá-la-á ou não. A
hipótese de um devedor, beneficiado pela prescrição, não a querer usar, nada tem de anormal:
poderão prevalecer aspetos morais ou, até, patrimoniais e pragmáticos: o comerciante preferirá
pagar o que deve do que fazer constar, na praça, que recorreu à prescrição, com prejuízo para o
seu credor legítimo.

Recorrer à prescrição é, em suma, uma opção que exige um claro ato de autodeterminação.

Em rigor, o simples decurso do prazo dá lugar ao aparecimento de um direito potestativo: o de


invocar a prescrição.

A prescrição pode ser invocada por terceiros: pelos credores do devedor e por outras pessoas que
tenham interesse legítimo na sua declaração – artigo 305º/1 e 605º
Início do prazo:
❖ Sistema objetivo
O prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do
conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respetivo credor. É um sistema tradicional, sendo
compatível com prazos longos. Dá primazia à segurança.
❖ Sistema subjetivo
O início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu
direito. Este sistema joga com prazos curtos e costuma ser dobrado por uma prescrição mais
longa, objetiva. Dá primazia à justiça.

O artigo 306º/1 adotou o esquema objetivo: dispensa qualquer conhecimento, por parte do credor.
Começa a correr quando o direito puder ser exercido, não se contando o próprio dia.

Para o Direito atual, é indiferente a boa ou má fé do credor.

Numa prestação periódica, cumpre distinguir:

✓ Direito unitário – 307º

Assim, tratando-se de rende perpétua ou de renda vitalícia, a prescrição do direito unitário inicia-
se desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga. A especialidade desta situação
reside no facto de haver um título único e não, propriamente, uma prestação (ou direito de
aproveitamento) nuclear, de que as prestações periódicas decorram, como acessórias.
Simão Fino
✓ Direito singular – tem autonomia: prescreve no prazo que lhe compita (310º - normalmente em
5 anos)

Fala ainda o artigo 307º em “… outras prestações análogas…”:

✓ A reda fixada como indemnização (567º) – há analogia de situações, não sendo as prestações
jurídicas meros acessórios.
✓ O legado de prestações periódicas (2273º) - há analogia de situações, não sendo as prestações
jurídicas meros acessórios.
✓ Os juros (561º) – a autonomia do crédito de juros reporta-se a cada concreta prestação de juros.
Acessio temporis:

A prescrição reporta-se a SJ – a obrigações – independentemente de quem as encabece.

O artigo 308º refere a acessio temporis como “transmissão”. Prevê-a pelo lado do credor e pelo
devedor. Neste último caso, a transmissão, exige, em regra, o consentimento do credor; tal
consentimento, a ser solicitado pelo devedor, envolveria o reconhecimento, por este, da existência
do direito e, por aí, a interrupção da prescrição.

Pode ocorrer que a própria transmissão de crédito envolva reconhecimento da dívida pelo
devedor e daí interrupção. Por seu turno, há transmissão de dívidas sem intervenção das partes –
por exemplo: na sucessão ou em certas sub-rogações legais.
Os efeitos:
Expirado o prazo, o devedor tem o direito de invocar a prescrição – 303º. Essa inovação pode ser
feita judicialmente ou extrajudicialmente e de modo expresso ou de modo tácito.

Invocada a prestação, o beneficiário tem “(…) a faculdade de recusar o cumprimento da prestação


ou de se opor, por qualquer meio, ao exercício do direito potestativo”.

A prescrição “prescrita”, mas cuja prescrição não tenha sido invocada é uma prestação comum.
Sendo cumprida, não há que falar em prescrição, uma vez que o tribunal não a pode aplicar de
ofício. Há duas sub-hipóteses:

✓ Ou não foi invocada porque o devedor não a quis invocar: o direito é disponível: a escolha é
sua.
✓ Ou não foi invocada porque o devedor não sabia da prescrição: nessa altura, a lei não permite
invalidar o cumprimento, repetindo a prestação.

A lei exige que a prestação tenha sido realizada “espontaneamente”. Segundo o artigo 403º/2,
“espontânea”, aqui, significa “livre de toda a coação”.

De seguida põe-se a hipótese de ter sido invocada a prescrição e, depois não obstante, o devedor
vir a pagar a prestação em jogo. Também não a poderá repetir, dada a dimensão do artigo 304º/2.

A invocação da prescrição tem a consequência de fazer passar o débito prescrito à categoria de


obrigação natural – 403º/1.

Simão Fino
Quadro de efeitos decorrido o prazo prescricional:

❖ O devedor pode invocar a prescrição, pode renunciar a ela ou pode nada fazer
❖ Se invocar a prescrição, a obrigação passa a natural; se, não obstante, for cumprida, não pode
ser repetida;
❖ Se renunciar à prescrição a obrigação mantém-se civil, devendo ser cumprida, nos termos
comuns
❖ Se nada fizer, a obrigação mantém-se, também, civil; aí uma de duas:
✓ Ou o devedor cumpre e a prestação não pode ser repetida, por ser civil
✓ Ou não cumpre e irá ser condenado no seu cumprimento, por a obrigação ser civil.

A prescrição dá azo apenas ao direito de a poder invocar; se este direito não for exercido, a
obrigação mantém-se civil, não havendo quaisquer efeitos. Se a prescrição for invocada, aí sim:
teremos uma obrigação natural.
Prazos da Prescrição:
Prescrição ordinária – o prazo é de 20 anos. Trata-se de um prazo único sempre aplicável quando
a lei não fixe hipóteses especiais e independentemente da boa ou da má fé do devedor.

O prazo ordinário da prescrição em Itália é de 10 anos.

A lei tempera a largueza do prazo ordinário da prescrição com numerosos prazos especiais mais
reduzidos.

Prescrição de cinco anos – nas palavras do Supremo, os artigos 310º e 311º fixam um regime de
degrau em degrau, de regra, exceção, exceção a exceção, nova exceção.

O primeiro bloco que nos aparece é o da prescrição de 5 anos, prevista no artigo 310º, em sete
alíneas:

1. As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias – 1231º e 1238


2. As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos, por uma só vez – 1038º e
1039º
3. Os foros – 1499º
4. Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos e os dividendos das sociedades – 559º
5. As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros
6. As pensões alimentícias vencidas – 2203º
7. Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis

A prestação de cinco anos constava do Código de Seabra o qual, por seu turno, adveio do Código
de Napoleão.

A influência deste preceito mantém-se, ainda hoje, em Itália.

O Código Civil comporta outros prazos de prescrição, desde seis meses e de dois anos – 316º e
317º e prazos de três anos (próprio da restituição do enriquecimento e da responsabilidade civil –
482º e 498º.

Em legislação complementar avulta a prescrição de um ano prevista no artigo 381º do Código do


Trabalho.

Simão Fino
Prescrições Presuntivas
Prescrições cujo prazo é inferior a cinco anos e que se sujeitam a um regime diferenciado. Tiveram
a sua origem no Código de Napoleão e prevê este diploma prescrições de seis meses, um ano e de
dois ou cinco anos.

Dada a natureza específica das dívidas aí em causa, a lei parte do princípio de que, se não forem
rapidamente exigidas, é porque estão pagas. Apenas pelo juramento se poderia provar que assim
não foi, juramento esse depois convolado para confissão. E caso houvesse reconhecimento escrito,
seguir-se-ia a prescrição ordinária.

A prescrição presuntiva foi acolhida nos códigos italianos e no Código de Seabra, que previa
prescrições de 6 meses, de um ano, de dois anos e de três anos.

Na preparação do Código Civil, o problema foi cuidadosamente ponderado por Vaz Serra. Em
particular, valorou-se que as prescrições de muito curto prazo só poderiam manter-se como
presuntivas: a abolir a figura, elas teriam de ver o prazo ampliado, com inconvenientes práticos.

As prescrições presuntivas baseiam-se numa presunção de que as dívidas visadas foram pagas. De
um modo geral, elas reportam-se a débitos marcados pela oralidade ou próprios do dia a dia.

O artigo 312º começou por estabelecer que as prescrições subsequentes fundam-se na presunção
de cumprimento. Ficam abrangidas as prescrições de 6 meses e de 2 anos, dos artigos 316º e 317º.

Tal presunção é, todavia, muito forte. O credor não pode ilidir a presunção provando que, afinal,
caído e si, o poderá fazer: por confissão: artigo 313º.

A confissão, segundo o artigo 352º, é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto
que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. A confissão terá ainda de ser feita ainda pelo
devedor originário ou por aquele a quem a dívida tenha sido transferida por sucessão – 313º/1.

✓ A confissão, a ser extrajudicial, exige forma escrita: 313º/2


✓ A confissão pode ser tácita, mas com especial sentido do artigo 314º: o devedor recusar-se a
depor ou a prestar juramento em tribunal ou, ainda, praticar em juízo atos incompatíveis
com a presunção de cumprimento.

A prescrição presuntiva rege-se ainda pelas regras gerais do artigo 315º. Têm aplicação as normas
sobre a indisponibilidade, a invocação, o decurso do prazo, a suspensão e a interrupção. Nalguns
casos, normas específicas introduzem diferenciações: tal a hipóteses do artigo 430º.

Casos:

Prescrição de seis meses – 316º -

❖ créditos de estabelecimentos de alojamento, comidas ou bebidas, pelo alojamento, comidas ou


bebidas que forneçam.

Prescrições de dois anos – 317º -

❖ créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento ou alojamento e alimentação a


estudantes
❖ créditos de estabelecimentos de ensino, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços
prestados

Simão Fino
❖ créditos de comerciantes pelas vendas a não comerciantes ou não destinadas ao comercio
❖ créditos os que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias
ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo despesas, a menos
que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor
❖ créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das
despesas correspondentes.

Uma prescrição de prazo curto, quando nada se diga, é uma prescrição extintiva ou presuntiva?

A ideia de que a regra é a da prescrição extintiva, sendo a presuntiva “exceção”, é puramente


concetual e vocabular. A regra é a da subsistência dos créditos até ao seu pagamento.

Uma prescrição de curto prazo, quando nada se diga, poderá, no Direito português, muito bem ser
presuntiva: é a solução mais próxima do padrão-base. A pretender um desvio maior, o legislador
terá de o assumir, dizendo-o.
Suspensão da Prescrição
A prescrição é, no fundamental, um instituto conectado à certeza e à segurança do Direito. Basta
ver que ela está ontologicamente ligada ao decurso de prazos os quais, por definição, são
impessoais: ignoram, de modo absoluto, quaisquer particularidades do caso concreto.

Diversas manifestações para a suspensão da prescrição:


❖ causas bilaterais
Implicam uma suspensão entre duas pessoas particularmente relacionadas: entre cônjuges, por
exemplo.

Tais causas constam do artigo 318º que prevê seis distintas ocorrências:

1. entre cônjuges
2. entre quem exerça o poder paternal e as pessoas a ele sujeitas; entre o tutor e o tutelado e
entre o curador e o curatelado
3. entre as pessoas coletivas e os respetivos administradores
4. entre quem presta o trabalho doméstico e o respetivo patrão
5. entre o credor e o devedor
6. entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos à administração de outrem e aquelas que
exercem a administração, até serem aprovadas as contas finais

Nos casos c) e d) do artigo 318º, o problema seria de conflito de interesses. Havendo administração
de bens de terceiro, caberia ao administrador invocar a prescrição (dele) contra a entidade
administrada ou invocar a prescrição (desta) contra ele próprio.
❖ causas subjetivas
Suspensão favorável a pessoas que se encontrem em situações de Direito tutela: militares na
guerra, por exemplo.

Segundo o artigo 319º, a prescrição não começa, nem corre contra militares em serviço, durante o
tempo de guerra ou de mobilização, dentro ou fora do País, ou contra as pessoas que estejam, por
motivo de serviço, adstritas às forças armadas.

Simão Fino
A prescrição só faz sentido enquanto instituto ao serviço da segurança. O artigo 319º terá, assim,
aplicação apenas nos casos de guerra constitucionalmente declarada ou por todos reconhecida.

O artigo 320º contempla noca causa subjetiva de suspensão: a relativa a menores, interditos ou
inabilitados.

✓ A prescrição não começa nem corre enquanto não tiverem quem os represente ou
administre os seus bens, salvo se respeitar a atos para os quais o menor tenha
capacidade
✓ A prescrição não se completa sem ter decorrido um ano sobre o termo da incapacidade
✓ A prescrição presuntiva prossegue, mas não se completa sem ter decorrido um ano
sobre a obtenção do representante ou administrador ou sobre a aquisição da plena
capacidade

A suspensão dura um máximo de três anos, ideia que a lei exprime através da perífrase
surpreendente “a incapacidade considera-se finda…”.
❖ causas objetivas
Derivam de situações jurídicas sensíveis: um caso de força maior, por exemplo.

São duas as causas objetivas de suspensão:

1. A suspensão nos últimos três meses do prazo, enquanto o titular estiver impedido de fazer
valer o seu direito, por motivo de força maior.
2. Na hipótese de dolo do obrigado, que o impeça de tal exercício.

“Motivo de força maior” era uma expressão do Código de Seabra para designar a impossibilidade.

Vaz Serra, nos estudos preparatórios do atual Código Civil, abandonou o esquema do 2caso
fortuito” ou de “força maior” a favor da construção romano-germânica da impossibilidade.

Não oferece dúvidas a aproximação entre o artigo 321º/1 e o artigo 790º/1: há suspensão, nos
últimos três meses do prazo, quando o titular estiver impossibilitado, por causa que lhe não seja
imputável, de fazer valer o seu direito.

Cessando a suspensão, o prazo anteriormente decorrido aproveita-se, somando-se ao que decorra


depois.

Cumpre distinguir:

➢ Suspensão inicial.
➢ Suspensão intercalar – a prescrição já se tinha iniciado quando ocorre a causa suspensiva; o
prazo para, aproveitando-se, contudo, quando recomece a correr.
➢ Suspensão final

A suspensão funciona como objeto de um direito potestativo de deter o funcionamento da


prescrição, em certas circunstâncias, suspendendo o conteúdo do respetivo prazo. Uma vez
invocada, a suspensão tem eficácia retroativa: os seus efeitos operam desde o momento em que se
mostrem reunidos os competentes requisitos.

Simão Fino
Interrupção da Prescrição
Ato ou o efeito de pôr termo ao processo prescricional. A interrupção, quando ocorra, inutiliza
todo o prazo porventura já decorrido. Verificados os requisitos poderá apenas, depois, haver um
reinício.

A interrupção ganha autonomia dogmática em contraposição com a suspensão.

➢ A suspensão permite o aproveitamento do prazo que tenha decorrido antes dela.


➢ A interrupção inutiliza todo o prazo anterior, obrigando a nova contagem a partir do zero.

Dogmaticamente, a interrupção corresponde à ausência súbita do processo de prescrição.


Interrupção promovida pelo titular:
Segundo o artigo 323º/1, a prescrição interrompe-se
❖ Pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima a intenção de exercer o direito
❖ Podendo essa intenção ser expressa direta ou indiretamente
❖ seja qual for o processo a que o ato pertence
❖ ainda que o tribunal seja incompetente

O interessado tem de lançar mão dos meios jurisdicionais para interromper a prescrição.

A interrupção mantém-se mesmo quando haja anulação da citação ou da notificação – 323º/3:


prova de que não se trata de praticar atos judiciais, mas de levar ao conhecimento do devedor, de
modo particularmente solene, a intenção de exercer um direito.

Pode suceder que as citações ou notificações demorem muitos dias ou semanas a efetivar: por
sobrecarga dos tribunais ou por razões atinentes ao próprio devedor. O artigo 323º/2 explica que a
citação ou notificação se não fazer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida por causa não
imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.

A jurisprudência esclarece alguns pontos:

❖ a prescrição é interrompida independentemente da citação, mesmo quando esta não seja


levada a cabo por férias judiciais – 323º/2.
❖ quando os autores ajam com a diligência devida, requerendo a citação dos réus com cinco dias
de antecedência, beneficiam da ficção legal do artigo 323º/2.
❖ a citação prévia também deve ser requerida até cinco dias de antecedência, para efeitos do
artigo 323º/2.
❖ de todo o modo, pelas regras gerais, se o prazo prescricional terminar durante as férias
judiciais e a citação ocorrer no primeiro dia útil subsequente, há interrupção, por via do artigo
279º.
O reconhecimento:
A prescrição é interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular,
por aquele contra quem o direito pode ser exercido. 325º/1

Modos de concretização passíveis de reconhecimento:


❖ o pagamento de alguns juros traduz o reconhecimento da dívida de capital que os gerou, mas
não dos juros anteriormente vencidos.
Simão Fino
❖ A embargante que sempre se mostrou disponível junto da embargada para proceder ao
pagamento de letras, fazendo pedidos de prazo para a sua liquidação ou alegando
impossibilidade momentânea para o fazer, reconhece o direito do credor e interrompe a
prescrição
❖ Se uma seguradora põe à disposição do interessado uma quantia ainda que inferior à
pretendida, tem-se a prescrição por interrompida.
O reinício:
A interrupção, como já enunciado, inutiliza todo o tempo anteriormente decorrido. A partir dela,
começará a contar-se nova prescrição, sujeita ao prazo primitivo – artigo 326º.

Quando a interrupção resulte da citação, notificação ou ato equiparado ou de compromisso


arbitral, o novo prazo não começa a correr antes do trânsito em julgado da decisão que ponha
termo ao processo – 327º/1. Sobrevindo desistência, absolvição ou deserção da instância, ou
ficando sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo começa a contar logo após o ato
interruptivo – 327º/2 – havendo ainda que observar o disposto no nº3 do mesmo preceito.
Prescrições especiais:
Os artigos 482º e 498º/1, relativos ao direito à restituição por enriquecimento e ao direito à
indemnização, estabelecem um regime de prescrição diferenciado:

❖ Uma prescrição de 3 anos a contar da datem que o credor teve conhecimento do direito que lhe
compete e da pessoa responsável (no enriquecimento) ou do direito que lhe compete, embora
com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos sanos.
❖ Mantendo-se, em ambos os casos, a prescrição ordinária, a partir, respetivamente, do
enriquecimento e do facto danoso.

A especialidade dos preceitos trienais reside na adoção do esquema subjetivo: elas só começam a
correr com o conhecimento, pelo credor, do seu direito ou, pelo menos, de certos elementos
essenciais do seu direito.

O direito de regresso entre os responsáveis prescreve, também, no prazo de três anos – 498º/2.
Prescrição de seis meses: serviços públicos essenciais
Pelos serviços públicos abrangidos entendemos os fornecimentos de água, energia elétrica e gás e
telefone.

O diploma referente aos serviços públicos determina, a cargo do prestador, deveres de boa fé, de
informação e de elevados padrões de qualidade. Além disso proíbe suspensões de fornecimento
sem pré-aviso adequando e salvo “caso fortuito ou de força maior”, recusas de pagamentos
parciais e imposições de consumos mínimos.

Uma prescrição de seis meses, pela lógica do Direito Português, é uma prescrição presuntiva…
seis meses, mesmo numa comarca com o serviço em dia, não permite a marcação de uma
audiência preliminar. Ameaçar, por suposto desinteresse, uma pessoa, por não efetivar
judicialmente um direito num prazo de seis meses, na parece credível. A hipótese de prescrição
presuntiva, alem de ir ao encontro do artigo 316º sempre atenuaria a estreiteza do prazo em causa.

Simão Fino
Finalmente, há que atentar ao início da prescrição – “o direito de exigir o pagamento do preço do
serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a prestação”.

Perante um serviço público de fornecimento de eletricidade, de água, de gás ou de telefone, passa-


se o seguinte:

❖ É feito o fornecimento (a “prestação”)


❖ O prestador procede às leituras dos contadores ou equivalente eletrónico
❖ O prestador remete uma fatura
❖ O utente recebe a fatura
❖ O utente paga a fatura

O legislador pretendeu que o prestador não demorasse indefinidamente o envio das faturas. Se o
não fizesse no prazo de seis meses após a prestação, presume-se que a remessa teve lugar.

Enviada a fatura no prazo de seis meses: o direito de exigir o pagamento foi tempestivamente
exercido. A partir daí, caímos na prestação do artigo 310º/g: cinco anos.
A Caducidade e o Não-Uso
Caducidade deriva de caduco – o que cai, o fraco, o transitório e o caduco.

Em sentido lato, a caducidade corresponde a um esquema geral de cessação de situações jurídicas,


mercê da superveniência de um facto a que a lei ou outras fontes atribuam esse efeito – ela traduz
a extinção de uma posição jurídica pela verificação de um facto dotado de eficácia extintiva.

Em sentido estrito, a caducidade é uma forma de repercussão do tempo nas situações jurídicas
que, por lei ou por contrato, devam ser exercidas dentro de certo termo. Expirado o respetivo
prazo sem que se verifique o exercício, há extinção.

A caducidade em sentido amplo é multifacetada.

Procurando sistematizar, as hipóteses de caducidade em sentido amplo, verificamos que elas se


ligam:

❖ À verificação de um termo
❖ À impossibilidade superveniente das prestações
❖ À ilegitimidade superveniente

Em sentido estrito, podemos observar dois tipos de caducidade:

❖ Caducidade simples – a lei limita-se a prever ou a referir a cessação de uma situação jurídica
pelo decurso do tempo.
❖ Caducidade punitiva – o Direito impõe a cessação de uma posição jurídica como reação ao seu
não-exercício, no prazo fixado. Por vezes usa mesmo a expressão “sob pena de caducidade”.

No Direito romano não se verificava qualquer autonomização da caducidade: a própria prescrição


só em época tardia veio a ser estruturada. A evolução da caducidade nos diversos espaços
continentais documenta a dupla preocupação do Direito civil dos nossos dias de preencher
requisitos de normalização e de diferenciação.

Simão Fino
O regime da caducidade
A aplicação do regime da caducidade depende de, perante um prazo, se poder determinar a sua
natureza: prazo de prescrição ou prazo de caducidade?

“Quando por força da lei ou da vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo
prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à
prescrição”.

Determinado o estar-se diante de um prazo de caducidade, cumpre ainda averiguar se tal prazo é
substantivo ou judicial.

Em princípio é substantivo, com a consequente aplicação do regime do artigo 279º e,


designadamente: terminado a um Sábado, ele é transferido para o primeiro dia útil seguinte. Mas
o direito de requerer a suspensão das deliberações sociais, ainda que beneficiando do regime dos
prazos judiciais é igualmente substantivo.
Tipos de caducidade:
❖ Legal – predisposta diretamente pela lei
❖ Convencional – predisposta por convenção das partes
❖ Relativa a matéria disponível – partes podem alterar o regime legal
❖ Relativa a matéria indisponível - partes não podem alterar o regime legal
❖ Relativas a atos substantivos – precludem direitos extrajudiciais
❖ Relativas a ações judiciais – reportam-se ao direito de propor certa ação em juízo
❖ Obrigacional; real; de Direito da família e sucessória.
Início e suspensão:
O prazo de caducidade, salvo se a lei fixar outra data, começa a correr no momento em que o
direito puder legalmente ser exercido – 329º.

A norma distingue-se em dois pontos quanto à prescrição (306º):

❖ Prevê que a lei possa fixar outra data


❖ Não associa o início do decurso do prazo à exigibilidade.

No domínio da caducidade, noa se aplicam as regras sobre suspensão e interrupção do prazo, que
funcionam perante a prescrição – 328º.

O artigo 328º ressalva a hipótese de a lei determinar a aplicação, ao prazo de caducidade, das
regras sobre a suspensão e a interrupção.

Decurso o prazo e causas impeditivas:

A caducidade, uma vez em funcionamento, é inelutável. A caducidade só é detida pela prática,


dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou uma convenção atribuam o efeito
impeditivo – 331º/1. A “causa impeditiva da caducidade” terá de coincidir, na prática, com a
efetivação do próprio ato sujeito à caducidade.

A caducidade é declarada pela entidade competente para reconhecer o direito envolvido. Como
por exemplo: o Instituto Nacional da Propriedade Industrial e tribunais judiciais.

Simão Fino
Todo o beneficiário pode invocar extrajudicialmente a caducidade de qualquer pretensão com que
se veja confrontado. Uma vez demandado, invocá-la-á por via de exceção.

Não se considera completada a caducidade antes de decorrerem dois meses sobre o trânsito em
julgado da decisão. Sendo a instância interrompida, não se conta, para efeitos de caducidade, o
prazo decorrido entre a proposição a ação e a interrupção da instância – 332º/2.

Tratando-se de caducidade convencional ou de caducidade relativa a direito disponível – 331º/2 –


admite que ela seja detida pelo reconhecimento do direito por pate daquele contra quem deva ser
exercido. A jurisprudência exige que o reconhecimento tenha o mesmo efeito do que a prática do
ato sujeito a caducidade. Tem de haver um reconhecimento concreto, preciso, sem ambiguidades
ou de natureza, vaga ou genérica. Além disso, para ter efeitos impeditivos da caducidade, o
reconhecimento deve ter lugar antes de o próprio direito em jogo ter caducado.
O conhecimento oficioso:
Perante situações excluídas da disponibilidade das partes, a caducidade é apreciada
oficiosamente.

Em face da matéria não excluída da disponibilidade das partes, o artigo 331º/2 remete para o 303º
- o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição: esta deve ser invocada, judicial ou
extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de
incapaz, pelo Ministério Público.
A natureza e a eficácia da caducidade:
A caducidade distingue-se da prescrição por exigir, ao contrário desta, específicas previsões: legais
ou contratuais.

Os campos de aplicação da caducidade e da prescrição são tendencialmente distintos. A tradição


reporta-se a direitos potestativos, enquanto a prescrição assume uma feição estruturalmente
dirigida às obrigações.

A prescrição é imune à vontade das partes, enquanto a caducidade pode ser modelada pela
autonomia privada.

A caducidade tem prazos curtos, ao contrário da prescrição, cujo horizonte ´´e constituído pelo
prazo ordinário de vinte anos.

Na prescrição a lie prevê os casos de suspensão e de interrupção. Já na caducidade isso, em


princípio, não sucede: exige-se, para tanto, uma previsão específica, mau grado uma aplicação
supletiva da suspensão às caducidades convencionais (330º/2).

Efeitos e natureza:

A prescrição tem como fim converter as obrigações civis em obrigações naturais: o beneficiário
pode opor-se ao exercício do direito prescrito, todavia, se realizar espontaneamente a prestação,
mesmo na ignorância da prescrição, já não a pode repetir (304º/2).

Não podemos aplicar estas regras à caducidade:

❖ Só há obrigações naturais quando previstas especificamente pela lei – consequência do artigo


809º

Simão Fino
❖ A remissão tem natureza contratual – 863º
❖ As regras de caducidade são de direito estrito, como emerge do próprio artigo 328º.

A pessoa que “cumpra” um direito caducado pode sempre repetir o “pagamento” – 476º.
Quanto à natureza:
❖ A caducidade reportada a posições indisponíveis traduz uma delimitação temporal às
situações envolvidas: atingido o prazo fixado, elas cessam.
❖ A caducidade reportada a posições disponíveis confere, ao beneficiário, um direito potestativo:
o de através de declaração de vontade que consiste em invocar a própria caducidade, pôr
termo à situação jurídica atingida.

Opinião:

Vamos tentar explicitar como, no nosso entender, e sem prejuízo de melhor opinião, devem ser entendidos os
termos em análise.

Começamos por referir que o artigo 298.º - Prescrição, caducidade e não uso do direito, do Código Civil,
estabelece que “Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei,
os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.

Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são
aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.

Os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas
podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta
de disposição em contrário, as regras da caducidade”.

Ora, atendendo ao teor do articulado acima transcrito, pensamos que existirá alguma lógica em definir do
seguinte modo os termos de caducidade e prescrição.

Caducidade – Significa a perda de um direito devido, nomeadamente, ao decurso de prazo.

Prescrição – Ocorre quando se verificam os quatro seguintes requisitos: existência de uma pretensão; inércia do
titular da ação pelo seu não-exercício; continuidade dessa inércia durante um certo lapso de tempo; ausência de
algum fato impeditivo, suspensivo ou interruptivo.

Resumindo: A caducidade define o período temporal para liquidação de um imposto, por norma de 4 anos,
enquanto a prescrição define o prazo para cobrança de um imposto já liquidado, por norma de 8 anos.

Note-se que o artigo 329.º - Começo do prazo, do Código Civil, preconiza que o prazo de caducidade, se a lei não
fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.

O não uso:
❖ Tem uma aplicação taxativa aos direitos enumerados no artigo 298º/3: todos eles direitos reais
de gozo
❖ Ainda então exigindo uma nova e “especial” previsão.

Não uso equivale a não exercício do direito real em jogo.


A Supressio Ex Bona Fide – supressão por exigência de boa fé:
Cada pessoa é uma pessoa e cada caso, é um caso. Nem a prescrição nem a caducidade têm
aptidões para aderir a meandros das situações individuais.
Simão Fino
O necessário corretivo poderia advir da boa fé: perde a sua posição jurídica a pessoa que não a
exerça por um período de tempo e em circunstâncias tais que não seja de esperar qualquer
exercício

A supressio irá colocar em causa todas as vantagens permitidas pela prescrição e pela caducidade.
O manuseio da supressio pressupõe uma série de noções ligadas à tutela da confiança e à boa fé,
enquanto regra de conduta. Trata-se, por isso, de matéria a examinar, abaixo, a propósito do abuso
de direito.

A ordem jurídica é um todo. O papel da supressio será mesmo o de complementar a área


tradicional da prescrição e da caducidade, aperfeiçoando-a e diferenciando-a.
O Abuso do Direito
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos
pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – 334º. Ilegítimo
exprime a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito.
Ilegítimo é usado no sentido de “não é permitido”.

O artigo 334º resultou do artigo 281º do código grego, da qual resultava: “o exercício é proibido
quando exceda manifestamente os limites postos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo escopo
social ou económico do direito”.

Os limites impostos pela boa fé têm em vista a boa fé objetiva., remetendo-nos para as regras da
moral social. Também aqui, conciliado com o artigo 334º, equivalerão os mesmos “bons costumes”
do artigo 280º: regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos.

O abuso de direito é um instituto corrente, diariamente aplicado nos nossos tribunais. Tal sucedeu
na sequência de cinco fases:

1. A fase pré-científica (anterior a 1966)


2. A fase exegético-pontual (de 1967 a 1984)
3. A fase da implantação (1985 a 1990) – a concretização do abuso de direito passa a fazer-se a
um ritmo crescente.
4. A fase da expansão (1991 a 2000) – o abuso de direito é apreciado e ponderado
corretamente, nas mais diversas situações. Contabilizam-se mais de 250 acórdãos
publicados neste período. Esta expansão coloca a jurisprudência portuguesa ao nível da
alemã, no que toca à concretização da boa fé e das condutas inadmissíveis.
5. A fase do afinamento (2001 em diante) – ponderações mais precisas. O abuso de direito
desliga-se da ideia de “direito subjetivo”, surgindo uma instância geral de controlo dos
exercícios jurídicos.

Desde 1967, contabilizam-se cerca de 400 acórdãos sobre esta matéria.

Em definitivo: qualquer processo se sujeita, hoje, a uma sindicância do sistema feita pelo crivo do
abuso de direito. Não é de esperar retrocessos. Em boa hora, pois, estamos em face de um dos
mais significativos avanços jurídico-científicos desde 1867.

Perante o fenómeno da expansão doutrinária e, sobretudo, jurisprudencial do abuso do direito,


são requeridas, por parte do intérprete-aplicador, determinadas posturas.

Simão Fino
Também se torna patente que o abuso de direto não é “abuso” nem tem a ver com “direitos” em
si: o “abuso de direito” é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um instituto
multifacetado, internamente complexo e que prossegue os objetivos do sistema
A evolução histórica:
No direito romano, a aemulation, correspondia ao exercício de um direito sem utilidade própria,
com a intenção de prejudicar outrem, mantendo-se tal conceito vivo no Direito do Ocidente.

Ainda no Direito romano, colocou-se a hipótese de exceptio doli poder ser usada para deter
práticas abusivas.

O direito romano sancionaria práticas processuais abusivas: no sentido de prosseguirem afins


supra ou extraprocessuais ou de procurarem provocar danos na contraparte ou em terceiros.

Tradição francesa:

A expressão abus de droit foi introduzida para designar as situações de responsabilidade do tipo
das decididas a propósito da chaminé falsa de Colmar. O direito cessa onde começa o abuso.

A tradição alemã:

Nas tentativas de precisar o fenómeno, os pandectistas alemães ora apelaram à excetio doli, ora
remeteram para a chicana.

Em sentido amplo, a chicana traduziria o exercício do direito para prejudicar outrem; em sentido
estrito, teríamos um exercício sem interesse próprio, para prejudicar terceiros.

BGB – “o exercício de um direito é inadmissível quando só possa ter o escopo de provocar danos a
outrem”. “Aquele que, de uma forma que atente contra os bons costumes, inflija dolosamente um
dano a outrem, fica obrigado à indemnização do dano.

A receção em Portugal:

A receção do abuso de Direito em Portugal não foi fácil. Havia um certo fundo favorável, ainda
que sem bases jurídico-científicas.

Vaz Serra foi, efetivamente, o autor do anteprojeto relativo ao abuso do direito.

Relativamente aos aspetos previsivos do abuso: o ato intencional manifestamente contrário à


consciência jurídica dominante na coletividade social; uma série de aplicações desse tipo de atos,
entendidos como abusivos, com exceção da exceptio doli, da violação da obrigação por terceiro, da
chicana e da nulidade formal abusiva; o ato clamorosamente ofensivo da consciência jurídica
dominante, embora sem a intenção exigida.

O exercício de um direito, com a consciência de lesar outrem através de factos que contrariem os
princípios éticos fundamentais do sistema jurídico, obriga a indemnizar os danos direta ou
indiretamente causados.

A partir do Código Civil, o abuso doo direito acabaria por ser concretizado pela jurisprudência e
pela doutrina na base de grandes grupos de situações abusivas e de acordo com os vetores de uma
sistemática integrada. Apenas depois do seu conhecimento se poderá encarar a reconstrução desse
instituto.

Simão Fino
Tipos de atos abusivos
A exceptio doli
No Direito Civil português, o termo dolo pode ser usado em aceções distintas:
❖ Sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou a consciência de induzir ou
manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou
terceiro, do erro do declarante – 253º/1
❖ Situação do agente que, direta, necessária ou eventualmente dirija a sua conduta contra uma
norma jurídica.

A exceptio doli ou exceção de dolo faz apelo ao primeiro dos dois sentidos. Ela traduz o poder,
reconhecido a uma pessoa, de paralisar a pretensão de certo agente, quando este pretendesse
prevalecer-se de sugestões ou de artifícios não permitidos pelo Direito.

No direito romano a actio de dolo, de natureza infamante, cabia à pessoa que, sentindo-se vítima de
dolo, pretendesse haver uma indemnização.

Relativamente a uma exceptio doli specialis, equivalia à impugnação (contestação) da base jurídica
da qual o autor pretendia retirar o efeito judicialmente exigido: havendo dolo inicial, toda a cadeia
subsequente ficava afetada. A exceptio doli specialis perdeu-se na evolução subsequente.

Exceptio doli generalis – meio de proteção contra as injustiças conseguidas, à custa da boa fé, na
aplicação do Direito estrito, bem como contra os sofismas, os paralogismos e as subtilezas.

A excetio doli surgiu na ordem jurídica do Continente já em pleno século VV, por via prática. Ela
foi usada pelos tribunais para resolver casos que não comportavam uma solução satisfatória. A
exceptio doli generalis aplica-se por violação da boa fé. A exceptio funciona, de facto, sempre que, do
recurso a interpretações tendenciosas da lei, da utilização de particularidades formais das
declarações de vontade ou do aproveitamento de incompleições em regras jurídicas, se pretendam
obter vantagens não conferidas pela ordem jurídica e desde que tais práticas sejam consideradas
contrárias à boa fé.

Exceptio doli (significa exceção de dolo - poder reconhecido a uma pessoa de paralisar a pretensão de certo
agente quando este pretendesse prevalecer-se de sugestões ou artifícios não permitidos pelo Direito): Decorre
do dever de honeste agere, de agir de modo honesto/não fraudulento. Pode ser oposta a desonestidade ao
titular de um direito subjetivo adquirido ou a ser exercido desonestamente. Assenta numa violação da boa-fé e
dos Bons Costumes. (Campo muito amplo de aplicação)

Venire Contra Factum Proprium


Vir contra facto próprio. Contradizer o seu próprio comportamento. Exercício de uma posição
jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. Surge
desagradável e desprestigiante, colocando em causa a credibilidade do agente.

O venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si e diferidas no tempo. A primeira - o
factum proprium – é contrariada pela segunda.

Só se considera como venire contra factum proprium a contradição entre a situação jurídica originada
pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor. O factum proprium integra os
Simão Fino
postulados da autonomia surgindo como ato jurídico que vincula o autor. O segundo
comportamento representa uma violação desse dever específico.

Temos dois tipos de venire:

❖ Positivo – uma pessoa manifesta uma intenção ou, pelo menos, gera uma convicção de que não
irá praticar certo ato e, depois, pratica-o mesmo.
Podemos distinguir três possibilidades:
1. Exercício de direitos potestativos – o titular exercente manifesta a intenção de não
exercer um direito potestativo, mas exerce-o: é venire vir resolver um arrendamento por
não pagamento de rendas quando, durante três anos, o inquilino depositou, sem
problemas, a renda em local diferente do devido.
2. Exercício de direitos comuns – idêntico fenómeno do anterior: na hipótese de um
proprietário autorizar determinadas plantações e vir, depois, exigir a entrega dos
terrenos.
3. Atuações no âmbito de liberdades gerais – o agente exprime uma atuação no âmbito de
uma liberdade geral – normalmente: a autonomia privada – e, depois, atua em
desconformidade com o enunciado: há venire quando se comprometa vender uma
fração e, depois, se venda a terceiros o prédio todo.

A violação do contrato envolve, só por si, venire contra factum proprium.

❖ Negativo – o agente em causa demonstra ir desenvolver certa conduta e, depois, nega-a. A


situação paradigmática reside em alguém prevalecer-se de nulidades quando, conhecendo-as,
tivesse em momento prévio mostrado a intenção de agir em execução do negócio viciado.
Por exemplo: há venire quando o vendedor, decorrido o prazo de caducidade, aceita perante o
comprador reparar a coisa e, depois, na ação por este proposta, invoque a exceção de caducidade
da garantia.
Esta modalidade de venire é ainda documentada pela invocação abusiva de invalidades de
deliberações sociais, quando levada a cabo em contradição com linhas de conduta primeiro
anunciadas.

Fundamentação dogmática:
É importante focar a inexistência, na Ciência do Direito atual e nas ordens jurídicas por ela
enformadas, de uma proibição genérica de contradição. Apenas circunstâncias podem levar à sua
aplicação.
O princípio do venire contra factum proprium radica fundo na justiça pessoal a cujo elemento
mais intrínseco pertence a veracidade. O comportamento contraditório configura-se como
atentado contra expectativas fundamentais de continuidade da autorrepresentação que respeitam
também a identidade do parceiro e a sua relação bilateral.
Em suma: a proibição de venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e
social da regra para a positividade, mesmo naqueles casos específicos em que a ordem jurídica
estabelecida, por desadaptação ou por incompleição lhe negue. Este ambiente pré-jurídico
especialmente favorável à admissão do proibir genérico de comportamentos contraditórios não é,
só por si, nenhuma justificação dogmática.

Simão Fino
Doutrinas quanto ao venire contra factum proprium:
✓ Da boa fé – o assumir de comportamentos contraditórios viola a regra da observância da
boa fé. A boa fé funciona como apoio linguístico para soluções encontradas com base
noutros raciocínios ou como esquema privilegiado de conseguir amparo numa disposição
legal.
✓ Da confiança – “o princípio do venire é uma aplicação das proposições da confiança no
tráfego jurídico e não uma proibição específica de dolo e de mentira”. O venire foi
aproximado da tutela da confiança também entre nós.
✓ Do negócio jurídico
✓ Da sua dissolução
A tutela da confiança:

A doutrina hoje dominante reconduz, pois, o venire contra factum proprium a uma manifestação de
tutela da confiança – boa fé objetiva – 334º.

A confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado


quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas.

A confiança dá um critério para a proibição de venire contra factum proprium. Mas não funciona
só; mantém-se, básica, a regra oposta de que falta, nas ordens jurídicas, um princípio firme de não
contradição, enquanto que, em certos casos, afloram outros vetores que não o da confiança.

A situação de confiança pode, em regra, ser expressa pela ideia de boa fé subjetiva: a posição da
pessoa que não adira à aparência ou que o faça com desrespeito de deveres de cuidado merece
menos proteção.

O investimento de confiança exige que a pessoa a proteger tenha, de modo efetivo, desenvolvido
toda uma atuação baseada na própria confiança, atuação essa que não possa ser desfeita sem
prejuízos inadmissíveis; isto é: uma confiança puramente interior, que não desse lugar a
comportamentos, não requer proteção.

A imputação da confiança implica a existência de autor a quem se deva a entrega confiante do


tutelado.

Os requisitos para a proteção da confiança, articulam-se entre si nos termos se um sistema móvel.
Não há, entre eles, uma hierarquia e não são, em absoluto, indispensáveis: a falta de algum deles
pode ser compensada pela intensidade especial que assumam alguns.

O ponto sensível do modelo de venire reside na deteção de facto suscetível de gerar uma situação
de confiança legítima. Podemos induzir esta matéria a partir das regras referentes às declarações
de vontade. Digamos que o quantum de credibilidade necessária para integrar uma previsão de
confiança, por parte do factum proprium, é assim função do necessário para convencer uma
pessoa normal, colocada na posição do confiante razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo
mesmo confiante na obtenção do fator a que se entrega.

Simão Fino
A jurisprudência portuguesa:
O venire contra factum proprium é uma presença constante na jurisprudência dos nossos dias.

O venire continua a ser reconhecido e a ser aplicado com fluência. O venire é possível perante o
abuso da autonomia privada. Finalmente cabe uma referência à contradição de condutas que não
chegue a defraudar qualquer confiança. O abuso de direito é, por definição, um espaço aberto,
apto à expansão para novas áreas.
Venire contra factum proprium (“Nada é concedido a quem venha contra facto próprio”): Incluído na Exceptio
doli, centra-se na proscrição (proibição) de contradições de conduta e na frustração da confiança, legítima e
razoável, criada. (Ter em conta o Sistema Móvel de Tutela de Confiança – Menezes Cordeiro). Cada um é
responsável pelo sentido que a sua ação representa perante os outros e pelas expectativas que lhes suscita.
Nada obsta que no relacionamento prolongado se estabeleçam práticas consensuais que integram o conteúdo
dos direitos e relações em questão. A quebra desta prática, havendo frustração de expectativas legítimas e
razoavelmente suscitadas na parte contra quem o direito é exercido, é eticamente reprovável, contrária à boa-fé
e Bons Costumes.

Inalegabilidades formais
Os NJ são nulos quando não assumam a forma legalmente prescrita – 220º. A nulidade do negócio
pode ser alegada a todo o tempo por qualquer interessado – 286º

Chamaremos inalegabilidade formal à situação em que a nulidade deriva da falta de forma legal
de determinado negócio não possa ser alegada sob pena de se verificar um “abuso do direito”,
contrário à boa fé.

O agente convence a contraparte a concluir um negócio nulo por falta de forma, prevalece-se dele
e, depois, vem alegar a nulidade.

Como foi dito, as ordens jurídicas da atualidade vivem, em teoria, dominadas pelo princípio da
consensualidade na formação dos atos jurídicos: a simples exteriorização da vontade das pessoas,
efetuada por qualquer meio idóneo, é suficiente para integrar as previsões normativas
relacionadas com a autonomia privada. O Direito requer, contudo, em setores delimitados, formas
específicas, normalmente solenes, para a dimanação de declarações negociais. Quando a forma
prescrita não seja assumida nas declarações das partes, o Direito nega-lhe o reconhecimento
jurídico, cominando a nulidade.

As primeiras decisões judiciais que instituíram a inalegabilidade de nulidades formais fizeram-no


quando o agente causara diretamente o vício na forma e, depois, pretendeu aproveitar-se dele. De
seguida, porém, veio a requerer-se, apenas, a simples negligência do agente, aquando da
celebração do contrato. Por fim, a alegação de nulidades formais veio a ser coartada (alegada),
independentemente de qualquer culpa do agente, quando, dadas as circunstâncias do caso, se
constante que o provimento da nulidade iria atentar contra a boa fé.
As inalegabilidades na base da confiança
Primordial é a posição da pessoa contra quem se pretenda fazer valer a nulidade formal. A boa fé
– subjetiva – comporta, aqui, deveres de indagação e informação de intensidade acrescida, dada a

Simão Fino
rigidez das normas em jogo, e visto o conhecimento generalizado que existe da necessidade de
forma solene para certos casos.

Quanto às consequências emergentes da nulidade, caso seja declarada: a inalegabilidade surge


justificada apenas quando a destruição do negócio tivesse, para a parte contra a qual é acentuada,
efeitos “não apenas duros, mas insuportáveis”. Requer-se que a parte protegida tenha procedido a
um “investimento de confiança”, fazendo assentar, na ocorrência nula, uma atividade importante,
que a situação seja imputável à contraparte, embora noa necessariamente a título de culpa e que o
escopo da forma preterida não tenha sido defraudado; exige-se ainda que nenhuma disposição ou
princípio legal excluam, em concreto, a inalegabilidade e que não haja outra solução para o caso: a
inalegabilidade das nulidades formais teria, pois, natureza subsidiária.

Requer-se uma boa fé subjetiva, uma necessidade de respeito efetivo pelo escopo que a forma
presente pretenderia prosseguir.
As dificuldades jurídico-científicas; as doutrinas:
A doutrina encontra dificuldades para, em nome da boa fé, formular uma regra de restrição às
nulidades formais.

No Direito português as nulidades, além de arguíveis pelas partes ou por interessados são, de
ofício, cognoscíveis pelo tribunal – 286º.

As leituras que, na inalegabilidade, veem apenas uma concretização da inadmissibilidade de um


exercício contrário à boa fé, ficam comprometidas: de nada valeria, ao beneficiário, bloquear a
alegação da nulidade pela contraparte quando, afinal, o próprio juiz teria, por dever de função, de
a declarar. No fundo, a alegabilidade das nulidades não está em causa. Questiona-se antes, a
aplicação seja das disposições legais que prescrevem formas para certas declarações, seja da regra
que, à inobservância dessas disposições, associa a nulidade.

Para além das versões já referidas, devem mencionar-se:

✓ A doutrina da confiança – o doloso provoca na outra parte, a impressão de que o negócio é


eficaz e assume, assim a confiança desta: deve responder, pois, pela situação de confiança
obtida. Na chamada inalegabilidade do vício formal, assistir-se-ia não ao fazer valer de um
contrato nulo – impossibilidade jurídica acentuada pelo dever funcional do tribunal
declarar, de ofício, a nulidade – mas sim à atuação de deveres legais similares aos atos do
contrato malogrado: a inalegabilidade seria sub-hipótese da proibição venire contra factum
proprium, com a particularidade de, por factum proprium, aparecer um contrato
formalmente nulo.
✓ As saídas negociais – partem da construção da confiança.
✓ A natureza das normas formais - desenvolvem-se num terceiro vetos, o tema do escopo
visado pelas disposições que impõem formas determinadas para certos casos jurídicos. A
redução teleológica é, em geral, a operação que permite restringir o alcance de uma norma
quando se verifique que o escopo por ela visado já foi alcançado.

No plano das inalegabilidades: não seria possível paralisar ou dispensar normas formais,
recorrendo à sua redução teleológica. O problema terá de ser resolvido com recurso a normas ou a
institutos paralelos ou, pelo menos, exógenos. Não é bastante a mera consideração das normas
envolvidas.

Simão Fino
A jurisprudência; posição adotada:
Havendo abuso do direito na alegação de invalidades formais, designadamente por violação da
confiança legítima, o agente seria responsabilizado. E ele teria, designadamente, de repor a
situação prejudicada, podendo ser mesmo obrigado a promover a situação jurídica inviabilizada
pela invalidade formal. Admite-se, hoje, que as próprias normas formais cedam perante o sistema,
de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente
inalegáveis.

A inalegabilidade aproxima-se, assim do venire, querendo, como ele:

✓ A situação de confiança
✓ A justificação para a confiança
✓ O investimento de confiança
✓ A imputação de confiança ao responsável que irá, depois, arcar com as consequências.

Todavia, tratando-se de inalegabilidades formais, teríamos de introduzir, ainda, três proposições:

✓ Devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca, também, os de
terceiros de boa fé
✓ A situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar
✓ O investimento de confiança apresentar-se-á sensível, sendo dificilmente assegurado por
outra via.

Nessa altura, a tutela da confiança impõe a manutenção do negócio vitimado pela invalidade
formal.

Inalegabilidades formais (Alegabilidade – faculdade de alegar): Invocação da invalidade formal de um negócio


jurídico pela parte que provocou intencionalmente a ocorrência do vício de forma (havendo também dolo) ou
que participou na sua prática, comportamento este contrário à boa-fé e aos Bons Costumes (as inalegabilidades
formais não tornam o NJ1 válido, apenas impedem as partes de invocar a nulidade. Os terceiros interessados
podem perfeitamente invocar a nulidade).

A supressio e a surrectio
Supressio: posição do direito subjetivo – ou, mais latamente, a de qualquer situação jurídica – que,
não tendo sido exercida, em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais
possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.

Doutrinas tradicionais:

✓ Negativistas: afirmam a insegurança que se poderia instituir pela supressio.


✓ Teoria da renúncia: renúncia ao direito por parte do exercente.
✓ Teoria da boa fé: da boa fé ao exercício inadmissível de direitos por demora do titular vai,
no entanto, um caminho que deve ser explicitado. E, assim, surgem três subteorias:
1. Exceptio doli
2. Venire contra factum proprium – o titular do direito, abstendo-se do exercício durante um
certo lapso de empo, criaria, na contraparte, a representação de que esse direito não mais
seria atuado; quando, supervenientemente, viesse a agir, entraria em contradição.
3. Remissão direta para a boa fé

Simão Fino
O quantum de tempo necessário para concretizar a supressio varia. Será inferior ao da prescrição,
ou a supressio perderá utilidade. Equivalerá àquele período decorrido o qual, segundo o sentir
comum prudentemente interpretado pelo juiz, já não será de esperar o exercício do direto
atingido.

A supressio é apresentada como um instituto totalmente objetivo: não requer qualquer culpa do
titular antiga, mas apenas o facto da sua inação.

Finalmente: a supressio é entendida como um remédio subsidiário: acode a situações


extraordinárias, que não encontrem saída perante os remédios normais.
A surrectio:
A supressio visa o comportamento titular-exercente ou dirige-se à posição do beneficiário que,
depois a poderá invocar?

A hipótese de, na supressio, se pretender sancionar a inação do titular omitente coloca esse
instituto na órbita da repercussão do tempo nas situações jurídicas. No fundo valeriam, para a
supressio, as justificações histórico-culturais que presidiram à prescrição.

Em suma: a supressio não pode ser, apenas, uma questão de decurso do tempo, sob pena de
atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição.

Fica-nos a segunda hipótese: a supressio é, no fundo, uma forma de tutela da confiança do


beneficiário, perante a inação do titular do direito.

Teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário,


com as proposições seguintes:

❖ Um não exercício prolongado


❖ Uma situação de confiança
❖ Uma justificação para essa confiança
❖ Um investimento de confiança
❖ Uma imputação de confiança ao não-exercente

O não exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para
ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa
normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a
posição em causa não mais será exigida.

Tudo isso será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela
sua inação. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objetiva.

A supressio manifesta-se porque, mercê da confiança legítima, uma pessoa adquiriu (por
surrectio): uma posição que se torna incompatível com um exercício superveniente, por parte do
exercente. E na ponderação de interesses contrapostos vai-se dar a preferência ao beneficiário.

Ex: num contrato de promessa com um prazo de dois anos para a celebração da escritura, verifica-
se que o exercente deixu passar 15 anos, sem pagar as prestações que lhe incumbiam; há abuso do
direito quando, supervenientemente, venha requerer a execução específica.

Simão Fino
Supressio/Surrectio (Supressão/Criação): Comportamento inicial prolongado e contraditório do titular do direito
subjetivo, que o vem exercer depois de uma prolongada inatividade. Esta abstenção de exercício pode criar uma
expectativa legítima e razoável de que o direito não será exercido, sendo esta expectativa atendível quando a
sua criação seja imputável ao titular do direito subjetivo (Sistema móvel de Tutela de Confiança). É suprimida
uma vantagem – Supressio - e criada uma – Surrectio - noutra esfera jurídica. Exemplo: A arrenda uma casa a B e
no contrato acordam que a renda é paga a dia 8 de cada mês. Contudo, A sempre exigiu a renda a dia 20 e
passados 3 anos decidi expulsar B de casa, por ter incumprido o pagamento da renda a dia 8 -> Não pode, é
abuso de direito.

Tu Quoque
(Também tu!) exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode
depois, sem abuso:

❖ Prevalecer-se da situação daí decorrente


❖ Exercer a posição violada pelo próprio
❖ Exigir a outrem o acatamento da situação já violada.

A sua aplicação requer cautela. Fere a sensibilidade primária, ética e jurídica, que uma pessoa
possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento.

(“quem viole o contrato e ponha em perigo o escopo contratual não pode derivar de violações
contratuais posteriores e do pôr em perigo o escopo do contrato, causados pelo parceiro
contratual, o direito à indemnização por não cumprimento ou à rescisão do contrato, como se não
tivesse, ele próprio, cometido violações e como se, perante a outra parte, sempre se tivesse portado
de forma leal ao contrato.

A fórmula tu quoque tinha o apoio de locuções antigas, apresentando numerosas vias explicativas:

❖ A retaliação – mandaria fazer mal a quem mal fez.


❖ A regra da integridade – o titular exercente faltoso devia ter atuado de modo íntegro.
❖ A recusa da proteção jurídica – a pessoa que se coloque na previsão situa-se dora da ordem
jurídica, iniciando uma atuação por conta própria, de que sofre as consequências.
❖ A compensação de culpas/culpa do lesado – em ambos o prejudicado não pode, de algum
modo, ser totalmente ser ressarcido por estar implicado numa prática.
❖ O recurso ao próprio não-direito
❖ Os comportamentos contraditórios – a pessoa que desrespeita um contrato e exige, depois, a
sua observância à contraparte parece incorrer em contradição.
❖ A renúncia a sanções – postula, por parte do titular faltoso, a vontade eficaz de prescindir da
proteção que o Direito, de outro modo, lhe proporcionar.
❖ A proporcionalidade contratual – fórmula particularmente apta para solucionar o sentido tu
quoque.

Qualquer atentado a uma das prestações implicadas pode ser, na realidade, um atentado ao
sinalagma; sendo-o, altera toda a harmonia da estrutura sinalagmática, atingindo, com isso, a
outra prestação.

Simão Fino
Posição adotada: a materialidade subjacente
No tu quoque contratual, o titular-exercente excede-se por recorrer às potencialidades regulativas
de um contrato que ele próprio já violara. A pessoa que desequilibre a regulação material expressa
no seu direito subjetivo, não pode, depois, pretender, como se nada houvesse ocorrido, exercer a
posição que a ordem jurídica lhe conferiu. A nova situação criada altera a configuração da posição
jurídica do exercente; no limite, pode ir até à extinção. Cometida a violação pelo próprio, apenas
formalmente tudo parece idêntico.

No tu quoque, já não esta em jogo uma manifestação de tutela da confiança: antes a de um outro
princípio mediante, concretizador da boa fé e a que damos o nome de primazia da materialidade
subjacente.

Ex: um condómino que não queira assinar a ata da assembleia não pode prevalecer-se disso para a
impugnar: seria abuso do direto.

Tu quoque (do “Tu quoque, brutos” – até tu, brutos – assassinato de César): Incluído no Venire, distingue-se
deste por se tratar de um facto ilícito, do qual também é eticamente reprovável retirar vantagens.

O desequilíbrio do exercício
Corresponde a atuações inadmissíveis, por abuso contrário à boa fé. Despropósito entre o
exercício questionado e os efeitos dele derivados.

São três as sub-hipóteses:

1. Exercício danoso útil – o titular atua no âmbito formal da permissão normativa que
constitui o seu direito. Porém, não retira qualquer benefício pessoal, antes causando um
dano considerável a outrem. No seio da permissão jurídico-subjetiva, existem várias
possibilidades de atuação, algumas das quais sem interesse para o titular, mas prejudiciais
a terceiros.
2. Dolo agit qui petit quod statim redditururs est (age com dolo aquele que exige o que deve
restituir logo de seguida) – a sanção teria de se reportar à responsabilidade civil
3. Desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por ele imposto a outrem – constitui
o mais promissor dos subtipos integrados no exercício em desequilíbrio. É hoje usado, na
jurisprudência
portuguesa, para corrigir soluções de Direito estrito que se apresentam injustas para os
intervenientes, permitindo uma grande vantagem para um deles, à custa do outro e isso
sem que se apresente uma especial justificação para tanto.

Simão Fino
Exercício em desequilíbrio: Exercício danoso do direito, em que não é respeitado o princípio do dano mínimo. Tal
não implica que todo o exercício danoso de direito seja ilícito ou abusivo. São 4 as principais situações em que é
abusivo:

o Exercício emulativo: O titular é movido pela intenção exclusiva de prejudicar ou fazer mal a outrem (Exemplo
da construção de uma chaminé apenas para bloquear a vista do vizinho).

o Exercício danoso injustificado/inútil: Quando do exercício do direito não resultem vantagens para o seu titular,
apenas sacrifício injusto de outrem.

o Exigência de algo que deva ser imediatamente restituído: É abusivo exigir o pagamento ou a entrega imediata.

o Desproporção no exercício: É abusivo o exercício de um direito que resulte numa vantagem mínima para o
titular e numa desvantagem desproporcional para outrem.

O exercício inadmissível de posições jurídicas


No tratamento do abuso do direito, devemos manter claro e sempre presente eu se trata de um
instituto surgido em diversas manifestações periféricas, para resolver problemas concretos.

Numa contraposição sugestiva podemos distinguir:

❖ Teorias internas – a solução do abuso do direito estaria no próprio conteúdo de cada dirieto
subjetivo. Este seria concedido em termos unitários, aos seus titulares, de modo a apresentar
limites intrínsecos a respeita.

Conceções de abuso do direito:

1. Doutrina dos atos emulativos – manda computar, no exercício jurídico-subjetivo, a concreta


intenção do titular.
2. Doutrinas funcionais – parte da conceção de direitos subjetivos: interesse juridicamente
protegido. Entende que os direitos subjetivos são concedidos com uma determinada
função. O abuso ocorreria com o desrespeito por ela.
✓ Doutrina em função pessoal – o direito subjetivo seria conferido para que, dele, o
próprio sujeito retirasse utilidades. Seriam abusivos os atos emulativos e, em geral,
os exercícios danosos úteis.
✓ Doutrina da função social – o direito subjetivo teria, subjacente, um programa de
exercício em prol da sociedade.

O direito subjetivo é um espaço concreto de liberdade: permissão normativa específica de


aproveitamento de um bem. Liberdade é livre-arbítrio: ou já não será liberdade, no sentido forte
aqui relevante. A descoberta de funções, particularmente sociais e económicas, nos diretos visa
cercear a liberdade: afinal, o titular já não seira livre: ele deveria atuar os seus direitos de acordo
com bitolas “politicamente corretas”. As funções sociais autoproclamam-se substantivas,
arrogando-se uma superioridade perante o direito subjetivo, puramente formal.

3. Doutrinas interpretativas – sucederam às teorias funcionais. Tudo redunda num problema de


interpretação; caos a caso, direito a direito… O fazer desembocar, de modo assumido ou
escamoteado, o abuso do direito, num problema de interpretação, representa uma saída
puramente formal para o problema

Simão Fino
4. Axiologismo formal – importante orientação assumida – Castanheira Neves: considera abuso
do direito o comportamento que não contrariando a estrutura formal-definidora de um
direito “… viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a
intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado…”. Cada
direito subjetivo implicaria uma “intenção axiológica-normativa” suportada e traduzida
pela sua estrutura formal. Afirmados valores inerentes aos direitos subjetivos dão, quando
violados, lugar a abuso do direito.
❖ Teorias externas – o abuso adviria do desrespeito de normas jurídicas alheias ao próprio
direito subjetivo, mas que o titular deveria acatar. Contraposição entre as normas que
instituem o direito subjetivo considerado e certos preceitos que delimitam o seu exercício.

São várias as doutrinas:

1. Doutrina das normas específicas – existem certas regras, dirigidas aos titulares de direitos
subjetivos que, deixando estes incólumes, todavia determinariam algumas proibições de
exercício. Aí residiria o abuso.
2. Doutrina da contraposição entre a lei e o Direito – pretende que, no abuso, o exercente respeita
a primeira, mas viola a segunda.
3. Doutrina da remissão para ordens extrajurídicas – descobre o abuso quando, no exercício dos
direitos subjetivos, o Direito fosse respeitado, mas tais ordens se mostrassem violadas. São
várias as modalidades então possíveis, com primado à imputação do abuso à Moral ou ao
Direito Natural.
Posição adotada; a disfuncionalidade intrasubjetiva e o papel do sistema
No abuso do direito há efetivas limitações ao exercício de posições jurídico-subjetivas. O sistema,
no seu conjunto, tem exigências periféricas que se projetam no interior dos direitos subjetivos, em
certas circunstâncias. E é o desrespeito por essas exigências que dá azo ao abuso do direito. A
conduta contrária ao sistema é disfuncional. A disfuncionalidade intrasubjetiva constitui a base
ontológica do abuso do direito.

Um sistema jurídico postula um conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função


de um ou mais pontos de vista. Esse conjunto projeta um sistema de ações jurídicas – portanto de
comportamentos que, por se colocarem como atuações juridicamente permitidas ou impostas,
relevam para o sistema. O não-acatamento das imposições e o ultrapassar do âmbito posto às
permissões contraria o sistema: há disfunção.
A natureza funcional de uma ação jurídica afere-se pela sua conformidade com uma norma.

O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjetivos por,


embora consentâneos (coerentes) com normas jurídicas, não confluírem no sistema em que estas se
integrem.
Aspetos do regime e tendências
No Direito Português, a base jurídico-positiva do abuso do direito reside no artigo 334º e, dentro
deste, na boa fé.

O abuso de direito é, como repetido, uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer
“exercício disfuncional de posições jurídicas”. Por isso, ele pode reportar-se ao exercício de
quaisquer situações e não, apenas, ao de direitos subjetivos.
Simão Fino
A aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes
pressupostos. As consequências que se retirem do abuso do direito devem estar compreendidas
no pedido feito ao Tribunal, em virtude do princípio dispositivo.

Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo Tribunal, mesmo quando o
interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso. O
Tribunal pode, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que
tudo comporta e justifica. Além disso, não fica vinculado às alegações jurídicas das partes.

O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objetivo. Quer isto
dizer que ele não depende de culpa do agente nem, sequer, de qualquer específico elemento
subjetivo.

Evidentemente: a presença ou a ausência de tais elementos poderão, depois, contribuir para a


definição das consequências do abuso.

 Consequência Jurídica do Abuso de Direito: Segundo o Artigo 334.º do CC, é ilegítimo o exercício de direitos
que exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou
económico, não sendo estatuídas as consequências do abuso. O Abuso dá origem à responsabilidade Civil, à
degeneração da pretensão abusiva e à invalidade do ato abusivo. Em alguns casos a lei estatui as sanções para tal
abuso (Exemplo: Artigo 269.º)., podendo o tribunal fixá-las, caso a lei não as determine. Tem-se entendido que o
abuso é de conhecimento oficioso.

Nota: Os tribunais Portugueses tendem a recusar as pretensões/desejos/solicitações fundadas em Abuso de


Direito, delimitando o âmbito do exercício lícito do Direito.

Requisitos do Abuso de Direito:

• Existência de uma situação de confiança, traduzida em boa-fé subjetiva ética (desconhecimento não culposo)

• Justificação da confiança (Crença plausível e legítima)

• Investimento da confiança (realização de atos em função da confiança depositada na situação)

• Imputação da confiança à pessoa que vai ser atingida pela proteção

A colisão de Direitos
O conceito de colisão de direitos surgiu na Ciência do Direito nos finais do século XVII.

Em sentido amplo, haverá colisão de direitos quando um direito subjetivo, na sua configuração ou
no seu exercício, deva ser harmonizado com outro ou outros direitos.

Num sentido estrito, a colisão ocorre sempre que dois ou mais direitos subjetivos assegurem, aos
seus titulares, permissões incompatíveis entre si.

Mais recentemente, a colisão de direitos foi reanimada para enquadrar os conflitos, muito atuais,
entre os direitos de personalidade e a liberdade de imprensa e entre as liberdades fundamentais
consagradas no Direito europeu.

Simão Fino
A experiência portuguesa:
“Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do
necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer
das partes /Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva
considerar-se superior” – 335º.

Há colisão em sentido próprio como já foi adiantado, quando dois ou mais direitos subjetivos
assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si. A colisão de direitos pressupõe,
desde modo, um concurso real de normas.

Da colisão de direitos devem distinguir-se as seguintes figuras:

✓ Colisão aparente – quando, havendo diretos incompatíveis, apenas um deles deva


subsistir; Ex: se uma pessoa vende a mesma coisa a duas pessoas, sucessivamente, poder-
se-ia falar em colisão de direitos solucionando pelo princípio do mais antigo. Vendendo
uma coisa à primeira pessoa esta torna-se proprietária, vendendo à segunda
ilegitimamente, pelo que o segundo comprador nada adquire.
✓ Conflitos de sobreposição – quando, sobre o mesmo objeto, incidam direitos de pessoas
distintas; assim, havendo contitularidade, há que lidar com o disposto no artigo 1403º.
✓ Conflitos de vizinhança – resultam da incidência de direitos reais sobre prédios contíguos
ou muito próximos.
✓ Concurso de credores – na execução patrimonial, verificando-se a insuficiência do
património do devedor para satisfazer todos os créditos, há regras de prevalência e de
rateio, as quais se aplicam.

Exemplo do uso comum – 1406º/1. Podem ambos os comproprietários querer usar a coisa em
simultâneo surgindo, nestes direitos, o conflito.

O código refere “direitos iguais ou da mesma espécie”. Direitos iguais são os que derivam das
mesmas normas (Ex: ambos são direitos à vida, saúde ou de propriedade); da mesma espécie serão
os provenientes de normas que contemplem o mesmo tipo de bens (Ex: ambos são direitos de
personalidade ou reais).

Verificados os referidos pressupostos, manda o legislador:

✓ Que os titulares cedam na medida do necessário


✓ Para que todos produzam igualmente o seu efeito
✓ Sem maior detrimento para qualquer das partes

No fundo, há um comando de cedências mútuas. Na falta dos indicados pressupostos – igualdade


e da mesma espécie – prevalece o que se deva considerar superior.
Génese da colisão:
No Direito, como noutras áreas, o ideal será a inexistência de conflitos.
Deverá ser desamparada a posição da pessoa quem, censuravelmente, se veio a colocar em
situação de colisão. O Direito irá desamparar aquele que o faça censuravelmente, isto é:

❖ Violando regras de conduta


❖ Ignorando princípios que ao caso caibam.

Simão Fino
Por exemplo: uma colisão de direitos entre um representante legal e um seu representado, quando
o primeiro pudesse, previamente, ter evitado a situação: dados os deveres de tutela a seu cargo,
deveria o representante ter prevenido o conflito.

Haverá critérios para, e concreto, fazer prevalecer os direitos uns sobre os outros, na hipótese de
colisão. A matéria é delicada, apresentando-se uma série de argumentos:

❖ A antiguidade relativa – o direito primário constituído tenderá a prevalecer, no seu exercício,


sobre os direitos igualmente válidos, mas só depois formados. Visa a estabilidade, acolhendo,
igualmente, o princípio da confiança.
❖ Os danos pelo não exercício – princípio da minimização de danos. Perante uma colisão, haverá
sempre que perguntar peãs consequências do não-exercício pleno, por parte de cada um dos
envolvidos. Dar-se-á prevalência àquele cujo não-exercício acarrete maiores danos.
❖ Os lucros do exercício – se o exercício de um direito dá, ao seu titular, um bom lucro, ele
prevalecerá sobre outro exercício igualmente legítimo, mas sem tais consequências.

Os três apontados critérios prevalecem, pela ordem indicada, uns sobre os outros. Para tanto, faz-
se apelo à ideia de sistema móvel: um conjunto articulado de proposições intermutáveis, em
função dos valores que representam e das solicitações exteriores. Pode, todavia, suceder que o
recurso aos três apontados critérios não permita qualquer conclusão. Nessa altura recorremos ao
quarto critério: a ponderação abstrata.

❖ A prevalência em abstrato – sendo os direitos desiguais ou de espécie diferente, podemos


concluir que um deles, seja, em abstrato, mais ponderoso.
❖ O igual sacrifício – devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos
produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

Se nenhum dos critérios operar e não sendo possível resolver o problema pelo igual exercício
temos:

✓ Ou ambos os direitos se anulam, nenhum podendo ser exercido visando a manutenção da


paz social
✓ Ou se recorre a composições aleatórias

Na hipótese de os direitos serem “iguais ou da mesma espécie”, a lei determina, simplesmente, a


prevalência do princípio do igual tratamento.

Na hipótese de a colisão não poder ser resolvida com recurso ao princípio do igual tratamento,
temos uma lacuna, fazendo-se então apelo ao 335º/2

❖ A composição aleatória – por exemplo: se uma pessoa tem o direito de levar um automóvel
para uma discoteca e a outra, para um local diferente de diversão, na falta de outro critério,
uma de duas: ou combinam que uma vai num fim de semana e outra no outro, à escolha ou à
sorte ou, se for saída única, sorteiam quem sai.
Tendências gerais:
As decisões judiciais sobre a matéria concentram-se essencialmente nos seguintes eixos:

✓ Colisões entre o direito à saúde e ao repouso vs. direitos de propriedade e iniciativa


económica – prevalecendo os primeiros

Simão Fino
✓ Colisão entre o direito ao bom nome e à intimidade privada vs. liberdade de expressão –
prevalecendo os primeiros.
Os Meios de Tutela Privada
Tutela, Heterotutela e autotutela
(A legítima defesa era conhecida no Direito romano: com um certo grau de generalidade, ainda
que em termos não técnicos. Cícero explicava que, segunda a própria razão, a natureza prescreve
que os bárbaros, os gentios e as feras possam sempre resistir à força.

Podemos considerar que, no Direito romano, a legítima defesa aparecia como algo de natural,
imediatamente percetível e sem necessidade de apontar especiais requisitos ou
condicionamentos.)

(No Direito canónico, com expresso apelo ao Direito natural, admitia-se a força para repelir a
violência.)

I – Por tutela entende-se a proteção que é atribuída pela ordem jurídica às posições jurídicas dos
sujeitos. Nestes termos, pode ser necessário disponibilizar mecanismos para que uma pessoa “faça
valer” situações jurídicas que lhe são reconhecidas (p. ex. anular um negócio) e/ou acautelar a sua
violação, ou ainda assegurar a reparação dessas mesmas situações jurídicas, se já tiverem sido
lesadas (p. ex. o proprietário de um bem que tenha sido danificado, pode pedir ao autor da lesão,
se tiver agido com ilicitude e culpa, uma indemnização pelos prejuízos causados – é a chamada
responsabilidade civil (cf. artigos 483º e seguintes do Código Civil).

II – Como consequência e corolário lógico da institucionalização do Estado, atualmente, apenas o


Estado poderá usar da força física para fazer Justiça e assegurar os direitos das pessoas; e também
só a ele é legítimo reagir à violação do Direito. A regra é, portanto, a de que é ao Estado quem
incumbe esse papel de tutela (através da polícia e das forças de segurança, dos tribunais…) –
termos em que teremos um predomínio da Heterotutela, isto é, da tutela assegurada por outrem
que não o titular das posições jurídicas defendidas.

Em certos casos, porém, ainda que com carácter residual e extremamente limitado, continuam a
ser admitidas formas de defesa do Direito e das situações jurídicas individuais pelos próprios
sujeitos – fala-se então em Autotutela, Tutela Privada ou Justiça Privada. Daremos nota, em
especial, de três situações: i) a legítima defesa, ii) o estado de necessidade e iii) a ação direta.

Legítima Defesa, Estado de Necessidade e Acão Direta


1 – Relevância
I – Sempre que alguém recorra à força para assegurar ou defender uma situação jurídica própria,
estará, por princípio, a “invadir” a esfera jurídica de um terceiro e a cometer um facto ilícito, de
onde pode resultar a aplicação de uma sanção.

Assim, por exemplo, se A, trabalhador, danificar com um martelo, num acesso de fúria, todos os
computadores da empresa de B, onde trabalha, comprometendo o seu funcionamento, comete um
ilícito que pode gerar consequências a vários níveis:
Simão Fino
✓ No plano civil, está obrigado a indemnizar B pelos prejuízos causados, intervindo assim o
instituto da responsabilidade civil (arts. 483º ss). Essa indemnização, em princípio, traduz-
se na reparação dos computadores ou na entrega de outros com as mesmas características
(é a restauração natural, manifestação da sanção reconstitutiva, prevista no artigo 562º CC),
mas pode ser substituída pelo pagamento de uma quantia em dinheiro nos casos previstos
no artigo 566º CC (manifesta-se, então, uma sanção compensatória);
✓ No plano penal, foi cometido o crime de dano, previsto e punido no artigo 212º CP.
2Verificando-se os demais requisitos da responsabilidade criminal, poderá ser decretada a
B uma pena de até 3 anos de prisão, ou uma pena de multa (manifestando-se, assim, uma
sanção punitiva);
✓ No plano disciplinar, foi igualmente cometido um ilícito disciplinar, que, atendendo à sua
gravidade e às demais circunstâncias do caso, poderá determinar, por parte do empregador
(que detém poder disciplinar sobre o trabalhador) a decretação da sanção disciplinar
correspondente ao despedimento com justa causa (artigo 351º, nº 2 especialmente a alínea e)
CT). Temos, então, uma sanção punitiva.

O efeito da verificação (e do preenchimento de todos os pressupostos) de um meio de autotutela


será assim a justificação da conduta do agente, operando-se a exclusão da sua ilicitude. Nestes
termos, sendo a verificação da ilicitude, via de regra, condição necessária para a aplicação de
sanções, não lhe poderá ser aplicada qualquer sanção. Isto quer dizer, muito simplificadamente,
que no plano civil, não será, em princípio,3 obrigado a indemnizar os danos que causou (em sede
de responsabilidade civil) e, no plano penal, não poderá ser condenado pela prática de crime
algum.

II – Por regra, a aplicação de uma sanção, quer no plano civil (através da figura da
responsabilidade civil)5 quer no plano penal, depende, não só da ilicitude como também da
existência de culpa. Por isso, não se pode concluir logo que uma determinada atuação não é
justificada se ela for ilícita, nomeadamente por não estarem preenchidos os pressupostos de
nenhum meio de autotutela: é sempre preciso ver se, não obstante a ilicitude, ainda é possível
excluir-se a culpa.

Assim, a par de causas de exclusão da ilicitude (os meios de autotutela estudados são algumas
delas, mas existem mais7), existem também causas de exclusão da culpa:
✓ Para alguma doutrina, é o caso das situações próximas dos meios de autotutela, mas que
não preenchem todos os seus pressupostos: o erro sobre os pressupostos de uma causa de
justificação (cf. artigo 338.º CC) e o “excesso de utilização” da mesma em certas
circunstâncias (cf. artigo 337º/2). Outros Autores (cf. infra), porém, consideram que mesmo
nessa hipótese se exclui a ilicitude;
✓ Independentemente das apontadas anteriormente existem outras, mais pacíficas na
doutrina – a mais residual das quais é a chamada desculpabilidade. Esta permite a
exclusão da culpa sempre que, em face das circunstâncias do caso concreto, não fosse
exigível a um indivíduo comportamento diferente daquele que adotou.

Um exemplo desta figura: suponha-se que um médico causa danos a um doente por não ter
realizado uma cirurgia como deveria, mas que isso acontece porque, na sequência da uma
calamidade, trabalhou 18 horas seguidas sem descanso adequado, prestando socorro aos
Simão Fino
sinistrados. Não pode invocar nenhum meio de autotutela que exclua a ilicitude, mas, nas
circunstâncias do caso em que trabalhava, o Direito não o pode censurar; não lhe seria exigível
mais esforço/que atuasse doutra maneira.

Colocando-se um problema prático que combine a verificação (potencial) de vários meios de


autotutela, o preenchimento dos pressupostos do primeiro, excluindo a ilicitude da conduta,
levará, em princípio, a que não já se preencham os pressupostos do segundo.

Assim, por exemplo:


✓ Se A agride B para deter uma agressão deste, agindo em legítima defesa, qualquer resposta
de B já não será em legítima defesa, visto que não haverá agressão ilícita à qual reagir (pois
que, a legítima defesa teve, precisamente, o efeito de excluir a ilicitude);
✓ Se C se preparar para danificar uma coisa de D em estado de necessidade, este não poderá
em legítima defesa, deter esta agressão contra o seu património, posto que não se trata de
uma agressão ilícita.

Esta ideia de partida não é, contudo, uma “fatalidade” tendo sempre de verificar-se se, em face
das circunstâncias do caso concreto, o preenchimento dos pressupostos de um meio de autotutela
impede ou não que estejam preenchidos os de outro.

2 – Legítima Defesa
2.1 – Caracterização e situações típicas

I – Considera-se legítima defesa a atuação destinada a afastar uma agressão atual e ilícita, contra a
pessoa ou o património, do defendente, ou de terceiro.

II – Como exemplos de situações típicas de legítima defesa podemos apontar os seguintes:


a) A prepara-se para disparar sobre B, levando a mão ao bolso onde tinha a arma. B
antecipa-se e dispara sobre a mão de A, evitando assim que este atire sobre ele;
b) C desfere um pontapé na mão de D, toxicodependente que o assaltava empunhando uma
seringa supostamente infetada;
c) F avança sobre E com uma navalha preparando-se para o esfaquear; este antecipa-se
desferindo-lhe um golpe na mão que faz a navalha voar.

III – São os seguintes os requisitos da legítima defesa (artigo 337º/1):

a) Agressão, contra a pessoa ou o património, do agente ou, de terceiro;


b) Atual;
c) Contrária à lei;
d) Necessidade:
✓ De defesa;
✓ Do meio;
e) Proporcionalidade.

O último dos requisitos é atualmente bastante controvertido pela doutrina, pelo menos na aceção
que literalmente parece resultado do artigo 337º/1.
Simão Fino
a) – A agressão será necessariamente uma conduta humana e consciente ou dominável pela
vontade.
Ficam, assim, excluídos, fenómenos naturais e perigos representados por objetos e animais [i) p.
ex., A destrói a tiros um objeto que, desgovernado, descia uma ladeira e acabaria por atropelá-lo:
não há legítima defesa; ii) B acerta um barrote que encontra no estaleiro de uma obra sobre Tomix,
um cão vadio que se preparava para morder C, sua filha: não há também legítima defesa] aos
quais se poderá, eventualmente, reagir através de outro meio de autotutela como, p. ex., o estado
de necessidade.
Ficam igualmente excluídos comportamentos humanos inconscientes ou não domináveis pela
vontade (p. ex. A, sonâmbulo, durante o sono, prepara-se para quebrar um vaso de propriedade
de B; C, no decurso de um ataque epitético, estrebucha preparando-se para quebrar um objeto de
D).

Entende-se que são domináveis pela vontade (sendo, consequentemente, passíveis de resposta em
legítima defesa) aqueles comportamentos que, embora não resultem de uma vontade direcionada
para a realização de uma agressão ou para a causação de um determinado prejuízo, mas para
outro fim, o fazem ou podem vir a fazer. Por exemplo, quem circule em excesso de velocidade
numa estrada dentro de uma localidade, para mostrar a sua perícia ao volante, não quer dizer que
tenha vontade de atropelar um peão, mas pode fazê-lo. Consequentemente, não sendo a sua
conduta inconsciente, mas dominável pela vontade, ela é passível de legítima defesa.

Mas, para efeitos de legítima defesa, já será possível responder a perigos representados por
objetos e animais, desde que tenham sido usados como instrumentos de atuações humanas: aí,
verdadeiramente é de quem os manobra que resulta a agressão (exemplos: i) A lança a B uma
pedra, com o intuito de o ferir na cabeça; ii) C assola, Tomix, cão de fila, para que morda D) e é
contra essa pessoa que há legítima defesa.

A agressão relevante para efeitos de legítima defesa poderá incidir tanto sobre bens pessoais,
como sobre bens patrimoniais. E os pessoais incluem não só a vida, a saúde ou a integridade física,
como outros bens relevantes e tutelados pelo Direito, como por ex. a imagem, ou a honra e o bom
nome. Nesse caso, no entanto, podem colocar-se problemas com o requisito da proporcionalidade
ou até com a atualidade da agressão (p. ex. se A esbofeteia B que insulta a sua mãe, é difícil
conseguir pensar que o uso da força aconteça simultaneamente ao insulto; será sempre depois
deste ser proferido, pelo que pode já não corresponder a legítima defesa mas a desforço).

Por último, a agressão pode revestir tanto a forma de uma ação, como de uma omissão – p. ex., é
legítima defesa a atitude de quem coaja o motorista de um carro que se recusava a fazê-lo, a levar
um ferido para o hospital: contanto que estejam preenchidos os demais requisitos – (assim, p. ex.
MENEZES CORDEIRO, VAZ SERRA, PESSOA JORGE; contra: ANTUNES VARELA).

b) – Entende-se por atual a agressão que esteja no momento a ocorrer (p. ex., A, assaltante, está a
pegar num colar de B, que vai furtar) e a aquela que seja iminente (p. ex. A prepara-se para
disparar sobre B, levando a mão ao bolso onde tinha a arma. B antecipa-se e dispara sobre a
mão de A, evitando assim que este atire sobre ele).

Simão Fino
O requisito da atualidade permite excluir a legítima defesa contra agressões já concretizadas e
consumadas – onde qualquer reação não passaria de vingança ou desforço, intoleráveis para o
Direito – e contra agressões futuras, mesmo que planeadas e que o agente delas tenha
conhecimento (suponha-se p. ex., que B e C planeiam matar A e este escuta). A ideia a reter é a
seguinte: a legítima defesa visa repelir agressões, situações em que bens jurídicos tutelados pelo
Direito são postos em perigo e não há forma de os acautelar com recurso aos meios jurisdicionais
normais (ou, havendo, tal poderia agravar o perigo de lesão desses mesmos bens jurídicos):
perante agressões perpetradas, já não se verifica qualquer perigo a afastar, cabendo aos
mecanismos de heterotutela responder à violação do Direito realizada (p. ex. condenando o seu
autor a reparar a situação do lesado através de uma indemnização, ou punindo-o pelo facto
praticado); tratando-se de uma agressão futura/planeada, é sempre possível recorrer às
autoridades competentes para evitar que ele se verifique (p. ex. avisar a polícia).

c) – A doutrina interpreta a referência a “contrária à lei” no artigo 337º/1 como exigência de


ilicitude.
Haverá ilicitude sempre que a agressão que coloca em perigo bens jurídicos seja praticada
violando normas e princípios jurídicos – i.e., em sentido lato, violando o Direito.
A ilicitude não tem que redundar necessariamente na prática de um crime, mas tem que consistir
na violação de normas jurídicas destinadas a proteger o bem jurídico em jogo.
Deste requisito decorre que ninguém poderá reagir contra agressões lícitas em legítima defesa,
nomeadamente, contra diligências de poderes públicos ablativas de direitos fundamentais mas
legalmente legitimadas – e, por, isso, lícitas – (p. ex., não se pode agir em legítima defesa contra
os agentes da polícia que executam um mandado de detenção ou que efetuem buscas e revistas
judicialmente ordenadas) e contra condutas já justificadas por outras de justificação/por outros
meios de autotutela (p. ex. ninguém 8 poderá agir em legítima defesa contra outra pessoa que já
esteja a atuar em legítima defesa ou em ação direta: justamente, porque essa atuação é lícita).

Tendo presente que é objetivo da legítima defesa, mais do que a defesa de posições jurídicas
individuais, a defesa da integridade da ordem jurídica, a defesa do Direito, naquele momento
colocado em causa na “pessoa do agredido”, havendo ilicitude, é possível reagir em legítima
defesa contra a violação de liberdades (p. ex. a liberdade de imprensa [art. 38º CRP] e a liberdade
de expressão e informação [art. 37º CRP]) ou de quaisquer valores juridicamente relevantes (p. ex.
contra a atuação de alguém que se prepare para praticar um ato de poluição ou contra quem
ameaçar ou matar ilicitamente animais).

Além da ilicitude, há ainda autores (p. ex. PESSOA JORGE) que exigem, enquanto requisito
necessário para a resposta em legítima defesa, o carácter culposo da agressão. Este entendimento
teria como consequência excluir a possibilidade de legítima defesa contra agressões perpetradas
por pessoas insuscetíveis de serem objeto de um juízo de culpa (recitus, contra inimputáveis), mas
ainda contra aqueles que agissem de molde a causar prejuízos a outrem, mas ao abrigo de uma
causa de exclusão da culpa (como, p. ex., a referida “desculpabilidade”).
Basicamente, o Autor fundamenta esta tomada de posição com dois argumentos:
o Só assim se explicaria a possibilidade de desproporção entre o dano causado e aquele se
evita: porque se estaria a evitar um dano que seria causado em circunstâncias censuráveis
(com culpa), poderia ir-se além de uma mera proporção matemática entre dano causado e
evitado;
Simão Fino
o Assim também se explicaria que não fosse exigível ao defendente colocar-se em situações
desonrosas (fugindo ou fazendo uso de meios lesivos da sua dignidade). A ordem jurídica
não imporia ao defendente que se pusesse numa situação lesiva da sua dignidade por uma
questão de “igualdade”: porque está a reagir à atuação de uma pessoa consciente, com a
mesma capacidade de entender e querer que ele; logo, seria “vergonhoso” que tivesse que
fugir ou de lançar mão de uma defesa indigna. Ora, ao excluir-se o requisito da culpa da
agressão, poderia haver LD contra inimputáveis e nesse caso já não existiram razões de
“honra” que impedissem a fuga ou uma defesa menos digna (ex. fugir de uma criança de 5
anos), porque a fuga ou a defesa menos digna nesse caso já não seriam “vergonhosas”.

Estes argumentos são, contudo, refutáveis.


Trata-se, no entanto, de uma visão criticada por muitos autores (entre os quais, v.g., MENEZES
CORDEIRO)10 pois que, desta forma, exigir-se-ia ao defendente a formulação de um juízo de
avaliação sobre a culpabilidade do agressor o que, sendo a culpa uma questão-de-direito e não de
facto, não seria razoável.

d) – O requisito da necessidade desdobra-se em dois vetores que cumpre analisar:


✓ A necessidade da defesa – onde cumprirá analisar se, perante uma situação concretamente
considerada, é ou não possível reagir-se em legítima defesa.

A necessidade da defesa exprime, desde logo, a subsidiariedade subjacente a todos os meios de


autotutela: neste sentido, a defesa não será necessária se for possível recorrer aos meios normais
para deter a agressão. Por seu turno, esses meios normais tanto poderão ser i) públicos (onde
avultam os mecanismos de heterotutela como a polícia e os tribunais) como ii) privados (v.g. pedir
auxílio a outra pessoa, fechar uma porta para deter a agressão, etc).
Cabe considerar, também, neste domínio as situações em que se discute se pode ou não haver
lugar a defesa – nomeadamente aquelas em que poderá ser exigível ao agente que opte pela fuga
para evitar a agressão: é hoje ponto pacífico na doutrina que, por princípio, ninguém deverá ser
obrigado a fugir para evitar uma agressão, i) seja porque isso redundaria em algo de
desprimoroso ou desonroso para o agente (PESSOA JORGE; MENEZES LEITÃO), ii) seja porque,
deste modo, deixaria de se afirmar a legalidade contra a agressão não havendo legítima defesa e
perdendo-se o efeito dissuasivo que ela representa (iii) seja ainda porque tal equivaleria a que o
agente abdicasse previamente de um direito que lhe assiste: o direito de ficar (MENEZES
CORDEIRO). Parece, no entanto, que a fuga já se pode impor, relativamente a ameaças
representadas por inimputáveis v.g. uma criança de 5 anos encontra-se a empunhar uma arma).

Em sentido contrário, ANTUNES VARELA admite a legítima defesa contra dementes ou contra
atos inconscientes (ex. condutor que por desfalecimento repentino ameaça atropelar uma pessoa
ou destruir uma casa).

Em qualquer caso, deve entender-se, ainda que não pode haver legítima defesa nas seguintes
hipóteses:
✓ Se o defendente tiver provocado a agressão (ex. com injúrias, comportamentos agressivos,
ou desafio) de tal modo que seja ele a dar causa à situação de confronto (Ex. A insulta
repetidamente B).

Simão Fino
✓ Quando a agressão for pré-ordenadamente provocada com o intuito de permitir ao
provocador responder-lhe (ex. C, agente policial treinado para atirar a matar, provoca B,
suspeito de um crime gravíssimo, para que este, acossado, saque de uma arma para se
defender; C, atirador mais rápido e mais preciso, nessa circunstância, saca então da arma,
atira primeiro, de forma fulminante – FIGUEIREDO DIAS).

No campo criminal, poderá, no entanto, restar ao provocador a hipótese do estado de necessidade


defensivo.

Além de necessária, a defesa terá de dirigir-se obrigatoriamente contra aquele que coloca os bens
jurídicos em perigo e não contra terceiros: assim, por exemplo, se A, em fuga de B que se prepara
para o esmurrar, empurra C fazendo-o cair e fraturar um braço, não age, em relação a este último
em legítima defesa, porquanto não era ele o autor da agressão que procurava afastar. A sua
conduta poderá ou não ser justificada através de outras causas de exclusão de ilicitude (p. ex. o
estado de necessidade); mas não por legítima defesa.
✓ A necessidade do meio – que obriga, dentro da panóplia de meios disponíveis para conter
a agressão, a escolher o mais adequado.

Dir-se-á que, em princípio, o mais adequado é o meio menos agressivo e menos contundente e que
não se poderá avançar para meios mais agressivos sem passar primeiro por meios menos
agressivos ou sem que estes se revelem ineficazes. Mas, tudo dependerá das circunstâncias do
caso concreto: o meio adequado há-de ser aquele que faculte ao defendente uma satisfatória
segurança, aquele que lhe permita repelir efetivamente a agressão sem correr riscos.

Ninguém é obrigado a “pecar por defeito” tentando primeiro um meio menos agressivo que se
venha a revelar ineficaz, sobretudo porque, se ele falhar e não conseguir repelir a agressão, pode
não ter segunda hipótese de defesa ou pode aumentar muito mais o risco que corria (p. ex. se A é
ameaçado de morte por B, que empunha uma pistola e procurar primeiro deferir-lhe um soco na
mão para a arma cair, caso seja mal sucedido, o risco de que a ameaça representada por B se
concretize aumenta; se C, ameaçado por D que pretende sová-lo se limita a empurrá-lo, e tal se
revelar inócuo, é provável que a ira do agressor aumente).

Neste sentido, para selecionar o meio que no caso venha a revelar-se adequado, terão que
necessariamente avaliar-se particularidades como a condição física dos envolvidos (ex. A, baixo e
de aspeto frágil é ameaçado por B com uma faca: se tem uma arma ao seu dispor, pode ser
legítimo disparar para as pernas, p. ex., se a mera ameaça não for dissuasiva, não se exigindo que
entre primeiro em confronto físico com uma pessoa “mais forte”, correndo os riscos inerentes) os
propósitos subjacentes à agressão (p. ex., uma pessoa determinada a intencionalmente, matar
outra, se não for detida, acabará por lograr os seus objetivos), o risco de reiteração ou repetição da
ameaça se não for detida por um meio suficientemente eficaz, o grau de perigosidade dos
agressores, entre outros.

A defesa tem de ter a medida necessária para neutralizar a agressão.

A necessidade do meio nada tem que ver com a proporcionalidade onde o que se mede é a
utilização feita desse mesmo meio.
Simão Fino
e) - Resulta da parte final do disposto no art. 337º/1 que o prejuízo causado pelo ato de legítima
defesa não pode ser “manifestamente superior ao que pode resultar da agressão”, sendo de tal
trecho que se costuma retirar um pretenso requisito de proporcionalidade da legítima defesa.
Importa, desde logo, notar a inexistência de exigência de paralela na legítima defesa prevista
no artigo 32º CP.

Esta proporcionalidade representa uma mera comparação de prejuízos, interesses ou bens


jurídicos que, embora não seja matemática, lida à letra, impediria que se utilizassem meios muito
contundentes (como p. ex. uma faca ou uma arma de fogo) para reagir a agressões que apenas
podem pôr em causa valores como a propriedade, ou a autodeterminação sexual, porquanto,
desses meios poderia sempre resultar prejuízo para a vida ou a integridade física, bens sempre
superiores aos ameaçados por aquelas agressões (assim, v.g., ninguém poderia defender-se a tiro
de um assalto, porquanto do tiro poderá sempre resultar a morte do agressor).

Tendo presente o que acaba de referir-se a doutrina divide-se, entre:


✓ Os autores que consideram aplicável o requisito da proporcionalidade na aceção do art.
337º/1 (p. ex. PESSOA JORGE, OLIVEIRA ASCENSÃO, MENEZES LEITÃO, ANTUNES
VARELA, ALMEIDA COSTA);
✓ Os autores que rejeitam a proporcionalidade conforme enunciada nessa disposição legal (p.
ex. MENEZES CORDEIRO, CONCEIÇÃO VALDÁGUA, FIGUEIREDO DIAS).

De entre os segundos, haverá que distinguir: i) os argumentos no sentido da inconveniência da


solução resultante do art. 337º/1 (que têm que ver, basicamente, com as disfuncionalidades
valorativas resultantes da existência de diferentes regimes, em sede civil e em sede penal), do ii)
expediente proposto para fundamentar o desaparecimento de tal solução: que é a revogação de tal
trecho pelo artigo 32º do CP, por se tratar de diploma sobre a mesma matéria, que omite tal
requisito e é cronologicamente posterior ao preceito do CC.

MENEZES CORDEIRO aponta os seguintes argumentos no sentido da inconveniência do pretenso


requisito de proporcionalidade:

✓ Não faria sentido o Direito permitir a defesa contra agressões ilícitas se não franquear ao
defendente os meios necessários para essa defesa. Ademais, porque uma defesa que ficasse,
por exigências desta proporcionalidade, aquém do necessário para neutralizar a agressão,
aumentaria os riscos para o defendente porque seria de esperar uma atuação mais violenta
do agressor (a ideia é esta: se o agressor não é neutralizado, a defesa falhada o que vai fazer
é que use ainda de mais força contra o defendente);
✓ É a própria possibilidade de haver uma manifesta superioridade dos danos causados em
face dos que se pretendem evitar que torna a defesa eficaz (é o facto de o agressor saber que
pode ser substancialmente mais lesado do que aquilo que pretende lesar, que torna a defesa
dissuasora/eficaz);
✓ No atual momento histórico em que se verificam lacunas na capacidade do Estado defender
os cidadãos e garantir a sua segurança, o Direito deve dar respostas;
✓ A discrepância entre o regime da LD do CC e do CP, além de contradição axiológica,
poderia levar a uma “espiral de violência” (secunda, aqui, CONCEIÇÃO VALDÁGUA):
alguém pode estar em LD no plano penal mas não no civil; logo seria possível o agressor

Simão Fino
responder-lhe (cometeria um crime, mas não um ilícito civil); o defendente não poderia
ripostar face à lei civil, mas poderia face à penal e assim sucessivamente.

A isto poderá, contudo, objetar-se que, sendo diferentes os objetivos prosseguidos pelo Direito
Civil e pelo Direito Penal e sendo o Direito Penal um Direito de última ratio (i.e., que só intervém
em situações limite, para assegurar valores da comunidade que não seriam satisfatoriamente
salvaguardados de outra forma), não haveria contradição alguma entre regimes: o que é
penalmente justificado (ie, o que não é crime) não quer dizer que seja lícito face à ordem jurídica
no seu conjunto.

De notar que, para estes autores, o facto de não se considerar aplicável o referido segmento do art.
337º/1 não quer dizer que não existam exigências de proporcionalidade: só que não é esta
proporcionalidade (a do art. 337º/1). Será uma proporcionalidade ligada com a ideia de
necessidade e adequação – é proporcional o que for necessário e adequado para deter a agressão,
não mais do que isso.

Saliente-se que, mesmo de entre os Autores que defendem a vigência da proporcionalidade que se
recorta do artigo 337.º/1 enquanto requisito, há muitos (eventualmente, até a maioria, se bem que
nem todos o escrevem expressamente) no entanto, que ainda que considerem a aplicável, não
parecem entendê-la exatamente como o juízo de comparação entre valores e bens jurídicos que
resulta literalmente da lei, referindo que não poderá tratar-se de uma “equivalência material
absoluta entre o ato pretendido pelo agressor e o praticado pelo defendente”, e convocando-se
uma ideia de racionalidade (OLIVEIRA ASCENSÃO, secundado por MENEZES LEITÃO). Assim,
como explica MENEZES LEITÃO, a defesa, embora possa exceder a lesão que resultaria da
agressão, tem que corresponder em termos de racionalidade a esta, não podendo ser
desproporcionada – e dá o seguinte exemplo: não seria lícito abater a tiro alguém que faz um
pequeno furto, mas já seria possível dar esse tiro se essa pessoa pretendesse perpetrar uma
violação ou ofensas corporais graves.

Da posição desse Autor dir-se-á que, efetivamente, torna as exigências de proporcionalidade


compreensíveis e equilibradas; simplesmente, uma leitura deste género de tal requisito não parece
ser uma interpretação que literalmente possa ter apoio no texto do artigo 337.º/1, pois que, nos
exemplos dados, o prejuízo causado indubitavelmente excede de forma manifesta o que se
pretende evitar.

2.2– Outras possibilidades de justificação.


I – O preenchimento dos pressupostos da legítima defesa importará a justificação da conduta do
defendente pela via da exclusão da sua ilicitude. Mas não estando preenchidos esses pressupostos,
quedam ainda duas hipóteses que poderão facultar uma justificação a tal conduta:

a) A legítima defesa putativa;

b) O excesso de legítima defesa.

II – A legítima defesa putativa caracteriza-se pelo facto de alguém atuar dentro dos figurinos que
materialmente corresponderiam a uma situação de legítima defesa, em virtude de ter
representado que os pressupostos de tal figura se encontravam preenchidos, apesar de não
estarem (isto é, estando em erro sobre os pressupostos da LD).

Simão Fino
O erro (isto é, a falsa representação da realidade) tipicamente incide sobre a existência de uma
agressão (p. ex., A pensa que está a ser assaltado, quando B lhe apontava um pistola de carnaval,
por brincadeira), mas pode igualmente recair sobre outros pressupostos, como a ilicitude (p. ex. C
pretende defender a integridade de um objeto de sua propriedade contra uma agressão de D, que
reputa ilícita; no entanto, não é, porque D age ao abrigo do estado de necessidade).

Tal situação encontra-se prevista no artigo 338º que faculta, em certos casos, a justificação da
conduta. Este preceito poderá ser objeto de duas interpretações:

✓ De acordo com o que literalmente resulta do preceito (sufragando tal leitura encontramos,
p. ex. MENEZES LEITÃO) a conduta praticada em legítima defesa putativa seria ilícita
(pois já não seria legítima defesa) mas poderia ser desculpável (ou seja, não se excluindo a
ilicitude, poderia excluir-se a culpa).
Uma vez que, a par da ilicitude, a culpa é um pressuposto indispensável da
responsabilidade civil, mas também da responsabilidade criminal, embora tivesse agido
ilicitamente, o agente não seria, em princípio, objeto da aplicação de qualquer sanção – ou
seja, não indemnizaria os danos que tivesse causado, nem seria punível pela prática de
crime algum.
Para que a justificação opere será, no entanto, necessário que se preencham dois requisitos que
resultam do artigo 338º:
➢ que o agente esteja em erro;
➢ que esta erro seja desculpável. Tal “desculpabilidade” aferir-se-á por confronto com
o padrão de diligência que resulta do artigo 487º/2: o erro é desculpável (ou seja,
não é censurável, não é exigível ao agente que tivesse agido de outra maneira) se o
bom pai de família, colocado na sua situação, tivesse sido levado a pensar o mesmo
(também tivesse sido levado a pensar estarem reunidos os requisitos para agir em
legítima defesa).

Neste caso, a verdadeira causa de justificação, não é a legítima defesa, mas o erro desculpável (cf.
o artigo 16º CP no campo penal).

✓ Outro caminho possível é considerar-se que a legítima defesa putativa ainda se inscreve nas
malhas da legítima defesa, pelo que excluiria a ilicitude. Neste sentido, defende MENEZES
CORDEIRO que quem crie uma aparência (acrescente-se: credível) deve suportar os
inerentes riscos. Refere o autor que a legítima defesa é justificante quando a aparência
justificante não seja imputável ao agente (defendente).

III – Há excesso de legítima defesa quando a atuação defensiva se situa já fora das malhas da
legítima defesa. A delimitação desta situação depende da interpretação que se fizer sobre quais
são exatamente os pressupostos da legítima defesa:
✓ Assim, para quem defenda que se aplica a medida de proporcionalidade que resulta
literalmente do artigo 337º/1 (além de outras situações) há logo excesso de legítima defesa
quando a conduta defensiva importar prejuízos que excedam manifestamente os que visou
acautelar;
✓ Para quem considerar que tal requisito não se aplica porque o artigo 337.º/1 foi
parcialmente revogado, só haverá legítima defesa quando a resposta exceda o que for
necessário para deter a agressão: i) prolongando-se depois de esta já estar neutralizada
(excesso extensivo: ex. A continua a esmurrar B que o ia agredir, mesmo depois de este já
Simão Fino
estar prostrado no chão), ou ii) respondendo a esta de forma mais intensa do que o que
seria necessário (excesso intensivo: ex. D atira logo a matar sobre alguém que lhe assaltava
a casa).

A conduta praticada em excesso de legítima defesa poderá ser justificada:


✓ se o defendente se encontrar numa situação de medo ou perturbação;
✓ que não sejam culposos (isto é, numa situação em que o bom pai de família também se
encontraria se colocado no lugar do defendente).

Mais uma vez se põe o problema de saber se essa justificação opera por exclusão da ilicitude, ou
de culpa:
✓ no sentido da exclusão da culpa: p. ex., MENEZES LEITÃO e TERESA QUINTELA DE
BRITO – teríamos aquilo a que em Direito Penal se chama excesso asténico de legítima
defesa; por isso, alguns autores (MENEZES LEITÃO) referem que a causa de justificação
será verdadeiramente, não a legítima defesa, mas o medo invencível (i.e., o medo que não
se consegue dominar e que não é censurável que não se consiga).
✓ no sentido da exclusão da ilicitude: p. ex. ANTUNES VARELA, MENEZES CORDEIRO e
PESSOA JORGE. Este último Autor apenas concebe a possibilidade de justificação na
hipótese de utilização errada do meio de defesa; se se violar o princípio da
proporcionalidade (na aceção que resulta literalmente do artigo 337.º/1), a defesa é sempre
ilegítima.

Da exposição de MENEZES CORDEIRO parece resultar o seguinte: acionado o artigo 337.º/2 e o


“excesso justificante” aí previsto, excluir-se-ia a ilicitude; na existência de “medo” ou
“perturbação” (requisitos da figura) é que não pode haver culpa – a avaliar pela bitola do bom pai
de família.

3 – Estado de Necessidade
3.1 – Caracterização e situações típicas

I – Considera-se feita em estado de necessidade a atuação de quem destrua ou danifique coisa


alheia com o propósito de afastar perigo de um dano manifestamente superior para si ou terceiro.

II – Como exemplos de situações típicas de estado de necessidade podemos apontar os seguintes:


a) Automobilista que, confrontado com um peão que lhe surge inesperadamente pela frente, e não
podendo já parar, guina a direção colidindo com outro carro para evitar atropelá-lo;
b) Capitão de navio que, em caso de tempestade, lança carga ao mar (com previsão específica).
c) D mata a tiro o tigre que se escapa da sua jaula no jardim zoológico e se prepara para devorar a
filha de E.

III – São os seguintes os requisitos do estado de necessidade (artigo 339º/1):


a) Perigo atual de ocorrência de um dano para o agente ou para terceiro;
b) Dano que seja manifestamente superior ao causado pelo agente (Proporcionalidade);
c) Comportamento danoso necessário e destinado a remover esse dano.

Simão Fino
IV – Da legítima defesa, mantêm-se a possibilidade de agir também em benefício de terceiro e a
necessidade de atualidade do perigo: compreensivelmente pois que, o objetivo do estado de
necessidade é remover ou neutralizar um perigo ou risco; se esse perigo já se materializou em
resultados danosos concretos ou se ainda não se manifesta, então haverá que recorrer aos meios
normais, para obter uma resposta para os danos, ou para evitar que venha a surgir uma situação
de perigo.

Subjacente a todos os requisitos continua a estar a exigência de subsidiariedade: se for possível


recorrer aos meios normais (ex. chamar a polícia, os bombeiros…) não se agirá em estado de
necessidade. De resto, deve dizer-se que a verificação dos requisitos desta figura é relativamente
difícil e será ainda mais difícil quando se vise acautelar riscos de terceiros: em princípio, ninguém
pode interferir na esfera alheia, cabendo a cada um determinar os riscos que quer ou não correr; a
conduta mais adequada, passará assim, à partida, por fazer intervir os meios de tutela normais (se
for possível) que melhor poderão avaliar se esses riscos são ou não legítimos (p. ex. perante o
incêndio de uma propriedade de terceiros, a resposta mais adequada é, em princípio, chamar os
bombeiros) – a não ser em casos excecionais, em que se verifique, p. ex., uma grande expressão
dos danos ou grande demora de atuação dos meios normais.

A proporcionalidade, enquanto comparação entre valores e bens jurídicos, é aqui requisito mais
pacífico na doutrina, o que tem que ver com o próprio fundamento da figura: não está em causa
repelir uma agressão ilícita, apenas, numa lógica de solidariedade entre as pessoas, a distribuição
de danos (ou riscos).

Essa avaliação far-se-á comparando um dano potencial (risco) – o que se evita – com um dano real
– que efetivamente se causa. A avaliação será feita pelo próprio agente de acordo com os
elementos de que disponha no momento, mas atendendo às bitolas gerais de valor (p. ex. não se
pode considerar inferior um bem de muito maior valor comercial face a outro de valor comercial
ínfimo, apenas porque, para o agente, tem valor “sentimental”).

V – Tendo em conta a referência legal a “destruir ou danificar coisa alheia” (cf. art. 339º/1)
aparentemente, o estado de necessidade apenas seria invocável perante danos patrimoniais.
Pergunta-se, no entanto, se não se pode considerar igualmente justificada uma conduta que
provoque danos pessoais, para evitar outros danos de maior expressão (suponha-se, p. ex., que A
empurra B fazendo-a cair, para fugir de C, que se prepara para espancá-lo ou matá-lo).

Em termos sistemáticos, poderá ser adotada uma de duas leituras:


✓ Recusar tal possibilidade, afirmando que o estado de necessidade apenas justifica a lesão de
bens patrimoniais, tendo em conta, designadamente, a letra do artigo 339º/1 (“destruir ou
danificar coisa alheia”) e o que resulta dos trabalhos preparatórios do Código Civil. Assim:
PESSOA JORGE, referindo que de iure condendo, a solução deveria ser outra e MENEZES
LEITÃO, referindo que os exemplos apontados para justificar o alargamento, na verdade, o
que permitem excluir é a culpa;
✓ Aceitá-la, atendendo não só ao fundamento do estado de necessidade (de distribuição de
riscos e ponderação de interesses e bens juridicamente tutelados, tendo em vista a
salvaguarda dos mais importantes numa situação de confronto)19, como ao confronto
sistemático com a figura do direito de necessidade no Direito Penal (cf. artigo 34º CP) a qual
Simão Fino
comporta claramente essa via de solução (assim: ALMEIDA COSTA, TERESA QUINTELA
DE BRITO, MENEZES CORDEIRO).

Há, no entanto, que ter presente uma distinção importante quanto aos danos envolvidos, que aqui
se deixa consignada na senda de ALMEIDA COSTA:
✓ O sacrifício de bens pessoais para assegurar bens patrimoniais – será possível mas de
difícil verificação, só acontecendo naquelas situações, dir-se-á, clamorosas de superioridade
do bem patrimonial salvaguardado perante o bem pessoal sacrificado (suponha-se, p. ex.,
que alguém empurra uma pessoa que se preparava para destruir uma preciso coleção de
quadros);
✓ Tratando-se de sacrificar bens pessoais para assegurar outros bens pessoais – aí a
ponderação dos bens envolvidos será mais fácil e as correspondentes situações de mais fácil
verificação.

VI – O estado de necessidade poderá ser defensivo ou agressivo, consoante se destrua ou


danifique a própria coisa fonte do perigo ou outra.

Não há estado de necessidade na destruição ou danificação de coisas próprias (naturalmente: aí


não se comete ilícito algum) – pelo que, a única maneira de quem o faça ser ressarcido pelos
prejuízos é invocar a gestão de negócios (artigos 464.ºss).

Discussão homóloga da reportada no ponto anterior, vem a ser de saber se o elenco das atuações
franqueadas pela ação em estado de necessidade se esgota na destruição de coisas, ou poderá ir
além disso, incluindo, p. ex., o simples uso, a detenção ou apropriação ou a ofensa de direitos de
crédito existentes sobre uma coisa. Mais uma vez a doutrina divide-se:

a) No sentido da taxatividade legal das situações abrangidas pelo estado de necessidade:


CAVALEIRO DE FERREIRA, embora considerasse estar implícita a possibilidade de mero uso
da coisa;
b) PESSOA JORGE é o Autor que vai mais longe e admite uso, retenção ou apropriação (ex. A
prende uma animal de B para evitar que cause danos) de coisas alheias e, bem assim, ofensa de
direitos de crédito sobre a coisa destruída ou danificada (ex. locador destrói uma coisa sua
antes de a entregar ao locatário, para evitar um dano maior).
c) Já numa posição intermédia encontra-se ANTUNES VARELA que, por igualdade ou maioria
de razão, considera igualmente legítimo também a apropriação ou o uso de coisa alheia.

VII – Ao contrário do que acontece no âmbito de outros meios de autotutela, o preenchimento dos
pressupostos de aplicação do estado de necessidade importa a justificação da conduta (pela via da
exclusão da sua ilicitude), mas não exclui necessariamente o dever de indemnizar pelos
prejuízos causados – que resulta do disposto no artigo 339º/2 – precisamente devido ao
fundamento da figura: operar uma distribuição solidária de riscos e permitir afastar risco de danos
superiores.

Importa, pois, distinguir dois tipos de situações:

Simão Fino
✓ num primeiro plano, se houver culpa exclusiva (artigo 339.º/2/1ª parte) da pessoa que
age em estado de necessidade é ela que responde sozinha por todos os danos (p. ex., A
queima uma carta da amante para que a mulher não a leia, mas perde o controlo das
chamas e acaba por incendiar a casa, arrombando a porta da casa de B para de lá retirar
um extintor). Nesse caso, a indemnização é fixada de acordo com as regras de
responsabilidade civil: artigos 562.º ss.

Se houver um culpado exclusivo que não a pessoa que agiu em estado de necessidade (ex. A
provoca um touro que investe contra si; para evitar que o touro mate A, B, que até a advertiu do
perigo que representava inquietar o animal, abate-o a tiros em estado de necessidade) aí já
cairemos na segunda parte do n.º 2 do artigo 339º, com as valorações a seguir apresentadas.

✓ num segundo plano, não havendo culpa exclusiva do agente (artigo 339º/2/ 2ª parte),
então há liberdade de avaliação do tribunal – o que claramente resulta da expressão
legal “pode”. Essa liberdade manifesta-se no seguinte:
o o tribunal pode decidir se há ou não lugar obrigação de indemnizar;
o se decidir que há, pode decidir ainda quem onerar com essa obrigação de
indemnizar – podendo ser alguma, algumas ou todas estas pessoas: i) o agente
(quem agiu estado de necessidade), ii) quem tirou proveito do ato, iii) quem
contribuiu para o estado de necessidade;
o O tribunal é ainda livre de fixar o quantum da indemnização (que poderá ser
inferior aos danos).

Essa liberdade não é arbítrio, pois ela deve ser tomada de acordo com a equidade, isto é, de que
acordo com que for mais justo no caso concreto.

Sobre este ponto, a doutrina também não é pacífica. No sentido do texto – isto é, afirmando que
estes três aspetos são valorados segundo a equidade – PESSOA JORGE. Diferentemente,
ANTUNES VARELA, parece conceber que quanto aos primeiros dois aspetos há
discricionariedade judicial (pelo que o critério de solução do caso é a discricionariedade e não a
equidade) e que só o quantum da indemnização é calculado segundo a equidade.

Assim, enquanto na situação anterior a indemnização era calculada de acordo com as regras gerais
de responsabilidade civil, aqui é calculada segundo a equidade.

VIII – Pode perguntar-se qual o fundamento da obrigação de indemnizar no caso previsto no


artigo 339.º/2 2ª parte, visto que o agente atua licitamente. Há quem fale numa responsabilidade
pelo risco (PESSOA JORGE), mas poderá também sustentar-se que essa responsabilidade resulta
de um princípio de justiça comutativa “que manda compensar o titular do interesse justamente
sacrificado ao interesse superior (ANTUNES VARELA)”.

De resto, poderá ainda dizer-se (ALMEIDA COSTA) que só nesta segunda hipótese, em pode não
haver indemnização, é que o estado de necessidade funciona, verdadeiramente, como causa de
justificação. Independentemente desse debate – a que não pode ser estranha a ideia de que
existem, noutros prontos pontos do ordenamento, outras hipóteses de responsabilidade civil por
factos lícitos (cf. p. ex. art. 1349º/3) – é preciso ter presente que, mesmo com dever de indemnizar,
Simão Fino
o preenchimento dos pressupostos do estado de necessidade não é irrelevante: assim, excluindo-
se a ilicitude, fica vedada, p. ex., a possibilidade de alguém agir em legítima defesa contra essa
conduta.

3.2 – Outras possibilidades de justificação.

I – A lei não contempla expressamente a possibilidade de justificação das condutas de quem aja
representando estarem preenchidos os pressupostos do estado de necessidade (geraria um estado
de necessidade putativo) ou em excesso de estado de necessidade (que decorreria, tanto da lesão
de interesses e valores de ordem superior aos que se procuram salvaguardar, como numa lesão
que exceda o necessário para afastar um perigo).

Assim sendo, poderá seguir-se um de dois caminhos:

✓ Ou se nega tal possibilidade, com o argumento de que, se o legislador desejasse prevê-


la, tê-lo ia feito (cf. artigo 9º/3 CC);
✓ Ou se admite a mesma, por interpretação extensiva ou analogia – aplicando
analogicamente as regras relativas ao excesso de legítima defesa (artigo 337º/2) e o
disposto no artigo 338º relativo ao erro sobre os pressupostos da LD e da ação direta.
Neste sentido: MENEZES CORDEIRO – o Autor apela às razões subjacentes à figura do
erro sobre os pressupostos da legítima defesa e legítima defesa excessiva justificante,
que também valeriam para o estado de necessidade – com a vantagem de que os admitir
como possibilidade de justificação não excluía automaticamente o dever de indemnizar,
podendo nessa sede fazer-se as ponderações adequadas.

Poder-se-á ainda considerar que o estado de necessidade putativo, se assente num erro em que o
bom pai de família também teria incorrido, cai nas malhas da figura geral do erro desculpável
(portanto: permite excluir a culpa). Mas aí já nada tem que ver com estado de necessidade, é uma
normal causa de exclusão da culpa.

Se se admitir que há excesso e estado de necessidade putativo justificantes, os raciocínios a fazer


quanto à exclusão da ilicitude ou da culpa, são os explanados a propósito da legítima defesa.

II – Um argumento razoável para não admitir o estado de necessidade putativo encontramos em


PESSOA JORGE26 (Autor que, ao contrário de MENEZES CORDEIRO, não o admite): o eventual
erro poderia ser levado em conta pelo juiz na apreciação equitativa que fizer em sede de artigo
339/2 2ª parte pelo que, no fundo, a solução legal de não prever a figura seria acertada.

Tendo em conta que, na interpretação da lei, se deve presumir que as soluções legislativas
consagradas são razoáveis, esta parece-nos ser a “boa” solução (cf. artigo 9.º/3 CC).

E quanto ao excesso de estado de necessidade?


Poderá dizer-se que a mesma razão levaria a não atropelarmos o silêncio do legislador; de resto, a
ausência de possibilidade de justificação de um excesso nem seria particularmente injusta: se foi o
agente que provocou o perigo, ele já teria que sempre que indemnizar, mesmo preenchidos todos
os pressupostos do EN, pelo que, por maioria de razão, também o terá se um desses pressupostos
Simão Fino
falta; no caso de o agente não ser o culpado exclusivo, se houver circunstâncias atendíveis que
justifiquem o excesso, elas podem ser consideradas na apreciação que o tribunal fizer, de acordo
com a equidade, ao abrigo do artigo 339.º/2/2ª parte.

4 – Ação Direta
4.1 - Caracterização

I – Considera-se justificado em ação direta a conduta de quem recorrer à força para assegurar ou
realizar direito próprio, revelando-se tal indispensável.

II – O género de condutas que constitui ação direta é explanado no artigo 336º/2 e podem ser as
seguintes:
✓ Apropriação de uma coisa (ex. A apropria-se de um cachecol que B lhe furtou, retirando-o
do seu carro);
✓ Destruição de uma coisa (ex. A, relojoeiro que vê B, que lhe havia furado há 1 hora atrás
alguns relógios, preparar-se para entrar num carro e fugir, fura-lhe os pneus para evitar a
fuga);
✓ Eliminação de resistência imposta ao exercício de um direito (ex. C, inquilino, empurra B,
senhorio, que o impedia de retirar da casa as coisas que pertencem ao sair desta, não tendo
sobre elas qualquer direito de retenção);
✓ Outros atos de natureza análoga (ex. detenção de uma pessoa que furtou coisas, se houver
fundada suspeita que pretende ocultar-lhes o paradeiro).

Fora isso, existem previsões específicas de situações de ação direta dispersas pelo Código Civil,
designadamente nos artigos 1314º, 1315º, 1277º, 1039/2º, 1125º/2, 1133/2º e 1188º/2.

III – São os seguintes os requisitos da ação direta (artigo 336º/1/3):

a) Estar em causa a realização ou proteção de um direito do próprio agente;


b) Impossibilidade de recorrer, em tempo útil, aos meios normais;
c) Indispensabilidade da atuação para evitar a inutilização do direito;
d) Atuação estritamente necessária: não se exceder o necessário para evitar o prejuízo [336º/1 até
aqui];
e) Não sacrificar interesses superiores aos que o agente vise assegurar [336º/3].

IV – Do estado de necessidade vem a ideia de proporcionalidade enquanto comparação de


valores ou bens jurídicos; diferentemente do que acontece no domínio deste ou da legítima
defesa, só se podem assegurar interesses próprios (não mais de terceiros) e cai o requisito da
atualidade. De resto, poderá dizer-se que este é o aspeto que permite uma distinção mais clara
entre esta figura e a da legítima defesa: de algum modo, a ação direta pode começar onde já não
houver uma “agressão atual” e, portanto, já não for possível agir em legítima defesa.

O segundo e o terceiro requisitos hão-se interpretar-se conjuntamente: poderá ser possível recorrer
aos meios normais, mas o tempo de espera pela intervenção destes comprometer a situação do
direito: pode intervir, então, a ação direta!

Simão Fino
V – A ação direta é uma espécie de “figura-fonte” de onde decorrem as outras. Daí que os seus
pressupostos sejam mais apertados, mas as suas possibilidades de atuação mais amplas: por
isso, só deve ponderar a eventualidade de aplicação da ação direta, se não se puder aplicar
nenhum outro dos outros dois meios de autotutela.

VI – A referência a “próprio direito” não pode ser encarada como uma referência apenas a direitos
subjetivos (MENEZES CORDEIRO): preenchidos os demais pressupostos, poder-se-ão assegurar
em ação direta outras posições jurídicas ativas do próprio agente, desde que suficientemente
precisas. Contudo, a posição a defender deve ser suscetível de coerção jurídica (o que quer dizer
na prática: deve ser suscetível de ser judicialmente defendida; assim, fica excluída, p. ex., o direito
ao cumprimento de uma obrigação natural).

Discute-se, no entanto, se se poderá utilizar a ação direta para defender um direito de crédito
(ex. A deve a B 5000 euros que B pela compra de um carro. Pode B assegurar o seu direito por ação
direta?). Na linha de SANTOS JÚNIOR29 vamos distinguir duas situações:

a) O credor, em ação direta, obrigar o devedor a cumprir (ex. alguém coage, pela força, uma
pessoa a pagar uma dívida);
b) O credor retira, em ação direta, bens do devedor para assegurar o cumprimento da obrigação.

Quanto à primeira hipótese, ela é rejeitada pela doutrina. A segunda já é mais controversa – em
sentido favorável: PESSOA JORGE; contra, p. ex. MENEZES LEITÃO e SANTOS JÚNIOR. O
principal argumento é o de que, sendo a ação direta subsidiária, o credor deve recorrer aos meios
normais para satisfazer o seu crédito (nomeadamente, ir a tribunal). SANTOS JÚNIOR, contudo,
admite a hipótese b) na seguinte situação: se o devedor estiver a retirar bens do seu património
para que não tenha com o que responder pela dívida30 (ex. A, “dono” de uma “empresa”
“insolvente” (= falida) retira da fábrica as máquinas e materiais de escritório, único ativo que
restava e que permitia garantir o pagamento dos salários em atraso dos trabalhadores: estes
podem impedi-lo em ação direta).

VII – A verificação dos pressupostos da ação direta ao excluir a ilicitude da conduta exclui,
também, o dever de indemnizar os danos causados.

(No nosso Direito, o que responde pelo cumprimento de uma dívida de uma pessoa é o seu
património. Isto quer dizer que se a pessoa não pagar, o credor pode executar o património: vai a
tribunal, os bens do devedor são penhorados (= apreendidos) e, no limite, vendidos por ordem do
tribunal que depois retira do produto da venda o valor da dívida e o dá ao credor.)

4.2 – Outras possibilidades de justificação

I – Neste caso a lei prevê expressamente a ocorrência putativa (artigo 338º) mas não o excesso de
ação direta. Quanto ao primeiro caso, ele pode reportar-se a qualquer requisito (à existência do
direito, à impossibilidade de recorrer aos meios normais…). As vias de solução são análogas às da
legítima defesa putativa.

Simão Fino
II – Quanto ao excesso de ação direta, não estando previsto, MENEZES CORDEIRO admite que
possa ser desculpável, se ocorreu em ambiente de especial tensão, mas refere a necessidade de se
providenciar quanto à distribuição dos danos (o que sugere a hipótese de, mesmo assim, se
poderem imputar alguns danos ao agente).
As Provas
Operações de consciência humana quando opera na busca da verdade e na sua comunicação
dentro da comunidade. Assume um alcance delimitado e preciso. As provas têm por função a
demonstração a realidade de factos. Havendo litígios, as partes podem dissentir: sobre os factos
efetivamente ocorridos, sobre o sentido das leis aplicáveis ou sobre ambos.

A prova consiste em afirmações singulares de facto: por oposição às máximas de experiência e às


demonstrações próprias da Ciência do Direito. A matéria das provas releva especialmente no
processo. A prova visa não só a convicção do juiz, mas também, a de outras pessoas ou entidades.
O ónus da prova:
A questão do ónus da prova ergue-se como o grande eixo de todo o Direito probatório material.
Tem o ónus da prova a pessoa a quem caiba demonstrar factos em discussão, sob pena de ver
desatendidas as suas pretensões.
Temos as seguintes proposições:

✓ Num litígio, o juiz poderá ficar sem saber como, afinal, ocorreram os factos aí discutidos:
seja porque, sobre ele, aparecem provas (máxime testemunhos) contraditórios, sem que se
mostre possível fazer uma opção; seja porque, de todo, não há elementos, o juiz conserva
dúvidas sérias sobre a sua autenticidade ou completitude.
✓ Todavia, o juiz nunca poderá recursar-se a julgar, invocando dúvida insanável sobre os
factos em litígio.

O ónus da prova permitirá decidir quando nada se apure, de definitivo, sobre os factos em
discussão dizendo quem perde, na falta de prova: assim, se alguém pede a restituição de uma
coisa invocando ser seu proprietário e, depois, não consegue fazer a prova de um facto aquisitivo
do domínio, o juiz absolve o réu: a ação naufraga.

Na falta de normas ou de convenções específicas sobre o ónus da prova, deve-se partir da regra
fundamental negativa do ónus da prova. O juiz não poderá aplicá-las quando não constate, no
domínio dos factos, a ocorrência dos pertinentes acontecimentos. A decisão surgirá contrária a
quem pretenda a aplicação da norma: será o fundamento material do ónus da prova.

Na falta de se puder apurar, afinal, o que aconteceu, com referência aos factos em litígio – o juiz
ficaria, na falta de outra regra, impedido de proceder quer à aplicação positiva, quer à negativa. O
ónus da prova torna-se, nessa altura, numa norma de decisão do caso. E aa decisão cairá contra
quem, invocando os factos decisivos, não logre demonstrá-los.

A regra básica está predisposta no artigo 342º/1: a quem invocar um direto cabe fazer a prova dos
factos constitutivos do direito em causa.

Simão Fino
A regra básica do ónus da prova é delimitada ou afastada, em certos casos, por outros parâmetros:

✓ Factos que não carecem de prova – os factos notórios; os que são do conhecimento geral e
aqueles que o tribunal conheça por virtude do exercício das suas funções.
✓ O princípio da aquisição processual – o tribunal deve atender a todas as provas produzidas,
mesmo que elas não tenham sido produzidas pela parte a quem caberia o ónus de o fazer.
✓ Regras especiais – constam do artigo 343º:
▪ Nas ações de simples apreciação (diga o tribunal se existe determinado direito) ou de
declaração negativa (diga o tribunal que o réu não tem determinado direito), compete
ao réu a prova do direito que se arroga – nº1.
▪ Nas ações que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o
autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova de que esse prazo já
decorreu.
▪ A prova da verificação da condição suspensiva ou do termo inicial cabe ao autor; a
relativa à condição resolutiva e ao termo extintivo, ao réu.

As regras atinentes ao ónus da prova apresentam-se como normas materiais. Elas integram os
modelos de decisão, contribuindo para a definição das diversas situações jurídicas, em especial
dos direitos subjetivos. As regras atinentes ao ónus da prova operam como um segundo
ordenamento funcionam em conjunto com as demais, para resolver casos concreto.
Inversão do ónus, convenções sobre provas e contraprovas:
As regras sobre a distribuição do ónus da prova podem inverter-se: jogar contra a parte que, em
princípio, delas benificiária. Assim sucede – 344º/1:

❖ Quando haja uma presunção legal – 350º - favorável à parte que, de outro modo, estaria
onerada.
❖ Quando ocorra uma dispensa ou liberação do ónus da prova
❖ Quando haja uma convenção válida no sentido da inversão
❖ Quando a lei o determine

O artigo 344º72 determina ainda a inversão sempre que a parte contrária tenha tornado
culposamente impossível a prova do onerado.

As convenções sobre as provas são genericamente possíveis, ao abrigo da autonomia privada


(405º/1). Todavia, o artigo 345º fixa diversas restrições, vedando, por nulidade:

❖ A convenção que inverta o ónus da prova, quando se trate de direito indisponível


❖ A convecção que torne excessivamente difícil, a uma das partes, o exercício do direito; a
“excessividade” é determinada de acordo com a bitola da pessoa normal, colocada na concreta
posição considerada
❖ A convenço que excluir algum meio legal de prova ou que admitir um meio de prova disperso
dos legais
❖ A convenção que afaste determinações de ordem pública, isto é, injuntivas; a ordem pública
manifestar-se-á, designadamente, quando se jogue a tutela de terceiros.

Ocorrem convenções de prova em contratos complexos. Assim, é permitido às partes


convencionar que certas ocorrências contratuais só se possam provar por escrito.

Simão Fino
Em face da prova produzida pela pessoa a quem caiba o competente ónus, pode a contraparte
opor contraprova ou, na gíria forense, “prova a contrário” -346º. Ou seja, perante os mesmo factos,
deduzir ou demonstrar que os contrariem ou que os tornem duvidosos.
A prova do direito consuetudinário, local ou estrangeiro:
A prova reporta-se, em princípio, a factos. O Direito é conhecido, de ofício, pelo Tribunal.

As partes podem, todavia, ajudar a tarefa do tribunal, ordenando a matéria jurídico-científica ou


fazendo juntar, aos autos, pareceres de professores.

“Àquele que invocar direito consuetudinário, local ou estrangeiro compete fazer a prova da sua
existência e conteúdo: mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respetivo
conhecimento”.

Temos, pois, um dever funcional de meios, relativamente ao tribunal. O tribunal deve, sempre,
procurar ir ao seu encontro.
Tipos de provas:
❖ Direta – o tribunal constata, diretamente, os factos em jogo, será o caso paradigmático da
inspeção judicial (390º).
❖ Indireta – o tribunal socorre-se de elementos que permitam concluir pela existência dos factos
em causa.
✓ Prova histórica ou representativa – o tribunal, com recurso a documentos ou a
testemunhas, reconstitui os factos em jogo.
✓ Prova indiciária ou crítica – o tribunal apura um facto do qual, depois, é possível deduzir
outros: por exemplo; se o agente é visto a fugir pela janela da casa do lesado e, mais
tarde, na gaveta do mesmo agente, aparece um objeto furtado ao lesado, é de deduzir a
autoria do ilícito em causa; haverá, aqui, uma dupla conexão: dos meios de prova com
os factos indiciadores e, destes, com o facto indiciado.

Quanto à eficácia da prova:

❖ A prova bastante – cede perante uma contraprova que provoque dúvidas razoáveis no espírito
do julgador
❖ A prova plena – só cede perante a prova do contrário
✓ Prova simples – qualquer meio lícito é admissível para a prova do contrário
✓ Prova qualificada – tal prova só é possível por vias especificadas na lei
❖ A prova pleníssima – não cede em caso algum; equivale às presunções inilidíveis.
Meios de prova:
1. Presunções
2. Confissão
3. Prova documental
4. Prova pericial
5. Prova por inspeção
6. Prova testemunhal

Simão Fino
Princípios de produção de prova:
❖ Princípio da igualdade – na possibilidade de apresentar novas provas e de argumentar, devem
ser reconhecidas as mesmas hipóteses a ambas as partes.
❖ Princípio do contraditório – possibilidade de cada parte contradizer a contraparte.
❖ Princípio da legalidade – respeito por regras de normalização processual, no apuramento da
verdade; além disso não se admitem provas que defrontem o direito das pessoas.
❖ Princípio da cooperação – ambas as partes devem cooperar com o tribunal para a justa
composição do litígio. Colaboração probatória.
❖ Princípio da livre apreciação da prova – o juiz deve apreciar a prova segundo a sua livre
convicção, salvo disposição em contrário.
❖ Princípio da aquisição processual – os elementos necessários para a decisão constantes de
processo podem ser usados independentemente de quem os tenha aduzido (apresentado)
❖ Princípio da imediação – o julgador deve dispensar todos os intermediários inúteis, no
apuramento da verdade.
➢ Princípio da oralidade – o juiz deve presidir à produção da prova, inteirando-se pessoalmente
dos atos e ouvindo diretamente as testemunhas.
➢ Princípio da publicidade – as audiências são públicas, salvo casos especiais.
➢ Princípio da continuidade da audiência – iniciado um julgamento, as sessões devem, quanto
possível, ser contínuas, de modo a permitir, ao tribunal, reter o essencial.
Meios de provas (continuação):
1. Presunções
Designam-se: “(…) as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um
facto desconhecido”.

A própria lei contrapõe – artigos 350º e 351º:

❖ Presunções legais ou iuris – são as ilações que, no plano dos factos, a lei retira certo evento já
demonstrado; por exemplo: o registo predial definitivo leva a presumir que o direito existe e
pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o defina.
✓ Relativas, ilidíveis ou iuris tantum – quando se limitem a inverter o ónus da prova;
elas podem ser afastadas mediante prova em contrário (350º/2, 1ª parte). (são estas a
generalidade das que surgem no Código Civil; por exemplo: presunção de culpa
(799º).
✓ Absolutas, inilidíveis ou iuris et de iure – quando imponham um regime; não
admitem prova em contrário. (Surgem nos casos de aquisição pelo registo).
❖ Presunções judiciais ou hominis ou facti – são as derivações que, com base num facto já
apurado, o julgador faça, considerando outros factos como demonstrados. Só são possíveis nos
casos em que seja admissível a prova testemunhal (351º).

Na presunção passa-se de um facto para outro.

O elenco das presunções civis, da ordem das muitas dezenas, logo revela que estas têm naturezas
diversificadas.

Simão Fino
Com efeito:

✓ A lei usa “presunção” para indicar normas de conduta: tal o caso do dever, a cargo do
intérprete, de “presumir” que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e em
termos adequados
✓ Surge “presumível” no sentido do hipotético
✓ “Presume-se” pode ainda implicar uma solução legal supletiva
✓ A presunção relaciona-se, em diversos casos, com o ónus da prova
Natureza:
As presunções iuris são as regras legais que vêm fixar o ónus da prova.

As presunções hominis traduzem um afloramento da regra da livre apreciação da prova.

Temos ainda presunções:

✓ Que se reportam a regras de conduta


✓ Que traduzem a vontade hipotética ou uma eventualidade
✓ Que implicam regras supletivas

2. Confissão
Reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe seja desfavorável e que favoreça
a parte contrária – 352º.

Pressupostos (353º e 354º):

❖ Capacidade para dispor do direito a que o facto confessado se refira


❖ Legitimidade para dispor do direito em causa
❖ Conformação legal
❖ Disponibilidade dos direitos em causa
❖ Possibilidade ou não inexistência notória.

Modalidades:
❖ Confissão judicial – feita em juízo
✓ Pode ser feita em juízo, competente ou noa, mesmo quando arbitral e ainda, em
processo de jurisdição voluntária (355º/2)
✓ Só vale como judicial no processo em que for feita; se realizada em qualquer
procedimento preliminar ou incidental, só vale na ação correspondente (355º/3).
A confissão judicial subdivide-se em:
1. Espontânea – feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual ou em qualquer
ato do processo, firmado pessoalmente pela parte ou por procurador especialmente autorizado
– 356º/1.
2. Provocada – ocorrida em depoimento de parte ou em prestações de informações ou
esclarecimentos ao tribunal – 356º/2. Temos o depoimento de parte – 352º que é, em regra,
prestado na audiência de discussão e julgamento (556º/1) ou na audiência preliminar (556º/3).
Simão Fino
O interrogatório é conduzido pelo juiz (561º), podendo os advogados pedir esclarecimentos
(562º/1).
O artigo 357º/2 tem uma regra importante: ordenado o depoimento de parte e recusando-se o
visado a comparecer ou a depor ou afirmando ele que nada cabe ou que não se recorda, cabe
ao tribunal apreciar livremente tal conduta, para efeitos probatórios.
Perante um pedido deduzido em juízo, o réu tem o chamado ónus de impugnação: ele terá de
impugnar especificamente os factos que não considere verdadeiros, sob pena de se considerarem
admitidos por acordo (por confissão).

Caso o réu declare desconhecer certo facto: a declaração vale como confissão.

❖ Confissão extrajudicial – a contrario

A eficácia da confissão vem prevista no artigo 358º. Ela tem força probatória contra o confitente
quando se trate:

✓ De confissão judicial escrita


✓ De confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular e nos termos que lhes
sejam aplicáveis e feita à parte contrária

Nos outros casos, a confissão é apreciada livremente pelo tribunal (358º/ 3 e 4).

Uma vez realizada, a confissão pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta de
ou vícios da vontade (359º/1).

A confissão é um ato estruturalmente funcional: visa a demonstração de certo facto, tendo, pois,
essência probatória, estando as partes sujeitas à boa fé.
3. Documentos
Qualquer objeto elaborado pelo homem, com o fim de representar uma pessoa, coisa ou facto –
362º.

Os documentos podem ser classificados em função dos demais diversos critérios:

❖ Em função do suporte: documentos escritos e reproduções mecânicas (fotográficas,


cinematográficas ou fonográficas).
❖ Em função da entidade de origem: documentos oficiais e documentos particulares, podendo,
nestes últimos, surgir documentos produzidos pelo autor e pelo réu.
❖ Em função do país de origem: documentos nacionais e estrangeiros; os fenómenos da
diplomacia, das organizações internacionais e da integração habilitam, ainda, a distinguir
documentos diplomáticos, internacionais e europeus.
❖ Em função de critérios jurídico: documentos autênticos, autenticados e particulares;
documentos originais e cópias; documentos reformados; certidões e diversos outros.

Existe uma hierarquia entre documentos: autêntico, autenticado e particular (364º/1). Perante ela,
a regra geral determina: o documento pode ser substituído por outro, de grau superior.

Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro fazem prova como o


fariam os equivalentes portugueses (365º/1); pode, havendo dúvidas, ser exigida a sua
legalização.

Simão Fino
Faltando requisitos legais, o valor probatório dos documentos é livremente apreciado pelo
tribunal (366º).

Quanto às reproduções mecânicas: fazem prova plena desde que a sua exatidão não seja
impugnada (368º).

Os documentos propiciam demonstrações irrefutáveis de verdade dos factos, permitindo decisões


alicerçadas por excelência e socialmente aceites. Para tanto contribuem:

❖ A sua própria natureza: as recordações humanas alteram-se e podem ser adulteradas; os


documentos mantêm-se sempre inalterados, enquanto sobreviver o seu suporte;
❖ A sua finalidade: os documentos são preparados para o seu papel probatório; por isso, na sua
confeção, devem ser seguidos diversos procedimentos, que os tornam mais fidedignos.
Documentos autênticos:
“(…) os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites
da sua competência ou, dentro do círculo de atividades que lhes é atribuído, pelo notário ou outro
oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares” – 363º/2.

Os documentos autênticos paradigmáticos são os exarados pelo notário. Entre eles avulta a
escritura pública.

A autenticidade em si deriva do próprio documento: segundo o artigo 370º/1 presume-se que o


documento provém da autoridade ou do oficial público a quem é atribuído, quando estiver
subscrito pelo autor com assinatura reconhecida pelo notário ou com o selo do respetivo serviço.
Tal presunção (370º/2):

❖ Pode ser ilidida por prova em contrário


❖ Pode ser oficiosamente afastada pelo tribunal quando, por sinais exteriores do próprio
documento, seja manifesta a falta de autenticidade; na dúvida pode ser ouvida a entidade a
quem ele for atribuído.

Documentos particulares:

São particulares todos os documentos não autênticos (363º/2). Todavia, para assumirem eficácia
probatória, os documentos particulares terão de assumir determinados requisitos. Em primeiro
lugar deverão ter uma autoria.

O Direito civil dá um especial papel à assinatura (373º).

O documento particular assinado, a sua letra e assinatura ou só a assinatura se consideram


verdadeiras (374º/1):

❖ Quando reconhecidas pela parte contra quem o documento é apresentado


❖ Quando não impugnadas por essa mesma parte
❖ Quando, sendo atribuídas à parte em causa, esta declare não saber se lhes pertencem
❖ Quando sejam legal ou judicialmente havidas como verdadeiras.

Os documentos particulares podem ser autenticados: quando confirmados pelas partes perante o
notário.

Simão Fino
Pode, ainda, haver uma assinatura em branco: nessa altura, pressupõe-se um pacto de
preenchimento, expresso ou tácito. Quando preenchido em conformidade com esse pacto, ele
confere a força de qualquer documento particular assinado.
Disposições especiais:
Dispomos, hoje, de documentos eletrónicos: aquele cujo suporte seja assegurado por meio
eletromagnéticos ou óticos. A assinatura que então intervenha é digital.

As públicas-formas ou cópias de teor, total ou parcial, expedidas por oficial público autorizado e
extraídas de documentos avulsos que, para o efeito, lhe sejam apresentados, têm a força
probatória do original; tal força cessa se for requerida a exibição do original e este não for
apresentado ou, sendo-o, se verifique desconformidade (386º).
4. Prova pericial

“… tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos quando não sejam
necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos,
relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial” – 388º.

5. Inspeção judicial
A prova por inspeção geral visa a perceção direta dos factos pelo tribunal (390º).

“O tribunal, sempre que julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das
partes, e com ressalva da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou
pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, poendo
deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando o
entender necessário” – 612º CPC.
6. Prova testemunhal
A prova por testemunhas é genericamente admitida (392º). Ela é inadmissível em casos
específicos:

❖ Perante declarações negociais que hajam de ser reduzidas a escrito ou provadas por escrito
(393º/1)
❖ Perante factos plenamente provados
❖ Relativamente a convenções contrárias ou adicionais a documentos autênticos ou particulares
reconhecidos (394º) ou a acordos simulatórios ou a negócios dissimulados, quando invocados
pelos simuladores.

Tais regras não impedem a prova testemunhal para a interpretação do contexto do documento ou
perante terceiros (393º e 394º).

A prova testemunhal domina o essencial das audiências de julgamento.

A força probatória dos depoimentos das testemunhas é livremente apreciada pelo tribunal (396º).

Simão Fino
Simão Fino

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