Você está na página 1de 7

COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

Por Marcelo Moura1

1. Coisa Julgada - conceito

Como ato estatal, imperativo, o pronunciamento jurisdicional definitivo produz os


efeitos que a lei prescreve. Como um desses efeitos está a coisa julgada. Essa é a
conclusão que se extrai da redação do art. 467 do CPC, in verbis:

“denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna


imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário”.

A coisa julgada, portanto, não é efeito da sentença definitiva, e sim qualidade desse
efeito.2

O conceito traduzido no texto legal, de franca inspiração Liebmaniana, não exprimiu,


corretamente, a lição do mestre italiano. Propunha Liebman que a coisa julgada não
fosse vista como um efeito da sentença (como dispõe o código) mas sim uma qualidade
inerente a todos os efeitos dela, e que aos efeitos se incorpora, a partir de um dado
momento.3

Os efeitos da sentença, decorrentes do tipo de provimento jurisdicional que se pretende


obter, podem ser de cunho declaratório, constitutivo, condenatório e mandamental, esta
última classificação consagrada por Pontes de Miranda. Ovidio Baptista destaca, ainda,
o efeito executivo.4

Esta é a clara distinção que devemos fazer da qualidade da coisa julgada e seus efeitos.

2. Coisa Julgada Formal e Material

1
Professor de Direito e Processo do Trabalho da Escola Superior de Advocacia do Rio de
Janeiro; Mestrado em Direito pela Universidade Antonio de Nebrija – Madri – Espanha; Professor
do Decisum Estudos Jurídicos/RJ e Juiz do Trabalho da 1a Região.
2
Neste sentido: Marques, José Frederico, Manual de Direito Processual Civil, vol. III, Millennium,
2001, pág. 324.
3
Liebman, eficácia e autoridade da sentença, pág. 40, apud Ovidio Baptista da Silva, Curso de
Processo Civil, vol I, 5a edição, RT, 2000, pág. 485.
4
Sentença e Coisa Julgada, Sérgio Fabris, Porto Alegre, 1979, p. 93 e seguintes.
2.1. Coisa Julgada Formal

2.1.1. Conceito.

A imperatividade da coisa julgada depende de sua imutabilidade. Tal qualidade, nos


limites do processo, ocorre quando não mais se pode discutir, nos mesmos autos, a res in
iudicio deducta. Na ocorrência de tal fenômeno, denominada por muitos como a
preclusão máxima do processo5, surge a coisa julgada formal.

Na sempre esclarecedora lição de Moacyr Amaral Santos “a coisa julgada formal


consiste no fenômeno da imutabilidade da sentença pela preclusão dos prazos para
recursos”.6 Destaca-se, com este conceito, a imutabilidade endoprocessual das questões
decididas, com ou sem a formação de coisa julgada material.

2.1.2. Sentenças Terminativas

O CPC vigente enumerou as sentenças que fazem coisa julgada formal no art. 267,
verbis:
Art. 267 - Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito:

I - quando o juiz indeferir a petição inicial;

II - quando ficar parado durante mais de 1 (um) ano por


negligência das partes;

III - quando, por não promover os atos e diligências que lhe


competir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta)
dias;

IV - quando se verificar a ausência de pressupostos de


constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;

V - quando o juiz acolher a alegação de perempção,


litispendência ou de coisa julgada;

5
Por todos, Dinamarco, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, vol. III,
Malheiros, 2001, pág. 297.
6
Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 3 o vol., 11a ed., Saraiva, 1990, pág. 44.
VI - quando não concorrer qualquer das condições da ação,
como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o
interesse processual;

VII - pela convenção de arbitragem;

VIII - quando o autor desistir da ação;

IX - quando a ação for considerada intransmissível por


disposição legal;

X - quando ocorrer confusão entre autor e réu;

XI - nos demais casos prescritos neste Código.

§ 1° - O juiz ordenará, nos casos dos números II e III, o


arquivamento dos autos, declarando a extinção do processo, se a
parte, intimada pessoalmente, não suprir a falta em 48 (quarenta
e oito) horas.

§ 2° - No caso do parágrafo anterior, quanto ao número II, as


partes pagarão proporcionalmente as custas e, quanto ao
número III, o autor será condenado ao pagamento das despesas
e honorários de advogado (art. 28).

§ 3° - O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau de


jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da
matéria constante dos números IV, V e VI; todavia, o réu que a
não alegar, na primeira oportunidade em que lhe caiba falar nos
autos, responderá pelas custas de retardamento.

§ 4° - Depois de decorrido o prazo para a resposta, o autor não


poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação.

A extinção do processo, nas hipóteses acima expostas, não obsta que a ação seja
renovada (extingue-se o processo e não o direito subjetivo), salvo nos casos do art. 267,
V (perempção, litispendência e coisa julgada), quando a lei processual impôs a perda da
ação (pretensão) e não do direito em sí, que poderá ser matéria de defesa. Neste sentido
a regra do art. 268, do CPC, in verbis:

Art. 268 - Salvo o disposto no art. 267, V, a extinção do


processo não obsta a que o autor intente de novo a ação. A
petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do
pagamento ou do depósito das custas e dos honorários de
advogado. (o destaque é nosso)

Parágrafo único. Se o autor der causa, por três vezes, à extinção


do processo pelo fundamento previsto no número III do artigo
anterior, não poderá intentar nova ação contra o réu com o
mesmo objeto, ficando-lhe ressalvada, entretanto, a
possibilidade de alegar em defesa o seu direito. (negritamos)

As sentenças (termo utilizado em sentido amplo, também abrangendo os acórdãos)


definidas no art. 267 do CPC são meramente terminativas, não julgam o mérito e , por
esse motivo, o obstáculo à nova propositura da ação nas hipóteses do art. 267, V, do
CPC não têm nenhuma relação com o meritum causae.

Quando o processo se extingue por litispendência ou coisa julgada o impedimento à


renovação da ação (e não de nova ação como equivocadamente tratou a norma – art.
268, par. único) não é a sentença terminativa, mas sim “destes próprios pressupostos
negativos”. A perempção sim, o abandono e o desleixo com a ação, ocasiona a sua perda
e, portanto, o impedimento de um julgamento de mérito no quarto processo.7

2.1.3. Falsas Sentenças Terminativas

Existem casos em que no exame de questões processuais, a exemplo da carência de


ação, os julgamentos avançam no tema de mérito e, ainda assim, extinguem o processo
sem julgamento do mérito. Nesses casos, ainda que a sentença, formalmente, seja
fundamentada no art. 267, do CPC, ocorreu exame de mérito e, consequentemente,
formação de coisa julgada material.

Caso típico no processo do trabalho se dá no exame da legitimidade passiva ad causam,


em pedidos como de reconhecimento da relação de emprego ou de responsabilização de

7
Dinamarco, ob. cit., pág. 185.
empresa tomadora dos serviços, na hipótese de terceirização – enunciado 331, IV, do
TST. Decidindo o juiz pela inexistência da relação de emprego ou de responsabilidade
do tomador dos serviços a sentença deveria ser de fundo, rejeitando o pedido do autor,
extinguindo-se o processo, com julgamento de mérito, na forma do art. 269, I, do CPC.

O julgamento, a nosso ver impróprio, de extinção do processo, sem julgamento do


mérito, com base no art. 267, VI, do CPC, faz nascer sentença teratológica, causando
insegurança aos jurisdicionados. Tal sentença, por tudo quanto foi dito, desafia recurso
ordinário, a fim de ser evitada a formação de coisa julgada material sobre o tema.

Dinamarco8 traz exemplo semelhante ao tratar de indicação como réu de pessoa


envolvida em ação de indenização por acidente de trânsito. Relata o autor que é hábito
tais demandas serem julgadas inadmissíveis por ilegitimidade passiva ad causam,
quando a prova revela que o réu já não é dono do veículo.

2.2. Coisa Julgada Material

2.2.1. Conceito

Para Vicente Greco Filho9 “a coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos que se
projetam fora do processo e que impede que nova demanda seja proposta sobre a
mesma lide”. O ilustre professor paulista destaca, com tal conceito, o chamado efeito
negativo da coisa julgada material, que consiste na proibição de que a demanda já
definida seja reapreciada por outro juiz.

Humberto Theodoro Junior10 adere ao grupo daqueles que definem a coisa julgada como
“qualidade da sentença, assumido em determinado momento processual. Não é efeito da
sentença, mas a qualidade dela, representada pela “imutabilidade” do julgado e seus
efeitos”

A doutrina, de forma quase uníssona, define a coisa julgada como a qualidade de


imutabilidade da matéria decidida, definitivamente, e seus efeitos.11

8
Ob. cit., pág. 306.
9
Direito Processual Civil Brasileiro, 2o vol, 7a ed., Saraiva, 1994, pág. 240.
10
Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, 22a ed., Forense, RJ, 1997, pág. 525.
11
Neste sentido, além dos autores já citados: Ernane Fidélis dos Santos, Manual de Direito
Processual Civil, 4a ed., vol. 1, Saraiva, SP, 1996, pág. 579; Frederico Marques, ob. cit., pág.
299; Amaral Santos e Dinamarco, obras citadas.
A coisa julgada material e a formal são dois degraus de um mesmo fenômeno
(Liebman). Opera-se a formal pela impossibilidade da sentença sofrer recursos e,
consequentemente, sendo o julgamento de mérito, tornam-se imutáveis os seus efeitos.

3. Da Coisa Julgada Inconstitucional

É chegado o momento de abandonarmos o velho brocado de que “a coisa julgada


transforma o quadrado em redondo e o preto em branco”. Não merecem a imunidade da
coisa julgada as sentenças que “ao colidirem com valores de elevada relevância ética,
humana ou política, também amparados constitucionalmente, sejam portadoras de uma
impossibilidade jurídico-constitucional.”12

A coisa julgada é fator de segurança das relações jurídicas, pacificando os conflitos


sociais. Por razões político-jurídicas o direito contido na sentença torna-se imutável
(ainda que não seja o resultado mais justo), com o fito de não se eternizarem as
demandas, provocando insegurança no âmbito da sociedade. No instante em que outros
valores “ éticos, humanos e políticos”, amparados constitucionalmente, tal qual a coisa
julgada, se sobreporem a esta, surge o que o mestre Dinamarco13 convencionou chamar
de “impossibilidade jurídico-constitucional”, antes referida.

A partir destas premissas (continua o mestre), começa a surgir na doutrina nacional e


em algumas decisões do Supremo Tribunal Federal a consciência de uma “coisa julgada
inconstitucional”, denominação que atribui a José Augusto Delgado.

Obviamente, a mitigação da coisa julgada, pela impossibilidade jurídico-constitucional


antes referida é situação excepcional e, portanto, não pode ter seu uso banalizado.14

Banalização que aliás parece ter-se iniciado com advento da M.P. nº 2.180-35, inserindo
um parágrafo único no art. 741 do CPC, com a seguinte redação:

“parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II deste


artigo, considera-se também inexigível o titulo judicial fundado
em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo

12
Dinamarco, Instituições ..., pág. 307.
13
Instituições, pág. 307.
14
A exemplo de outros institutos jurídicos que pelo uso indiscriminado foram banalizados como
a indenização por dano moral.
Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação
tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.”

Mesma redação foi imposta ao art. 884 da CLT pela M.P. antes referida, acrescentando à
norma celetista um parágrafo quinto.

A amplitude que a referida M.P. pretendeu imprimir ao tema refoge à própria


consciência de coisa julgada inconstitucional que o direito nacional ainda está a formar.
O toque da excepcionalidade não pode ser desprezado. A M.P. traz a noção de que
qualquer tipo de decisão, até mesmo em sede de recurso extraordinário, pelo STF, seria
suficiente para tornar inexigível o titulo judicial.

Quisesse o Poder Executivo contribuir para a proteção dos valores mais elevados
previstos na Constituição teria restringido a incidência desta M.P. às decisões proferidas
pelo Supremo nas Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade ou de
Constitucionalidade15.

Ademais, a matéria processual é imprópria para o trato na Medida Provisória. Neste


sentido já se manifestou a doutrina:

“Dificilmente uma medida provisória pode ser fonte de direito


processual, em face de sua excepcionalidade e da imposição
constitucional de requisitos bastante estritos.”16

O tempo, senhor da razão, mostrou que tinha fundamento a manifestação da doutrina. O


uso indiscriminado de medidas provisórias, sem respeito aos requisitos de urgência e
relevância, levou o Congresso Nacional à limitação de suas reedições, bem como à
restrição de seus temas, inclusive vedando o uso de M. P. em direito processual civil.17

Cumpre ao Judiciário, no uso dos controles concentrado e difuso de constitucionalidade,


declarar, sem demora, tão logo seja provocado a tanto, a inconstitucionalidade da M.P.
em questão (art. 5o, LV, da CRFB/88).

15
Sobre o efeito destas ações – Sylvio Motta e Willian Douglas, Direito Constitucional, Impetus,
9a ed., 2002, pág. 532 e seguintes.
16
Cintra, Grinover e Dinamarco, ob. cit., pág. 93.
17
Art. 62, par. 1o , “b”, da CRFB/88, com a redação da E. C. nº 32/2001.

Você também pode gostar