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DIREITO DAS
OBRIGAÇÕES

TURMAS 3 E 4
PRÁTICA - 1.º SEMESTRE
RUI FERREIRA - COM COLABORAÇÃO DE
MARIA LEONOR MARTINS
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO
2022/2023
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Nota Introdutória

Esta sebenta de Direito das Obrigações, disponibilizada pela Comissão de Curso dos
estudantes do 3º Ano da Licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da Universidade do
Porto no ano letivo 2022/2023, foi elaborada pela estudante Rui Ferreira, com o apoio e
colaboração de Maria Leonor Martins, que elaborou os apontamentos semanais da Unidade
Curricular. Esta sebenta contém a compilação das aulas práticas lecionadas pela Sra.
Professora Mariana Fontes da Costa.
Além de ser de uma compilação das aulas práticas, esta sebenta possui ainda breves
enquadramentos teóricos que foram sendo referidos nas aulas. Relembra-se ainda que esta
sebenta constitui apenas um complemento de estudo, não dispensando, por isso, a presença
nas aulas práticas e teóricas, assim como a leitura da bibliografia obrigatória.

Bom estudo!

Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

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Maria Leonor Martins e Rui Ferreira
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Índice

O que é o Direito das obrigações? ...................................................................................... 3


Qual é o elemento que distingue as obrigações dos outros deveres jurídicos? .............. 3
O que é uma prestação? ...................................................................................................... 4
De Facto / De Coisa .......................................................................................................................4
Instantâneas / Duradouras ..............................................................................................................7
Fungíveis / Infungíveis...................................................................................................................8
Caso Prático n.º1 ........................................................................................................................ 9
Caso Prático n.º2 ...................................................................................................................... 10
Caso Prático n.º 3 ..................................................................................................................... 11
Relação Obrigacional Complexa ...................................................................................... 13
Contratos com eficácia de proteção para terceiros ........................................................ 15
Caso Prático n.º 4 ..................................................................................................................... 15
Caso Prático n.º 5 ..................................................................................................................... 16
Contratos Sinalagmáticos ................................................................................................. 17
Caso Prático n.º 6 ..................................................................................................................... 17
Caso Prático n.º 7 ..................................................................................................................... 19
Caso Prático n.º 8 ..................................................................................................................... 20
Caso Prático n.º 9 ..................................................................................................................... 21
Eficácia Externa das Obrigações ..................................................................................... 21
Caso Prático n.º 10 ................................................................................................................... 22
Direitos de Crédito e Direitos Reais ................................................................................. 23
Caso Prático n.º 12 ................................................................................................................... 25
Caso Prático n.º 11 ................................................................................................................... 26
Caso Prático n.º 13 ................................................................................................................... 27
Caso Prático n.º 14 ................................................................................................................... 28
Caso Prático n.º 15 ................................................................................................................... 30
Caso Prático n.º 16 ................................................................................................................... 31
Caso Prático n.º 17 ................................................................................................................... 33
Caso Prático n.º 18 ................................................................................................................... 34
Caso Prático n.º 19 ................................................................................................................... 36
Caso Prático n.º 20 ................................................................................................................... 37
Caso Prático n.º 21 ................................................................................................................... 39

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Livros recomendados pela Sr.ª Professora:


▪ Manual do Dr. Ribeiro de Faria - melhor a partir do Contrato Promessa.
▪ Manual do Dr. Antunes Varela – está desatualizado em alguns pontos; adequado à 1ª
parte da matéria.
▪ Tratado de Direito Civil do Dr. Menezes Cordeiro, Vol. VI, VII, VIII, IX- atualizado
e melhor para a 1ª parte.
▪ Manual do Dr. Menezes Leitão – mais sucinto.

O que é o Direito das Obrigações?


Quando falamos em Direito das Obrigações, e nos termos do artigo 397º do Código Civil,
temos a noção de obrigação: vínculo jurídico pelo qual uma pessoa fica adstrita com outra à
realização de uma obrigação.
Direito das Obrigações: artigo 397º Código Civil- norma definitória do que é uma obrigação.

“O Direito das Obrigações é o conjunto das normas jurídicas reguladoras das relações de crédito,
sendo estas as relações jurídicas em que ao direito subjetivo atribuído a um dos sujeitos
corresponde um dever de prestar especificamente imposto a determinada pessoa.
É o dever de prestar, a que uma pessoa fica adstrita, no interesse de outra, que distingue a relação
obrigacional de outros tipos próximos de relações (nomeadamente dos direitos reais, dos direitos
de autor, dos direitos de personalidade e também dos direitos potestativos em geral).”
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

Qual é o elemento que distingue as obrigações dos outros deveres


jurídicos?
A realização de uma prestação; é ao nível do objeto que se situa a diferença.
O objeto das obrigações é a prestação devida pelo devedor ao credor. É o meio que satisfaz o
interesse do credor, que lhe proporciona a vantagem a que ele tem direito.
Há Direito das Obrigações sempre que o devedor ficou vinculado perante um credor à
realização de uma prestação.

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O que é uma prestação?


É um comportamento; é o comportamento que o devedor tem de adotar para satisfazer o
interesse do credor.

“Objeto: a prestação debitória.


A prestação consiste, em regra, numa atividade ou numa ação do devedor (entregar uma coisa,
realizar uma obra, dar uma consulta, patrocinar alguém numa causa, transmitir um crédito). Mas
também pode consistir numa abstenção, permissão ou omissão (obrigação de não abrir
estabelecimento de certo ramo de comércio na mesma rua ou na mesma localidade; obrigação de
não usar a coisa recebida em depósito; obrigação de não fazer escavações que provoquem o
desmoronamento do prédio vizinho).
A prestação é o fulcro da obrigação, o seu alvo prático.”
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

Daqui resulta uma característica importante e específica do Direito das Obrigações: depende
de uma colaboração do devedor.
As obrigações assentam numa lógica de colaboração voluntária ou coerciva do devedor, este
tem de atuar. Há uma exceção, que são os direitos potestativos.
Ao nível de modalidades importa ter em conta as 3 classificações de prestações:
• Prestações de facto e prestações de coisa
• Prestações instantâneas e prestações duradouras
• Prestações fungíveis e prestações infungíveis

Distinguir:
- Prestação de facto (realização de um serviço, como pintar uma casa; objeto esgota-se
no comportamento) e de coisa (a coisa é o objeto mediato da obrigação; o
comportamento traduz-se em dar, entregar ou restituir uma coisa)

▪ Prestação de Facto:
 Positivo – prestações de facere (=traduzem-se numa ação do devedor): o devedor atua
de determinada maneira.
 Negativo – o devedor obriga-se a abster-se de adotar um determinado comportamento
(prestações de non facere, ex: NDA, obrigação de não concorrência) ou obriga-se a
tolerar/consentir um comportamento do credor, não atuando contra ele (obrigações de
pati).
Uma das prestações de que exigem maior atenção são as prestações de facto de terceiro:
o devedor obriga-se não a adotar ele próprio um comportamento, mas a que outrem adote
determinado comportamento. Esta é uma prestação em que o devedor se compromete a que
terceiro adote certo comportamento. Estas vinculam o terceiro? Não! Apenas o devedor se
vincula, não o terceiro. Em que medida posso responsabilizar o devedor pelo terceiro não
se ter comportado de certa maneira? Depende da formulação da obrigação.

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“Prestação de facto de terceiro.


A prestação de facto refere-se, em regra, a um faco do devedor. É o depositário que se obriga
a guardar e restituir a coisa ou o mandatário que se compromete a realizar determinados atos
jurídicos, no interesse do mandante. Mas pode o facto devido reportar-se a factos de terceiro.
(…) A prestação de facto de terceiro não vincula o terceiro a quem ela se refere (artigo 406º
nº2 do Código Civil).”
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

Esta matéria remete para uma distinção entre 3 tipos de obrigações: de meio, de resultado
e de garantia.
 Obrigações de Meio: o devedor obriga-se a aplicar o grau de diligência adequado e a
envidar todos os esforços para alcançar aquele resultado, mas sem se comprometer ao
resultado; o devedor cumpre adotando todas as diligências, mas se não conseguir, a
responsabilidade não é sua.
 Obrigações de Resultado: o devedor assume o risco de o terceiro não querer praticar o
facto, mas não se responsabiliza nos casos em que terceiro não possa, sem culpa sua,
praticar o facto.
 Obrigações de Garantia: o devedor assume a responsabilidade se terceiro não praticar
o facto, seja porque não quer seja porque não pode.

▪ Prestação de Coisa:
A coisa é o objeto mediato da obrigação; o comportamento traduz-se em dar, entregar ou
restituir uma coisa.

A prestação da coisa pode integrar uma de 3 modalidades:


→ Obrigação de dar, quando a prestação visa constituir ou transferir um direito real
definitivo sobre a coisa (artigos 1144º, 1181º nº1 e 2552º nº2 do Código Civil);
→ Obrigação de entregar, quando visa apenas transferir a posse ou detenção dela, para
permitir o seu uso, guarda ou fruição (artigo 1031º al. a) do Código Civil);
→ Obrigação de restituir, quando através dela o credor recupera a posse ou detenção da
coisa ou o domínio sobre coisa equivalente, do mesmo género e qualidade (artigos 1038º
al. i), 1129º, 1142º, 1185º do Código Civil).

Posto isto, importa ter atenção à prestação de coisa futura [Arts. 399º, 211º, 892º, 893º e
880º Código Civil → fazer remissão de uns para outros]
A prestação de coisa futura tem como objeto mediato coisas que ainda não têm existência
(vinho que ainda não foi colhido, juros que ainda não venceram); ou que já existem, mas
face às quais o devedor não tem ainda nenhum direito sobre ela, isto é, espera vir a ter.

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“Prestação de coisa futura.


A prestação de coisa refere-se, por via de regra, a coisas já existentes. Mas pode também ter
por objeto coisa futura: o lavrador vende a outrem o vinho da sua próxima colheita ou a
produção do seu laranjal no ano posterior à celebração da convenção; o mutuante cede a
terceiro o direito aos juros relativos a anos futuros; uma casa de lotarias vende a um cliente a
fração de um bilhete com número certo durante um período determinado ou indeterminado.”
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

Mas então, a venda de bens alheios pode não ser nula?


A venda de bens alheios não é obrigatoriamente nula, pois as que são feitas na
qualidade de bens futuros são válidas (artigo 893ºCódigo Civil).
O que distingue o artigo 892º Código Civil e o 893º é que a venda é celebrada por ambas
as partes na consciência e perspetiva de a coisa vir a ser adquirida pelo alienante.
O regime da venda de bens futuros está no artigo 880º nº1 do Código Civil – se nada
resultar do contrato, se a coisa não vier a ser adquirida pelo alienante, ou vier a ser adquirida
em quantidade inferior à prevista, sem culpa do alienante, a obrigação extingue-se.

O que acontece à prestação do credor? O credor fica desonerado da contraprestação e não


tem de pagar o preço.

Artigo 880º nº2 do Código Civil: negoceia-se a emptio spei (esperança vazia) - o credor
corre o risco, mas paga sempre o mesmo preço; pode ganhar muito ou perder, mas paga
sempre igual.

▪ Prestações Instantâneas:
São aquelas em que o comportamento exigido do devedor se esgota num só momento ou
num período que é praticamente irrelevante (ex: entrega de coisa, pagamento do preço
numa só prestação).
 Prestações fracionadas/repartidas: prestação cujo cumprimento se protela no tempo
através de sucessivas prestações instantâneas, mas ao contrário das prestações
periódicas, a duração do cumprimento não interfere no montante da prestação. Ou
seja, o objeto da prestação está previamente fixado; o montante está previamente
fixado. Assim, o tempo não influencia o objeto e é apenas um modo de execução (ex:
preço pago a prestações).

▪ Prestações Duradouras:
A prestação prolonga-se no tempo e a duração temporal da prestação interfere na
conformação global da prestação. O que caracteriza uma prestação duradoura é que eu não
sei exatamente qual vai ser, ao início, a prestação. O conteúdo da prestação é determinado
e influenciado pelo tempo pelo qual perdura. Como refere o Dr. Antunes Varela: “são as

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obrigações fundamentais típicas do senhorio e do arrendatário, do depositário, do


depositante bancário a prazo, do fornecedor da água ou eletricidade e respetivo
consumidor”. Podem ser:
 De execução continuada: prestações cujo cumprimento se prolonga ininterruptamente
no tempo (têm uma lógica de continuidade, como a prestação de locador, o
fornecimento de água, gás ou eletricidade; e de um modo geral, as prestações de facto
negativo).
 Reiteradas, periódicas ou de trato sucessivo: renovam-se em prestações singulares
sucessivas, em regra, ao fim de períodos consecutivos (como a obrigação de pagar a
renda, obrigação de pagar a água). Não se confundem com as
fracionadas/repartidas.
- Exemplo: num contrato de mútuo com juros oneroso, a devolução do dinheiro
emprestado é uma prestação fracionada, e os juros são uma prestação reiterada, cujo
montante varia consoante a duração do empréstimo.
“Nas obrigações duradouras, a prestação devida depende do fator tempo, que tem
influência decisiva na fixação do seu objeto; nas prestações fracionadas, o tempo não influi
na determinação do seu objeto, apenas se relacionando com o modo da sua execução”.
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

Distinção entre prestações reiteradas e fracionadas/principais diferenças de regime:


1. Resolução do contrato- a resolução do contrato é unilateral e justificada: em regra,
segundo o artigo 434º nº2 Código Civil, no caso das prestações reiteradas, a
resolução do contrato opera apenas quanto a prestações futuras, não afetando as já
efetuadas (estão ligadas ao decurso do tempo, se o tempo decorreu, a resolução não
tem em regra o efeito retroativo); nas prestações fracionadas, em princípio, a
resolução atinge todas as parcelas da prestação incluindo as já efetuadas, tendo efeito
retroativo.
2. Perda do benefício de prazo: nas prestações reiteradas, a falta de cumprimento de
uma prestação não confere o direito a exigir as prestações futuras; nas prestações
fracionadas, nos termos do artigo 781º do Código Civil, a falta de cumprimento de
uma prestação gera o vencimento imediato das restantes, a que se chama a “perda do
benefício do prazo” (ex: empréstimo para comprar um colchão de 6000, ao fim de
dois anos tinha pago 3500; deixa de pagar dois meses de juros (500€); a dívida é de
2500€- o não pagamento de uma prestação implica o pagamento das restantes; se
houver juros, estes cessam imediatamente). O legislador estabelece uma exceção ao
artigo 781º no artigo 934º, mas este SÓ diz respeito à compra e venda a prestações
(quase não há em Portugal, o que há são contratos mistos com crédito ao consumo).

Artigo 934º Código Civil:


 tinha como inicial objetivo a proteção do consumidor;
 margem de aplicação pequena;
 norma supletiva;
 norma protecionista;
 dividir a meio na “resolução do contrato”, pois o artigo dá dois caminhos;

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 2 possibilidades: o credor ou resolve o contrato (é necessária a reserva de propriedade) ou


invoca a perda do benefício do prazo (não é necessária a reserva de propriedade);
 uma única prestação que não exceda a oitava parte do preço não dá lugar nem à resolução
nem à perda de benefício do prazo, mas se for mais que uma prestação, independentemente
do seu valor, já dá direito à perda do benefício do prazo e/ou resolução.

▪ Prestações Fungíveis e Prestações Infungíveis


▪ Fungíveis: Quando pode ser cumprida por outrem que não o devedor sem que isso
traga prejuízo para o credor (ex: pintar um muro; pagar uma quantia; lavrar um terreno).
▪ Infungível: Quando tem de ser o devedor a cumpri-la, senão há prejuízo para o credor
(realizar uma intervenção cirúrgica; pintar um quadro a óleo; fazer o projeto de uma
grande obra); sendo que tal não impede o devedor de usar auxiliares no cumprimento da
prestação.
“São as obrigações em que ao credor não interessa apenas o objeto da obrigação, mas
também a habilidade, o saber, a destreza, a força, o bom nome ou ouytas qualidades
pessoais do devedor”
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

Artigo 767º nº2 do Código Civil: em regra, as prestações são fungíveis, só assim não é
quando as partes o acordarem – infungibilidade convencional (por acordo) – ou se for
infungível tendo em conta a natureza da prestação – infungibilidade fundada na natureza
da prestação.

As prestações de coisas são, tradicionalmente, fungíveis, quer sejam prestações de coisa


fungível ou infungível.

Há dois aspetos de distinção de regime entre as prestações fungíveis e infungíveis:


1. Impossibilidade de cumprimento:
- a impossibilidade subjetiva de cumprimento (devedor não consegue cumprir) só
importa a extinção da obrigação quando a prestação é infungível;
- quando a prestação é fungível, o devedor está obrigado a substituir-se por terceiro, e
só no caso de provar que não conseguiu arranjar o terceiro é que se exonera da
responsabilidade.
2. Ação executiva:
- Nas prestações de facto fungível [Artigo 828º do Código Civil]: o credor pode
requerer, no processo executivo, que o facto seja prestado por outrem, à custa do
devedor;
- Nas prestações de facto infungíveis [Artigo 817º do Código Civil]: o credor apenas
pode exigir o cumprimento do devedor e se o devedor não cumprir, como este não
pode ser substituído por terceiro, o credor tem de se contentar com a indeminização e
eventualmente recorrer, se possível, à sanção pecuniária compulsória (artigo 829º
alínea a) do Código Civil- só se aplica às prestações de facto infungíveis).

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Início da resolução de casos práticos, disponibilizados na pasta da Unidade Curricular, no Sigarra:

Caso Prático nº1


Considerando as seguintes situações, qualifique e classifique o contrato em questão em cada
uma das alíneas e as prestações debitórias que constituem o objeto das obrigações principais que
dele emergem para cada uma das partes contratuais:
a) A 11 de outubro de 2018, Carlos vende a Nuno o seu automóvel por 12.000€. O carro é
entregue de imediato. Convencionam que o preço será pago em 10 prestações de 1200 € cada.

Contrato de Compra e Venda → negócio jurídico bilateral, que gera obrigações


sinalagmáticas para as partes
Prestações:
 Pagamento do preço: prestação de coisa, fungível, instantânea e fracionada;
 Entrega da coisa: prestação de coisa, fungível, instantânea e integral.

b) Daniel obriga-se a proporcionar a Gonçalo, professor, o gozo de uma fração autónoma


propriedade do primeiro, situada em Vila Real, durante três anos – período em que o
segundo se encontra colocado numa escola da região. Gonçalo obriga-se a pagar 400 € por
mês.

Contrato de arrendamento → negócio jurídico bilateral, tratando-se, neste caso, de um


contrato de arrendamento de um imóvel
Prestações:
 Pagamento da renda: prestação de facto negativo/de paty, duradoura, continuada;
 Cedência de gozo do imóvel: prestação de coisa, duradoura e reiterada.

c) Alberta e Luís celebram um contrato pelo qual a primeira se obriga a realizar atividades de
secretariado, no escritório do segundo e sob a autoridade do mesmo. Este compromete-se a
pagar àquela 700 € por mês.

Contrato de trabalho → contrato bilateral


Prestações:
 Do empregador: pagamento do salário, retribuindo o trabalho prestado (prestação de
coisa duradoura reiterada)
 Do trabalhador: prestação de trabalho (prestação de facto positivo, duradoura e
continuada)

d) Eduardo obriga-se a vender a Renata um terreno, de que o primeiro é proprietário em Vila


do Conde. A segunda obriga-se a comprá-lo. Convencionam que a escritura pública de
compra e venda será celebrada 3 meses depois.

Contrato-promessa de compra e venda → contrato bilateral


Prestações: Prestação de facto positivo, instantânea e integral.
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e) A 1 de maio de 2018, Zeferino empresta a Orlando 15.000 €, pelo prazo de 3 anos, à taxa de
5%. Os juros devem ser pagos anualmente, e o capital deve ser restituído em três prestações
anuais de €5.000,00 cada.

Contrato de mútuo oneroso → contrato unilateral (que gera obrigações apenas para o
mutuário, que deve reconstituir a quantia emprestada)
Neste contrato, foram geradas 2 obrigações:
 Pagamento do preço, ou seja, da quantia mutuada: prestação de coisa instantânea
fracionada
 Pagamento dos juros: prestação de coisa duradoura periódica/reiterada.

Caso Prático nº2


Em novembro de 2016, António, dono de uma galeria de arte, prometeu vender a Bárbara,
negociante de arte, e esta prometeu comprar, um quadro da pintora Vieira da Silva, tendo ficado
acordado que o contrato definitivo se celebraria no dia 10 de janeiro de 2017. O preço foi fixado
em €75.000,00, tendo Bárbara entregado logo €15.000,00 na data da celebração do contrato.
Confortada com a celebração do contrato com António, Bárbara começou de imediato a procurar
comprador para o referido quadro, tendo procedido à sua venda em dezembro de 2016 a Carlos,
reputado colecionador de arte, pelo preço de €100.000,00 (€50.000,00 entregues de imediato e os
restantes €50.000,00 a entregar no momento da entrega do quadro), com a expressa ressalva de o
quadro ser ainda propriedade de António. Sucede que, no dia 5 de janeiro de 2017, António
recebeu uma proposta de compra do referido quadro por €125.000,00 da parte de um colecionador
alemão, tendo de imediato procedido à referida venda.
Analise a posição jurídica de Carlos perante Bárbara.

Contrato em causa: contrato promessa de compra e venda de um bem móvel, no caso.


Compra e venda de coisa futura - artigos 830º, 880º e 893º do Código Civil.

Qual o problema jurídico?


Possível venda de bens alheios, que em princípio, e nos termos do 892º seria nula:
 Bárbara vende a Carlos o quadro que não é dela - bem alheio.
Contudo, a venda não é nula, porque é feita sob a forma de bem futuro, e a expressão que
o demonstra é: “expressa ressalva de o quadro ser ainda propriedade de António”.
Importa, então, para o efeito, o artigo 893º e o seu regime que nos remete para o artigo
880º (regime dos contratos de compra e venda de bens futuros). Portanto, conclui-se que
não existia nenhum problema no contrato celebrado entre Bárbara e Carlos.

 Por sua vez, com a venda do quadro por António a um comprador alemão, há um
incumprimento contratual por parte do primeiro, gerando-se uma situação de
impossibilidade de cumprimento por parte de Bárbara face ao contrato que celebrou com
Carlos, sendo que, neste caso, tal impossibilidade não é imputável a Bárbara, porque tal
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ocorre apenas devido ao incumprimento por parte de António do contrato promessa que
havia celebrado com esta. Deste modo, aplica-se aqui o regime do artigo 790º CC.
Entravamos também no âmbito do artigo 880º nº1 do Código Civil. De ressalvar que para
ser aplicado o nº2 tal tinha de estar expressamente acordado, o que efetivamente não
sucedeu no caso em apreço.

Não tendo as partes (Carlos e Bárbara) atribuído carácter aleatório ao contrato, o que acontece
às prestações de ambos?
 A de Bárbara extingue-se por impossibilidade de cumprimento, que, como já dito, não
lhe é imputável (790º do Código Civil)
 Carlos, por sua vez, fica desonerado da prestação por causa da natureza sinalagmática
caraterística do contrato bilateral, já que Bárbara não consegue cumprir com a sua
obrigação, sendo aplicável à situação jurídica de Carlos o regime do artigo 795º do
Código Civil.
 Para terminar, uma vez que Carlos tinha já pagado 50 mil euros, é de destacar que, nos
termos do já referido artigo 795º, Bárbara teria, então, de restituir a Carlos essa
quantia já adiantada, gerando-se na esfera jurídica de Carlos o direito de exigir essa
mesma restituição.

Caso Prático n.º 3


No dia 1 de janeiro de 2018, Alexandre comprou um automóvel a Bernardo, por €20.000,00,
com estipulação de uma cláusula de reserva de propriedade até integral pagamento do preço. O
carro foi entregue de imediato ao comprador, acordando-se que o preço seria pago em 20
prestações mensais de €1.000,00 cada. No mesmo dia, Alexandre celebrou com Carlos um
contrato de arrendamento de uma fração autónoma, por um período de um ano, tendo sido
estipulado o pagamento de uma renda mensal de €1.000,00. Devido a dificuldades económicas,
Alexandre não pagou a 7ª e a 8ª prestações do preço do automóvel, nem a renda dos meses
de junho, julho e agosto.

Quanto à resolução de contratos de arrendamento, atente-se aos artigos 1083 e 1084º CC.

a) Quais os direitos de Bernardo e de Carlos?

 Quanto ao Bernardo, aplicava-se o artigo 934º do Código Civil, pois estamos perante
uma compra e venda a prestações (norma especial face ao 781º), não existindo, neste
caso, perda do benefício do prazo, não sendo por isso aplicável o 780º. Não estamos
perante a falta de cumprimento de uma prestação, mas sim de duas (duas prestações
em mora).
Na medida em que está em causa a mora em duas prestações, o Bernardo pode exigir o
cumprimento integral das prestações em falta.

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Pode fazer algo em alternativa? Sim, pode resolver o contrato (há reserva de
propriedade, entrega da coisa e não pagamento de duas prestações), nos termos do
artigo 934º CC.
Mas quais são os efeitos desta resolução? Na sequência da resolução, os efeitos são a
devolução do carro e a devolução da parte do preço já paga, visto que a resolução
tem efeitos retroativos – por se tratar de uma prestação fracionada. Bernardo poderá
também pedir uma indemnização pelos danos causados pelo incumprimento.
Importa, contudo, atentar que para resolver o contrato, Bernardo teria de transformar a
mora do Alexandre em incumprimento definitivo → a resolução do contrato implica
transformar a mora em incumprimento definitivo. Só que tal só ocorre de uma de duas
maneiras:
- ou há uma perda objetiva de interesse por parte do credor, e por ser objetiva tem de ser
uma coisa identificável por terceiro (por exemplo: vestido de noiva pronto no dia a
seguir ao casamento; catering fora de data) - se houver um prazo perentório, deve ser
referido no contrato, pois a perda tem de ser objetiva;
- ou aplica-se o artigo 808ºdo Código Civil: Interpelação admonitória → o credor
concede ao devedor um prazo extra para cumprir, findo o qual se considera que a mora
se transforma em incumprimento definitivo.
Por princípio, não se resolvem contratos em mora.

 Quanto ao Carlos, a renda é uma prestação duradoura periódica, então, não se aplica
aqui o 780º do Código Civil. Conclui-se, portanto que não há perda de benefício de
prazo.
Quais são então os seus direitos? Importava atentar nos artigos relativos ao contrato de
arrendamento. Deste modo:
- Segundo o n.º 3 do Art.º 1083.º do Código Civil, Carlos tem direito a resolver o
contrato.
- Nos termos do n.º3 do artigo 1084.º do Código Civil, Alexandre tem 1 mês para pagar
as rendas em atraso, e se o fizer, a resolução fica sem efeito.

b) Suponha agora que Alexandre e Bernardo haviam acordado que o automóvel deveria ser
entregue a Alexandre no início de março – altura em que Bernardo receberia o seu novo
veículo – e que o preço deveria ser pago no início do mês de julho. Considerando que
Bernardo descobre, em finais de fevereiro, que a situação económica de Alexandre se
deteriorou consideravelmente em virtude de um endividamento excessivo, pode aquele
recusar-se a entregar-lhe o automóvel?

Não estamos sob alçada da exceção de não cumprimento (428º do Código Civil), pois
quem ia cumprir primeiro seria o Bernardo. Assim, conjugam-se os artigos 429.º e
780.º do Código Civil: o Bernardo pode recusar-se a cumprir a sua prestação se
Alexandre se encontrar em alguma das circunstâncias que impliquem a perda do
benefício do prazo. A insolvência de facto é uma dessas circunstâncias, caso
Alexandre não dê garantias de que irá cumprir.
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Maria Leonor Martins e Rui Ferreira
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

Relação Obrigacional Complexa


Livros do Dr. Manuel Carneiro da Frada: Contrato e deveres da proteção; artigo “os deveres ditos
acessórios e o arrendamento” - ano 63 volume I 2013, páginas 267 e seguintes.

Existem relações obrigacionais não complexas?


Uma relação obrigacional “simples” comporta uma prestação do devedor e uma prestação do
credor, algo que, na realidade prática, não existe, é apenas um arquétipo lecionado nas aulas,
mas que, na prática, não se verifica.
Na realidade prática, todas as relações obrigacionais são compostas por conjuntos de direitos,
deveres, ónus e sujeições de extensão e complexidade variáveis, que resultam para as partes
de um dado facto jurídico.

“A relação jurídica em geral diz-se una ou simples, quando compreende o direito subjetivo
atribuído
Na prática,atodas
uma pessoa e o dever
as relações jurídico ou estado
obrigacionais de sujeição correspondente, que recai sobre a
são complexas.
outra; e complexa ou múltipla, quando abrange o conjunto de direitos e de deveres ou estados de
Asujeição
doutrinanascidos
foi tentando entender
do mesmo a multiplicidade de direitos e deveres que compõe a
facto jurídico.”
relação obrigacional para tentar agrupá-los. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

Classificação entre deveres principais da prestação, deveres secundários da prestação e


deveres acessórios (nascem da lei):
 Deveres principais da prestação: Dão identidade ao tipo da relação, conferem o seu
núcleo principal e as suas características fundamentais. Identificam o tipo contratual; e
podem ser substituídos por um dever de indeminização em caso de incumprimento
definitivo imputável ao devedor;
 Deveres secundários da prestação: São também deveres de prestação, derivam da lei ou
do contrato e têm como finalidade a correta e total realização da prestação principal,
estando ao seu serviço. Incluem-se no sinalagma e é possível, face ao incumprimento
destes por uma das partes, recorrer à exceção de não cumprimento, desde que
preenchidos os seus pressupostos- por exemplo:
- num contrato de compra e venda de um automóvel, entregar as chaves e o livrete são
obrigações secundárias;
- num contrato de compra e venda de uma máquina complexa, um exemplo é entregar o
manual de instruções;
 Deveres acessórios de conduta (não são da prestação, nascem da lei): têm por base
concretizações do princípio da boa-fé; têm base legal, derivam sempre da lei ao contrário
dos acima mencionados. Representam valores fundamentais do sistema. São
concretizações da cláusula geral da boa-fé que reconduzimos ao artigo 227º do Código
Civil. Por exemplo: na compra e venda de uma máquina industrial, a prestação principal
será a entrega da máquina, prestações secundárias serão o envio de manual de instruções,
e deveres acessórios seriam o de alertar para particularidades da máquina que não sejam
intuitivas, como o de advertir para certos perigos.Visam:
- Acautelar materialmente o vínculo obrigacional;
- Proteger as partes nas suas pessoas e no seu património;

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Maria Leonor Martins e Rui Ferreira
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- Proteger terceiros que tenham especial contacto com a obrigação.

Dentro destes, podemos distinguir deveres acessórios:


▪ Com finalidade positiva: são aqueles que visam possibilitar o reforço e a
substancialização do dever de prestar, prosseguindo um interesse conexo com a
prestação principal. Estão em causa deveres de informação e lealdade.
Ex.: dois vizinhos fazem um contrato de compra e venda, um compra ao outro uma
determinada quantidade de tijolos; a entrega, segundo ditames de boa-fé, devia ser
feita no terreno do comprador de forma a facilitar a entrega da coisa, mas imagine-se
que estes chatearam-se e o vendedor deixou-os no fundo de um poço (ainda que dentro
do terreno do comprador) dificultando o acesso do comprador aos bens que adquiriu -
tal é um exemplo do que consubstancia o não cumprimento de um destes deveres.
▪ Com finalidade negativa: visam proteger a contraparte dos riscos de danos da sua
pessoa e património que nascem da e por causa da relação obrigacional estabelecida.
A estes deveres, Dr. Carneiro da Frada dá o nome de “deveres de proteção”, que é
traduzido do termo utilizado pelo autor alemão Stoll. Alguns destes deveres de
proteção são abrangidos quer pela responsabilidade civil extracontratual quer pela
contratual, ao abrigo da relação obrigacional complexa. Esses casos são casos de
concurso de responsabilidades e há várias formas para o resolver, mas o mais
importante é dizer que quando estes deveres são protegidos pela responsabilidade
contratual gozam da presunção de culpa do artigo 799º do Código Civil, coisa que não
acontece na responsabilidade extracontratual.

Em que momento surgem os deveres acessórios de conduta?


Surgem logo quando se iniciam as negociações – artigo 227º do Código Civil – culpa in
contrahendo. Perduram durante a vigência da relação prestacional e gozam de pós-
eficácia (responsabilidade post pactum finitum) - mantêm-se mesmo depois da extinção
da relação contratual; subsistem mesmo que o contrato venha a ser considerado nulo ou
anulável pois os deveres acessórios derivam da lei, e não do contrato.
Nos casos de pré e pós eficácia e nos casos de nulidade e anulação do contrato, os deveres
acessórios surgem desacompanhados de deveres principais e secundários → dá-se o
nome de obrigações sem dever de prestar.

Como distinguir deveres (primários ou secundários) de prestação de deveres acessórios de


conduta?

“A distinção entre os deveres (primários ou secundários) de prestação e os deveres acessórios de


conduta, reflete-se desde logo em dois aspetos: primeiro, na possibilidade de os deveres
acessórios de conduta (que variam consoante as circunstâncias concretas de cada situação)
surgirem antes (ou independentemente) de se ter constituído a relação obrigacional de onde
decorre (ou viria a decorrer) o dever de prestação (cfr. art. 227º); depois, na possibilidade de os
deveres acessórios de conduta terem como titular ativo pessoas estranhas à relação donde nasce o
dever de prestação, como sucede no arrendamento para habitação.”
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral

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Contratos com eficácia de proteção para terceiros


Os deveres acessórios de conduta podem estender-se a terceiros que estão especialmente
ligados a uma parte do contrato – contratos com eficácia de proteção para terceiros.
Há contratos que geram deveres de proteção a cargos de terceiro, por exemplo: aqueles
que residem com o arrendatário têm o dever de preservar as coisas.
Qual o regime em caso de incumprimento? O que acontece em caso de incumprimento de
dever acessório de conduta?
 Segundo o Dr. Menezes Cordeiro, há uma verdadeira responsabilidade contratual.
 Na opinião do Dr. Carneiro da Frada e Dr. Sinde Monteiro, o que acontece é uma
terceira via entre a responsabilidade obrigacional e a extraobrigacional, ainda que
mais próxima da responsabilidade obrigacional.
(matéria discutida no ponto 6 do sumário do artigo do Dr. Carneiro da Frada, para a ROA, ano 2005, ano 65 –
Vol. II - set.2005 - “Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em autoestradas”).
 A doutrina tem sido unânime quanto à violação destes deveres e à aplicação da presunção
do artigo 799. º do Código Civil.
Respeitando o princípio da proporcionalidade, e demais requisitos, é possível o recurso à
exceção de não cumprimento por violação de deveres acessórios. O desrespeito
destes deveres, se for grave, pode dar direito à resolução do contrato (por ser inexigível
a manutenção da relação); pode também dar direito a indemnização pelos danos causados.
Sobre o artigo 799º do Código Civil:
“O nº1 do artigo sob anotação encerra uma presunção legal que, ao isentar o credor de provar
a culpa do devedor inadimplente, exceciona a regra geral de distribuição do ónus da prova do
artigo 342º, nº1, pois a culpa, enquanto pressuposto da responsabilidade civil obrigacional, é
um facto constitutivo do direito à indemnização de que é titular o credor. A culpa representa o
limite mínimo da presunção estabelecida neste preceito, sendo o único pressuposto mencionado
de forma expressa e inequívoca pelo legislador. Independentemente do conteúdo da obrigação,
«incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso» não
procede de culpa sua.” Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Editora

Caso Prático n.º 4


No dia 7 de outubro de 2013, a Sociedade Comercial Alberto Silva, Lda. (A) adquiriu à
Sociedade Comercial Bragança & Caldas – Máquinas Industriais, S.A. (B) uma máquina de alta
velocidade para corte de moldes da marca CC, de que B era a única representante em Portugal.
Sucede que em outubro de 2015 a referida máquina bloqueou, sendo que tal problema apenas
podia ser resolvido com a colocação de um código de desbloqueio de que somente B era
portadora. Tendo sido contactada para fornecer o código, B recusou-se a fazê-lo, informando A
que apenas lhe daria o código em causa se esta entregasse o montante de €3.000,00, relativo ao
pagamento de assistências técnicas realizadas a outras máquinas anteriormente adquiridas, ainda
não liquidado.
Analise a situação descrita, pronunciando-se sobre a natureza jurídica do dever de fornecer o
código de desbloqueio e o fundamento invocado para o seu não cumprimento.

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A entrega da máquina corresponde à prestação principal.


Fornecer o código é um dever secundário e não acessório de prestação, pois está ao serviço
da correta e total realização da prestação → deriva da própria prestação e não da boa-fé.
O fundamento invocado é a exceção de não cumprimento, que se caracteriza pela
existência de uma relação de sinalagmaticidade entre o não pagamento das reparações da
máquina e o não fornecimento do código de desbloqueio.
No entanto, esta relação existe aqui? Não, porque os contratos são diferentes, são vínculos
contratuais distintos. Portanto B não podia invocar aqui a exceção de não cumprimento.
E A podia invocar a exceção de não cumprimento enquanto B não fornecesse o código? O
não cumprimento de dever secundário que afete o uso da prestação encaixa no nexo
sinalagmático e, portanto:
 A podia recusar-se a pagar o preço total da máquina enquanto B não desse o código,
pois o código é um dever secundário associado à compra da máquina e, em princípio, a
violação destes deveres secundários dá direito a exceção de não cumprimento e à
resolução do contrato.
STJ 13/10/2016, relatora Maria da Graça Trigo: Acórdão interessante para ler.

Caso Prático n.º 5


Bernardo e Cláudio, irmãos, compraram bilhetes para assistir a um importante jogo de futebol da
equipa de que são apoiantes. No dia do jogo, ambos se deslocaram ao estádio, tendo presenciado
uma vitória da sua equipa conseguida nos minutos de desconto. No meio do júbilo de uma
multidão de adeptos, ocorreu o desmoronamento de uma plataforma de betão do estádio,
tendo Bernardo sofrido, em consequência, múltiplas lesões. Bernardo pretende propor uma
ação contra o clube, pedindo uma indemnização pelos danos que lhe foram causados no
trágico acidente à saída do estádio.

a) Quid iuris?

As prestações principais em questão são proporcionar o jogo e pagar o preço do bilhete.


O dever de zelar pela segurança dos adeptos é um dever acessório de conduta – deriva
da boa-fé e não resulta do contrato.
Há, então, um dever acessório de conduta de zelar pela segurança dos adeptos, mas até
quando é que este dura? O dever perdura pelo menos até aos adeptos saírem do estádio.
Desta feita, apesar de a prestação principal já ter sido cumprida, estamos perante uma
situação de culpa post pactum finitum.
Estamos no âmbito do artigo 762.º n.º 2 do Código Civil – dever que emerge da lei e é
concretização da boa-fé → dever ex legem.
Qual é a principal consequência do reconhecimento deste dever? A consequência é que
existe uma presunção de culpa, como disposto no artigo 799.º do CC, pelo que caberá ao
clube provar que adotou todas as diligências necessárias à segurança dos adeptos.

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b) Suponha que não foi Bernardo que se lesionou, mas sim o seu filho Daniel, de 3 anos, que
havia ido ao estádio ao abrigo da política de livre entrada de menores com menos de 4 anos,
desde que acompanhados por adulto responsável com bilhete.

Os deveres de proteção gozam de eficácia de proteção de terceiros e, portanto,


abrangem também as pessoas que se encontram na esfera de risco partilhada com o
credor do dever de proteção, dito isto, e olhando para o nosso caso, concluímos então que
tais deveres abrangiam também Daniel, filho de Bernardo.

Contratos Sinalagmáticos
A maior parte dos contratos com que lidamos são contratos sinalagmáticos. Temos de analisar
quem é o credor e o devedor tendo em conta a prestação em causa, e não o contrato.
Por exemplo: o clube é devedor de proporcionar o jogo e Carlos é devedor do bilhete – a
prestação de zelar pelos adeptos é do clube.
Não podemos analisar o credor e devedor com base no contrato, mas sim com base na
prestação em discussão.

Caso Prático n.º 6


Emanuel acordou com Filipe, dono de uma oficina de automóveis, a mudança de óleo do seu
automóvel, por 70 euros. Ficou acordado que o carro ficaria na oficina de um dia para o outro,
indo Emanuel buscá-lo logo pela manhã. Porém, quando Emanuel foi buscar o automóvel à
oficina, apesar de o óleo ter sido mudado conforme o acordado, o carro apresentava os vidros
laterais partidos. Tendo confrontado Filipe com a situação, o mesmo exige receber os 70 euros
do serviço efetuado e entende que nada lhe pode ser exigido, dado que os estragos no carro foram
provocados por terceiros que assaltaram a sua garagem durante a noite. Quid iuris?

Temos um contrato de prestação de serviços, e as obrigações principais são a mudança de


óleo e o pagamento do preço. Está aqui em causa um dever acessório de conduta: o dever
de guarda do automóvel.
Qual a principal consequência? A presunção de culpa – ele tem de provar que adotou as
diligências adequadas para prevenir ilícitos de terceiros (artigo 799.º do Código Civil).

NOTA: a tese do Dr. Carneiro da Frada aborda esta temática.


No Código Civil encontramos diversas manifestações da tutela da confiança do
ordenamento jurídico, por exemplo, o artigo 291º e 899º a 901º.
A tutela não pode valer de modo absoluto, tem de ser ponderada em conjunto com outros
valores centrais do Direito, nomeadamente:
- a segurança jurídica
- as representações da outra parte
- e a justiça.

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É muito comum a tutela da confiança surgir associada a um juízo de censura do


ordenamento jurídico → é o caso do abuso de direito e da violação da boa-fé.

Isto não é tutela de confiança pura, são raros esses casos → quando vem associada ao juízo
de censura não é pura. Ocorre nos casos pouco frequentes em que apesar de o comportamento
do lesante não ser passível de qualquer censura pelo ordenamento jurídico, a contraparte viu a
sua legítima expectativa frustrada e realizou um investimento que merece ser tutelado –
exemplo do artigo 291.º do Código Civil.
 Divergência doutrinal entre a Prof. Mariana e o Dr. Carneiro da Frada: ao contrário da
professora, o Prof. considera que a rutura injustificada das negociações é um exemplo de
tutela pura da confiança (227º do Código Civil).
Na senda de um autor alemão chamado Canaris, Menezes Cordeiro distingue 4 pressupostos
para a proteção jurídica da confiança:
• Existência de uma situação efetiva da confiança do lesado traduzida na boa-fé subjetiva
(consubstancia-se na crença do sujeito de que age segundo os ditames da boa-fé) e
objetiva (comportamento próprio isento de violação dos deveres de boa-fé);
• Justificação para essa confiança, assente na existência de elementos suscetíveis de, em
abstrato, promoverem a confiança existente;
• Investimento do lesado nessa confiança, assente nela e traduzido em atos concretos, com
ou sem expressão financeira imediata;
• Imputação da situação da confiança criada ao lesante, que por ação ou omissão terá dado
causa à confiança.
Estes pressupostos articulam-se de forma móvel, sendo que a ausência de um dos elementos
não acarreta, só por si, a exclusão da confiança, podendo esta justificar-se, nomeadamente,
pela importância acrescida dos restantes. O Dr. Carneiro da Frada refere ainda a inelutável
exigência ético-jurídica da proteção dessa confiança.

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Caso Prático n.º 7


“E comprou a F a água de uma mina para fazer face aos efeitos da seca que costuma assolar a sua
aldeia durante o verão. Apesar de a lei exigir a celebração do negócio por escritura pública
(cfr. artigos 204º, nº1, al. b) e 875º CC), as partes celebraram o negócio verbalmente, por
entenderem que entre pessoas honradas a palavra basta e não vale menos do que uma escritura. O
preço foi pago e E canalizou a água da mina para sua casa. Três anos mais tarde, F morreu e os
seus herdeiros vieram invocar a nulidade do negócio, exigindo de E a restituição da água vendida,
assim como o levantamento da canalização. E não se conforma com aquilo que considera ser uma
“enorme injustiça”. Quid iuris?”

Estamos na presença de um contrato que exige escritura pública. O contrato é nulo, e a


regra é a nulidade – artigo 286.º do Código Civil – pode ser invocada a todo tempo, por
qualquer interessado e com destruição retroativa. De acordo com o regime, os herdeiros têm
razão – têm direito a invocar a nulidade do contrato.
O que pode ser tido em conta é o comportamento entre E e F (a sua relação, o comportamento
continuado entre eles) e se não terá gerado uma situação merecedora de tutela.

Será este exercício deste direito de invocar a nulidade abusivo? Se sim, ao abrigo de que
instituto? Apenas poderíamos ponderar aqui uma inegabilidade formal. Note-se, no entanto,
que, de todas as modalidades de abuso de direito, a doutrina acredita que esta deve ter
requisitos especialmente exigentes.

Qual é a axiologia que eleva a doutrina a crer que esta modalidade deve ser mais exigente
que as outras? Não estão apenas em conta interesses das partes, mas sim da sociedade.

Como é dada a proteção acrescida? → ler o texto “do abuso do direito: estado das questões e
perspetivas”, de Menezes Cordeiro

Em termos de inegabilidade formal, o Dr. Menezes Cordeiro entende que têm de estar
preenchidos os seguintes requisitos:
1. Situação de confiança em que se acredita que a invalidade do negócio não virá a ser
invocada pelas partes (preenchido)
2. A situação de confiança é justificada (preenchido, tendo em conta que as próprias partes
assim o entenderam)
3. Tem de haver um investimento de confiança (preenchido – canalização e uso)
4. A confiança é imputável ao sujeito que vai responder pela tutela desta confiança, seja
como criador seja como frustrador da confiança (preenchido)
Estes são requisitos gerais em termos de tutela de confiança de acordo com o Dr. Menezes
Cordeiro. Contudo ele entende que quando está em conta a inegabilidade formal acrescentam-
se mais 3 requisitos:
5. Devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas e não também de
terceiros de boa-fé (preenchido, uma vez que, aqui, os herdeiros atuam na qualidade de
substitutos de F)

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6. A situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar


(preenchido porque F convence E que não seria necessário)
7. O investimento da confiança deve ser sensível, sendo dificilmente assegurado p/outra via;
Quando o problema é uma matéria de forma, não devemos aplicar a modalidade venire
contra factum proprium, por causa dos interesses públicos em causa.

Caso Prático n.º 8


“G celebrou com H, em 23/10/1989, por escritura pública, um contrato de cessão de exploração
de uma pedreira sita em Santo Tirso. A escritura pública foi outorgada, em nome de G, pelos
seus representantes com poderes para tal e, em nome de H, por um funcionário sem poderes
para o ato, tendo intervindo na qualidade de gestor de negócios. Ficou exarado na escritura que o
notário advertiu as partes da necessidade de o contrato ser ratificado por H para se tornar
eficaz em relação a ela, porém, tal nunca veio a acontecer. Não obstante, o contrato foi executado
durante um longo período de tempo, durante o qual H extraiu brita da referida pedreira. Sucede,
porém, que, a certa altura, H suspendeu inopinadamente os pagamentos da brita que ia retirando,
tendo G exigido a condenação desta no pagamento da brita retirada, com fundamento na
ratificação tácita do contrato de cessão de exploração. Quid juris?”

Qual é o vício de que padece este contrato? É inválido ou ineficaz? O funcionário atuou
como mero gestor de negócios, não como representante sem poderes – assim o contrato é
ineficaz strictu sensu, ou seja, não vincula H.
Poderia haver ratificação tácita? Não, porque nos termos do artigo 268º do Código Civil a
ratificação exige a forma da declaração negocial, então, a ratificação teria de ter sido feita
por escritura pública, algo que não sucedeu → não há, portanto, ratificação tácita.
Contudo, durante anos, H comportou-se como se tivesse vinculado pelo negócio, portanto,
deverá ponderar-se se não estamos aqui perante uma situação de venire contra factum
proprium. Analisar requisitos:
1. Existe confiança de G (preenchido)
2. Justificada (preenchido pelo comportamento de H)
3. Investimento de confiança (preenchido: não procurou outro parceiro negocial)
4. Confiança imputável a H (preenchido: foi H com o seu comportamento que criou e mais
tarde frustrou a confiança)
5. Inelutável exigência ético-jurídica.

O abuso de direito não transforma o contrato em eficaz, H continua a não ser vinculado para o
futuro do negócio, porém fica impedido de invocar essa ineficácia quanto à brita que
retirou – tem de pagar a brita já retirada, e, com o pagamento desta, desaparece a razão para
a proteção da confiança.

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Caso Prático n.º 9


“Luís celebra com Mário um contrato pelo qual o primeiro se obriga a dar preferência ao
segundo na venda de 100 ações da Sociedade de Transportes “Sempre a Horas, S.A”.
Estipulam uma cláusula penal no valor de 25.000 €. Decorridos 4 meses e meio, Nuno apresenta a
Luís uma proposta muito vantajosa para a compra das referidas 100 ações. Luís informa-o, de
imediato, do compromisso que assumira com Mário. Nuno, pretendendo concluir com a maior
brevidade o negócio, persuade Luís a não comunicar a Mário a intenção de venda das ações e
os termos do projetado negócio. Compromete-se, ainda, a pagar os 25.000€, no caso de Mário
vir a acionar a cláusula penal acordada. Mário pretende obter de Nuno uma indemnização
pelos danos que sofreu. Terá razão?”

Temos um contrato do artigo 416.º do Código Civil – pacto de preferência.


O Luís tinha obrigação de comunicar a Mário os termos do negócio acordados com Nuno -
→ Luís incorre em responsabilidade contratual por violação do pacto de preferência.
Deste modo, Mário não fica desprotegido: tem direito a indemnização (25.000€): pode
exigir do Luís o valor da cláusula penal acordada
Porém, a pergunta aqui é diferente, porque Mário quer é reagir contra Nuno. Ora, qual é a
regra? Que tipo de eficácia têm as obrigações?
Têm eficácia relativa / interpartes. A regra é que os terceiros não têm qualquer vinculação
às obrigações, dado que estas só são oponíveis entre as partes, não são oponíveis a terceiros.

Ainda assim, será que o Nuno tinha o dever geral de não interferir no vínculo contratual
entre o Luís e o Mário? Para responder a esta questão entramos, assim, no tema seguinte:
eficácia externa das obrigações.

Eficácia Externa das Obrigações


Relativamente a esta matéria, há duas posições:
 Uma mais lata, que entende que a eficácia externa das obrigações é acolhida pelo direito
português no artigo 483.º do Código Civil – responsabilidade extracontratual. A doutrina
dá a este artigo uma interpretação que faz caber neste a responsabilidade externa, isto é,
para além das partes do contrato. Defende então esta doutrina que, quando o artigo refere
direito de outrem, têm aí cabimento quer os direitos absolutos quer os direitos relativos.
Para estes autores o problema da eficácia externa das obrigações é um problema de
responsabilidade civil extracontratual. Para se verificar tem de haver comportamento
doloso, não bastando a mera culpa.
 Uma mais restritiva, que defende que o artigo 483.º do Código Civil diz respeito apenas a
direitos absolutos, não abrangendo os direitos relativos: a eficácia externa das
obrigações não se encontra no artigo. Várias posições:

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

- Dr. Carneiro da Frada: defende que o artigo 483.º do Código Civil se refere apenas a
direitos absolutos. Desta feita, entende que há uma lacuna quanto a esta matéria (o
ordenamento jurídico português não tem um artigo equivalente ao parágrafo 826 do
BGB). Para resolver a lacuna, o Dr. Carneiro de Frada entende que devemos recorrer,
por analogia, ao abuso de direito. Porquê por analogia? Porque o Nuno não está a
exercer um direito, o Nuno está a exercer uma faculdade jurídica.

Assim concluímos o caso prático n.º 9 dizendo que:


 O direito legal de preferência tem eficácia real.
 O pacto de preferência gera efeitos meramente obrigacionais, exceto se as partes lhes
atribuírem eficácia real - para tal tem de constar no contrato e este tem de estar registado.
 O dever que o pacto de preferência gera é: caso a parte decida contratar com outra, tem de
invocar os termos do novo negócio – ou seja, tinha a obrigação de comunicar a Mário os
termos do negócio acordado com Nuno (artigo 416.º n. º1 do Código Civil).

Caso Prático n.º 10


“Robertinho é um talentoso jogador de futebol, que joga no Clube “O Esférico dourado”. O seu
contrato abrange as próximas duas épocas. É o principal marcador da equipa, tendo decidido
muitos jogos com remates certeiros. Num dia de folga, enquanto dá um passeio, é atropelado por
Alberto que circulava em excesso de velocidade.

a) A sociedade titular do referido clube pretende responsabilizar o autor do atropelamento


pelos danos que para ela resultaram da morte de Robertinho, já que se viu obrigada a
encontrar no mercado um avançado que o substituísse, nas várias competições disputadas
pelo clube. Quid iuris?”

Esta questão está integrada no tema da eficácia externa das obrigações.


Não há dúvida que deste acidente nasce uma responsabilidade civil de Alberto, que ia em
excesso de velocidade e atropela Robertinho. Do acidente nasce uma responsabilidade
extracontratual de Alberto indemnizar.
A questão que se coloca é se a obrigação de indemnizar abrange o clube, que é terceiro →
matéria do artigo 495º do Código Civil: Quais são os danos indemnizáveis a terceiros, nos
termos do artigo 495º do Código Civil? O referido artigo diz que são indemnizáveis as
despesas que o terceiro tem em consequência direta do acidente. Não estão em causa os danos
que o clube teve em consequência da morte, mas sim como consequência do acidente. Por
isso, esta pretensão do clube não está coberta pelo artigo 495º do Código Civil.
Poderá estar coberta pela eficácia externa das obrigações? Há que distinguir 2 versões:
 O Dr. Carneiro da Frada entende que estamos perante uma lacuna e não uma aplicação
direta do abuso de direito (não há um direito do terceiro).
Alberto atua em exercício de algum direito? Não, atua em ilicitude (excesso de velocidade)

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2022/23

 E por via do 483º do Código Civil (posição do Dr. Menezes Carneiro) é possível retirar do
ordenamento jurídico português a eficácia externa das obrigações?
Quais são os requisitos para haver eficácia externa das obrigações? Ilícito, culposo,
danoso e nexo de causalidade. Que tipo de culpa é necessária? Dolo: teria de haver
intenção do Alberto de prejudicar o clube. Não resulta que Alberto conhecia o crédito do
clube perante Robertinho e que o tenha voluntariamente querido prejudicar.
Seria assim difícil de defender uma eficácia externa das obrigações.

b) E Gervásio, filho de Robertinho, poderá demandar Alberto pela perda de 350 € mensais que
o pai lhe prestava em cumprimento da obrigação de alimentos que sobre ele impendia em
conformidade com a decisão judicial relativa à regulação do exercício das responsabilidades
parentais?

Sim, nos termos do artigo 495 nº. 3 do Código Civil é uma exceção legal à relatividade das
obrigações.

Direitos de Crédito e Direitos Reais


Direitos de Crédito: Direito a um comportamento (direito à coisa – implica que alguém a
entregue) - o credor precisa da colaboração do devedor para a satisfação do seu direito.
São direitos relativos: têm eficácia inter partes.
Gozam do princípio da liberdade contratual (405 º do Código Civil).

Direitos Reais: Direito sobre a coisa – o titular exerce um poder direto sobre a coisa; poder
direto e imediato de uma pessoa sobre uma coisa.
Qual o seu expoente máximo? O direito de propriedade.
São direitos absolutos- têm eficácia erga omnes.
Funcionam com uma lógica de numerus clausus – princípio da tipicidade (artigo 1306º do
Código Civil).
Por ser um direito absoluto surgem duas consequências
 O princípio da prevalência, que tem duas manifestações:
- Consagra a prevalência dos direitos reais sobre os direitos de crédito,
independentemente de estes terem sido constituídos antes ou depois daqueles;
- Consagra também a prevalência do direito real primeiramente constituído, que significa
que o direito real prevalece sobre qualquer situação jurídica constituída posteriormente
sobre a coisa, sem que para tal tenha concorrido a vontade do seu titular, isto desde que
não seja possível a conciliação entre ambas as situações.
Hipótese: A, proprietário de uma moradia, constitui uma hipoteca a favor de B, para garantir uma
dívida. Em 2002, constitui uma segunda hipoteca sobre a mesma moradia a favor de C. Supondo
que ambas as dívidas venceram e A não pagou nenhuma. Em 2006, C avança com uma ação

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executiva. O direito real de B constituiu-se primeiro, pelo que, por força do princípio do princípio
da prevalência, B é ressarcido na íntegra, e o valor sobrante (se sobrar) é atribuído ao C.

o Este princípio tem duas exceções:


1. Sendo um direito real sujeito a registo não prevalece o direito real primeiramente
constituído, mas sim o direito real primeiramente registado – prioridade predial;
2. Há direitos reais de garantia que por força da lei prevalecem sobre outros direitos
reais mesmo que anteriormente constituídos (ex.: privilégios imobiliários).
 Por outro lado, importa referir o seguinte princípio, muito relevante nesta matéria de
Direitos Reais: princípio da sequela. Este consiste na faculdade que o titular do direito
real tem de fazer valer o seu direito sobre a coisa onde quer que esta se encontre (veremos
mais à frente exemplos da sua aplicação prática)

Dividindo estes direitos por categorias podemos então dizer que existem 3 categorias de
Direitos Reais – de gozo, de garantia e de aquisição:
▪ De Gozo: conferem ao seu titular a faculdade de fruir as utilidades ou vantagens
económicas da coisa que é objeto do direito (exemplo: propriedade, usufruto).
▪ De Garantia: também chamados de garantias reais das obrigações- visam assegurar o
cumprimento das obrigações, conferindo ao credor a possibilidade de se fazer pagar pelo
valor ou rendimento de certa coisa, e, em caso de incumprimento do devedor, de ter
preferência face a qualquer outro credor (exemplo: hipoteca – valor que resulta daqui é
primeiro para ressarcir o credor garantido).
▪ De Aquisição: facultam ao seu titular a aquisição de direitos relacionados com uma coisa
aos mesmos juridicamente afetada (exemplo: direito real de preferência).

▪ Direitos Pessoais de Gozo: são direitos de crédito, que proporcionam ao beneficiário o


gozo de uma coisa corpórea (é o que os aproxima dos direitos reais). O Dr. Menezes
Cordeiro diz que não são direitos de crédito.
A lei portuguesa reconhece 4 direitos pessoas de gozo:
✓ Direito do locatário (artigo 1022º do Código Civil);
✓ Direito do parceiro pensador (artigo 1121º do Código Civil);
✓ Direito comodatário (artigo 1129º do Código Civil);
✓ Direito depositário (artigo 1185º do Código Civil).
Apesar de os direitos pessoais de gozo permitirem o gozo da coisa, esse gozo resulta da
relação entre o credor e o devedor e depende desta relação para existir, por exemplo, o
comodatário só pode gozar da coisa por força do contrato de comodato
São direitos de crédito, e aplica-se-lhes o regime do direito de crédito, nomeadamente,
defende o Dr. Carneiro da Frada, em termos do princípio da liberdade contratual.
Há 3 exceções de regime dos direitos pessoais de gozo que os aproxima dos direitos reais:
• Artigo 407º do Código Civil: havendo conflito entre dois direitos pessoais de gozo
prevalece o primeiramente constituído/registado – manifestação clara do princípio da
prevalência, que não existe nos direitos de crédito;

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• Artigos 1037 nº 2, 1125 nº2, 1133 nº2 e 1188 nº2 do Código Civil: os titulares de um
direito pessoal de gozo podem recorrer à ação possessória para reivindicar esse direito
perante terceiro, sem precisarem da intervenção do titular do direito real;
• Artigo 1057º do Código Civil: esta exceção é exclusiva do contrato de locação e diz
que o direito do locatário goza de um direito de sequela, ou seja, o direito de locação
pode ser invocado e oposto contra terceiro que tenha adquirido o bem na pendência da
locação (a locação acompanha o bem) - manifestação do direito de sequela. Quando se
fala em ação possessória não se fala em ação de reivindicação, a ação de reivindicação é
exclusiva dos direitos reais.

Caso Prático n.º 12


No dia 1 de novembro de 2018, Daniel, reputado pianista do Porto, obrigou-se a dar um
concerto no dia de ano novo num hotel sito na Avenida da Boavista pertencente à Sociedade
Comercial X. Duas semanas depois, e porque o pianista inicialmente contratado ficou doente,
Daniel foi convidado para dar um concerto na principal sala de espetáculos de Tóquio no dia 1 de
janeiro de 2019. Pronuncie-se sobre a situação em causa, tendo presente a impossibilidade de
Daniel assegurar os dois concertos.

Estamos perante dois direitos de crédito: não há princípio da prevalência → Daniel pode
escolher que obrigação cumpre. Depois de escolher vai indemnizar a escolha recusada (se for
a Tóquio, ou chega a acordo com o hotel, ou terá de indemnizar por incumprimento contratual).

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Caso Prático n.º 11


António, proprietário de um apartamento T0 sito na Rua da Torrinha coloca um aviso publicitário
nas Faculdades de Direito e de Letras da UP manifestando a sua intenção de arrendar o
apartamento no ano letivo 2019/2020 a um estudante. No dia 9 de setembro, imediatamente após
ter tomado conhecimento da sua colocação na FDUP, Bárbara reúne com António e, tendo chegado
a acordo quanto a todos os aspetos da disciplina contratual, ambos celebram o contrato de
arrendamento do dito apartamento, tendo sido fixado que Bárbara se instalaria no dia 15 de
setembro. Sucede que no dia 12 de setembro Carlos, também estudante da FDUP, desconhecendo
que o apartamento se encontrava já arrendado a Bárbara, ofereceu a António um valor
superior de renda, o que este aceitou, tendo celebrado com Carlos novo contrato de
arrendamento sobre a mesma fração para o mesmo período temporal. Quando Bárbara chegou ao
Porto, pronta para se instalar no apartamento, o mesmo encontrava-se já ocupado por Carlos, que
havia chegado umas horas antes.

a) Quid juris?

Apesar de estarem em causa direitos de crédito (são direitos pessoais de gozo), os direitos
de Carlos e Bárbara são incompatíveis, por isso a pergunta é quem tem de abandonar a casa
e porquê.
Nos termos do artigo 407º do Código Civil (prioridade da constituição), quando estamos
perante incompatibilidade entre direitos pessoais de gozo, prevalece o direito
primeiramente constituído (tal como acontece com os Direitos Reais). Trata-se de uma
manifestação do princípio da prevalência (princípio associado aos direitos reais) nos
direitos pessoais de gozo / direitos de crédito.
Seria de problematizar se não seria preferível um critério cronológico de materialização do
direito em vez de constituição do mesmo.
Como fica a relação de António e Carlos? O contrato é nulo?
Se estivesse em causa um direito real o contrato seria nulo, mas como se trata de um
direito de crédito o contrato é válido.
Perante Carlos, António fica numa posição de incumprimento contratual – artigo 798º do
Código Civil, tendo Carlos direito a uma indemnização.

b) Considerando apenas os dois primeiros parágrafos do enunciado, quid iuris quanto à relação
locatícia entre Bárbara e António se este, entretanto, alienar o imóvel?

O artigo 1057º do Código Civil, é uma manifestação do direito de sequela ao nível do


direito de locação. O contrato de locação goza de um direito de sequela nos termos do qual
o vínculo/posição do locatário se mantém em caso de transmissão de bens: o direito de
locação acompanha o bem no caso de este ser transmitido. A relação locatícia passa a ser
entre Bárbara e o novo proprietário.

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c) A sua resposta seria a mesma se Bárbara ocupasse o apartamento gratuitamente à data da


venda, em respeito pela relação de amizade que unia António ao pai desta?

Não, porque aqui estamos perante um comodato e este não é protegido pelo artigo 1057º do
Código Civil – este artigo é o regime exclusivo do contrato de locação.
Nos contratos de comodato não releva o princípio da sequela, aplicando-se o regime
geral dos direitos de crédito, sendo que, por força do princípio da prevalência, o direito
real sobrepõe-se ao direito de crédito emergente do comodato e, por estas razões, Bárbara
cederia perante a transmissão do apartamento.

Caso Prático n.º 13


No dia 1 de setembro, Eva prometeu vender e Fernanda prometeu comprar um apartamento
pertencente à primeira, sito na Rua Mouzinho da Silveira, no Porto, tendo Fernanda pago a título de
sinal o montante de €20.000,00. As partes acordaram que a escritura pública de compra e venda do
apartamento seria celebrada no dia 1 de dezembro, tendo Fernanda ocupado o apartamento logo no dia
5 de setembro, com os efeitos consagrados no art. 755.º, n.º 1, f) CC. No dia 20 de novembro, porém,
Eva vendeu a Guilherme o referido apartamento, que exige agora a saída de Fernanda.

a) Quid Juris?

A maior questão é a quem pertence o imóvel. Temos um contrato com efeitos


obrigacionais (contrato promessa) entre Eva e Fernanda e um contrato com efeitos reais
entre Eva e Guilherme, isto significa que a propriedade do imóvel pertence ao Guilherme,
sendo este o titular do direito pessoal de gozo de propriedade (do contrato de Eva e
Fernanda nascem apenas deveres de crédito, pois há um contrato promessa sem eficácia
real).
Contudo, Fernanda tem um direito real de garantia (o direito de retenção), consequência
da tradição da coisa, e este direito acompanha a coisa por força do princípio da
prevalência e da sequela, uma vez que este se constituiu primeiramente.
Assim, Fernanda tem o direito de retenção, mas Guilherme tem o usufruto da coisa.
Será então que Guilherme pode exigir a Fernanda que desocupe o imóvel? Como referido
anteriormente, temos um fator de perturbação que é o direito de retenção: Fernanda tem o
direito de retenção porque houve tradição da coisa.
Sobre o quê tem o direito de retenção? O que diz o artigo 755º do Código Civil? O direito
de retenção de Fernanda não é para garantir o direito a adquirir o bem, ou seja, não visa que
esta adquira o imóvel, mas sim, no caso de incumprimento do contrato promessa, garantir o
direito a um crédito indemnizatório.
O direito real de retenção de Fernanda prevalece sobre o direito real de propriedade de
Guilherme; mas Guilherme não pode exigir a Fernanda que abandone o imóvel até esta
ser integralmente ressarcida do crédito indemnizatório (sinal em dobro).

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Fernanda pode até mesmo executar o imóvel e ele ser vendido para esta ser ressarcida do
crédito indemnizatório – ela não tem direito à propriedade do imóvel pelo que assim que
for ressarcida da dívida terá de abandonar o imóvel.

b) E se Eva e Fernanda tivessem atribuído ao contrato-promessa eficácia real?

Estamos perante um contrato-promessa puro. Se Eva e Fernanda tivessem atribuído ao


contrato-promessa eficácia real, então daqui nasceria um direito real de aquisição. Ou
seja, o direito de Fernanda deixaria de ser de crédito e passaria a ser real de aquisição.
De acordo com o princípio da prevalência, e sendo um direito real de aquisição constituído
antes do direito real de gozo de Guilherme, o direito de Fernanda prevaleceria sobre o
direito de propriedade de Guilherme.
Por isso é que neste caso Fernanda já podia recorrer a execução específica (o que lhe
permitiria celebrar o contrato prometido, e adquirir o imóvel) pois tem um direito real que
prevalece sobre qualquer outro posteriormente constituído que seja incompatível – tem um
direito real de aquisição da coisa.

Caso Prático n.º 14


A promete vender a B e B promete comprar um terreno de cultivo perto de Braga por 100 mil euros,
tendo o imóvel sido de imediato entregue a este último, que o começa a cultivar. Ficou acordado que a
escritura pública se realizaria daqui a 2 anos. Nesse período de tempo, o prédio passa a valer 150 mil
euros e, na data marcada, A não comparece no notário.

Perante um caso prático de contrato promessa devemos começar por caracterizar o contrato:
 unilateral/bilateral;
 é sinalizado/ não é sinalizado;
 tem eficácia real/ não tem eficácia real;
 se há tradição da coisa ou não (essencial para o direito de retenção e relevante para a
indemnização do aumento do valor da coisa)
Sempre que falamos em incumprimento do contrato promessa devemos analisar duas
possibilidades:
 O recurso à indemnização: depende se o contrato é sinalizado ou não; se houve tradição da
coisa ou não - se houve tradição há possibilidade pelo aumento do valor
 O recurso à execução específica: convém ter em conta qual é o bem em causa / objeto da
compra e venda; se for um bem enquadrado no artigo 410.º n.º 3 do Código Civil, as partes
não podem, por acordo, afastar a execução especifica; se não for um bem enquadrado no
410.º n.º 3 do Código Civil, o sinal constitui presunção de afastamento da execução
específica. Quando é que nunca é possível recorrer a execução especifica? Num contrato
promessa sem eficácia real, em que o bem foi vendido a terceiro (independentemente do
tipo de bem em causa) → princípio da preferência.

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Relativamente ao caso prático em análise, como é que devemos caraterizar o contrato? É um


contrato promessa bilateral, sem qualquer indicação e sinalização, pelo que assumimos que é um
contrato sem sinal e sem eficácia real; houve tradição da coisa e está em causa um terreno rústico.

a) Pode B, de imediato, exigir a A uma indemnização ao abrigo do disposto no art. 442º, nº2 in
fine e recusar-se a abandonar o terreno enquanto A não pagar? Que outros direitos tem B?

A não cumpre o contrato promessa, posto isto, apresenta-se perante B a opção de recorrer
à execução específica.
Tendo em conta a caraterização do contrato, este pode pedir execução específica? Sim,
tendo em conta o disposto no artigo 442.º do n.º 3 do Código Civil – é um princípio
fundamental deste artigo → apesar de se tratar de um terreno rústico, a inexistência do sinal
significa que não há presunção do afastamento da execução específica, logo, pertencente
ainda a A, B pode recorrer à execução específica.
Pode recorrer à indemnização a que se refere o art.º 442.º n.º 2 do CC? Como se calcula?
O valor da coisa à data em que é exigida a indemnização menos o valor acordado da coisa
no contrato promessa mais o valor do sinal.
Pode recorrer ao sinal em dobro? Não, porque não há sinal. Há autores que defendem que
não faz sentido fazer depender o recurso à indemnização do aumento do valor da coisa
da existência de sinal. Mas o elemento literal da norma/letra da lei parece ir em sentido
contrário, não havendo fundamento suficiente para uma interpretação corretiva da norma.
B não pode recorrer à indemnização por aumento do valor da coisa, o que lhe resta em
termos de indemnização? B terá de transformar a mora em incumprimento definitivo
através de interpelação admonitória (a outra possibilidade seria a perda objetiva de interesse) -
artigo 880.º do CC. Para que serve a interpelação admonitória? Enquanto o devedor está
em mora, ele pode oferecer-se para cumprir: o objetivo da interpelação admonitória é
transformar a mora em incumprimento definitivo e resolver definitivamente o contrato.
Para efeitos de indemnização, B teria de transformar a mora em cumprimento definitivo,
podendo, depois, pedir uma indemnização nos termos gerais de Direito.
B ainda tem um direito: o direito de retenção – artigo 755.º alínea f) CC → pode recusar-se
a abandonar o terreno enquanto não for ressarcido da indemnização a que tem direito.

b) Pode A defender-se com a nulidade do contrato na eventualidade de este ter sido celebrado por
documento assinado só pelo promitente-comprador?

Qual é o problema neste caso prático? Temos um contrato promessa bilateral que é nulo
por falta de forma, pois falta a assinatura de uma das partes – viola o 410.º n. º2 do Código
Civil. Será possível aproveitar este contrato? Há duas teses doutrinais:
 Estamos perante uma nulidade total, e, portanto, o contrato apenas poderá valer com
promessa unilateral através de conversão – artigo 293.º do Código Civil → tese
defendida pelo Dr. Antunes Varela.
 É uma nulidade parcial e não total, e, portanto, o negócio valerá como promessa
unilateral se assim resultar da aplicação do instituto da redução, do artigo 292.º do
Código Civil – tese defendida pelo Dr. Ribeiro Faria.

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Qual é a diferença entre a conversão e a redução? Na redução, o ónus da prova recai sobre
a parte interessada na nulidade total, tendo esta de provar que o contrato não teria sido
celebrado sem a parte viciada. Na conversão, o ónus da prova recai na parte interessada no
aproveitamento do contrato, cabendo a esta provar que o contrato teria sido celebrado sem o
vício. Esta questão foi objeto de análise pelo STJ em duas situações:
- Assento de 29 de novembro de 1989: vem dizer que este contrato promessa bilateral nulo
por falta de assinatura de uma das partes pode ser aproveitado como promessa unilateral,
“desde que essa tivesse sido a vontade das partes”. Apesar deste Assento parecer
indiciar a conversão, a divisão doutrinal continuou, uma vez que havia interpretações
diversas deste Parecer.
- Acordo de 25 março de 1993: Acordo muito famoso, que identifica esta situação com o
regime de redução, mas aplica o ónus da prova associado ao regime da conversão.
A situação não está ainda clarificada, mas parece que devemos aplicar aqui o regime da
conversão (293.º do Código Civil), cabendo o ónus da prova àquele que se quer aproveitar
do negócio → a Dra. Mariana concorda que esta é a solução mais correta.

Caso Prático n.º 15


Em novembro de 2016, António, dono de uma galeria de arte, prometeu vender a Bárbara, negociante
de arte, e esta prometeu comprar, um quadro da pintora Vieira da Silva, tendo ficado acordado que o
contrato definitivo se celebraria no dia 10 de janeiro de 2017, data em que terminaria a exposição sobre
a pintora patente na galeria de António. O preço foi fixado em €75.000,00, tendo Bárbara entregado
logo €15.000,00 na data da celebração do contrato-promessa. Sucede que, no dia 5 de janeiro de
2017, António recebeu uma proposta de compra do referido quadro por €125.000,00 da parte de um
colecionador alemão, tendo de imediato procedido à referida venda. Indique quais os direitos de
Bárbara perante António.

Este é um caso prático ótimo para o estudo do regime de incumprimento. Estamos perante
um contrato bilateral, com sinal, sem tradição e sem eficácia real (para o contrato ter eficácia
real tem de estar autenticado e registado, e isto tem de constar no enunciado, caso contrário
assumimos que não tem eficácia real). Temos um incumprimento de A e por isso deve ser
analisada a possibilidade de B recorrer a um de dois caminhos:
 Execução especifica: não pode ir por esta via pois o bem foi transmitido para terceiro pelo
vendedor e, não tendo o contrato eficácia real, afasta em absoluto a possibilidade de
recurso à execução específica. Havendo sinal, presume-se que o sinal equivale ao
afastamento, por acordo das partes, da execução específica – Art.º 830.º/2 Código Civil.
Em que caso o sinal não constitui causa de afastamento de execução especifica? Nos
termos do artigo 410.º n.º 3 do Código Civil – não é o caso em questão.
 Indemnização: B teria direito ao sinal em dobro. Não pode optar pelo aumento do valor
da coisa pois não houve tradição da coisa, como refere o artigo 442.º n. º2 do Código Civil.

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Caso Prático n.º 16


C celebrou com D, em 20 de outubro de 2017, um contrato-promessa pelo qual ambas as partes se
obrigavam respetivamente a vender e a comprar um apartamento T3 situado em Vila Nova de Gaia.
Foram observados os requisitos de forma exigidos para tal contrato. D mudou-se logo para o referido
apartamento, onde passou a habitar. O mesmo entregou, de imediato, a C €10.000, a título de sinal.
Três meses mais tarde, em continuação do pagamento do preço convencionado, D entregou mais
€15.000. Ficou acordado que a celebração do contrato definitivo deveria ocorrer dentro do ano
subsequente ao dia da celebração do contrato-promessa, devendo C indicar a D o dia, a hora e o
cartório notarial em que tal ocorreria.

a) Quid iuris, sabendo que até hoje C não informou D da data e local para a celebração do
contrato definitivo, apesar das várias interpelações deste àquele?

Estamos perante um contrato promessa bilateral de compra e venda, com sinal e com
tradição da coisa, mas sem eficácia real. Temos duas possibilidades, tendo em conta que
C, em mora, não marcou a data para a celebração do contrato definitivo:
 Pode recorrer à execução especifica? Estando em causa uma fração autónoma, a
mesma integra-se no artigo 410.º n.º 3 do Código Civil; e nos termos do artigo 830.º
n.º 3 do Código Civil, não é possível afastar, por acordo, a execução específica nestes
casos. O sinal aqui não constitui presunção de afastamento de execução especifica pois
estamos perante objeto enquadrado no artigo 410.º n.º 3 do Código Civil.
 E quanto à indemnização? B pode optar por uma de duas indemnizações: uma vez que
houve tradição e sinal, B pode optar por entrega do sinal em dobro ou
indemnização com aumento do valor da coisa.
Tem de transformar a mora em incumprimento definitivo antes de pedir a indemnização?
De acordo com as regras gerais de Direito das Obrigações, a resposta seria sim. O princípio
associado ao sistema do incumprimento das obrigações é a prévia transformação da mora
em incumprimento definitivo como através da interpelação admonitória.
Qual é o problema no contrato promessa? O problema é o artigo 442.º n.º 3 parte final do
Código Civil → “salvo o disposto no artigo 808.º” é que complica tudo. Perante a parte
final deste artigo, é possível recorrer à indemnização sem transformar a mora em
incumprimento definitivo? Existe uma divisão doutrinal:
 Dr. Calvão da Silva e posição adotada maioritariamente pelo STJ: afirma que não é
possível, pois isso seria contrário ao sistema → devemos fazer uma interpretação ab-
rogante do artigo 442.º n.º 3 parte final do Código Civil.
 Prof. Dr. Varela: ainda que a solução seja contraria à lógica do sistema, parece não se
puder fugir à constatação de que o legislador efetivamente admite, no contrato
promessa, o recurso à indemnização sem interpelação admonitória. Mas se admite isso
para a indemnização pelo aumento do valor da coisa, por igualdade de razão, também
terá de admitir para o sinal em dobro – o Dr. Varela estende o regime.
Pessoalmente, a Dra. Mariana tem dificuldade em compreender/concordar com a posição
do Prof. Dr. Varela.

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b) Considere, agora, que D interpelava C para cumprir, sob pena de considerar o contrato
definitivamente não cumprido. Poderia ainda recorrer à execução específica?

A especificidade da interpelação admonitória é que transforma a mora em incumprimento


definitivo. A questão é se se pode pedir o cumprimento do contrato depois de a mora ser
transformada em incumprimento definitivo? Quanto a esta questão, a doutrina divide-se:
 Para o Dr. Antunes Varela, a interpelação para cumprimento não acarreta
necessariamente como consequência a resolução do contrato. Ou seja, se quem
interpela (D) não estabelece como consequência a resolução, então esta não ocorre
automaticamente, mantendo o lesado (C) o direito de escolher entre a indemnização
e a execução especifica. Se a parte que faz a interpelação estabelece como
consequência a resolução, então já não poderá recorrer à execução específica.
 Na opinião do Dr. Almeida Costa, a função da interpelação admonitória é transformar a
mora em incumprimento definitivo, e esta transformação não é compatível com a
execução específica (a jurisprudência maioritária tem ido neste sentido).

c) Suponha, por fim, que, no contrato-promessa referido em texto, havia sido inserida uma
cláusula pela qual D poderia nomear um terceiro para ocupar a sua posição contratual. C, no
início de setembro, informa D de que a celebração da escritura pública está marcada para o
dia 6 de outubro de 2018. D, a 15 de setembro, envia a C uma carta, em que procede à
nomeação de E. No dia 6 de outubro, aparece no cartório notarial, E e não D. C recusa-se a
celebrar a compra e venda com E. Quid iuris?

O contrato aqui em causa é o contrato de pessoa a nomear → D pode nomear um


terceiro para ocupar a sua posição contratual. Os artigos relevantes para a resolução desta
alínea são os artigos 452.º a 456.º do Código Civil.
No contrato a favor de terceiro há até dois feixes de relações:
 a relação entre as partes que compõe o contrato a favor de terceiro
 a relação entre o terceiro e aquele que o beneficia, mas, neste último contrato, as partes
são as que efetivamente celebram o contrato e assim fica até ao final.
No contrato de pessoa a nomear, uma das partes tem a faculdade de se fazer substituir
por um terceiro num contrato, deixa de ser parte e quem fica parte é o terceiro. Isto é, é o
contrato em que uma das partes se reserva a faculdade de designar uma outra pessoa que
assuma a sua posição na relação contratual, como se o contrato tivesse sido celebrado com esta
última. O contrato inicialmente produz efeitos entre as partes originárias, mas se o terceiro vier
a ser nomeado, nos termos legais, ele ocupa retroativamente a posição contratual daquele que
o nomeou (com eficácia retroativa).
Foi isso que aconteceu entre D e E? Não. O que falhou? A declaração de nomeação de E
obedeceu à forma de documento escrito, mas não cumpriu o prazo, para ser válida esta
declaração devia ter sido comunicada a C no prazo de 5 dias após a celebração do contrato
promessa. Faltou ainda o documento escrito de ratificação de E ou uma procuração
nesse sentido.
Teria de ter havido uma ratificação de E ou uma declaração sua que fosse nesse sentido
antes da celebração desse contrato. As partes são então D e C, e os efeitos consolidar-se-
iam na titularidade de D.
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Caso Prático n.º 17


António vive numa moradia de dois andares, propriedade de Bernardo e que este havia arrendado
àquele no início da década de 1990. Em finais de fevereiro do ano corrente, Bernardo envia a
António um mail com o seguinte conteúdo: “Venho, por este meio, expor os termos em que estou
disposto a efetuar a venda do prédio que lhe está arrendado: 1. Valor da Venda: 250.000 €; 2.
Pagamento: 5 pagamentos de igual valor; 3. Despesas por conta do comprador.”
António, também por correio eletrónico, dá-lhe a seguinte resposta: “Venho informar que, em
princípio, não estou interessado na compra do prédio. De facto, não estou, neste momento,
preparado para dispor da verba mencionada.” A 6 de junho, Carlos, interessado na compra do
referido imóvel, encontrando António no supermercado das redondezas, comunica-lhe o seu
interesse na aquisição e informa-o de que já está a negociá-la com o Bernardo. António,
invocando novamente dificuldades económicas, revela-lhe que não está interessado. A 10 de
novembro, Bernardo vende o prédio a Carlos.
a) António, que, entretanto, recebera um dos primeiros prémios do Euromilhões, sabendo da
venda, pretende reagir. Pode fazê-lo?

Estamos perante um contrato de locação e de compra e venda – este contrato gera direito
legal de preferência (artigo 1091.º do Código Civil) na compra do prédio arrendado. Para
esta alínea é necessário recorrer ao artigo 1091.º do Código Civil.
No pacto de preferência “se eu decidir vender dou-te a possibilidade de te substituíres ao
potencial comprador nas mesmas condições”; para haver pacto de preferência é necessário
haver já uma negociação avançada. Tem de haver um projeto de contrato (contrato real) já
com condições fixadas, o grande problema do pacto preferência é a simulação.
António tem o direito de preferência legal, tem eficácia real – funciona como direito real.
Quanto ao email enviado por Bernardo, é uma notificação para a preferência? Não, é um
convite a contratar porque não existe um projeto de venda a terceiro efetivamente
interessado na compra; existe apenas uma disponibilidade de B para negociar com A- falta a
existência de uma negociação concreta.
Quando A diz que não tem dinheiro e não quer, é uma renúncia à preferência? Não, se é
um direito legal de preferência, a doutrina tem entendido que não pode haver uma
renúncia antecipada ao direito – é contrário à ordem publica. Significa que quando B
começa a negociar com C, A mantém o seu direito à preferência.
Quando C encontra A no supermercado, isto é uma notificação para a preferência? Não,
tem se entendido que essa notificação tem de caber ao obrigado à preferência e, portanto,
não pode ser feita por terceiro; além disso, a notificação para a preferência exige carta
registada com aviso de receção (artigo 1091.º/4 do Código Civil), o que não foi respeitado.
Portanto, temos a violação do direito de preferência.
Consequências: Sendo um direito legal, A pode recorrer à ação de preferência do artigo
1410.º do Código Civil – no âmbito dela, A fica subjetivamente sub-rogado na posição de C
(fazer remissão para o 421.º/2 do Código Civil).

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b) A resposta seria a mesma se António não fosse inquilino de Bernardo e o direito de preferência
do primeiro derivasse de um pacto de preferência? Qual a forma que o mesmo deveria
observar?

Qual é a forma do pacto de preferência? Nos termos do artigo 415.º (remissão direta para o
410.º/2.º do Código Civil), é documento escrito assinado pelo obrigado à preferência.
Houve violação do pacto de preferência, o que A poderia fazer? Duas alternativas:
 Indemnização: A podia recorrer a uma indemnização.
 O paralelo da execução especifica no pacto de preferência é a ação de preferência do
artigo 1410.º do Código Civil, em que o titular do direito de preferência se pode
substituir ao terceiro que celebrou o contrato em desrespeito do pacto de preferência,
quer o terceiro soubesse ou não. Se as partes não tiverem atribuído ao pacto de
preferência eficácia real, o que é a regra, o pacto de preferência sem eficácia real gera um
direito de crédito; então o direito real de C prevaleceria sobre o direito de crédito de A,
sendo que A não poderia recorrer à ação de preferência.

c) Suponha, agora, que António propõe uma ação de preferência, nos termos do art.º
1410.º do Código Civil, demandando Bernardo e Carlos, como réus. A 1.ª e a 2.ª
instâncias julgam Bernardo parte ilegítima e absolvem-no da instância. Quid iuris?

Este é um problema de direito processual, na ação de preferência exige um litisconsórcio.


Dr. Antunes Varela e Dr. Ribeiro Faria entendem que a ação de preferência exige um
litisconsórcio necessário entre o obrigado à preferência e o terceiro que o adquiriu. Invocam
várias razões como um argumento literal (o artigo 410.º do Código Civil fala em citação
dos réus) e o argumento das custas (o responsável por ter dado causa a ação é o obrigado à
preferência).
O STJ tem entendido que se trata de um litisconsórcio voluntário, exceto se o titular do
direito de preferência quiser pedir uma indemnização, caso em que passa a ser necessário.

Caso Prático n.º 18


Aproximando-se a data da celebração do casamento de Fernando, o seu pai, Gonçalo decide
oferecer-lhe uma quantia em dinheiro que o ajude no início da vida de casado. Assim, Gonçalo,
dono de um stand de automóveis, tendo convencionado a venda, por €25.000, de um automóvel de
uma determinada marca e modelo, a Bernardo, acorda com este que o direito ao preço caberá ao
seu filho, Fernando.

a) Três semanas depois da celebração do negócio, Fernando exige a Bernardo a entrega dos
€25.000. Bernardo não efetua o pagamento e recusa o automóvel que Gonçalo lhe pretende
entregar por apresentar um grave defeito no sistema elétrico que impede a sua utilização. Quid
iuris?
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A figura em causa é o contrato a favor de terceiro, que é um contrato em que um dos


contraentes – a que se dá o nome de promitente (neste caso é Bernardo) – atribui por conta e
à ordem do outro – o promisário (Gonçalo) – uma vantagem a um terceiro – que se designa
por beneficiário, neste caso Fernando –, que é estranho à relação contratual.
O que caracteriza este contrato a favor de terceiro é que os contraentes atuam com a
intenção de atribuir, através do contrato, um direito a um terceiro, ou então, pelo menos,
deste contrato resulta uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário.
Este contrato a favor de terceiro caracteriza-se pela existência de dois conjuntos de relações
(são apenas duas relações pois entre o beneficiário e o promitente não há uma relação
contratual):
 De valuta – entre o promissário e o beneficiário; aqui há uma doação.
 De cobertura/provisão – aquela que se estabelece entre o promitente e o promissário
(entre Bernardo e Gonçalo) → está em causa o contrato de compra e venda de automóvel

b) Devendo Gonçalo a Bernardo metade do preço relativo à venda de um terreno por €80.000,
pode Bernardo declarar a compensação, considerar extinta a sua dívida e exigir de Gonçalo os
€15.000 remanescentes?

Que meio de defesa invoca Bernardo? Exceção de não cumprimento. A questão específica
aqui é que Bernardo invoca a exceção perante Fernando (beneficiário) e não perante
Gonçalo – o promitente pode opor ao beneficiário todos os meios de defesa que derivam do
contrato a favor de terceiro (artigo 449º do Código Civil).O promitente pode invocar todos
os meios de defesa que derivam da relação de cobertura, mas não pode opor ao terceiro,
beneficiário, os meios de defesa baseados em qualquer outra relação entre ele e o
promissário (artigo 449º do Código Civil).

c) Se o casamento não se chegar a celebrar, pode Bernardo recusar-se a entregar os €25.000 a


Fernando?

Não pode recusar a entrega do dinheiro, uma vez que Bernardo é um estranho face à relação
de valuta entre Gonçalo e Fernando. Quando muito, se não tiver havido aceitação de
Fernando, Gonçalo poderia revogar a promessa (artigo 448º do Código Civil).

d) Considerando que o carro é entregue a Bernardo nas condições estipuladas, mas que ele não
paga o preço, existindo convenção a permitir a resolução do contrato por falta de pagamento
do preço nos termos do art. 886.º CC, quem pode resolver o contrato?

Quem pode resolver? Gonçalo tem o direito de resolução do contrato pois este é que é
parte da relação de provisão. No entanto, se a promessa é já irrevogável – porque Fernando
a aceitou –, então Gonçalo precisa do consentimento prévio de Fernando para resolver o
contrato. Aliás, tem se entendido que cabe a Fernando decidir se avança ou não com a
interpelação admonitória.
A quem cabe o direito de indemnização por não cumprimento do contrato por parte de
Bernardo? Caberá também a Fernando.
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Caso Prático n.º 19


Augusta, numa manhã de Inverno, quando se dirigia de automóvel para o emprego, não se
apercebendo de um lençol de água que se estendia numa zona desnivelada da estrada, perde a
direção do seu veículo que cai por uma ravina. Augusta é projetada para o exterior, sofrendo
várias e profundas lesões. Em virtude do despiste, o veículo de Augusta sofreu alguns danos.
Após o acidente, e tendo Augusta sido imediatamente conduzida a um serviço de urgência
hospitalar, Bernardo, que se dedica às atividades de reparação de veículos automóveis e de pronto-
socorro, toma a iniciativa de, com o seu pessoal, rebocar o veículo para a sua oficina onde o
teve durante vários meses. Contudo, quando o pessoal de Bernardo retirava o veículo da ravina,
rebentou um elo da corrente do guindaste do pronto-socorro tendo o veículo caído do alto até ao
fundo da ravina. Deste novo acidente resultou a maior parte dos danos sofridos pelo veículo. O
pronto-socorro utilizado era um veículo com largos anos de serviço cujo cabo de reboque era
submetido a esforços diários. Perante a recusa de Augusta em pagar qualquer valor pelos serviços
de Bernardo, este recoloca o veículo no local do acidente. Augusta interpõe, então, uma ação contra
Bernardo a pedir-lhe uma indemnização pelos danos sofridos no carro em consequência do
rebentamento do cabo. Bernardo contesta e em reconvenção pede que Augusta seja condenada a
pagar-lhe os serviços prestados. Quid iuris?

Este caso é adaptado do acórdão de 22 de abril de 1986, publicado na revista de legislação e Jurisprudência,
ano 121, páginas 59 e seguintes, anotado pelo Dr. Batista Machado.

Estamos perante um caso de gestão de negócios – intervenção não autorizada de um sujeito


na direção de negócio alheio feita no interesse e por conta do respetivo dono; as partes
designam-se gestor (o que atua) e dono de negócio (no interesse de quem é feita a intervenção)
- os artigos relevantes do Código Civil quanto a esta matéria situam-se entre o 464.º e o 472.º.
A gestão de negócios movimenta-se numa fronteira frágil entre a utilidade de promoção do
altruísmo e a necessidade de evitar intromissões indesejadas.
Quais são os requisitos da gestão de negócios:
 Direção de negócio alheio – negócio em sentido amplo, incluindo os atos jurídicos não
negociais e simples atos materiais.
 Por conta e no interesse do dono do negócio – o gestor quando atua, atua com intenção de
transferir todas as vantagens e encargos que resultarem da sua atuação para a esfera do dono
do negócio; não significa que o gestor não possa ter uma finalidade interesseira. Quando o
gestor atua no interesse dele próprio e no do dono fala-se em gestão mista, o que importa é
que o interesse predominante seja do dono. O gestor também pode atuar em nome próprio
(gestão não representativa) ou em nome do dono do negócio (gestão representativa). Note-se
que, à gestão representativa, se aplica o regime da representação sem poderes.
 Falta de autorização (caracteriza a gestão de negócios) - o gestor não tem nem o dever
nem autorização para atuar.
Que questão se coloca neste caso? Saber se a gestão foi ou não conforme.
Quando é que a gestão é conforme? Quando é de acordo com a vontade presumível do dono
do negócio. Se há uma aprovação da gestão ela é automaticamente considerada conforme-
juízo de concordância pelo dono de negócio da globalidade da atuação do gestor; com a

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aprovação da gestão entende-se que há uma renúncia ao direito à indemnização, e o


reconhecimento dos direitos do gestor.
Até que ponto é que Augusta tem direito a ser indemnizada pelos danos causados pela
gestora? Artigo 466.º do Código Civil – não havendo aprovação da gestão, o gestor fica
obrigado a indemnizar pelos danos que causar por culpa sua.
Artigo 466.º n.º 2 do Código Civil – há culpa quando o gestor atua em desconformidade com o
interesse ou a vontade real ou presumível do dono do negócio.
Estamos perante uma divisão doutrinal na questão da culpa na gestão de negócios:
 Dr. Galvão Teles: o critério da culpa aqui é o critério abstrato, geral, do bom pai de família
(não deve diferir do critério geral) → defende um critério objetivo de avaliação de culpa
 Dr. Antunes Varela e Dr. Ribeiro de Faria: o critério da culpa deve ser mais exigente, no
sentido que não deve ser abstrato mas sim concreto; pelo carácter espontâneo e altruísta
da ação de gestão de negócios, e pelos riscos que desnecessariamente se expõem, seria
injusto exigir ao gestor de negócios maior diligência do que a que ele coloca nos seus
próprios negócios. Isto significa que se deve analisar se aquele sujeito, perante as suas
características, atuou de uma forma menos diligente do que atua habitualmente → não se
pode exigir que o gestor atue na gestão de negócios de forma mais diligente do que atua
normalmente.
Neste caso concreto, quem tem de provar a culpa? Se não há presunção de culpa, quem tem
de provar é Augusta.
O tribunal entendeu que Augusta não conseguiu provar a culpa de Bernardo, e cabendo a ela
provar essa culpa, Augusta suportaria os prejuízos.
Batista Machado defende que, nos casos de gestão mista, em que o gestor é renumerado pela
atuação, deve recair sobre ele a presunção de culpa do artigo 799.º do Código Civil. Para este,
o início da atividade de gestão implica o surgimento de uma relação obrigacional legal entre o
gestor e o dono do negócio à qual deve ser aplicada a presunção de culpa do artigo 799.º do
Código Civil.

Caso Prático n.º 20


A, residente na Holanda, é proprietário de uma casa de férias numa região pacata do Norte de
Portugal, onde costuma passar as férias de verão. Sem que nada o fizesse prever, uma violenta onda
de assaltos assola a região, na época de Natal. Não tendo forma de contactar A, B, seu vizinho,
contrata com a empresa de segurança X, em nome de A, um sistema de deteção de intrusos
mediante alarme à distância, contra o pagamento de um montante inicial e de prestações mensais. B
procedeu ao pagamento das duas primeiras mensalidades; contudo, e apesar de a onda de assaltos
se ter, entretanto, intensificado, deixou de o fazer, o que fez com que a empresa X interrompesse a
prestação dos serviços contratados. Desprotegida, a casa de A é assaltada, sendo furtados diversos
objetos, e danificado o seu interior.

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a) Pode a empresa X exigir a A o pagamento das mensalidades em falta?

Estamos perante um caso prático sobre a gestão de negócios. No âmbito da gestão de


negócios, tendo sido celebrado um negócio em nome de outrem, pode esse sujeito ser
chamado a responder?
Estamos perante uma gestão representativa porque o gestor atua em nome do dono do
negócio; nos termos do artigo 471.º do Código Civil aplica-se à gestão representativa as
regras da representação sem poderes.
Aplica-se aqui então o regime do artigo 268.º do Código Civil, nos termos do qual o
negócio será ineficaz perante o representado, exceto se este o ratificar.
O aspeto mais importante é que a aprovação da gestão não equivale à ratificação dos
negócios celebrados em nome do dono do negócio → aprovação da gestão e ratificação do
negócio são duas realidades distintas.

b) Pode B exigir a A o reembolso dos valores pagos durante o período de execução do contrato?

Não houve aprovação da gestão, se houvesse a questão era automática.


Não havendo aprovação, o reembolso das despesas depende de aferir se a gestão foi
realizada em conformidade com a vontade real ou presumível do dono do negócio – artigo
468.º do Código Civil.

c) E A, terá alguma forma de responsabilizar B pelos prejuízos sofridos na sua casa?

O gestor é livre de iniciar ou não a atividade de gestão, mas depois de a iniciar já não é
livre de a interromper – 2 fundamentos (remissão para o artigo 466.º do Código Civil):
 a interrupção implica riscos superiores a uma não atuação;
 o início da gestão pode levar outras pessoas a afastarem-se e a não atuar.
Levanta-se a questão da prova da causalidade: temos de provar a causalidade entre a
interrupção da gestão e os danos resultantes do assalto → muito difícil de provar.

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Caso Prático n.º 21


Baseado no acórdão do STJ de 29-jan-2015 (processo n.º 162/09.1TVPRT.C1. S1)
Enriquecimento de uma pessoa – C – à custa de outra – A –, sem causa justificativa.

A companhia de seguros A celebrou com a transportadora B um contrato de seguro contra o risco


de perda e deterioração do veículo automóvel com a matrícula 89-XU-12, bem como dos danos por
este provocados. Constava expressamente da apólice de seguro que o referido automóvel havia sido
disponibilizado a B em regime de locação financeira (leasing), sendo o seu proprietário o locador
financeiro C, terceiro beneficiário do seguro. Constava ainda que o seguro não cobria os danos no
caso de o condutor não se encontrar legalmente habilitado, ou se o mesmo estivesse, no momento
do acidente, sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas. Durante a vigência do
contrato, no dia 16 de maio de 2010, um funcionário de B (D) teve um acidente de viação, do
qual resultou a sua morte, bem como a destruição integral do veículo segurado. Feita a respetiva
participação, A pagou a C a quantia de €30.000,00 a título de indemnização.
Sucede que veio a comprovar-se que, na data do acidente, D circulava com uma taxa de
alcoolemia de 1,82 gr/l, o que a seguradora desconhecia no momento em que efetuou o pagamento
a C. Perante esta revelação, a companhia de seguros A pretende obter a repetição da
importância prestada a C. Deverá a sua pretensão ser atendida?

A consequência típica do enriquecimento sem causa é a obrigação de restituir: o


enriquecido fica adstrito a restituir ao empobrecido aquilo com que injustamente se enriqueceu.
A finalidade não é sancionar o enriquecido nem indemnizar o empobrecido pelos danos
sofridos; mas sim, restituir deslocações patrimoniais injustificadas.
O enriquecimento sem causa é um institui subsidiário e só se aplica na impossibilidade de
aplicação de outros institutos.
Neste caso, estamos no âmbito da modalidade da repetição do indevido e não se pode aplicar à
situação o 476.º porque existia efetivamente uma obrigação.
Que artigo se aplica aqui? O artigo 478.º do Código Civil, cumprimento de obrigação alheia
na convicção de estar obrigado a cumpri-la; ou seja, no caso, a obrigação efetivamente existe,
mas recai sobre B e não sobre A.
Contudo, nos termos deste artigo, A não tem direito de repetição (direito a pedir de volta
aquilo que prestou não tendo obrigação de o fazer) contra C, porque nada indica que C
conhecesse o erro quando recebeu a prestação.
Portanto, o que pode A fazer? Pode exigir de B aquilo com que este injustamente
enriqueceu, porque, como dito no enunciado, o seguro não cobria os danos de acidente no
caso de o condutor se encontrar sob influência de álcool no momento do acidente, o que veio
efetivamente a suceder neste caso em concreto.

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