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10 Lições sobre Fichte – Danilo Vaz-Curado R. M.

Costa

Johann Fichte, apesar de reconhecido por seu idealismo, tratou de diversos temas ao
longo da vida, sendo que a obra que revolucionou a existência de Fichte foi a Crítica da
Razão Prática. Para Fichte, sua filosofia deveria ser um TODO, e cada perspectiva dela
teria um sentido conforme a posição que ocupasse neste todo. Por isso, não é errôneo
dizer que a Doutrina da Ciência foi uma obra que inaugurou o idealismo alemão, e que
refletiu a própria essência do pensamento de Fichte, e que posteriormente iria irradiar a
noção do “todo” em Schelling e Hegel. Para Fichte, a filosofia seria uma necessidade, e
não uma imposição.
Fichte irá desenvolver seu sistema num período em que Kant havia “emudecido” a
filosofia, pois não mais se podia filosofar sem pensar na possibilidade do objeto de
conhecimento, mas também não desejavam os filósofos se limitar àquela crítica
kantiana, vez que pretendiam ultrapassá-la e dar prosseguimento à filosofia. Outro
ponto fundamental para o idealismo alemão de Fichte foi a tendência kantiana (e
seguida por Fichte e Hegel, principalmente) de fundar a filosofia com base num sujeito
neutro do conhecimento. Para Kant, seria o “eu penso da apercepção transcendental”,
enquanto para Hegel é a “subjetividade absoluta”, e para Fichte é o EU ABSOLUTO.
Ainda, Kant, Hegel, Schelling, Fichte e esses caras sempre acreditaram que a
liberdade é a força motriz da filosofia e da vida em geral. Uma distinção é que a
razão, para Kant, não poderia fazer derivar prova da existência de Deus, mas Fichte,
Schelling e Hegel partem da noção de Deus não só como possível, mas também como
fundadora e parte da filosofia. Outra tendência de Fichte é estruturar sua filosofia
conforme princípios absolutos. Talvez a diferença mais radical de Kant e Fichte seja o
fato de que o segundo recusou a separação entre o fenômeno e a coisa-em-si, e
buscou um princípio capaz de unificá-las. Aliás: buscou unificar a própria noção de
natureza e espírito.
Para Fichte, tudo o que a filosofia deduz se dá através do EU, e que é no EU
ABSOLUTO que se encontra a máxima inteligência e liberdade. Fichte, apesar de
afirmar isso, em momento algum renuncia à experiência; até porque o eu absoluto só se
conhece através da autoconsciência. Enfim, enquanto Kant ficou preocupado em definir
o que pode vir a ser conhecido, Fichte foca em conhecer efetivamente aquilo que pode
vir a ser conhecido. Basicamente, Fichte quis aprimorar e continuar o projeto kantiano.
Fichte entende que a filosofia deve ser sistemática, racional e unificada com base em
uma série de princípios. São três os unificadores. Com base nos três, ela terá validade de
ciência, e esses três devem fundamentar tanto os objetos teóricos (do que é) quanto os
práticos (do que deve ser). Ou seja: a filosofia deve unificar a razão teórica e a prática.
São três esses princípios: o princípio simplesmente incondicionado, o princípio que é
condicionado quanto ao conteúdo e o princípio condicionado quanto à forma. O
primeiro tem inspiração em Kant e não está no mundo empírico. É algo que jamais irá
ser demonstrado, pois precede a tudo.
Esse princípio é pressuposto em termos lógicos, admitido. Ele é o fundamento de toda
a consciência e torna possível o pensar. É o estado de ação, o que possibilita FAZER,
mas é um fazer no sentido potencial, o thathandlung. A ideia é a “possibilidade de ação
por si mesma”. Agora que o negócio complica. Para demonstrar que isso existe, Fichte
diz que A = A ou A é A é uma proposição verdadeira. Por certo que é. Entretanto,
apesar de ser algo óbvio, o fato de eu afirmar que A = A não implica que A exista, ou
que se A é, então A deve ser. Trata-se de uma verdade formal, cuja forma de verdade
deriva da certeza da forma proposicional. Certeza e verdade se ligam, pois, por um
aspecto formal e de certa maneira circular. A certeza formal conduz ao à verdade, e a
unidade entre essa certeza e verdade, a unidade do saber conduz o processo
reflexionante ao fundamento seu. Claro que isso não confirma o conteúdo verdadeiro,
pois precisaríamos de analisar o aspecto empírico da afirmação, algo que introduziria
um elemento indutivo ao sistema proposto por Fichte.
Até aqui, tudo bem. Mas como fazer uma unidade entre uma determinação lógica
de que A = A e o conteúdo empírico que é variável? Eis o ponto da filosofia
fichteana, e eis o ponto que Kant aparentemente não pôde reconciliar. Tanto a
determinação lógica quanto a determinação empírica expressam, para Fichte, duas
determinações: uma de cunho necessário, mas não absoluta no fundamento; outra de
cunho contingente, mas de fundamento absoluto. Pois bem. Eu sou eu. Tal
proposição tem expressão de ação e estado ao mesmo tempo. O Eu é a forma na qual o
Ser se põe, como também é o próprio Ser posto. Neste sentido, afirma-se: nada,
absolutamente, se pode pensar sem que se pense juntamente o nosso eu como
consciente de si próprio. Logo, o eu põe seu próprio ser como eu, UNIFICANDO
SUJEITO E OBJETO. Prova-se a verdade de tal ideia porque, partindo do eu sou eu,
retorna-se ao A = A. O caminho da ida é o mesmo do caminho da volta.
Trata-se de algo autorreferente, algo determinado e que torna toda experiência
possível no mundo. Sobretudo, é disso que se pode deduzir todos os demais objetos. Por
isso que podemos afirmar que é o PRIMEIRO porque é a condição para que o A = A
possa vir a ocorrer; é PRINCÍPIO, porque dele deriva tudo; que é SIMPLES, pois é o
que há de mais elementar; e INCONDICIONADO, por ser simples. Feita a observação,
passemos para o SEGUNDO PRINCÍPIO CONDICIONADO AO CONTEÚDO.
Este, apesar de condicionado ao conteúdo, é formalmente incondicionado também,
porque ele não pode ser demonstrado ou derivado.
Trata-se da proposição ~A =/ A. Isto é: “não A é diferente de A”. Algo óbvio e que
tem uma verdade lógica também. A ideia de ser condicionado é porque é como se isso
fosse “a ação do Eu enquanto seu não Eu”. É que, se o Eu Incondicionado cria a si
mesmo, por uma decorrência lógica, acaba criando tudo aquilo que, por exclusão, é o
“não eu”. E é assim que o “eu cria toda a realidade”. O não Eu é necessário para a
consciência do Eu, pois o Eu só se percebe como Eu diante do não Eu, e o não Eu só vai
ser consciente se, por óbvio, houver um Eu. Neste aspecto, o Eu é determinado pelo
Não Eu. É verdade que, em termos lógicos, existe a “autoconsciência pura”, mas ela é
inatingível sem que haja a figura do Outro, do Não Eu. É a ação do “Eu sou” que
determina o conteúdo do ~A, porque ele É MATERIALMENTE POSTO PELA
ATIVIDADE DO EU SOU. Por isso se diz que é materialmente condicionado ao
primeiro princípio.
Depois, vamos para o TERCEIRO PRINCÍPIO CONDICIONADO QUANTO À
FORMA, que, diferente dos dois, é “demonstrável”. Enquanto o não eu se põe no eu,
há um pôr-se do eu que condiciona o não eu e reciprocamente o eu se põe como não
eu, nesta condição opera-se a síntese da consciência. Quando o não eu se põe no eu,
ele se limita ao eu, criando o mundo do possível, o mundo prático. Já quando o eu põe
a si mesmo limitando-se não eu, cria-se o mundo teórico. É neste momento que surge o
foco do Fichte e o marco do idealismo: da síntese nasce o EU ABSOLUTO.
Aqui vem o ponto interessante. Vejo uma pedra: sei que é finita, limitada e, enfim,
algo no espaço e no tempo. Mas só sei disso porque o “eu incondicionado e infinito” se
colocou sobre a coisa, o não eu, fazendo com que ocorresse um trânsito de eu para não
eu. A partir de tal trânsito, é correto afirmar que não há distinção entre mundo e eu,
porque o eu e sua intencionalidade é o próprio mundo. Não é que haja nas coisas
algo que sempre escapa ao eu (a coisa-em-si de Kant), pois, para Fichte, o que há nas
coisas o Eu já vai participar delas. O Eu, enquanto ação, já participa de todas essas
coisas . Para Fichte, se eu estou afirmando o Não-Eu é porque eu estou negando o
Eu, anulando o Eu, e quando eu ponho o Não-Eu no Eu significa que o Eu não está
posto no Eu. Consequentemente, Fichte ratifica a objetividade no sujeito e a
possibilidade de se pensar o Não-Eu (Não-A) somente quando pensado o Eu (A).
Aí a loucura começa agora: se o não eu está incluído no eu, e dele depende, logo, o eu
e o não eu são iguais. Isso, de certa maneira, contraria o princípio da identidade e o da
não contradição, pois é como se A = -A. É aqui que nasce o EU ABSOLUTO: uma
tentativa de unificar o Eu com o Não-Eu. Ao unificar, seria como –A + A = 0.
Schulze criticava Reinhold. Este dizia que a coisa-em-si era incognoscível, mas pelo
menos concebível. Já Schulze, com seu ceticismo, afirmou que isso seria impossível por
causa das críticas anteriores de Kant. Seria um regresso à metafísica afirmar algo assim.
Isso foi exposto na obra Enesidemo. Para Reinhold, o primeiro princípio seria a
chamada consciência. Mas, para Schulze, isso seria impossível, porque a consciência
enquanto uma consciência só surge enquanto fato. Logo, é derivada. Fichte critica isso
ao analisar que, na verdade, pode ser tanto fato quanto estado (thathandlung).
O tema da FILOSOFIA DO DIREITO de Fichte acaba flertando com a ideia de um
direito natural. Isso porque, para ele, o direito não seria mera convenção. Haveria uma
base que parte de algo inerente, algo inato. Essa base é o direito natural. Neste ponto, a
obra dele é dividida em duas partes. A primeira parte, mais filosófica, busca, com base
na teoria da Doutrina da Ciência, explicitar as condições da liberdade e dos
fundamentos do direito como um todo. A segunda é de viés mais político, mas ainda
partindo da tal da teoria da Doutrina da Ciência. O objetivo dele é fazer do Direito
uma doutrina que também seja autônoma e sistemática. Para tanto, na primeira
parte, ele busca mostrar a aprioridade do prático, sua superioridade em face ao teórico, a
relevância do dever-ser perante o ser. Aqui, é algo parecido com o projeto kantiano.
Ele quer mostrar o fundamento do direito natural a partir da doutrina da ciência. Quer
que a visão do direito seja vislumbrada da ótica do eu absoluto (eu + não eu). Ele afirma
que só pertence ao direito aquilo que tem causalidade no mundo. Como a moral não tem
uma causalidade, ela não pertenceria ao direito. Haveria o direito originário, que é uma
condição “a priori”, formal, do dever-ser. Todos, por estarem em sociedade, possuíam o
direito originário, mas ele teve que ser publicizado para valer. Toda positivação do
direito parte do direito originário, mas não é O DIREITO originário, e sim um momento
do devir.
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