Você está na página 1de 49

lOMoARcPSD|12006933

CONTRATOS CIVIS

Aulas teórico-práticas do Dr. Pinto Monteiro

1ª frequência

GABRIELA SOUSA
2021/2022

Página 1 de 50
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

CAPÍTULO I
COMPRA E VENDA

1. Noção e aspetos gerais

O artigo 874.º define o contrato de compra e venda como “o contrato pelo qual se transmite
a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”. Por outro lado, os artigos 463.º
a 476.º do CCom. também disciplinam o contrato de compra e venda.
Devemos atentar ao facto de que no âmbito do contrato de compra e venda este consiste
essencialmente na transmissão de um direito contra o pagamento de uma quantia pecuniária,
constituindo economicamente a troca de uma mercadoria por dinheiro, mas não está em causa
necessariamente a transmissão de um direito de propriedade. Tal pode acontecer, mas a compra e
venda não se restringe a esta situação. Na realidade, o legislador acrescenta “outros direitos”
(direitos de autor, direito de usufruto, direito potestativo, direitos de crédito ou situações jurídicas
complexas como a posição contratual ou as universalidades de direito, etc.).
Já pelo contrário, a assunção de dívidas efetuada onerosamente não pode ser qualificada
como compra e venda, uma vez que a lei considera esta como um contrato translativo de direitos,
mas não de obrigações. Também não constitui compra e venda a transmissão de outras situações
que não possam ser consideradas como direitos subjetivos do alienante, estando-se nesse caso
perante tipos contratuais diferentes. Em relação à simples posse, uma vez que esta a nosso ver não
constitui um direito subjetivo, não poderá ser objeto de compra e venda, uma vez que a sua
transmissão não corresponde à transmissão de um direito.

Sendo um contrato translativo de direitos, a compra e venda pressupõe ainda a existência de


uma contrapartida pecuniária para essa transmissão. Se não existir qualquer contrapartida, o
contrato é qualificável como doação (artigo 940.º CC) e se a contrapartida não consistir numa
quantia pecuniária, o contrato já não constitui uma compra e venda, mas antes um contrato de
escambo ou troca (artigo 480.º CCom.).

Página 3 de 50
1
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

2. Características qualificativas do contrato de compra e venda

2.1. A compra e venda como contrato nominado e típico

A compra e venda é um contrato nominado, uma vez que a lei o reconhece como categoria
jurídica, e típico porque estabelece para ele um regime, quer no âmbito do Direito Civil (artigos
874.º e ss.), quer no âmbito do Direito Comercial (artigos 463.º e ss.).

2.2. A compra e venda como contrato primordialmente não formal

Para além disso, a compra e venda é, regra geral, um contrato não formal (artigo 219.º), ainda
que a lei por vezes o sujeite a forma especial, como sucede na compra e venda de bens imóveis
(artigo 875.º) e noutras situações específicas, que adiante se examinarão.

2.3. A compra e venda como contrato consensual

A compra e venda caracteriza-se ainda por ser um contrato consensual (por oposição a real),
uma vez que a lei prevê expressamente a existência de uma obrigação de entrega por parte do
vendedor (artigo 879.º, al. b)), o que significa que não associa a constituição do contrato à entrega
da coisa, admitindo a sua vigência antes de a coisa ser entregue. Efetivamente, é o acordo das partes
que determina a formação do contrato, não dependendo esta nem da entrega da coisa, nem do
pagamento do preço respetivo.

Tem se questionado se ao abrigo da autonomia privada, as partes podem estipular a compra


e venda como contrato real, designadamente dependente da traditio rei ou da traditio pretii.
Efetivamente, da mesma forma que as partes podem estipular uma forma convencional não exigida
por lei para a celebração do contrato (artigo 223.º), parece admissível que possam igualmente fazer
depender a sua constituição da existência da tradição da coisa ou do preço.

2.4. A compra e venda como contrato obrigacional e real quoad effectum

A compra e venda é um contrato obrigacional, já que determina a constituição de duas


obrigações: a obrigação de entregar a coisa (artigo 879.º, al. b)) e a obrigação de pagar o preço
(artigo 879.º, al. c)).

Página 4 de 50
2
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

A compra e venda é, por outro lado, um contrato real quoad effectum (=quanto aos efeitos),
uma vez que produz a transmissão de direitos reais (artigo 879.º, al. a)).

2.5. A compra e venda como contrato oneroso

A compra e venda é um contrato oneroso, uma vez que nele existe uma contrapartida
pecuniária em relação à transmissão dos bens, importando assim sacrifícios económicos para ambas
as partes. A compra e venda não exige, no entanto, que ocorra necessariamente uma equivalência
de valores entre o direito transmitido e o preço respetivo, não deixando por isso de se aplicar as
regras da compra e venda se o comprador consegue descontos significativos em virtude das boas
relações que possui com o vendedor.
No entanto, se a intenção das partes é atribuir efetivamente um enriquecimento ao alienante
(aquisições de bens de baixo valor por elevado preço em leilões com fins sociais) ou ao adquirente
(alienação de bens por preço simbólico ou muito inferior ao valor de mercado, com fins de
liberdade), a situação já não corresponderá a uma verdadeira compra e venda, mas antes a um
contrato misto (indireto) de venda e doação.

2.6. A compra e venda como contrato sinalagmático

Sendo oneroso, a compra e venda é também um contrato sinalagmático (contrato bilateral


perfeito em que nascem obrigações para ambas as partes e em que elas são o correspetivo uma da
outra, isto é, cada uma delas existe em virtude uma da outra – o vendedor só se vincula a entregar
a coisa vendida, porque o comprador se vinculou a pagar o preço) uma vez que as obrigações do
vendedor e do comprador constituem-se tendo cada uma a sua causa na outra (sinalagma
genético), o que determina que permaneçam ligadas durante a fase da execução do contrato, não
podendo uma ser realizada se a outra o não for (sinalagma funcional – as consequências que
afetam uma das obrigações, repercutem-se nas outras).
Aplicam-se, por isso, à compra e venda as regras relativas ao sinalagma contratual, como a
exceção de não cumprimento (artigo 428.º e ss.), a caducidade do contrato por impossibilidade de
uma das prestações (artigo 795.º/1) e a resolução por incumprimento (artigo 801.º/2).

Página 5 de 50
3
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

2.7. A compra e venda como contrato normalmente comutativo, sendo por


vezes aleatório

A compra e venda é normalmente um contrato comutativo, uma vez que ambas as atribuições
patrimoniais se apresentam como certas, não se verificando incerteza nem quanto à sua existência,
nem quanto ao seu conteúdo. No entanto, em certos casos, a lei admite que a compra e venda possa
funcionar como contrato aleatório, como nas hipóteses da venda de bens futuros, frutos pendentes
e partes componentes e integrantes, a que as partes atribuem esse caráter (artigo 880.º/2), na venda
de bens de existência ou titularidade incerta (artigo 881.º), na venda de herança ou de quinhão
hereditário (artigos 2124.º e ss.) ou na venda de expetativas.

2.8. A compra e venda como contrato de execução instantânea

A compra e venda é um contrato de execução instantânea, uma vez que, quer em relação à
obrigação de entrega, quer em relação à obrigação de pagamento do preço, o seu conteúdo e
extensão não é delimitado em função do tempo. Essa situação ocorre mesmo na venda a prestações
dado que, apesar do seu fracionamento em diversos períodos de tempo, este apenas determina a
forma de realização da prestação, não influenciando o seu conteúdo e extensão.
Mas já são contratos de execução continuada os contratos de fornecimento, como o
fornecimento de gás ou eletricidade. A sua natureza específica justifica, porém, que não os
configuremos como verdadeiras compras e vendas, parecendo antes tratar-se de contratos atípicos,
ainda que afins da compra e venda.

3. Forma do contrato de compra e venda

Por força do artigo 219.º CC, a compra e venda é um contrato essencialmente consensual,
uma vez que, por regra geral, não é estabelecida nenhuma forma especial para o contrato de compra
e venda. Esta regra geral é, no entanto, objeto de múltiplas exceções, das quais a mais importante
respeita à compra e venda de imóveis.
Efetivamente, se o contrato de compra e venda tem por objeto bens imóveis, o artigo 875.º
CC determina que, sem prejuízo do disposto em lei especial ele só é válido quando for celebrado
por escritura pública ou documento particular autenticado. Esta regra é extensiva a todos os atos
que importem reconhecimento, constituição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de
propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis e aos atos de
alienação, repúdio e renúncia de herança ou legado, de que façam parte coisas imóveis.

Página 6 de 50
4
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

No entanto, esta regra sofre duas exceções, constantes de lei especial, em que a compra e
venda de imóveis pode ser celebrar por simples documento particular.
— A primeira exceção é respeitante à situação da compra e venda com mútuo, com
ou sem hipoteca, referente a prédio urbano destinado a habitação, ou fração autónoma para
o mesmo fim, desde que o mutuante seja uma instituição de crédito autorizada a conceder
crédito à habitação.
— A segunda respeita ao procedimento especial de transmissão, oneração e registo
de imóveis, constantes do Decreto-lei n.° 263-A/2007, que abrange a compra e venda.
Conforme dispõe o artigo 8.º/3 do referido decreto, os negócios jurídicos celebrados nos
termos deste estão dispensados de formalização por escritura pública quando esta seja
obrigatória nos termos gerais.

Já em relação ao contrato de compra e venda de direito real de habitação periódica, o mesmo


deve ser celebrado por declaração das partes no certificado predial, com reconhecimento presencial
da assinatura do alienante.
Em relação à transmissão de certos direitos, exige-se por vezes mesmo a escritura pública,
como sucede com a transmissão total e definitiva do direito de autor.
Também quando tem por objeto certos bens móveis, a compra e venda é, por vezes, sujeita
a forma escrita. Assim acontece, em primeiro lugar, com a alienação de herança ou quinhão
hereditário, quando não abranja bens sujeitos a alienação por escritura pública ou documento
particular autenticado, com o estabelecimento comercial e com quotas de sociedades. A redução a
escrito é ainda exigida no caso de alienação de direitos sobre bens industriais, como sucede com os
direitos emergentes de patentes, modelos de utilidade, registos de modelos e desenhos industriais
e registos de marcas, conforme se prevê no artigo 30.º/4 CPI.
Para além disso, é exigida a redução a escrito do contrato de compra e venda em diversas
situações, por razões de proteção do consumidor. Assim acontece na venda fora do
estabelecimento comercial ou na venda com crédito ao consumo que tem que ser celebrado em
documento escrito ou noutro suporte duradouro.

Fora destes casos, a compra e venda não necessita de revestir forma especial. Por esse motivo,
a compra e venda de bens móveis sujeitos a registo, como é o caso dos automóveis, não está sujeita
a qualquer forma especial. Nem era necessário o legislador o dizer, uma vez que já se sabe que os
bens móveis sujeitos a registo não perdem a natureza de móveis, mas o artigo 205.º/2 CC vem
referir expressamente de forma redundante que às coisas móveis sujeitas a registo é aplicável o
regime das coisas móveis em tudo o que não seja especialmente regulado.
Sempre que a compra e venda seja sujeita a forma, a omissão desta acarretará a nulidade do
negócio jurídico (artigo 220.º).

Página 7 de 50
5
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Em certos casos, a compra e venda, para além da forma especial pode obrigar à realização de
certas formalidades. Assim, nos atos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios
urbanos e frações autónomas, é necessário que se faça prova da correspondente autorização de
utilização perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular.
Nos atos de transmissão de imóveis é obrigatória a referência ao respetivo alvará, com
indicação do número e data da emissão, ou da sua isenção, sendo que, no caso de prédios
submetidos ao regime de propriedade horizontal, deve ser especificado se a autorização de
utilização se refere ao prédio ou à fração autónoma a transmitir. A apresentação desse documento
é, no entanto, dispensada, se a existência dessa autorização tiver sido anotada no registo predial e
o prédio não tiver sofrido alterações. A omissão desta formalidade não acarreta a nulidade do
contrato, mas constitui contraordenação, podendo determinar a aplicação de coimas ou outras
sanções acessórias (artigos 5.º e 6.º do Decreto-lei n.° 281/99).

Uma outra formalidade é a exibição de certificado energético na compra e venda de imóveis,


nos termos do artigo 5.º/2, al. b) do Decreto-lei n.° 118/2013, que deve ser verificado aquando da
celebração do contrato de compra e venda, e constar do contrato o número do certificado e do
pré-certificado.
Outra formalidade é a exigida pelo princípio da legitimação, instituído no artigo 9.º/1 CRP
que estabelece que os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos
sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor
da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo. Desta solução são
apenas excetuados a partilha, a expropriação, a venda executiva, a penhora, o arresto, a declaração
de insolvência e outras providências que afetem a livre disposição dos imóveis; os atos de
transmissão ou oneração por quem tenha adquirido no mesmo dia os bens transmitidos ou
onerados; os casos de urgência devidamente justificada por perigo de vida dos outorgantes (artigo
9.º/2 CRP).

4. Efeitos essenciais

O artigo 879.º estabelece que “a compra e venda tem como efeitos essenciais: a transmissão
da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação
de pagar o preço” – um efeito real e dois efeitos obrigacionais.
A compra é venda é um contrato pelo qual se transmite uma coisa ou um direito contra o
pagamento de uma quantia em dinheiro (o preço). Assim, o resultado final do negócio consistirá
na aquisição por parte do comprador do direito de propriedade sobre o bem vendido, à qual
acrescerá como efeito subordinado a aquisição da posse, bem como a aquisição por parte do

Página 8 de 50
6
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

vendedor do direito de propriedade sobre determinadas espécies monetárias. A compra e venda só


se encontrará definitivamente executada quando se verificarem estas duas alterações na situação
jurídica patrimonial dos contraentes.

No entanto, o artigo 874.º vem estabelecer dois processos técnicos distintos para a obtenção
desse mesmo resultado. Em relação à aquisição das quantias em dinheiro, bem como em relação à
aquisição da posse da coisa vendida, a lei socorre-se do instrumento da constituição de obrigações,
quer por parte do comprador, quer por parte do vendedor, apenas considerando definitiva a
aquisição após o cumprimento das mesmas. Mas já em relação à aquisição da propriedade sobre o
bem vendido, esse processo deixa, porém, de ser utilizado, dispensando a lei, pelo menos na venda
de coisa específica, o cumprimento da obrigação, considerando a aquisição da propriedade como
uma simples consequência automática da celebração do contrato. Não há assim, no âmbito da
compra e venda o surgimento de uma obrigação de dare em sentido técnico, verificando-se o efeito
translativo automaticamente com a perfeição do acordo contratual.

Temos, por esse motivo, que distinguir, no contrato de compra e venda, entre os seguintes
efeitos:
— Um efeito real: a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do
direito;
— Dois efeitos obrigacionais: que se reconduzem à constituição das obrigações
de entregar a coisa e de pagar o preço.

4.1. O efeito real

Um dos efeitos essenciais da compra e venda é a transmissão da propriedade da coisa ou da


titularidade do direito. Não há, porém, naturalmente obstáculo a que a compra e venda abranja
hipóteses de aquisição derivada constitutiva como a constituição de direitos reais menores.
Para essa constituição ou transmissão do direito real, basta normalmente o acordo das partes,
pelo que a celebração do contrato de compra e venda acarreta logo a transferência da propriedade
(artigos 879.º, al. a) e 408.º/1). A transferência ou constituição do direito real é consequentemente
imediata e instantânea – logo no momento da celebração do contrato, o adquirente torna-se titular
do direito objeto desse mesmo contrato. Esta situação é denominada como princípio da
consensualidade (a propriedade é transmitida apenas com base no simples consenso das partes,
verificado no momento da celebração do contrato).

Página 9 de 50
7
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

SISTEMA DO TÍTULO
(vigora em Portugal)
¯
No sistema português vigora o sistema do título e o direito transmite-se por mero efeito do
contrato (artigo 408.º), mas neste sistema com base no qual a transmissão tem lugar para que o
efeito (translativo) se produza, havendo algum vício respeitante a este, isto afetará este efeito
translativo do direito – p .ex., se houver a venda de coisa alheia, o contrato será nulo por força do
artigo 892.º e a transmissão nunca operará, pois esta tem como causa o título; logo, a transmissão
apenas verificar-se-á se o título (contrato) for apto a produzir efeitos.
Neste sistema vigora o princípio da consensualidade, segundo o qual a constituição ou
transferência dos direitos reais depende apenas da existência de um título de aquisição, ou seja, de
um ato pelo qual se revela a vontade de adquirir e transmitir em virtude de uma causa reconhecida
pelo direito. Esse título é só por si suficiente para produzir o efeito real, pelo que a transmissão da
propriedade se verifica logo com a celebração do contrato de compra e venda, não sendo qualquer
ato posterior de entrega ou outra formalidade, como, por exemplo, o registo.
O princípio da consensualidade está ligado ao princípio da causalidade, nos termos do qual
a existência de uma justa causa de aquisição é sempre necessária para que o direito real se constitua
ou transmita. Logo, se o contrato não for celebrado validamente, havendo um vício respeitante ao
título, a transmissão será afetada. Isto acontece porque o título é bastante para operar a transmissão
e, portanto, a transmissão depende dele – o contrato (=título) por si só é apto a produzir efeito
real, mas isto faz com que a transmissão se funde no contrato e apenas exista porque o contrato
foi celebrado validamente.

O Dr. Menezes Leitão diz-nos que o sistema do título não é o único vigente no Direito
Comparado, tendo que se efetuar a contraposição com outros sistemas existentes, tais como o
sistema do título e do modo e o sistema do modo.

SISTEMA DO TÍTULO E DO MODO


(vigora na Áustria e Espanha)
¯
No sistema do título e do modo temos um primeiro contrato de compra e venda, mas esse
contrato só é condição necessária da celebração de um segundo negócio jurídico (abstrato) de
transmissão, nomeadamente o registo ou a traditio, mediante o caso. Ora, só com a celebração destes
dois negócios (o contrato e a prática deste ato material) se produz o efeito translativo – o título, só

Página 10 de 50
8
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

por si, é insuficiente para produzir o efeito real, exigindo-se necessariamente um modo (havendo
apenas título, o negócio terá valor meramente obrigacional, sem produzir efeitos reais).
Trata-se de um sistema de transmissão causal dos direitos reais, dado que embora o negócio
causal e a transmissão sejam dois negócios distintos, a validade da transmissão depende do negócio
causal.

Em suma, no sistema do título e do modo a transmissão continua a ter como causa o contrato
de compra e venda, mas ele agora já não é causa única, sendo necessário que para além do contrato
de compra e venda, haja o modo (o registo ou tradição). No entanto, continua a vigorar o princípio
da causalidade, pois apesar de ser necessário o modo, o título ainda é uma de duas condições
necessárias – sem a celebração válida do contrato de compra e venda, não opera a transmissão do
direito adquirido pelo comprador.

SISTEMA DO MODO
(vigora na Alemanha)
¯
No sistema do modo, a produção do efeito real depende apenas do modus adquirendi, não
sendo necessário um título de aquisição – o contrato de compra e venda tem valor meramente
obrigacional, não produzindo qualquer efeito real.
O título (=contrato de compra e venda), se for inválido, tal não afeta a transmissão do direito
adquirido pelo comprador, porque este filia-se não no título, mas antes naqueloutro segundo
negócio jurídico, complementado pelo ato material, que é separado do primeiro negócio jurídico
(o contrato de compra e venda) – há aqui um princípio de separação (¹ princípio da
consensualidade) e, para além deste, há uma abstração, porque a transmissão já não depende da
validade do contrato de compra e venda, mas antes da realização daquele outro negócio jurídico e
a prática do ato material.

Neste sistema, para que o comprador passe a ser proprietário do bem vendido é necessário,
se o referido bem for uma coisa móvel, um segundo acordo de transmissão – acordo abstrato
translativo –, seguido da traditio ou entrega da coisa. Se o bem vendido for uma coisa imóvel, exige-
se também um novo acordo de transmissão e, ainda, a inscrição nos registos da propriedade. Daí
que se refira ser neste sistema seguido o princípio da separação, segundo o qual a celebração do
contrato de alienação não coincide com a disposição.

O sistema do modo regula-se pelo princípio oposto ao princípio da causalidade,


nomeadamente o princípio da abstração, segundo o qual os vícios no negócio causal não podem

Página 11 de 50
9
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

afetar a transferência da propriedade. Efetivamente, no sistema do modo, uma vez transferida a


propriedade, a sua recuperação só pode ser obtida através de uma ação de enriquecimento sem
causa.

Em suma, no âmbito do contrato de compra e venda:

• Em Portugal, o título é suficiente para a transmissão (vigoram os princípios da


consensualidade e da causalidade) – sistema do título;
• Em Espanha, o título é necessário, mas não é suficiente, exigindo-se o modo.
Contudo, a transmissão não deixa de se filiar no título e o princípio da causalidade continua
a vigorar – sistema do título e do modo;
• Na Alemanha, o título é visto como um primeiro contrato, diverso do negócio
pelo qual a transmissão opera, uma vez praticado também um determinado ato material (a
transmissão filia-se exclusivamente no modo e o título é irrelevante) – sistema do modo.

4.2. Efeitos obrigacionais

Temos ainda alguns elementos de índole obrigacional:

• Dever de entregar a coisa vendida

Em relação ao vendedor, a obrigação que surge através do contrato de compra e venda


reconduz-se essencialmente ao dever de entregar a coisa. O cumprimento da obrigação de entrega
corresponde a um ato material, a tradição física ou simbólica do bem, que permite ao comprador a
sua apreensão física, se se trata de móveis, ou a aquisição do gozo sobre ele, se se trata de imóveis.
No caso de a coisa vendida já estar na posse do comprador ou de a venda respeitar a direitos
sobre coisas incorpóreas, nem sequer a entrega se torna necessária, o que demonstra que, sendo
esta obrigação um efeito legalmente obrigatório do contrato, não constitui um elemento essencial
do contrato de compra e venda.

Se a venda for de coisa específica (artigo 882.º/1), o vendedor apenas pode cumprir
entregando ao comprador a coisa que foi objeto da venda, não a podendo substituir, mesmo que
essa substituição não acarretasse prejuízo para o comprador. Se se tratar de uma coisa genérica
(artigos 539.º e ss.), o vendedor pode cumprir o contrato, entregando ao comprador qualquer coisa
dentro do género.

Página 12 de 50
10
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Quase nada consta do contrato (apenas consta aquilo que deverá ser entregue, mas nada nos
é dito quanto ao “quando” e “onde”) – quanto ao “quando”, aplica-se o artigo 805.º ou 777.º,
consoante a obrigação tenha ou não prazo, respetivamente; quanto ao “onde”, artigos 772.º
(restantes situações), 773.º (entrega de coisas móveis) ou 774.º (obrigações pecuniárias).

• Dever de pagar o preço

A obrigação de pagar o preço corresponde a uma obrigação pecuniária, sujeita naturalmente


ao regime dos artigos 550.º e ss. – nasce na esfera do vendedor um direito de crédito sobre o
comprador, ficando o vendedor apenas proprietário das espécies monetárias correspondentes
aquando do cumprimento da obrigação, através da realização da datio pecuniae.
De acordo com as regras gerais sobre o objeto negocial (artigo 280.º/1), não é necessário no
contrato de compra e venda que o preço se encontre determinado no momento da celebração do
contrato, bastando que seja determinável.
Em relação ao tempo do cumprimento, e a menos que as partes estipulem em sentido
contrário, o artigo 885.º/1 determina que o preço deve ser pago no momento da entrega da coisa
vendida. Se a entrega for feita por fases, a prestação do preço apenas deve ser efetuada aquando da
realização da última entrega, salvo se as partes convencionaram o preço em função da quantidade
das coisas vendidas, caso em que o vendedor terá legitimidade para exigir o pagamento à medida
em que for realizando as sucessivas entregas.

Já quanto ao lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço, se as partes nada


tiverem estipulado, determina igualmente o artigo 885.º/1 que o preço deve ser pago no lugar da
entrega da coisa vendida, o que se impõe em virtude de a lei fazer coincidir o cumprimento da
obrigação de entrega com o pagamento do preço (vendo a pronto ou a contado). Se, no entanto,
por estipulação das partes ou por força dos usos, o pagamento do preço não coincidir com o
cumprimento da obrigação de entrega (venda a crédito ou com espera de preço), o mesmo deverá
ser pago no domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento (artigo 885.º/2), o que está de
acordo com a regra geral relativa às obrigações pecuniárias, prevista no artigo 774.º.

Em suma, quanto ao pagamento do preço (obrigação pecuniária), o artigo 885.º prevê o lugar
e o momento do pagamento do preço – “no momento e lugar da entre da coisa vendida”. No
entanto, há situações em que esta obrigação não resulta, em concreto, da celebração de um contrato
de compra e venda, como por exemplo os casos em que a pessoa já tem a posse da coisa vendida
– p. ex., eu vendo a alguém o meu Código Civil, mas esta pessoa já esteve a usá-lo porque lho

Página 13 de 50
11
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

emprestei. Neste caso, o pagamento é feito no momento da celebração do contrato de compra e


venda.
Há ainda casos em que a entrega, para todo um conjunto de direitos que podem ser objeto
do contrato de compra e venda, não faz sentido (como acontece no âmbito dos direitos de autor).

⚠ Quid iuris se uma das partes não cumpre a sua obrigação?

¯
Se uma das partes não cumpre a sua obrigação (e esta obrigação é a razão de ser da obrigação
que a contraparte assumiu), uma vez que a compra é venda é um contrato sinalagmático, em
princípio, não terá a outra parte de cumprir também – poderá haver lugar à resolução do contrato
por incumprimento, de acordo com o disposto no artigo 801.º/2.

O artigo 886.º limita a resolução do contrato a certas situações, nomeadamente a três:


• Houve convenção das partes em contrário;
• Não foi previsto, mas ainda não houve entrega da coisa (mesmo que já tenha
ocorrido a transmissão da propriedade);
• Não foi previsto este poder de resolução e inclusive já houve entrega, mas o
vendedor reservou para si a propriedade até a verificação de um certo facto (seja o pagamento
total ou parcial do preço outro), e este facto ainda não se verificou (ainda não houve o efeito
de transmissão do direito) – artigo 409.º.

No fundo, o que o legislador quis foi promover a estabilidade da transmissão do direito,


dizendo que não deveria ser tão fácil resolver o contrato. O que está em causa é o proprietário
voltar a sê-lo face ao incumprimento, no caso de um direito de propriedade.
Nestes casos, o vendedor pode recorrer à ação de cumprimento para cobrança do preço
(artigos 817.º e ss.) e respetivos juros moratórios (artigo 806.º/1) e, tratando-se de coisa
determinada, pode incluir a execução específica da obrigação (artigo 827.º). Por outro lado, se o
puder resolver nos termos do artigo 886.º, pode exigir uma indemnização pelo incumprimento
definitivo (¹mora) – neste caso, o vendedor nunca poderá ficar numa situação melhor do que aquela
em que estaria caso o contrato tivesse sido cumprido.

5. Proibições de venda

Estas proibições não se tratam de uma situação de vício do objeto negocial, nem de
incapacidade dos sujeitos e muito menos de ilegitimidade das partes, mas antes de situações em que
Página 14 de 50
12
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

é vedada, por razões atinentes às relações das partes entre si ou com o objeto negocial, a celebração
do contrato entre elas, admitindo-se, porém, a sua realização entre outros sujeitos.
A categoria não é objeto de um regime unitário até porque a lei pode tanto sancioná-la com
a nulidade, anulabilidade ou invalidade mista. Na falta de outra designação optamos por qualifica-
las apenas como proibições de venda.
Em suma, não é um problema inerente às partes, mas sim respeitante a uma específica relação
entre elas, exterior ao contrato de compra e venda.

5.1. Venda de coisa ou direito litigioso

O artigo 876.º/1 refere que “não podem ser compradores de coisa ou direito litigioso, quer
diretamente, quer por interposta pessoa, aqueles a quem a lei não permite que seja feita a cessão de
créditos ou direitos litigiosos, conforme se dispõe no capítulo respetivo”. Por outras palavras, uma
pessoa não pode vender a um juiz, magistrado do Ministério Público, funcionário da justiça ou
mandatário judicial, seja diretamente ou por interposta pessoa (como o cônjuge, por exemplo), se
o processo decorrer na área em que exercem habitualmente a sua atividade ou profissão, sob pena
de nulidade (n.° 1 do artigo 579.º)
O n.° 2 do artigo 579.º diz-nos quem será a interposta pessoa, considerando como tal tanto
o cônjuge do inibido, como a pessoa de que este seja herdeiro presumido e qualquer terceiro que
tenha acordado com o inibido a posterior transmissão da coisa ou do direito cedido.
A razão especial para esta proibição é o receio de que as entidades supra referidas possam
atuar com fins especulativos, levando os titulares a vender-lhes os bens por baixo preço, a pretexto
da sua influência no processo. Daí que a proibição cesse em determinadas situações em que não
existe esse receio de especulação, referidas no artigo 581.º.
Se, apesar da proibição, vier a ser realizada a venda, é esta considerada nula, sujeitando-se,
no entanto, o comprador, nos termos gerais à obrigação de reparar os danos causados (artigos
876.º/2 e 580.º/1). No entanto, esta nulidade não pode ser invocada pelo comprador (artigos
876.º/3 e 580.º/2), pois se tal fosse permitido, o comprador celebraria um negócio que poderia
sempre declarar nulo se a operação especulativa não lhe corresse de feição. Pelo mesmo motivo, a
nulidade não pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.
Essa indemnização, uma vez que tem por base a celebração de uma compra e venda nula é,
no entanto, limitada ao interesse contratual negativo, não abrangendo consequentemente o
interesse contratual positivo.

Página 15 de 50
13
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

5.2. Venda a filhos ou netos

O artigo 877.º/1 refere que “os pais e avós não podem vender a filhos ou netos se os outros
filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa
ser prestado ou seja recusado, é suscetível de suprimento judicial”. Se, porém, a venda vier a ser
realizada, será apenas anulável. A anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o
seu consentimento dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do
contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes (artigo 877.º/2) – poderá perfazer mais
de um ano, caso o filho ou neto que irá invocar a anulabilidade ainda não seja maior de idade.
Esta proibição justifica-se como um meio de evitar que, sob a capa da compra e venda, se
efetuassem doações simuladas a favor de algum dos descendentes, com o fim de evitar a sua
imputação nas respetivas quotas legitimárias, assim se prejudicando os restantes – é um facto que
estes poderiam sempre reagir através da ação de simulação (artigo 240.º), mas as dificuldades de
prova dos seus pressupostos levaram o legislador a optar pela solução mais expedita de exigir o
consentimento dos descendentes, sem o que a venda poderia ser anulável.
O consentimento não está sujeito à forma especial (artigo 219.º) – mesmo que essa forma
venha a ser exigida para o contrato de compra e venda – e pode inclusivamente ser prestado
tacitamente nos termos gerais (artigo 217.º).
O consentimento pode, no entanto, ser objeto de suprimento pelo tribunal quando seja
recusado por algum descendente ou quando não possa ser por ele prestado. O processo de
suprimento em caso de recusa encontra-se regulado no artigo 1000.º CPC e o de suprimento por
outras causas no artigo 1001.º CPC.

A proibição do artigo 877.º não abrange a venda por bisavós a bisnetos nem a venda por
filhos ou netos a pais e avós, em que a questão da simulação não se colocará.
Não parece também que tal proibição se deva estender à troca, apesar da remissão do artigo
939.º, uma vez que em relação a ela não se colocam normalmente os problemas de simulação, que
estão na base dessa proibição. A lei é, no entanto, expressa no sentido de que ela não abrangerá a
dação em cumprimento feita pelo ascendente (artigo 877.º/3).

5.3. Venda entre cônjuges

O princípio da imutabilidade das convenções antenupciais estabelecido no artigo 1714.º/1


vem estabelecer que, se alguém se casa com separação de bens, comunhão geral ou opta pelo regime
supletivo da comunhão de adquiridos, não pode eventualmente, na constância do matrimónio,
alterar a convenção antenupcial.

Página 16 de 50
14
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Esta proibição de venda encontra-se assim diretamente ligada ao princípio da imutabilidade


das convenções antenupciais. Esse princípio significa que, quando os cônjuges, por via da
celebração da convenção antenupcial ou da adoção do regime supletivo, determinam o regime de
bens no seu casamento, ficam vinculados a esse regime de bens, que passa a ser aquele com que
terceiros, designadamente os credores, podem contar. Ora, a celebração de contratos de compra e
venda entre os cônjuges poderia funcionar como uma forma indireta de tornear o princípio da
imutabilidade das convenções antenupciais, na medida em que por essa via facilmente bens comuns
ou próprios de um dos cônjuges poderia ver o seu estatuto alterado, em virtude da celebração do
contrato de compra e venda.

Há, porém, uma outra razão que milita no sentido da proibição da celebração de contratos
de compra e venda entre os cônjuges: é que através da celebração de uma compra e venda, as partes
poderiam simular a realização de uma doação ao seu cônjuge, elidindo a regra da sua livre
revogabilidade, prevista no artigo 1765.º. Efetivamente, apesar de o negócio simulado ser nulo
(artigo 240.º), sendo válido o dissimulado (artigo 241.º), em muitos casos a prova da simulação é
extremamente difícil, o que justifica que o legislador pretenda reagir contra esta possibilidade
através da proibição da compra e venda.

No entanto, esta proibição cessa a partir do momento em que se encontrem judicialmente


separados de pessoas e bens. Efetivamente, sendo decretada a separação judicial de pessoas e bens,
cessam os motivos que justificam acautelar a imutabilidade do regime de bens, ou a simulação de
doações.

É lícita, no entanto, a dação em cumprimento feita por um dos cônjuges ao seu consorte
(artigo 1714.º/3), que o legislador considera ser um negócio de simulação mais difícil e que não
coloca pela mesma forma em causa o princípio da imutabilidade. Tem-se também entendido que a
venda executiva não se encontra abrangida por esta proibição, dado que, tendo o remidor que pagar
o maior preço oferecido, não há razões para se fazer incluir nesta proibição.

6. Modalidades específicas de venda

6.1. Venda de bens futuros, de frutos pendentes e de partes componentes


ou integrantes de uma coisa (artigos 880.º CC e 467.º/1 CCom.)

A venda de bens futuros ocorre sempre que o vendedor aliena bens que não existem ao
tempo da declaração negocial (p. ex., venda de uma fração autónoma de um edifício por construir),
Página 17 de 50
15
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

que não estão em seu poder (p. ex., venda dos peixes que vier a pescar nesse dia) ou a que ele não
tem direito (p. ex., o agricultor que vende os cereais que lhe virão a ser fornecidos por outro
agricultor).
Pode também ser considerada como venda de bens futuros a venda de frutos pendentes,
partes componentes ou integrantes de uma coisa, uma vez que estas entidades podem ser
incluídas num conceito amplo de coisa futura, que abranja também as coisas ainda não autónomas
de outras coisas, mas que destas irão ser separadas.
Na venda de bens futuros stricto sensu, a transferência da propriedade ocorre no momento da
aquisição pelo alienante, enquanto na venda de frutos pendentes e partes componentes ou
integrantes, a transferência verifica-se apenas no momento da colheita ou separação.

No entanto, ao contrário do que sucede na venda de coisa alheia (artigo 892.º CC), nenhuma
das partes ignora que a coisa não pertence ao alienante (vende-se coisa alheia, não como se fosse
sua, mas como efetivamente sendo coisa alheia).

Neste caso, a transferência da propriedade não ocorre imediatamente, pelo que a lei faz surgir,
a cargo do vendedor, uma obrigação de “exercer as diligências necessárias para que o comprador
adquira os bens vendidos, segundo o que foi estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato”.
O vendedor está, assim, obrigado a adquirir o bem vendido, após o que a transferência da
propriedade se processará automaticamente para o comprador, em virtude da anterior celebração
do contrato de venda (artigo 408.º/2) – se deixar de cumprir esta obrigação, responderá perante o
comprador por incumprimento (artigo 798.º), indemnização esta que não ficará limitada pelo
interesse contratual negativo.
Não obstante, se se tornar impossível proceder à aquisição total ou parcialmente por facto
que não lhe seja imputável, o resultado será a extinção da obrigação ou o cumprimento parcial,
casos em que, respetivamente, o vendedor perderá o direito à contraprestação (artigo 795.º/1) ou
verá esta ser proporcionalmente reduzida (artigo 793.º/1).

A venda de bens futuros pode ainda ser clausulada como contrato aleatório (artigo 880.º/2),
caso em que o objeto da venda é a mera esperança de aquisição das coisas – como quando alguém
vende uma futura produção de laranjas do seu pomar, independentemente de esta ocorrer ou não.
Nesse caso, uma vez que o objeto do negócio é a própria esperança, o comprador está sempre
obrigado a pagar o preço, ainda que a transmissão dos bens não chegue a verificar-se (se, por
exemplo, a colheita se vir a perder por poluição ou condições climatéricas irregulares).
A distinção entre a venda de bens futuros e a venda de esperanças reside no facto de nesta
última existir uma atribuição ao comprador do risco de não se verificar a transmissão da
propriedade clausulada no contrato (a responsabilidade pelo risco corre por conta do comprador).

Página 18 de 50
16
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Não obstante, esta atribuição deve ser expressamente clausulada, sob pena do contrato ser
qualificado como emptio rei speratae e não como emptio spes.

6.2. Venda de bens de existência ou titularidade incerta (artigos 881.º CC e


467.º/1 CCom.)

Em princípio, apenas poderão ser objeto de venda as coisas que existem e pertencem ao
vendedor, uma vez que se a venda disser respeito a coisas inexistentes o contrato é nulo por
impossibilidade física ou legal do objeto (artigo 280.º/1), nulidade que também se verifica se as
coisas não pertencerem ao vendedor (artigo 892.º).
No entanto, se se venderem bens de existência ou titularidade incerta e no contrato se fizer
menção dessa incerteza, o contrato é válido (artigo 881.º) – essa incerteza constitui um estado
subjetivo que tem que se verificar em relação a ambas as partes.
A lei presume que as partes quiseram celebrar um contrato aleatório, pelo que será devido o
preço por parte do comprador, ainda que os bens não existam ou não pertençam ao vendedor
(artigo 881.º) – o preço é devido logo no momento da celebração do contrato, uma vez que, desde
a celebração do contrato, o comprador se constitui nessa obrigação, a qual em relação a ele não fica
dependente da resolução de qualquer incerteza. As partes podem, porém, ilidir essa presunção,
recusando ao contrato natureza aleatória, caso em que o preço só será devido no caso de os bens
existirem e pertencerem ao vendedor – o comprador apenas fica definitivamente constituído na
obrigação de pagar o preço após a resolução da situação de incerteza em relação à coisa, podendo
nos termos gerais recusar o cumprimento da obrigação, enquanto o vendedor não lhe efetuar a sua
entrega.

A venda de bens de existência ou titularidade incerta distingue-se da venda de bens futuros


(artigo 880.º) porque não toma por base a expectativa de uma futura aquisição ou autonomização
da coisa no património do vendedor, mas antes a incerteza de uma situação presente, relativa à
existência ou à titularidade do bem objeto de venda. E distingue-se igualmente da venda de bens
alheios (artigo 892.º), porque o vendedor não celebra o contrato na qualidade de proprietário da
coisa, excluindo assim qualquer garantia relativamente a essa situação.
Por esse motivo, não existe na venda de bens de existência ou titularidade incerta nenhuma
obrigação de o vendedor praticar os atos necessários para que o comprador adquira os bens
vendidos (artigos 880.º e 897.º), nem sequer qualquer obrigação de esclarecer a situação de incerteza
existente no momento da celebração do contrato. O vendedor apenas ficará constituído no dever
de entregar a coisa, se e quando se comprovar que esta existe e/ou lhe pertence.

Página 19 de 50
17
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

6.3. Venda com reserva de propriedade (artigo 409.º)

Se for celebrado um contrato de compra e venda de um bem, o comprador torna-se


imediatamente proprietário do bem vendido e pode voltar a aliená-lo, mesmo que este não lhe
tenha sido entregue ou o preço respetivo ainda não esteja pago, restando ao vendedor apenas a
possibilidade de cobrar o preço. No entanto, o vendedor tem apenas um mero direito de crédito,
que não lhe atribui qualquer preferência no pagamento, o que implica ter de concorrer com todos
os credores comuns do comprador sobre o património deste (artigo 604.º/1). Assim, caso o
comprador não possua bens suficientes para pagar a todos os seus credores, o vendedor não terá
possibilidade de cobrar a totalidade do preço – o proprietário deixa de o ser para passar apenas a
ser um mero credor comum, sem qualquer garantia especial.
Em virtude dessas consequências, tornou-se comum, nos contratos de compra e venda a
crédito (venda a prestações ou venda com espera de preço), a celebração de uma cláusula de reserva
de propriedade.

A reserva de propriedade pode ser definida como a convenção pela qual o alienante reserva
para si a propriedade da coisa, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte,
ou até à verificação de qualquer outro evento (n.° 1 do artigo 409.º) – a transferência da propriedade
é diferida para um momento posterior ao da celebração do contrato, que normalmente é o
momento do pagamento do preço.
Se a venda já foi celebrada, não poderá posteriormente ser nela inserida uma cláusula de
reserva de propriedade, dado que a propriedade nesse caso já foi transferida para o comprador.

A cláusula de reserva de propriedade no âmbito do contrato de compra e venda terá que


obedecer à forma legalmente exigida para o contrato, podendo inclusivamente ser consensual nos
casos em que o contrato de compra e venda não esteja sujeito a forma especial. Apenas em caso de
insolvência do comprador o artigo 104.º/4 CIRE exige a forma escrita da cláusula de reserva de
propriedade para estabelecer a sua oponibilidade à massa insolvente.
A cláusula de reserva de propriedade pode ser celebrada em relação a quaisquer bens móveis
ou imóveis, mas estes terão que ser coisas específicas e não consumíveis.

No caso de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, só a cláusula constante do registo


é oponível a terceiros (artigo 409.º/2). Não obstante, quando a cláusula de reserva de propriedade
respeite a bens móveis não sujeitos a registo, de acordo com os princípios da causalidade e
consensualidade vigentes no nosso sistema, a reserva poderá ser oposta a terceiros de boa fé – a lei
só exige a publicidade da reserva de propriedade nos casos de bens sujeitos a registo.

Página 20 de 50
18
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

No entanto, se o terceiro adquirir a propriedade a título originário (como sucede na usucapião


e na acessão), naturalmente que a reserva de propriedade se extinguirá.

A conservação da propriedade na esfera jurídica do vendedor até ao pagamento do preço


impede os credores do comprador de executarem o bem, podendo o vendedor reagir contra essa
execução através de embargos de terceiro (artigo 342.º CPC). No caso de ser declarada a insolvência
do comprador, a cláusula de reserva de propriedade só será oponível em relação à massa falida, se
tiver sido estipulada por escrito, até ao momento da entrega da coisa (artigo 104.º/4 CIRE).

A existência de reserva de propriedade tem a importância de permitir ao vendedor resolver


o contrato por falta de pagamento do preço que de outro modo não poderia fazer (nos termos do
artigo 886.º). Os artigos 408.º e 409.º obviam àquele problema de o vendedor vender e transmitir
o direito com a celebração do contrato de compra e venda e entretanto não receber o pagamento
do preço – a reserva de propriedade fará com que o pagamento do preço e a transmissão do direito
coincidam.
O artigo 886.º dificulta ao vendedor a resolução do contrato mediante incumprimento da
obrigação de pagamento do preço, além de que o vendedor poderá não ser inteiramente satisfeito
(poderá receber menos do que aquilo que transmitiu, como por exemplo no caso da venda de um
automóvel recém saído do stand, mas que volta 1 mês depois).
No entanto, há casos em que o legislador entendeu que mesmo havendo reserva de
propriedade, ainda assim o vendedor não pode resolver o contrato para proteção do comprador
(artigo 934.º) – o legislador decidiu proteger o vendedor, permitindo convencionar com o
comprador uma cláusula de reserva de propriedade, mas admitindo casos que, mesmo com reserva
de propriedade, não poderá resolver o contrato, pois algumas situações justificam que se proteja o
comprador. Modalidade subsequente.

6.4. Venda a prestações (artigo 934.º)

O artigo 934.º dispõe que “vendida a coisa a prestações, com reserva de propriedade e feita
a sua entrega ao comprador, a falta de cumprimento de uma só prestação que não exceda a oitava
parte do preço não dá lugar à resolução do contrato, nem sequer, haja ou não reserva de
propriedade, importa a perda do benefício do prazo, relativamente às prestações seguintes, sem
embargo de convenção em contrário”.

Genericamente, esta norma funciona como derrogação do artigo 781.º que previa que, nas
obrigações fracionadas, a falta de cumprimento de uma das prestações importa a perda do benefício

Página 21 de 50
19
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

do prazo quanto às restantes. A lei entende que tal constitui uma solução demasiado drástica nas
vendas a prestações e, por esse motivo, prevê-se uma situação que não acarrete a perda do benefício
do prazo para o comprador – para que tal aconteça, é necessário estarem em falta duas prestações,
independentemente do seu valor, ou uma prestação que exceda um oitavo do preço.

Tendo a coisa já sido entregue, a perda do benefício do prazo para pagamento do preço só
permite, por força do artigo 886.º, o recurso à resolução do contrato pelo vendedor, caso tenha
sido estipulada uma reserva de propriedade. Daí que o artigo 934.º comece por fazer referência à
reserva de propriedade, uma vez que se refere à resolução do contrato.

Nas venda a prestações, a resolução do contrato pelo vendedor depende, salvo estipulação
em contrário, da circunstância de ter sido celebrada uma cláusula de reserva de propriedade. No
entanto, deve-se referir que essa resolução do contrato muitas vezes não consiste na tutela adequada
dos interesses do vendedor, uma vez que, tem como efeito a restituição de tudo o que tiver sido
prestado ao abrigo do contrato (artigos 433.º e 289.º). Ora, no caso de venda a crédito de bens não
duradouros, o decurso do tempo provoca a sua desvalorização contínua, em ritmo muito maior
que a desvalorização monetária. Assim, quando é restituído o bem ao vendedor, ele normalmente
terá um valor de retoma muito inferior à parte do preço já recebida pelo vendedor, o que pode
desaconselhar o recurso à resolução do contrato.

6.4.1. A venda a prestações efetuada no âmbito das relações de consumo

Se a venda a prestações for efetuada no âmbito de relações de consumo – o que ocorre


sempre que seja realizada a pessoa singular que atue com objetivos alheios à sua atividade comercial
ou profissional – há um desvio e ela é qualificada como um contrato de crédito ao consumo
(ficando sujeita a um regime especial, destinado a proteger o consumidor, normalmente
considerado mal informado sobre os custos do crédito).
O Decreto-lei n.° 133/2009 estabelece no seu artigo 5.º/1 que em qualquer publicidade ou
comunicação comercial relativa ao crédito ao consumo deve ser indicado o custo anual do crédito
para o consumidor, expresso em percentagem anual do montante de crédito concedido, o que vem
a constituir a denominada taxa anual de encargos efetiva global, mesmo que esse crédito seja
apresentado como gratuito ou sem juros – dever específico de informação.
No seu artigo 20.º, o decreto estabelece diferentes requisitos para que o vendedor possa
resolver o contrato, derrogando o regime geral do artigo 943.º (em que o legislador exige que o
comprador falte ao pagamento de duas prestações consecutivas – é este o limite da tolerância que

Página 22 de 50
20
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

o legislador tem para com o comprador). O legislador relaciona os dois requisitos em relação
comum, ou seja, é necessário faltar a duas prestações e elas têm de representar mais de 15%.

Quanto esteja em causa a venda a prestações em que o comprador seja um consumidor,


aplicamos este decreto-lei e não o artigo 934.º (requisitos do artigo 20.º do decreto).

O comprador continua protegido nos termos do artigo 934.º, se faltar a mais do que uma
prestação, mas a sua soma não exceder a oitava parte? É atribuído ao vendedor o direito de resolver
o contrato mediante o incumprimento de uma prestação que exceda a oitava parte do preço ou
duas prestações, mesmo que não excedam tal valor.

Em suma, quanto à relação entre os artigos 886.º e 934.º: o artigo 886.º atribui o poder de o
vendedor resolver o contrato caso haja reserva de propriedade (artigo 409.º). Porém, o artigo 934.º
ressalva casos em que mesmo havendo reserva de propriedade, o vendedor não pode resolver o
contrato (havendo venda a prestações, vamos proteger o comprador, mesmo havendo reserva de
propriedade) – desde que o incumprimento da obrigação de pagar o preço por parte do comprador
não exceda a oitava parte do preço global ou mais do que uma prestação (no entendimento dos
doutores Pinto Monteiro e Menezes Leitão).

A segunda parte do artigo 934.º é uma exceção ao artigo 781.º: a regra do artigo 781.º é que
o incumprimento de uma das prestações leva ao vencimento imediato das restantes – porque se o
devedor deixou de cumprir uma das prestações, colocou em causa a confiança que o vendedor teve
nele de permitir o pagamento a prestações, o que gera o vencimento antecipado das prestações
futuras, fazendo com que já possam ser exigidas.
O que a segunda parte do artigo 934.º diz é que na venda a prestações (que tem por objeto o
pagamento de uma prestação fracionada), quer haja ou não reserva de propriedade, o facto de o
comprador não pagar uma prestação não implica, por si só, o vencimento antecipado das restantes,
desde que a prestação não paga não ultrapasse a oitava parte do preço ou mais do que uma prestação
– o artigo 781.º não se aplica, mas aplica-se a 2ª parte do artigo 934.º. Se ultrapassar 1/8, há o
vencimento antecipado de todas as prestações.

Em suma:
• Artigo 934.º 1ª parte: desvio ao artigo 886.º;
• Artigo 934.º, 2ª parte: desvio ao artigo 781.º.

Página 23 de 50
21
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

6.5. Venda de coisas sujeitas a contagem, pesagem e medição (artigos 887.º


e ss.)

Consiste na venda de coisas determinadas, ainda que sujeitas a uma posterior operação de
contagem, pesagem ou medição.
Não se aplica este regime, se as partes se limitam a comprar vinte quilos de maçãs ou acordam
no fornecimento de tantos kilowatts de eletricidade. Já será, no entanto, aplicável, se as partes
acordam na venda de um determinado saco de maçãs, que indicam conter vinte quilos, uma vez
que nesse caso já se estará perante uma venda de coisas específicas, ainda que sujeita a pesagem,
sendo a essa situação que se refere esta modalidade específica de venda.

Essa referência das partes à quantidade dos bens vendidos vai implicar uma futura operação
de contagem, pesagem ou medição, a qual coloca o problema de eventualmente se verificar uma
discrepância entre a referência contratual e o resultado da operação de contagem, pesagem ou
medição.
Uma vez que se está perante coisas determinadas e não de coisas genéricas, a venda considera-
se concluída antes da operação de contagem, pesagem ou medição, logo com a celebração do
contrato, adquirindo assim o comprador imediatamente a propriedade dos bens vendidos (artigo
408.º/1), suportando consequentemente o risco pela sua perda ou deterioração (artigo 796.º/1),
pelo que a discrepância apenas pode ter reflexos para efeitos de apuramento do preço devido.

De acordo com os artigos 887.º e 888.º vemos que os efeitos dessa discrepância são diferentes
consoante o preço da venda tenha sido estabelecido precisamente em função de um tanto por cada
unidade vendida (venda ad mensuram ou por medida) ou tenha sido estabelecido pelo conjunto das
coisas vendidas (venda ad corpus ou a corpo).

® Numa venda por medida, o artigo 887.º determina que, independentemente da


quantidade referida no contrato, o que o comprador deve é o preço proporcional ao número, peso
ou medida real das coisas.

® Numa venda à corpo, o artigo 888.º determina que o comprador deve o preço
declarado, mesmo que a indicação de quantidade referida no contrato não tenha correspondência
com a realidade, a menos que a divergência entre a quantidade real e a declarada seja superior a um
vigésimo desta, caso em que o preço sofrerá redução ou aumento proporcional (na totalidade e não
apenas na parte que excede um vigésimo).

O remédio que a lei prevê para esta discrepância entre a quantidade das coisas vendidas e a
que é declarada no contrato é assim a correção do preço estabelecido, correção essa que se verifica

Página 24 de 50
22
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

sempre na venda por medida (artigo 887.º), mas que só ocorre se a discrepância for superior a 5%
na venda a corpo (artigo 888.º).
A explicação para esta divergência reside na circunstância de, na venda a corpo, o facto de as
partes não terem indicado um preço unitário, mas sim um preço global – o que leva a supor que a
sua vontade se formou essencialmente em relação a esse preço global, sendo incidental a referência
à quantidade, peso ou medida das coisas vendidas. Pelo contrário, na venda por medida o facto de
as partes fazerem referência direta ao preço unitário leva a supor que a vontade das partes é fazer
o preço corresponder à efetiva quantidade, peso ou medida das coisas entregues.

O direito ao recebimento da diferença de preço pode ser excluído se ocorrer compensação


entre faltas e excessos e na medida em que essa compensação se verificar, nos termos do artigo
889.º. Neste caso, as pates deixam de poder exigir a diferença de preço, ainda que a discrepância da
quantidade de uma ou ambas ultrapasse um vigésimo em relação à declarada, conforme o referido
no artigo 888.º/2.
O direito ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses ou um ano a contar da
entrega da coisa, consoante esta seja móvel ou imóvel, salvo se a diferença só se tornar exigível em
momento posterior à entrega, dado que nesse caso o prazo contar-se-á a partir desse momento
(artigo 890.º/1).

O artigo 891.º ainda prevê, tanto na venda a medida como na venda a corpo, que o
comprador possa resolver o contrato, sempre que seja obrigado a pagar ao vendedor uma
diferença de preço superior a um vigésimo do preço declarado, direito que só não surge se tiver
ocorrido dolo do comprador, ou seja, se o comprador não tiver efetuado sugestão ou artifício com
intenção ou consciência de manter em erro o vendedor ou não tiver dissimulado o erro deste (artigo
253.º) – este direito caduca no prazo de três meses a contar da data em que o vendedor exigir esse
excesso (artigos 432.º e ss.).

O regime dos artigos 887.º e ss. não exclui a aplicação do regime do erro, caso se verifiquem
os seus pressupostos. Assim, se for essencial para o declarante que a coisa vendida tenha a
quantidade declarada e a outra parte conhecia ou não podia ignorar essa essencialidade, cabe à parte
a anulação do contrato nos termos gerais (artigos 251.º e 247.º).

Página 25 de 50
23
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

6.6. Venda a retro (artigo 927.º)

A venda a retro consiste numa modalidade de venda em que a transmissão da propriedade


não se apresenta como definitiva, na medida em que o vendedor reserva para si a possibilidade de
reaver o direito alienado, mediante a restituição do preço e o reembolso das despesas feitas com a
venda (o vendedor vende, mas pode mudar de ideias e resolver o contrato).
A cláusula a retro constitui uma estipulação do contrato de compra e venda, sendo por isso
sujeita à forma exigida para esse contrato. Estando em causa bens imóveis, a cláusula a retro tem
assim que constar da escritura pública ou do documento particular autenticado que titula o negócio
(artigo 875.º).

Porque alguém aceitaria celebrar com outrem uma venda nestes termos?

Historicamente, esta venda a retro tinha uma função económica, isto é, seria uma forma de
financiamento (emprestar dinheiro), utilizando este esquema para emprestar dinheiro a taxas de juros
usurárias – imagine que A vende a retro a B um automóvel por €10.000, tendo sido convencionado que ele
pode resolver o contrato no prazo de um ano, pagando €15.000; B entregou a A €10.000 e daqui a no
máximo um ano, B pode reaver o automóvel, pagando €15.000. Não havia qualquer limite ao preço do
exercício da faculdade de resolução. Neste caso, o contrato se mantém válido, mas ele não pode exercer a
faculdade resolutiva por preço superior a €10.000, que foi o preço da venda; a cláusula que determina os
€15.000 é nula quanto ao excesso (€5.000; seria reduzida a €10.000) – artigo 928.º/2.

É por isso que o Dr. Menezes Leitão considera que hoje em dia isso não terá importância,
pois ninguém se vai dispor a comprar a retro, pagando um valor e adquirindo uma coisa, que depois
fica sujeita ao vendedor mudar de ideias e resolver o contrato, pagando um valor igual ou inferior
ao que foi inicialmente pago. A aquisição do direito nunca ganha estabilidade e o sujeito nada recebe
a mais por isso.
Estas limitações do excesso não têm só a ver com o preço, também havendo um prazo para
o exercício do direito de resolução por parte do devedor (artigo 929.º). Na venda a retro, o prazo
máximo para o exercício do direito de resolução por parte do vendedor é de dois anos se se tratar
de coisa móvel ou de cinco anos se se tratar de um imóvel.
Sendo convencionada a venda a retro de um automóvel, onde insere-se uma cláusula em que
o vendedor pode resolver o contrato no prazo de três anos, por exemplo, este prazo será reduzido
aos dois anos, que é o limite permitido para as coisas móveis.

Página 26 de 50
24
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Levanta-se ainda a questão de saber se essas cláusulas a retro são oponíveis em relação a
terceiros: a cláusula a retro só pode ser oponível em relação a terceiros se se tratar de uma venda
de imóvel ou móvel sujeito a registo e que tenha sido registada (artigo 932.º).
¯
A semelhança entre a oponibilidade em relação a terceiros da venda com reserva de
propriedade e a oponibilidade em relação a terceiros da cláusula a retro reside no facto de que tanto
uma quanto outra podem ser oponíveis perante terceiros no caso em que se trata de coisa imóvel
ou móvel sujeita a registo (os requisitos da oponibilidade em relação a terceiros são iguais na
reserva de propriedade e na cláusula a retro). Por outro lado, na venda com reserva de propriedade,
quando aquilo que é vendido é um móvel não sujeito a registo, a cláusula de reserva de
propriedade é sempre oponível a terceiros, sem mais; se se tratar de uma cláusula a retro, nunca é
oponível a terceiros.

6.7. Venda a contento e venda sujeita a prova (artigos 923.º e ss.)

Em ambas as situações, normalmente relativas a bens móveis, se verifica a subordinação do


contrato a uma aprovação da coisa vendida por parte do comprador, da qual vai depender a sua
efetiva vigência.
A diferença reside em que na venda a contento o comprador reserva a faculdade de
contratar, ou a de resolver o contrato, consoante a apreciação subjetiva (o seu gosto pessoal) que
vier a fazer do bem vendido. Pelo contrário, na venda sujeita a prova, está antes em causa uma
avaliação objetiva do comprador em relação às qualidades da coisa, em conformidade com um teste
a que está sujeita. Em ambos os casos, no entanto, a vigência efetiva do contrato fica dependente
de um teste, a realizar pelo comprador.

A venda a contento tem duas modalidades (artigos 923.º e 924.º), pelo que há duas formas
de vender a contento (matéria suscetível de ser questionada em orais ⚠):
® A primeira modalidade da venda a contento (artigo 923.º) é nem sequer
configurar a compra e venda a contento como uma compra e venda. Trata-se de uma proposta de
compra e venda, sob reserva de aceitação desta proposta por parte do comprador, caso depois de
inspecionar a coisa declare a sua aceitação. Em suma, é entregue uma coisa ao comprador, o qual
tem um determinado prazo para indicar que a coisa lhe agrada, indicar que a coisa não lhe agrada
ou nada dizer (=silêncio do comprador). Se declarar que a coisa que lhe foi entregue lhe agrada, o
contrato de compra e venda é celebrado e começa a produzir efeitos a partir deste momento; o
mesmo sucede se ele nada disser dentro do prazo, pelo que considerar-se-á aceite a proposta e
celebrado o contrato de compra e venda, produzindo efeitos a partir deste momento.

Página 27 de 50
25
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

® A segunda modalidade da venda a contento (artigo 924.º) não está sujeita à


aceitação de uma proposta. Há a entrega da coisa por um determinado período de tempo ao
comprador e a eficácia do contrato de compra e venda continua a depender de a coisa entregue ao
comprador lhe agradar, mas agora o contrato já se tem por celebrado desde o princípio e atribui-se
apenas ao comprador a faculdade de resolver o contrato dentro de um determinado período de
tempo se a coisa não lhe agradar.

O ponto de distinção reside no facto de que na primeira modalidade a venda fica sujeita à
aceitação da proposta, não se celebrando o contrato enquanto ele nada disser (ou nada disser dentro
do prazo) enquanto na segunda o contrato está celebrado desde o princípio, permitindo ao
comprador resolver o contrato se assim o entender.

A venda sujeita a prova (artigo 925.º) depende de ela ter ou não determinadas modalidades
que são convencionadas por comprador e vendedor – a forma como ela se distingue da venda a
contento é que nesta está em causa apenas a existência ou ausência de certas qualidades,
nomeadamente a idoneidade para o fim a que é destinada e ter as qualidades asseguradas pelo
vendedor.
O contrato não se tornará definitivo sem que o comprador averigue, através de um prévio
uso da coisa, que ela é idónea para o fim a que é destinada e tem as qualidades asseguradas pelo
vendedor.

O legislador diz-nos claramente que a venda sujeita a prova deve ser considerada sob
condição suspensiva, exceto se as partes a condicionarem a condição resolutiva. O Dr. Menezes
Leitão não concorda muito com esta qualificação como “venda sujeita a condição”, pois sujeitar à
condição de ter ou não ter certas qualidades não é um evento futuro – e condição é evento futuro
e incerto – e a existência daquelas qualidades não é uma existência futura, pois já existiam no
momento em que o contrato foi celebrado.
O legislador diz que se trata de uma condição, mas a doutrina diverge: o “vir a agradar ao
comprador” é uma condição (evento futuro e incerto), mas a existência ou não de certas qualidades
não é um evento futuro (ou as coisas lá estão ou não) – há quem diga que se trata de uma solução
imprópria (Pinto Monteiro tende para esta posição).

O artigo 926.º dispõe para os casos em que pode ser dúbio sobre qual destas modalidades de
venda foi querida pelas partes. E o referido artigo responde dizendo que, em caso de dúvidas,
considera-se a primeira.

Página 28 de 50
26
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

7. Perturbações típicas do contrato de compra e venda

O legislador veio estabelecer três casos de perturbações típicas do contrato de compra e


venda, que correspondem a situações de cumprimento defeituoso das obrigações do vendedor. No
entanto, não são as únicas – há muitas outras situações de incumprimento das obrigações assumidas
no âmbito deste contrato, mas, não estando tipificadas, têm de se socorrer do regime geral do
incumprimento para encontrar uma solução.

7.1. Venda de bens alheios (artigo 892.º)

Há uma venda de bens alheios sempre que o vendedor não tenha legitimidade para realizar a
venda, como sucede no caso de a coisa não lhe pertencer, ou de o direito que possui sobre ela não
lhe permitir a sua alienação – a venda de bens alheios é nula (artigo 892.º).

No entanto, não é a venda de qualquer bem alheio que, nos termos deste artigo, poderá ser
nula. É necessário que a coisa vendida preencha alguns requisitos:
– Tem de se estar a vender uma coisa alheia como se fosse própria (se o vendedor
estiver a vender uma coisa alheia enquanto tal, não se põe o problema que temos em análise);
– Tem de ser uma coisa específica (é perfeitamente possível que eu venda uma
coisa genérica que não me pertence sem que o contrato celebrado seja nulo, nos termos do
artigo 539.º CC);
– Tem de ser uma coisa presente (se estivermos perante a venda de uma coisa
futura, aplica-se antes o artigo 880.º, por remissão do artigo 893.º CC);
– É necessário que estejamos fora do âmbito das relações comerciais (no âmbito
destas relações, o artigo 467.º CCom. permite uma venda alheia como se fosse própria,
presente e específica);

Além de reunir estas características, é necessário também haver ausência de legitimidade para
a venda.
Para que a coisa alheia seja nula, é necessário que se coloque um problema ao nível da
legitimidade do vendedor. Normalmente, é o proprietário que tem legitimidade para vender, mas
há casos em que a lei estende a legitimidade a outras entidades – nomeadamente ao Estado (artigo
824.º CC) ou ao penhor pignoratícios (artigo 674.º CC).

Página 29 de 50
27
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Em suma:
Venda como própria de uma coisa alheia, específica e presente, fora do âmbito das relações
comerciais + ausência de legitimidade para a venda = nulidade.

7.1.1. Efeitos da venda de bens alheios

a) Nulidade da venda e obrigação de restituição

O primeiro efeito da venda de um bem alheio é a nulidade desta venda e a obrigação de


restituição. Esta solução de nulidade é questionável, uma vez que o regime consagrado para a
nulidade da venda de bens alheios é muito diferente do regime geral da nulidade previsto no Código
Civil.

No âmbito da venda de bens alheios, a legitimidade para arguir a nulidade é muito


restringida (ao contrário do que se passa no artigo 286.º CC).
® É proibida a arguição da nulidade por uma pessoa de má fé contra outra de boa fé;
® A nulidade não pode ser invocada por terceiros;
® O verdadeiro proprietário não pode invocar a nulidade, uma vez que o contrato será
sempre, em relação a ele, ineficaz;
® Não pode ser invocada oficiosamente pelo tribunal, uma vez que seria uma forma
de contornar as proibições acima referidas.

Quanto à obrigação de restituição, a venda de bens alheios prevê, no artigo 894.º, regras
diferentes daquelas previstas no artigo 289.º. Com efeito, o regime do artigo 894.º aproxima-se
bastante do regime consagrado para o enriquecimento sem causa dos artigos 479.º e 480.º CC.

O artigo 289.º diz-nos que, mediante a declaração de nulidade, deve ser restituído tudo aquilo
que foi prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. O n.° 3
do mesmo artigo, por remissão para o artigo 1269.º, vem ainda dizer que, se tiver agido com culpa,
o possuidor de boa fé responde pela perda ou deterioração da coisa.

Ora, o artigo 894.º consagra um regime diferente, que varia ainda em função da boa ou má
fé do obrigado:
® Caso o comprador esteja de má fé: não pode pedir a restituição do preço da venda
– apenas pode pedir o enriquecimento do vendedor à sua custa;

Página 30 de 50
28
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

® Caso o comprador esteja de boa fé: pode pedir a restituição do preço, ainda que
os bens se tenham perdido, deteriorado ou diminuído de valor por qualquer razão.

Esta solução não se compreende no âmbito da invalidade – ainda que o bem se tenha perdido
ou deteriorado, à luz dos artigos 289.º e 290.º, o comprador continuaria a ter o direito a ser restituído
pelo valor do preço pago, ficando apenas simultaneamente obrigado a restituir o valor da coisa.
Analisando o artigo 894.º, nomeadamente o seu n.° 2, apercebemo-nos que a solução se afasta
do regime da nulidade e se aproxima do regime do enriquecimento sem causa previsto nos artigos
479.º e 480.º.

Do n.° 1 entendemos que, na esteira do Dr. Luís Menezes Leitão, Pires de Lima e Antunes
Varela, o possuidor de boa fé não pode ser responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa,
ainda que atue com culpa. Com efeito, não parece razoável responsabilizar o comprador pelos
danos que tenha provocado com culpa numa coisa que ele entendia ser sua. Julgando que a coisa
lhe pertencia, não podemos exigir que ele tivesse um especial dever de cuidado e conservação sobre
ela.

No n.° 2 do artigo 894.º torna-se evidente a manifestação do regime da restituição pelo


enriquecimento sem causa. Esta norma, tal como consagra o n.° 2 do artigo 479.º, diz-nos que o
comprador apenas deve restituir ao vendedor o eventual benefício que tenha retirado da perda ou
benefício da coisa – esse montante será deduzido ao valor da indemnização a ser paga pelo
vendedor.

b) Eventual convalidação do contrato

Ao contrário do que se passa no regime geral, o artigo 895.º permite que a nulidade da venda
de bens alheios possa ser sanada mediante a posterior aquisição da propriedade por parte do
vendedor.
No entanto, o artigo 896.º vem estabelecer algumas restrições a esta faculdade de
convalidação da venda de bens alheios. Assim, na venda de bens alheios estamos perante uma
nulidade provisória, que pode ser sanada pelo comprador mediante a aquisição da propriedade e na
medida em que não se coloque nenhuma das restrições previstas no artigo 896.º.

Página 31 de 50
29
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

c) Obrigação de convalidação

Se o comprador estiver de boa fé, a convalidação deixa de ser uma faculdade e passa a ser
uma autêntica obrigação do vendedor (artigo 897.º) – o comprador adquire um direito de crédito,
o direito de exigir que o vendedor proceda à convalidação do contrato.

Note-se que o cumprimento desta obrigação dependa da concordância do comprador – ele


pode não querer que o contrato seja convalidado.

Nos casos em que o vendedor esteja obrigado à convalidação do contrato, o comprador pode
solicitar judicialmente a declaração de nulidade do contrato apenas a título subsidiário, para a
hipótese em que o vendedor não proceda a essa convalidação no prazo que lhe foi fixado pelo
tribunal (artigo 897.º/2).

d) Indemnização

A indemnização pode ser pedida com recurso a três fundamentos, no âmbito dos quais se
estabelece um concurso de pretensões.

Indemnização por qualquer das partes em caso de dolo (artigo 898.º, com remissão para o
artigo 253.º). Se a parte induzida em erro estiver de boa fé, adquire o direito a uma indemnização
pelos danos causados. Esta indemnização varia consoante a nulidade tenha sido sanada ou não.
– Se a nulidade foi sanada: a indemnização toma por base os danos causados por um
contrato não ser ab initio válido, abrangendo assim o interesse contratual positivo;
– Se a nulidade não foi sanada: a indemnização limita-se aos danos que não ocorreriam
se o contrato não tivesse sido celebrado.

⚠ Mesmo não tendo atuado com dolo, se o vendedor atuou com culpa na venda de coisa
alheia, a situação é enquadrada no âmbito do artigo 899.º CC.

Indemnização pelo vendedor ao comprador de boa fé, com fundamento na garantia da sua
legitimidade (artigo 899.º). Uma vez que o vendedor é obrigado a garantir a sua legitimidade, o
artigo 899.º estabelece uma responsabilidade objetiva pelos danos causados ao comprador. Assim,
terá de lhe pagar uma indemnização. No entanto, esta abrange apenas os danos emergentes que
não resultem de despesas voluptuárias.

Página 32 de 50
30
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Os lucros cessantes e as despesas voluptuárias dependem da existência de dolo ou


negligência. Estando em causa o incumprimento de uma garantia, recai sobre o vendedor uma
presunção – nos termos do artigo 799.º, o vendedor presume-se culpado. Se ele quiser ilidir esta
presunção e afastar a indemnização por lucros cessantes e despesas voluptuárias, terá de provar que
não atuou com dolo ou negligência – se o fizer, fica então a indemnização limitada aos danos
emergentes que não resultem de despesas voluptuárias.

Indemnização pelo vendedor ao comprador de boa fé por incumprimento da obrigação de


convalidar o contrato.
O incumprimento da obrigação de convalidar o contrato, sendo uma obrigação como todas
as outras, está sujeito ao regime geral do incumprimento das obrigações. Neste âmbito, a
indemnização abrangerá o interesse contratual negativo.

Cúmulo de pretensões: o artigo 900.º/1 admite um cúmulo de pretensões neste âmbito,


exceto na parte em que o prejuízo seja comum. No entanto, isto não se aplica à parte da
indemnização que seja relativa a lucros cessantes resultantes de dolo do devedor – admitindo-se
apenas um concurso de pretensões. O n.º 2 do artigo 900.º vem estabelecer que, a propósito dos
lucros cessantes, o comprador deve escolher qual o fundamento que vai invocar – se a nulidade do
contrato por dolo ou o incumprimento ou mora da obrigação de convalidação.

7.2. Venda de bens onerados

Esta perturbação do contrato de compra e venda encontra-se prevista no artigo 905.º e traduz
uma situação em que a coisa vendida padece de vícios que afetam a sua situação jurídica e que
excedem os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria. Assim, vejamos os
pressupostos para que estejamos perante a venda de um bem onerado:
• O bem tem de estar sujeito a um ónus ou limitação que incida sobre a situação
jurídica da coisa (e não sobre as qualidades fácticas);
• Esse ónus ou limitação excede os limites normais inerentes aos direitos da
mesma categoria. Tem de estar em causa uma situação que normalmente não acontece
aquando da transmissão do tipo de direito em questão.

Página 33 de 50
31
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Quanto aos efeitos da venda de um bem onerado, temos:

a) Anulabilidade por erro ou dolo

O contrato é anulável por erro ou dolo, desde que se verifiquem os requisitos legais da
anulabilidade. Em caso de erro, exige-se que o erro seja essencial e a cognoscibilidade dessa
essencialidade para o declaratário (artigos 251.º e 247.º). Já em caso de dolo, exige-se apenas que o
dolo tenha sido determinante da vontade do declarante (artigo 254.º/1), salvo se provier de terceiro
– caso em que se exige igualmente que o destinatário conhecesse ou devesse conhecer a situação
(n.º 2).

Indemnização

Além da anulação, o comprador pode pedir uma indemnização. Em princípio, o erro-vício


dá origem a uma anulabilidade, mas não a uma indemnização - em condições normais, só em caso
de dolo (erro vício qualificado) o comprador podia exigir uma indemnização. No entanto, o regime
da venda de bens onerados permite exigir uma indemnização – quer tenha existido dolo ou mero
erro.

Como o legislador consagra esta indemnização em artigos diferentes, vemos que há regimes
diferentes consoante haja dolo ou mero erro:

® Indemnização em caso de dolo (artigo 908.º, com remissão para o artigo 253.º):
sendo anulado o contrato com fundamento em dolo, o comprador adquire o direito à indemnização
pelo interesse contratual negativo – ou seja, a uma indemnização que lhe permita ficar na mesma
situação que estaria se não tivesse celebrado o contrato. Esta indemnização abrange tanto os danos
emergentes como os lucros cessantes.

® Indemnização em caso de simples erro (artigo 909.º): sendo anulado o contrato com
fundamento em simples erro, o artigo 909.º impõe uma responsabilidade objetiva ao vendedor,
ficando este constituído na obrigação de pagar uma indemnização pelos danos causados ao
comprador. Esta obrigação impõe-se uma vez que, ao vender o bem, o vendedor deve assegurar-
se de que o bem vendido se encontra livre de ónus ou encargos.
Neste âmbito, também se coloca uma indemnização pelo interesse contratual negativo, mas
o vendedor responde apenas pelos danos emergentes (incluindo a realização de despesas
voluptuárias) - não se abrangem os lucros cessantes na indemnização por mero erro.

Página 34 de 50
32
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

b) Expurgação do ónus e convalescença do contrato

O n.º 1 do artigo 907.º estabelece que o vendedor tem a obrigação de expurgar o ónus ou as
limitações de que a coisa vendida padece. Assim, ao invés de optar logo pela anulação do contrato,
o comprador pode exigir a expurgação do ónus ou da limitação da coisa.

Nos termos do n.º 1 do artigo 906.º, a anulabilidade fica sanada de vierem a desaparecer os
ónus ou as limitações a que o direito estava sujeito – a convalescença estabelece-se de forma
automática.

No entanto, o n.º 2 vem estabelecer algumas limitações – ainda que o ónus ou limitação do
direito desapareça, a anulabilidade persiste se:
– O ónus ou limitação já tiverem causado prejuízos ao comprador;
– Se o comprador, ao tempo da sanação da anulabilidade, já tiver pedido a anulação do
contrato.

Anulação a título subsidiário

A anulação pode ser pedida a título subsidiário, ficando o contrato anulado se o vendedor
não cumprir a sua obrigação de expurgação do ónus dentro do prazo a que a isso esteja obrigado.
Nessa hipótese, apesar da instauração da ação judicial de anulação, a extinção dos ónus ou
limitações também levará à convalescença do contrato.

Indemnização

Se o vendedor não cumprir a obrigação de expurgação do ónus ou limitação de que padece


a coisa, sujeita-se, nos termos gerais, à responsabilidade obrigacional, pelo que o comprador poderá
exigir uma indemnização com base no incumprimento (artigos 798.º e ss.), impossibilidade culposa
(artigos 801.º e ss.) ou mora no cumprimento (artigos 804.º e ss.).

Impossibilidade originária de cumprimento

Se estivermos perante uma obrigação cujo cumprimento é impossível, por facto não
imputável ao devedor, compreende-se que este não será responsabilizado por isso – não se pode
exigir uma indemnização pelo incumprimento de algo que não é cumprível.

Página 35 de 50
33
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Cúmulo de pretensões

O artigo 910.º/1 admite um cúmulo de pretensões neste âmbito, exceto na parte em que o
prejuízo seja comum. No entanto, isto não se aplica à parte da indemnização que seja relativa a
lucros cessantes resultantes de dolo do devedor – admitindo-se apenas um concurso de pretensões.
O n.º 2 do artigo 910.º vem estabelecer que, a propósito dos lucros cessantes, o comprador deve
escolher qual o fundamento que vai invocar – se os lucros cessantes pelo facto de o contrato ter
sido anulado ou o incumprimento ou mora da obrigação de expurgação do ónus.

c) Redução do preço

Nos termos do artigo 911.º/1, esta alternativa é imposta ao comprador sempre que se possa
comprovar que ele, mesmo padecendo de ónus ou limitações, teria adquirido o bem onerado, mas
não por aquele preço, ou seja, os ónus ou limitações não influenciariam a decisão de contratar,
influenciariam apenas o preço a que se fechou o negócio. Trata-se de um erro incidental.

Confrontado com uma ação de anulação do contrato, o vendedor pode solicitar a redução
do preço – cabendo-lhe o ónus de provar que o comprador teria adquirido o bem onerado por um
preço inferior.

O comprador pode optar imediatamente pela redução, ou ainda solicitá-la a título subsidiário
para o caso de a ação de anulação do contrato não proceder.

Além da redução do preço, caberá ao comprador a indemnização, de conteúdo variável,


consoante haja dolo do vendedor (artigo 908.º) ou simples erro (artigo 909.º).

7.3. Venda de coisas defeituosas (artigos 913.º e ss.)

O regime a aplicar numa situação de venda defeituosa é muito semelhante ao regime


consagrado para a venda de bens onerados porque têm por base um problema parecido: em ambas
as situações, a coisa vendida padece de um vício. No entanto, no âmbito da venda de coisa
defeituosa, estamos perante um defeito que incide perante as qualidades fácticas da coisa e já não
sobre a sua situação jurídica (como acontece na venda de bens onerados).

Página 36 de 50
34
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

⚠ Crítica: o Código Civil consagra, na verdade, dois regimes no âmbito da venda de coisa
defeituosa, com recurso a um critério pouco mais do que arbitrário no que toca à proteção do
comprador:
® Artigos 913.º a 917.º: regime a aplicar às situações em que o defeito já existe no
momento da celebração do contrato;
® Artigo 918.º: regime a aplicar às situações em que o defeito surge após a venda e
antes da entrega, ou seja, o defeito é superveniente à celebração do contrato. Este artigo remete
para o regime geral do incumprimento das obrigações e é a solução que a maior parte da doutrina
considera que se devia aplicar uniformemente a uma situação de venda de coisa defeituosa – com
efeito, em qualquer caso, se o vendedor não entrega a coisa em conformidade com aquilo que está
contratualmente estipulado, deve considerar-se que houve um incumprimento da obrigação, tendo
pouca ou nenhuma relevância o facto de o defeito existir ou não no momento em que se celebra o
contrato, o que deve relevar é o momento em que a coisa é entregue. Esta solução é, aliás, adotada
pelo Decreto-lei n.° 67/2003, de 8 de abril, posteriormente alterado pelo Decreto-lei n.° 84/2008,
de 21 de maio.

Com base nesta diferença de regimes, vamos tratar situações muito semelhantes de forma
totalmente diferente, o que se considera incompreensível.

7.3.1. Regime aplicável às situações em que o defeito já existe no momento


da celebração do contrato

Pressupostos de aplicação do regime segundo o disposto no n.° 1 do artigo 913.º, 1ª


parte:

® Ocorrência de um defeito: para efeitos desta norma, no conceito de defeito


abrangem-se os vícios da coisa e a falta de qualidades. Afigura-se importante distinguir as
duas situações:
– Vício: a expressão “vício” tem um conteúdo pejorativo e diz respeito às
características da coisa que levam a que ela seja valorada de uma forma negativa.
– Falta de qualidade: não implica uma valoração negativa da coisa vendida,
mas representa uma inconformidade contratual. Traduz-se na situação em que o
vendedor assegura uma determinada qualidade da coisa vendida que, na
realidade, está em falta.

Página 37 de 50
35
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Ambos representam, no fundo, uma discrepância entre aquilo que é vendido e aquilo que
efetivamente devia ter sido vendido.

O Dr. Menezes Leitão diz que um vício tem uma conotação pejorativa (não ajuda). O Dr.
Pinto Monteiro diz-nos que a diferenciação faz sentido se virmos a “falta de qualidades” como uma
falta de aptidões – apenas neste caso compreende-se que se distinga entre vício e falta de qualidades.
No entanto, se entendermos falta de aptidões como uma falta de certas características, nesse caso
não se torna necessário o conceito de vício, porque a expressão “falta de qualidades” também
mostra-se suscetível de apanhar situações que cairiam no âmbito do vício.
A noção de vício e falta de qualidades é muito artificial.

® Existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa


contratual – é necessário que o defeito de que padece a coisa origine uma de três situações:
– O vício desvaloriza a coisa vendida;
– Há a falta de uma qualidade que foi assegurada pelo vendedor;
– O vício ou a falta de qualidade impedem que a coisa realize o fim a que
era destinada. De acordo com o n.° 2 do artigo 913.º, se nada resultar do contrato
a esse respeito, o fim a considerar é o fim a que a coisa normalmente se destina.

Pressupostos de aplicação do regime segundo o disposto no n.° 1 do artigo 913.º, 2ª


parte:

A segunda parte do artigo 913.º/1 diz-nos quais são as soluções a aplicar numa situação de
venda de coisa defeituosa. Aplica-se o mesmo regime da venda de bens onerados, à exceção dos
casos em que se diga em contrário.

Quanto aos efeitos da venda de coisa defeituosa, temos:

a) No que diz respeito à anulação do contrato por erro ou dolo

O artigo 915.º, com remissão para a parte final do artigo 914.º, estabelece uma diferença de
regime ao nível da indemnização por simples erro, vindo restringir as condições em que ela pode
ser exigida: aqui, o vendedor já não está sujeito a uma responsabilidade integralmente objetiva sobre

Página 38 de 50
36
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

a coisa. Se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou qualidade de que a coisa padece, não será
responsabilizado pelo defeito da coisa – não incorrerá na obrigação de indemnizar.

Presunção de culpa

Há uma presunção de culpa relativamente à venda da coisa com defeitos, que pode ser ilidida
mediante a demonstração de que o vendedor se encontrava numa situação de desconhecimento
não culposo dos defeitos da coisa – o ónus da prova recai sobre o vendedor.

b) Reparação ou substituição da coisa (equivalente à obrigação de expurgação do


ónus)

No artigo 907.º, o vendedor fica obrigado a expurgar os ónus ou limitações que incidam
sobre a coisa e, se não o fizer, em princípio, é obrigado a indemnizar o comprador pelo
incumprimento dessa obrigação. Ora, no âmbito da venda de coisa defeituosa, o artigo 914.º impõe
a equivalente obrigação de reparar o defeito ou, se for necessário e a coisa com defeito for uma
coisa suscetível de substituição por um bem fungível, a obrigação de a substituir – há uma primazia
da solução de reparação. Só não sendo possível a reparação nem a substituição, é que o vendedor
incorre na obrigação de indemnizar o comprador pelo incumprimento da obrigação em questão.

Presunção de culpa

Há uma presunção de culpa relativamente à venda da coisa com defeitos, que pode ser elidida
mediante a demonstração de que o vendedor se encontrava numa situação de desconhecimento
não culposo dos defeitos da coisa – o ónus da prova recai sobre o vendedor.

⚠ Crítica:

Nos dias de hoje, em que os produtos são produzidos em massa e, em regra, os vendedores
em nada interferem no processo produtivo ou de embalamento, esta é uma prova muito fácil de
fazer: basta o vendedor provar que a coisa foi vendida ainda dentro da embalagem vinda da fábrica,
que não foi aberta em nenhum momento, para ilidir esta presunção e ficar desonerado da obrigação
de indemnizar. Sendo assim, o comprador fica com 2 opções:

Página 39 de 50
37
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

® Anulação do contrato por simples erro: o comprador pode optar pela anulação do
contrato, mas não receberá nenhuma indemnização uma vez que esta é limitada pelo artigo 915.º;
® Redução do preço: a solução mais “vantajosa” seria o comprador dizer que,
mesmo sabendo que a coisa tinha um defeito, teria a intenção de a adquirir, mas por um preço mais
baixo – ainda que isso não seja verdade. É a única forma que o comprador tem de reaver algum
dinheiro pela coisa defeituosa que comprou em erro.

c) Redução do preço

Por força do artigo 913.º, aplica-se o mesmo regime da venda de bens onerados.

Quanto à forma e prazos do exercício do direito (artigo 916.º)

Ónus de denúncia do comprador

Recai sobre o comprador o ónus de denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade de


que padece a coisa, exceto se este tiver usado de dolo. Isto é assim de modo a dar-lhe conhecimento
dos defeitos da coisa vendida, que ele poderia estar a ignorar. Cabe ainda ao comprador provar que
cumpriu este ónus de denúncia a que estava obrigado.

A denúncia não está sujeita a nenhuma forma específica, aplica-se o regime geral da liberdade
de forma (artigo 219.º).

Prazos de denúncia do defeito:

Para bens móveis, o prazo é de 30 dias depois de conhecido o defeito e dentro de 6 meses
após a entrega da coisa; já para os bens imóveis, o prazo é de 1 ano depois de conhecido o defeito
e dentro de 5 anos após a entrega da coisa.
O prazo a contar da descoberta dos defeitos vale independentemente para cada defeito – a
cada defeito descoberto, começa a contar um novo prazo de 30 dias ou 1 ano, consoante a coisa
seja móvel ou imóvel.
O prazo a contar da entrega vale para a generalidade dos defeitos – não se renova se for
descoberto um novo defeito.

Página 40 de 50
38
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Ora, assim podemos concluir que os poderes que são atribuídos ao comprador são
condicionados não só em alguns casos a ausência de culpa do vendedor, como, em todos eles, ao
seu exercício dentro de determinadas balizas temporais (artigos 916.º e 917.º CC).

O artigo 916.º diz-nos que tratando-se da venda de uma coisa com um vício ou falta de
qualidades, o comprador pode anular, reduzir, exigir reparação ou substituição, indemnização, etc.,
mas deve fazer dentro de um determinado espaço de tempo. Isto é, o comprador deve comunicar
ao vendedor o defeito (que aquilo que lhe vendeu tem um vício ou falta de qualidades). Ora, isto
só faz sentido se o vendedor não souber já da existência do defeito (daí a parte final do n.° 1 do
artigo 216.º) – se o vendedor tiver atuado com dolo, isso significa que induziu ou manteve o
comprador em erro, o que significa que o vendedor já sabia que a coisa era defeituosa, pelo que
não fazia sentido exigir ao comprador o dever de comunicar o defeito. Logo, nos casos de dolo não
se impõe o dever de o comprador comunicar o defeito ao vendedor.

Esta comunicação/denúncia por parte do comprador em simples erro tem de ser feita dentro
de certos prazos que variam consoante a coisa vendida seja móvel ou imóvel: no caso de a coisa
defeituosa ser um móvel (n.° 2 do artigo 916), será feita até 30 dias depois de conhecido o defeito
pelo comprador e dentro de 6 meses após a entrega da coisa (=prazos cumulativos).
Por outras palavras, o comprador só pode fazer valer os seus direitos (coisa móvel) se ainda
não tiverem passados 6 meses desde que a coisa defeituosa lhe foi entregue e se ele tiver
comunicado a existência do defeito dentro do prazo de 30 dias a contar após o seu conhecimento.
Se já tiverem passados 6 meses, não interessa que o comprador tenha comunicado o defeito dentro
de 30 dias a contar do seu conhecimento; se não tiverem passados 6 meses, mas já o comprador
tiver tomado conhecimento do defeito há mais de 30 dias, não pode comunicar (já não estamos
dentro do prazo e, portanto, o seu direito caducou).

No caso de a coisa defeituosa ser um imóvel, os prazos são diferentes (n.° 3): o comprador
tem de denunciar o defeito até 5 anos após a entrega da coisa defeituosa e 1 ano a contar da tomada
de conhecimento do mesmo (=prazos cumulativos). O raciocínio é o mesmo.

Atende-se ainda ao artigo 917.º pela sua relação com o artigo anterior. Como se articula o
prazo de 6 meses do artigo 917.º com os prazos do artigo 916.º?
O artigo 917.º impõe um prazo adicional – por exemplo, imagine uma venda de coisa móvel
defeituosa: os prazos do artigo 916.º e 917.º impõem que averiguemos se o prazo de 6 meses foi
ultrapassado; se não, temos de ver se já passaram 30 dias desde que o comprador tomou
conhecimento do defeito; se não, tem direito à anulabilidade e aos restantes remédios estabelecidos

Página 41 de 50
39
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

por lei. Não obstante, se os quiser fazer valer judicialmente, tem 6 meses a partir do momento em
que está em condições de exercer estes direitos.

Em suma, primeiro, perguntamos se o comprador denunciou o efeito atempadamente (para


isso temos de nos perguntar se já passaram 6 meses desde a entrega e 30 dias deste o conhecimento
do defeito) – se sim, pode o comprador anular o contrato de compra e venda, exigir a sua redução,
uma indemnização, a reparação e substituição (em vez da anulação e redução). No entanto, se quiser
exercer o seu direito judicialmente, tem agora 6 meses.
Ou seja, o prazo do artigo 916.º diz-nos se o comprador ainda tem estes direitos (se já tiverem
passados 6 meses, não tem) e o artigo 917.º responde-nos se ele pode exercer os seus direitos
judicialmente.

Particularidades da venda de coisa defeituosa face a venda de bens onerados:

Quanto à anulabilidade, não há grande diferença (artigo 905.º) – nos mesmos termos em que
na venda de bens onerados se optava pela anulabilidade do contrato de compra e venda ou pela
sua redução, aqui falamos dos mesmos termos.

Onde antes se falava de expurgação do ónus, aqui já há que se dizer quanto à reparação ou
substituição da coisa defeituosa (=é assim que se expurga o defeito da coisa defeituosa) – o artigo
914.º diz-nos que “o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for
necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela”.

No artigo 907.º CC, impunha-se ao vendedor a obrigação de fazer convalescer o contrato


(venda de coisa onerada); aqui impõe-se a obrigação de o vendedor expurgar o defeito (=ónus ou
encargo), através da reparação ou substituição.
Repare-se que o legislador prefere uma delas, designadamente a reparação (artigo 914.º, 1ª
parte) – sempre que seja possível a reparação, não haverá substituição; só se a reparação não for
possível, isto é, só se não se puder eliminar o defeito através da reparação da coisa defeituosa, é que
ela será substituída (desde que esta substituição seja, ela própria, viável – como será nos casos de a
coisa ser fungível). A substituição tem de ser necessária, e só o será se a reparação não for suficiente
para expurgar o defeito.
Logo, como é que o vendedor elimina o defeito? Reparando a coisa defeituosa. Só se a
reparação não puder eliminar o defeito é que se impõe ao vendedor a obrigação de substituir a coisa
defeituosa.

Página 42 de 50
40
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Porém, a 2ª parte do artigo 914.º diz-nos que esta obrigação (reparação ou substituição) não
existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou falta de qualidade de que a coisa padecia.
Ou seja, se o defeito (=vício ou falta de qualidade) não fosse conhecido nem fosse cognoscível por
parte do vendedor, este também não terá o dever de reparar ou substituir a coisa defeituosa e, assim,
eliminar o defeito. Esta é uma solução muito penalizante para o comprador (embora vantajosa para
o vendedor), o que levou à extensão do artigo 921.º - daí termos um regime diferente para os casos
em que o comprador é o consumidor.

Responsabilidade civil do vendedor pelos danos causados ao comprador

A responsabilidade civil no regime de bens onerados previa três situações diferentes (artigo
908.º, 909.º e 910.º CC).

Quando houver dolo por parte do vendedor (artigo 853.º), aplicamos sem restrições o
artigo 908.º (haverá sempre, para além de anulabilidade e redução, uma obrigação de indemnização
por parte do vendedor).

Não havendo dolo, mas sim simples erro do vendedor, aplicar-se-á igualmente o regime do
artigo 909.º, mas com uma limitação importante: “ainda que não tenha havido culpa da sua parte”
(desvio relativamente ao regime da venda de bens onerados face ao regime da compra e venda de
bens onerados). Ou seja, enquanto que na venda de bens onerados o comprador pode anular o
contrato e pedir uma indemnização com base em simples erro, mesmo que não tenha havido culpa
do vendedor (porque não conhecia nem devia conhecer o ónus), na venda de coisa defeituosa, o
comprador que anule o contrato pode exigir uma indemnização, mas só se tiver havido culpa do
vendedor no desconhecimento do defeito. Por outras palavras, o comprador em simples erro pode,
ao comprar uma coisa defeituosa, anular o contrato e pedir uma indemnização, mas só nas situações
em que o vendedor conhecesse ou devesse conhecer a existência do defeito (só se o vendedor
soubesse ou devesse saber que a coisa que vende é defeituosa).

Quanto ao artigo 911.º, à semelhança da anulabilidade, não existe aqui uma limitação.

Repare-se que, e à semelhança do que sucede com a venda de bens onerados, o artigo 913.º
relativo à venda de coisa defeituosa, trata esta perturbação típica do contrato de compra e venda
como sendo um problema de formação da vontade do comprador, porque está a aplicar o regime
justamente de um vício da vontade. Trata o problema da compra e venda de uma coisa defeituosa

Página 43 de 50
41
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

como sendo um vício na formação da vontade do comprador (como sendo um problema de erro
ou dolo).
Ora, isso só faz sentido nas situações em que o defeito já existe no momento em que o
contrato de compra e venda é celebrado. Porque são representações incorretas relativas às
características da coisa vendida.

Só podemos tratar da compra de coisa defeituosa como um vício da vontade (=erro ou dolo)
se o defeito já existisse no momento da celebração do contrato de compra e venda. Mas e se o
defeito surgir depois? Neste caso, não há qualquer erro. Em caso de venda de coisa genérica não
podemos aplicar o artigo 913.º (porque trata a venda de coisa defeituosa como sendo um problema
de erro, isto é, um problema de um defeito já existente).
É por esse motivo que o legislador trata de forma diferente no artigo 918.º (defeito
superveniente). Se o defeito não existisse no momento da celebração do contrato de compra e
venda, mas fosse um defeito superveniente (=só surge em momento posterior ao da celebração do
contrato), nestes casos, o legislador entendeu que não poderia tratar do contrato de compra e venda
de coisa defeituosa nos termos do artigo 913.º (ou seja, não poderia ser tratado como erro), mas
antes como um problema de incumprimento, remetendo para as regras gerais do incumprimento
das obrigações do Código Civil.

⚠ Temos aqui uma dualidade de regimes, portanto temos de nos perguntar se o defeito
já existia no momento da celebração do contrato (e, neste caso, aplicar o regime do artigo 913.º) ou
se não ainda não existia e surgiu supervenientemente (e aplicar o artigo 918.º).

O artigo 921.º diz-nos que “se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por
força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substitui-
la (o Dr. Menezes Leitão insere aqui os restantes remédios conferidos ao comprador) quando a
substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de
erro do comprador” – há uma objetivação da garantia imposta ao vendedor (os artigos 913.º e ss.
preveem uma garantia de ausência de defeitos, porque se exige culpa do vendedor para uma série
de remédios, desde logo, para a ação de substituição, mas também para a indemnização para o caso
de simples erro). Já não se exige que o vendedor conhecesse o defeito ou devesse conhecer (parte
final do n.° 1 do artigo 921.º CC).
Esta garantia de bom funcionamento atribui ao comprador tudo aquilo que o regime dos
artigos 913.º e ss. lhe vedam, que é uma garantia de ausência de defeitos da coisa,
independentemente de esse defeito ser ou não conhecido pelo vendedor, e independentemente de
esse desconhecimento eventual ser ou não culposo.

Página 44 de 50
42
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Ou seja, as limitações que vimos anteriormente (exigência de que o vendedor conhecesse ou


devesse conhecer o defeito), já não existem aqui. O artigo 921.º ultrapassa estas limitações dizendo
que o vendedor é responsável pelos defeitos, independentemente de conhecê-los ou não.

A jurisprudência alargou o âmbito do conceito de “usos” de forma a abranger ou subsumir


ao artigo 921.º CC o maior número de contratos de compra e venda de coisa defeituosa.
Entende-se a importância do artigo 921.º porque ao alargar-se a conceção de usos de forma
a abranger ou subsumir o maior número de contratos de compra e venda de coisa defeituosa.,
permitiu superar as limitações do regime dos artigos 913.º e ss., dada a subjetivação da
responsabilidade do vendedor (dado ao facto dos artigos 913.º se ter eivado à possibilidade de o
comprador poder recorrer aos remédios que são atribuídos dependendo da culpa do vendedor na
falta de conhecimento do vício).

7.3.2. Regime da venda de bens de consumo

O regime consagrado no Código Civil revela algumas distorções em prejuízo dos


consumidores pelo que tem vindo sucessivamente a perder aplicação no âmbito das relações de
consumo.
– A própria noção de cumprimento defeituoso, no entender do Dr. Luís Menezes Leitão,
devia ser equiparada ao incumprimento.
– Sujeita-se o comprador a um excessivo ónus de verificação e idoneidade da coisa para
o fim a que se destina: exclui-se a responsabilidade do vendedor quando ele não tenha
tido culpa no defeito da prestação, fazendo recair sobre o comprador esse risco, e
exclui-se a responsabilidade do vendedor por vícios aparentes da coisa.

Isto fez com que os negócios jurídicos de consumo passassem a ter uma tutela especial,
distinta daquela que é consagrada no Código Civil a propósito do cumprimento defeituoso.
Atualmente, no direito português, esta tutela é assegurada pela Lei n.º 47/2014, de 28 de julho. Esta
lei reconhece ao consumidor um direito à qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo
(artigo 4.º/1), direito esse que é objeto de uma garantia contratual injuntivamente imposta (artigo
16.º).
Esta garantia vem a ser concretizada pelo Decreto-lei n.° 67/2003, de 8 de abril, alterado pelo
Decreto-lei n.° 84/2008, de 21 de maio, que transpôs a Diretiva n.° 1999/44/CE, do Conselho e
do Parlamento Europeu – este Decreto-lei n.° 67/2003 foi revogado pelo Decreto-lei n.° 84/2021,
que entrou em vigor em janeiro de 2022. ⚠

Página 45 de 50
43
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Venda de bens de consumo, à luz do Decreto-lei n.° 84/2021

O Decreto-lei n.° 67/2003 surgiu por necessidade de transposição de uma diretiva (tal como
o decreto-lei n.° 84/2021). O regime da venda de coisas defeituosas do Código Civil apresenta duas
grandes disfunções: (i) em primeiro lugar, o regime do CC trata o problema da venda de coisa
defeituosa ainda como um problema de cumprimento defeituoso e vícios na formação da vontade
– deveria ser um problema de incumprimento e o legislador não o trata enquanto tal; (ii) faz
depender o exercício dos direitos do comprador do conhecimento por parte do vendedor do
defeito ou da culpa do seu desconhecimento, ou seja, o regime dos artigos 913.º e ss. exige que o
vendedor conhecesse ou devesse conhecer um defeito.

É no quadro destas críticas que surge o Decreto-lei n.° 67/2013, o qual veio transpor uma
diretiva. Esta diretiva impunha certos padrões mínimos de proteção ao consumidor permitindo que
cada Estado-membro, na transposição da diretiva, fornecesse ao consumidor uma maior proteção.

Em vez de as diretivas n.° 770/2019 e n.° 771/2019 imporem um mínimo de proteção ao


consumidor, facultando aos Estados-membros o direito de atribuir maior proteção, impõe
exatamente um determinado padrão de proteção de que Estados-membros na transposição não se
podem desviar. Ou seja, em vez de estabelecerem o mínimo, estabelecem exatamente a proteção
que os Estados-membros podem conceder ao consumidor (os EM não podem conceder nem mais
nem menos do que o que as diretivas concedem).

Como confrontá-las com o regime do Código Civil?

Temos de fazer uma análise normativa do processo (o Decreto-lei 84/2021 ainda é muito
recente).

Âmbito de aplicação (artigo 3.º/1 do Decreto-lei n.° 84/2021)

O regime do Código Civil é genérico e, portanto, aplicar-se-ia a todos os contratos de compra


e venda defeituosa. O Decreto-lei n.° 84/2021 vem dizer que quando o contrato de compra e venda
tenha por objeto coisa defeituosa e as suas partes tiverem determinadas características, deverá ser
outro que não o regime do Código Civil a aplicar-se.

Página 46 de 50
44
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

O Decreto-lei n.° 67/2003 aplicava-se à compra e venda de bens de consumo. O Decreto-


lei n.° 84/2021 continua a aplicar-se a estes contratos, mas aplica-se também à compra e venda de
bens interligados com conteúdos ou serviços digitais e também se aplica a contratos de
fornecimento de conteúdos ou serviços digitais.
Ou seja, um profissional vende a um consumidor um automóvel (aplica-se o Decreto-lei n.°
84/2021 – venda de bens de consumo entre um profissional e um consumidor); um profissional
vende a um consumidor uma televisão digital (aplica-se o Decreto-lei n.° 84/2021 – venda de um
bem interligado com o fornecimento de um conteúdo ou serviço digital).

⚠ Ao contrário do que acontecia com o Decreto-lei n.° 67/2003, o Decreto-lei n.° 84/2021
abrange, para além da compra e venda de bens de consumo, abrange o contrato de fornecimento
de conteúdos ou serviços digitais – esse fornecimento pode ser através de ato único, através de atos
individuais ou contínuos.

Efeitos do Decreto-lei n.° 84/2021

Vimos anteriormente na compra e venda de coisa defeituosa que se o defeito for


contemporâneo ao contrato de compra e venda, são os mesmos efeitos da venda de bens onerados
(anulação redução ou reparação do defeito e responsabilidade civil do vendedor). Se o defeito for
contemporâneo, se aplicam as regras gerais (artigos 798.º e ss.).

Ao contrário do que sucede no Código Civil, o Decreto-lei n.° 84/2021 trata a venda de bens
defeituosos como um problema de desconformidade entre o programa contratual e a prestação
efetuada pelo devedor, ou seja, uma desconformidade entre o que o vendedor deveria ter prestado
e aquilo que ele efetivamente prestou.
Um defeito deixou de ser visto no Decreto-lei n.° 84/2021(como já sucedia no anterior)
como um vício ou falta de qualidade e passou a ser visto como uma falta de conformidade entre
aquilo que o vendedor prestou e aquilo que deveria ter prestado.

O Decreto-lei n.° 67/2003 a este propósito indicava uma série de situações em que se
presumia haver defeito. O legislador, no Decreto-lei n.° 84/2021, organizou a matéria de forma
diferente, dividindo o objeto da desconformidade em dois, consoante esteja em causa a compra e
venda de bens ou o fornecimento de conteúdos ou serviços digitais. Em vez de ter uma única
disposição em que aborda o defeito enquanto falta de conformidade, apresenta dois conjuntos de
normas diferentes, onde o que é falta de conformidade varia.

Página 47 de 50
45
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

Regime aplicável à compra e venda de bens: o artigo 5.º diz-nos que “o profissional deve
entregar ao consumidor bens que cumpram os requisitos constantes dos artigos 6.º a 9.º, sem
prejuízo do disposto no artigo 10.º.”
O artigo 6.º, al. a) mostra-nos os requisitos subjetivos de conformidade – falta conformidade
sempre que haja ausência das características que devem constar do contrato de compra e venda.
Isso não distingue muito do que vimos à propósito do artigo 914.º CC.
A alínea b) diz-nos que são conformes com o contrato de compra e venda os bens que “são
adequados a qualquer finalidade específica a que o consumidor os destine, de acordo com o
previamente acordado entre as partes” (também assemelha-se ao artigo 913.º CC).
A alínea c) diz-nos que falta conformidade nos bens que não sejam entregues juntamente
com todos os acessórios a instruções, inclusivamente de instalação, quando foram estipulados no
contrato.

O artigo 7.º estabelece requisitos objetivos de conformidade – requisitos que têm de ser
observados para que os bens sejam conformes com o contrato de compra e venda.
Todas as características que não resultem do contrário, mas que resultem de declarações
públicas feitas pelo próprio profissional vendedor, consideram-se parte do programa contratual
para efeitos da determinação do que é o programa contratual. Também haverá falta de
conformidade se aquilo que o vendedor vende não tiver as características que tiverem sido
publicitadas por ele ou pelo fabricante ainda que essas características não constassem do contrato.
Ao contrário do que sucedia no Decreto-lei 67/2003 (vinculava-se o vendedor às declarações
publicitárias feitas por ele ou por fabricante/produtor/distribuidor), o Decreto-lei n.° 84/2021
estabelece que o vendedor não fica vinculado se demonstrar o que dispõe das diversas alíneas do
n.° 2 do artigo 7.º.

Temos ainda um segundo conjunto de requisitos, agora aplicáveis às situações em que o bem
é vendido com elementos digitais interligados. Exige-se agora que o vendedor mantenha a
conformidade através de atualizações, incluindo as de segurança. Porque se se tratasse da venda de
um bem com elementos digitais interligados, pode suceder, dada à desatualização dos mesmos, que
o bem que, no momento da entrega estava em conformidade, deixasse de estar, por falta dessas
atualizações – impõe-se ao devedor/vendedor de manter o bem atualizado.
Se se tratar não de um ato único de fornecimento, mas antes de um fornecimento contínuo,
e se esse fornecimento contínuo for prestado até dois anos, será por esse período de dois anos que
as atualizações deverão ser fornecidas. Se tiver sido convencionado um fornecimento contínuo
superior a dois anos, então esse fornecimento contínuo vigorará pelo período de tempo do contrato
(se o serviço for fornecido durante dois anos, as atualizações devem ser fornecidas durante dois
anos).

Página 48 de 50
46
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

O Decreto-lei n.° 84/2021 parece aplicar-se a situações mais restrita, mas abrange também
contratos de fornecimento de serviços ou conteúdos digitais. Quanto à noção de defeito, é diferente
do regime do Código Civil (o CC diz-nos que “defeito” é um vício ou falta de qualidades), pois
define que “defeito” é uma falta de conformidade e, então, para saber quando falta conformidade,
o legislador responde-nos a dizer que há conformidade quando se preencham cumulativamente os
requisitos elencados nos artigos.

Existem diferenças a nível de âmbito e também ao que diz respeito ao próprio conceito de
defeito relativamente ao conceito fornecido pelo Código Civil.

Quais as consequências da venda de bens ou fornecimento de conteúdos ou serviços


digitais defeituosos no âmbito do decreto-lei n.° 84/2021?
Os artigos 12.º e ss. respondem a esta questão. O legislador trata o problema da venda de
coisa defeituosa como um problema de incumprimento do contrato, pois em vez de atribuir ao
comprador o direito a anular o contrato, atribui-lhe o direito a resolver o contrato de compra e
venda (artigo 15.º/1, al. c)). Em ambos os casos o resultado é a extinção do contrato (seja porque
foi anulado, seja porque foi resolvido). No entanto, resolvendo-se o contrato pode-se exigir uma
indemnização, enquanto que se anular o contrato com base em erro só se pode pedir uma
indemnização, havendo simples erro, se não houver havido conhecimento do erro por parte do
vendedor.

No Decreto-lei n.° 67/2003 atribuía-se os mesmos direitos ao consumidor, mas não era
hierarquizados, o que significa que o consumidor podia optar pela reparação, substituição, redução
ou até resolver logo o contrato. Ora, o Decreto-lei n.° 84/2021 hierarquizou-os. Isso significa que,
em princípio, o consumidor tem, em primeira linha, direito só à reparação ou substituição do bem
– só em certos casos pode recorrer à resolução do contrato, por exemplo.
Ou seja, não pode logo – como podia no decreto anterior – optar pela resolução do contrato.
O n.° 2 do artigo 15.º diz-nos que “o consumidor pode escolher entre a reparação ou a substituição
do bem”. O que este artigo nos diz é que, em regra, o consumidor tem direito à reparação ou à
substituição, “salvo se o meio escolhido para a reposição da conformidade for impossível ou, em
comparação com o outro meio, impuser ao profissional custos desproporcionados, tendo em conta
todas as circunstâncias”.

Se não se verificar nem as situações do n.° 2 nem as situações do n.° 4 do artigo 15.º, o
consumidor não pode escolher nem a redução, nem a resolução, tendo de se contentar com a
reparação ou com a substituição.

Página 49 de 50
47
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)
lOMoARcPSD|12006933

Gabriela Sousa 2021/2022

O regime do Código Civil, porque trata da venda de coisa defeituosa nos termos do artigo
913.º como um problema na formação da vontade, atribui ao comprador um direito à anulação do
contrato. O decreto-lei n.° 84/2021 não atribui o direito à anulação, mas sim a resolução, à
reparação do direito e ainda um direito a redução ou indemnização.
No entanto, este decreto-lei n.° 84/2021 hierarquiza os direitos, ou seja, em princípio o
consumidor tem direito a reparação ou substituição e só em certos casos tem direito a redução ou
resolução.

Em que termos o consumidor pode exercer estes direitos?

O artigo 12.º responde-nos a esta questão.


Como articular o artigo 12.º/1 com o artigo 13.º/1? Se se tratar de um defeito/falta de
conformidade que se manifesta dentro de 2 anos a contar a entrega do bem, presume-se que essa
falta de conformidade já existia no momento da entrega do bem. O vendedor pode
desresponsabilizar-se, mas terá de ilidir essa presunção provando que a falta de conformidade não
existia no momento em que o bem foi entregue ao comprador. Se a falta de conformidade se
manifestar, por exemplo, dois anos e meio depois da entrega do bem, o vendedor não deixa de ser
responsável por essa falta de conformidade (porque ainda não passou o prazo), mas já não se
presume que a falta de conformidade existia no momento da entrega, o que significa que vai ter de
ser o comprador a provar que a falta de conformidade já existia no momento da entrega do bem
vendido.

Quando é que se tem por entregue um bem vendido ao consumidor? O artigo 11.º/1 diz-
nos que a regra geral é a de que “o bem considera-se entregue ao consumidor quando este ou um
terceiro por ele indicado, que não o transportador, adquire a posse física do bem”.

⚠ O caso prático não será sobre esta parte da matéria (venda de bens de consumo).

Página 50 de 50
48
Downloaded by Joao Nuno (joaonuno97@hotmail.com)

Você também pode gostar