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Acórdãos TRC Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Processo: 7471/15.9T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRESPASSE
RESOLUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
SUPRESSIO
Data do Acordão: 12-09-2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.334, 1049 CC
Sumário: 1 – Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém,
detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela
ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu
objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e
ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.
2 – Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado
configurar abuso do direito é a supressio, que se traduz no não
exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo
que crie na contraparte a representação de que esse direito não
mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma
desvantagem injustificada para esta.

3 – À luz deste instituto jurídico, constituiria um abuso do direito


por parte da Autora/recorrente (na modalidade da dita supressio)
vir a mesma invocar a invalidade do trespasse, quando a mesma
sucedeu na posição dos primitivos locadores, que já haviam
reconhecido a ora Ré na qualidade de nova arrendatária, por
virtude de um contrato de trespasse.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de


Coimbra[1]
*
1 – RELATÓRIO

“CONSTRUÇÕES C (…), L.da”, sociedade comercial com sede no


(...) Mira propôs acção declarativa com processo comum contra “T
(…), L.da”, sociedade comercial com sede no referido (...) , Mira,
pedindo a condenação da ré a reconhecer que é ilegítima detentora do
estabelecimento comercial denominado café O (...) , por nulidade do
referido trespasse e a entregar à A. livre e desocupado, o rés-do-chão
4.2– Cumpre para finalizar proceder à apreciação da segunda das
questões igualmente supra enunciada, a da invocação do desacerto
dessa mesma decisão, fundada na aplicação do art. 1049º do C.Civil,
porque o instituto do abuso do direito apenas impede que se invoque a
nulidade formal quando, se tenha aceite essa nulidade, criando na parte
contrária a convicção séria e fundamentada de que tal situação se
manterá, o que não ocorreu na situação dos autos
De referir que a Autora/recorrente fundamenta em temos jurídicos esta
invocação que faz, com apelo aos ensinamentos doutrinários de
MENEZES CORDEIRO e BAPTISTA MACHADO, sustentando que
ao invocar a nulidade do trespasse não estava a actuar em abuso do
direito, donde, estava afastada a aplicabilidade do art. 1049º do C.Civil.
Sucede que, salvo o devido respeito, não interpreta adequadamente os
ensinamentos de tais insignes Mestres.
Senão vejamos.
Consabidamente, MENEZES CORDEIRO sintetiza em seis tipologias
as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito,
sendo que estas tipologias nos permitem, igualmente, enquadrar
parâmetros de actuação aptos a concretizar os conceitos jurídicos
indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito
[em relação às referidas tipologias segue-se de perto o texto do referido
autor].[4]
As referidas tipologias são as seguintes: a exceptio doli, o venire contra
factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio,
o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
Em primeiro lugar, a exceptio doli traduzia-se numa actuação dolosa do
titular na formação da sua situação jurídica ou no momento da própria
discussão da causa.
Em segundo lugar, no venire contra factum proprium está em causa
uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado.
Trata-se, em suma, de tutelar a confiança gerada numa das partes pelo
comportamento anterior da outra.
Em terceiro lugar, verifica-se uma inalegabilidade formal quando
alguém alega de forma desconforme com a boa-fé, designadamente por
lhe ter dado causa, a nulidade formal de um negócio.
Em quarto lugar, referem-se a supressio e a surrectio que são figuras
baseadas nos mesmos fenómenos – decurso do tempo, boa-fé e tutela
da confiança – mas de sentido inverso.
No primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o
exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do
seu exercício.
No segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo
período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de
outro modo não teria.
Em quinto lugar, o tu quoque traduz-se na inadmissibilidade do titular
do direito aproveitar-se de uma violação de uma norma jurídica
exigindo a outrem que actue em consonância com as consequências
resultantes dessa violação.
Por fim, em sexto lugar, temos o desequilíbrio, ou seja, o exercício de
um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a
resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer
por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente
esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva
entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os
sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se
incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa
que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).
Temos presente que todas estas situações não são mais do que
tipologias de comportamento em que historicamente se tem ancorado o
raciocínio do abuso do direito, sendo que nem todas têm atual
justificação e muitas delas se reconduzem, no fim de contas, a outras
figuras, designadamente ao venire contra factum proprium, mas de
qualquer forma permitem deixar mais claros os parâmetros em que se
move o instituto invocado.
Dito isto, logo ressalta, quanto a nós, que a modalidade do abuso de
direito que tem maior adesão com o caso dos autos é a da supressio.
A supressio traduz-se no não exercício do direito durante um lapso de
tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de
que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a
uma desvantagem injustificada para esta – situação que cremos
paradigmaticamente verificada no caso vertente.
É que os primitivos senhorios não foram desconhecedores do trespasse
perspetivado entre a Interveniente principal M (…) e a ora Ré, “T (…),
L.da”.
Dele lhes foi oportunamente dado conhecimento, para exercício da
preferência, pela então arrendatária (a dita Interveniente principal (…)),
em Maio de 2006, não a tendo querido exercer.
Ademais, comportaram-se na sequência de tal situação – comunicação
do perspetivado trespasse – relativamente à “trespassária”, leia-se a ora
Ré/recorrida, como se fosse esta a nova arrendatária: dela receberam
rendas e a ela passaram recibos de renda, a ela viram fazer obras no
locado e nada opuseram, em face da perspectivada venda à ora Autora,
notificaram a Ré para exercício da preferência …
Ou seja, durante um período de cerca de 9 anos (de Maio de 2006 até
Agosto de 2015 – data da venda à ora Autora pelo que se extrai da
escritura pública correspondente, que é o “doc. 2”, a que se reporta o
facto provado sob “2º”[5]), os primitivos senhorios administraram o
prédio sem nunca terem posto em causa a situação do café em
funcionamento no rés-do-chão, nomeadamente a legitimidade de quem
explorava o estabelecimento ali instalado.
Daqui se extrai uma conclusão: ou não averiguaram tais factos, ou se os
averiguaram e deles tomaram conhecimento, não reagiram aos mesmos.
Mas se não tiveram esse conhecimento foi só porque não quiseram, já
que, pelo menos desde Maio de 2006 até data recente, nunca deixaram
de acompanhar a situação do prédio.
Assim, ao administrarem o prédio sem reagirem à ocupação do
estabelecimento comercial instalado na sobredita loja, os primitivos
senhorios criaram na ora Ré a convicção de que a consideravam como
sua nova arrendatária e que aceitavam como legítima a ocupação por
esta daquela parte do prédio.
Foi nessa posição jurídica que sucedeu a ora Autora.
A qual, aliás, outro tanto fez “ab initio”: após a aquisição do imóvel,
com a Ré intentou negociar um valor monetário para resolução por
mútuo acordo do arrendamento…
Ocorre que, independentemente de tudo o demais, o decurso daquele
período de tempo sem que os primitivos senhorios exercessem o seu
direito, criou justificadamente na Ré a expetativa de que aqueles não o
exerceriam mais.
Pelo que, o seu exercício tardio por parte da ora Autora/recorrente, que
naquela posição jurídica sucedeu, acarreta uma desvantagem
injustificada para a Ré que, tendo adquirido por negociado “trespasse”
um estabelecimento comercial e cumprido as obrigações emergentes de
tal contrato (quer perante quem lhe cedeu o estabelecimento – a dita
Interveniente principal – quer perante os senhorios – designadamente
com o pagamento de rendas), ficaria agora privada do uso e fruição da
loja e, consequentemente dos lucros provenientes da exploração do
estabelecimento…
O que tudo serve para dizer que ao atuar desta forma – invocar a
invalidade formal do trespasse – a Autora excedeu manifestamente os
limites impostos pela boa fé, e, por isso, agiu com abuso de direito,
enquadrando-se o seu comportamento numa das manifestações típicas
daquela figura jurídica: a supressio.[6]
Termos em que improcedem as “alegações” da Autora/recorrente nesta
base.
O mesmo se diga relativamente ao pensamento doutrinário do segundo
dos invocados Mestres.
Na verdade, tendo por referência o disposto no art. 334º do C.Civil, «o
abuso do direito pressupõe um excesso ou desrespeito dos respectivos
limites axiológico-materiais, traduzido na violação qualificada do
princípio da confiança, sendo que, para que tal aconteça, não se torna
necessário que o agente tenha consciência do carácter abusivo do seu
procedimento, bastando que este o seja na realidade».[7]
Situação que logo se configura quando o titular do direito se deixa cair
numa longa inércia sem a respectiva exercitação, susceptível de criar na
contraparte a convicção ou expectativa fundada de que esse direito não
mais será exercido, e que a sua posição jurídico-substantiva se encontra
já consolidada, nela investindo, em conformidade, as suas expectativas
e até o seu capital; violação drástica do princípio da confiança, que a
doutrina sintetiza na máxima - venire contra factum proprium - .
Nesta linha de entendimento, sublinha o apontado BAPTISTA
MACHADO, que, para se concluir por tal ilegitimidade se torna
necessária a verificação cumulativa de três pressupostos: uma situação
objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente
consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente
considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o
agente no futuro se comportará coerentemente de determinada maneira;
que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de
agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada;
ou seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou.[8]
Ora se assim é, não vislumbramos porque é que se há-de entender que a
ora Ré não se encontrava na circunstância de boa fé, assim como
insofismavelmente nos parece que deve ser tutelada a confiança que a
mesma firmou no caso.
Não vemos, assim, como legitimamente sustentar – em linha com o que
consta das alegações recursivas! – a inaplicabilidade do artigo 1049º do
C.Civil, na medida em que o locador só estaria impedido de invocar a
nulidade formal do trespasse (por falta de forma), se o mesmo tivesse
reconhecido o beneficiário da cedência como tal…, o que não teria
sucedido!
Antes pelo contrário, reiteramos o já antes afirmado, no sentido de que
teve lugar um tal reconhecimento, donde, ao abrigo e por força do
disposto no art. 1049º do C.Civil, não pode proceder a resolução do
contrato.
Neste sentido, também o constante de douto aresto:
«O recebimento das rendas pelo senhorio, pagas pelo cessionário do
trespasse, como reconhecimento deste na qualidade de inquilino, faz-
lhe perder o direito à resolução do contrato de arrendamento, nos
termos do art.º 1049.º, Cód. Civil.»[9]
Sendo certo, em todo o caso, que constituiria um abuso do direito por
parte da Autora/recorrente (na modalidade de supressio) vir a mesma
invocar a invalidade do trespasse, quando a mesma sucedeu na posição
dos primitivos locadores, que já haviam reconhecido a ora Ré na
qualidade de nova arrendatária, por virtude de um contrato de
trespasse!
Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, naufraga
inapelavelmente este argumento recursivo.
*
5 – SÍNTESE CONCLUSIVA
I – Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém,
detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem
jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo
natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente
contra o sentimento jurídico dominante.
II – Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado
configurar abuso do direito é a supressio, que se traduz no não
exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que
crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será
exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem
injustificada para esta.
III – À luz deste instituto jurídico, constituiria um abuso do direito por
parte da Autora/recorrente (na modalidade da dita supressio) vir a
mesma invocar a invalidade do trespasse, quando a mesma sucedeu na
posição dos primitivos locadores, que já haviam reconhecido a ora Ré
na qualidade de nova arrendatária, por virtude de um contrato de
trespasse.
*
6 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final, pela improcedência da apelação,
mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas do recurso pela Autora/recorrente.
*
Coimbra, 12 de Setembro de 2017

Luís Filipe Cravo ( Relator )


Fernando Monteiro
António Carvalho Martins)

[1] Relator: Des. Luís Cravo


1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Fernando de Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento
Urbano, Almedina 2006, p. 153.
[3] Neste sentido vide o acórdão do T.Rel. de Coimbra de 15.05.2007,
no proc. nº 575/05.8TBILH.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[4] Assim em “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo
I, 2ª ed., Coimbra, Livª Almedina, págs. 249-269.
[5] Cf. fls. 7 a 11.
[6] Nesta linha de entendimento, vide o acórdão do T. Rel. de Évora de
15.12.2005, no proc. nº 0535984, acessível em www.dgsi.pt/jtre.
[7] Cf., neste sentido, GALVÃO TELES, in “Obrigações”, 3ª ed, a
págs. 6.
[8] Assim in “Tutela de Confiança”, RLJ, Anos 117º e 118º, a págs. 322
e 323 e 171 e 172, respetivamente.
[9] Citámos agora o acórdão do T. Rel. de Évora de 07.12.2012, no
proc. nº 3809/10.3TBPTM, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtre.

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