Você está na página 1de 5

CASO CLÍNICO B SUBUN IDADE II – DOR

ABDOMINAL
Doença ulcerosa péptica
A doença ulcerosa péptica (DUP) refere à formaçã o de ú lceras pépticas gastroduodenais, definidas como
soluçõ es de continuidade na mucosa do estô mago ou duodeno com diâ metro ≥ 5mm (lesõ es < 5mm sã o
chamadas de erosõ es), que penetram profundamente na parede do tubo digestivo, ultrapassando a muscular da
mucosa. A DUP é mais encontrada no sexo masculino (mais de 2/3 dos casos), sendo as ú lceras duodenais (com
pico entre 20 e 50 anos) mais frequentes que as gá stricas (mais comuns em idosos, com pico na 6ª década).
A) FISIOPATOLOGIA
A ú lcera é formada por um desequilíbrio entre a agressã o péptica do conteú do gá strico e as barreiras de defesa
da mucosa, levando à autodigestã o da mucosa gastroduodenal. Logo, o á cido assume papel importante em sua
geraçã o, mas nã o exclusiva, sendo necessá rios fatores exó genos que prejudiquem as barreiras de defesa e os
processos de reparo tecidual, como H. pylori, AINEs ou estresse isquêmico/tó xico.
 H. pylori: É responsá vel pela maioria dos casos de
DUP. Ao colonizar a mucosa gá strica, iniciando
pelo antro e podendo migrar à s regiõ es proximais
do estô mago, a bactéria pode gerar diversas
patologias gá stricas, como gastrite crô nica, DUP,
linfoma gá strico MALT e câ ncer, a depender de
fatores do hospedeiro e de virulência da cepa.

O mecanismo de formaçã o das ú lceras difere de acordo com a localizaçã o:


1. Ú LCERA DUODENAL: O H. pylori, ao infectar cronicamente a mucosa antral, inibe a produçã o de somatostatina
pelas células D, promovendo hipergastrinemia e, consequentemente, hipercloridria. A maior secreçã o de HCl pelo
estô mago faz o duodeno receber maior carga á cida, induzindo a metaplasia gástrica no bulbo duodenal, o que
permite sua infecçã o pela bactéria, provocando duodenite (menor vitalidade da mucosa), e aumento de á cido e
pepsina, levando à digestã o das á reas metaplá sicas e ulceraçã o.
2. Ú LCERA GÁ STRICA: As ú lceras tipo I (mais comum) e IV estã o
associadas à normo ou hipocloridria, com gastrite atró fica do corpo
gá strico pelo H. pylori – a lesã o da mucosa pelo microrganismo a
torna extremamente sensível aos efeitos á cido-pépticos mesmo no
estado de hipocloridria. Já as ú lceras tipo II e III possuem relaçã o
direta com a hipercloridria, tendo patogê nese semelhante à da ú lcera
duodenal.
 AINEs: Ao inibirem a COX-1, prejudicam a formaçã o de prostaglandinas na mucosa gá strica e a defesa contra
a secreçã o gá strica, uma vez que as moléculas estimulam a produçã o de muco e bicarbonato, a regeneraçã o
da mucosa e o fluxo sanguíneo (defesa imunoló gica celular). Sã o considerados fatores de risco em usuá rios
de AINE: antecedente de ú lcera; idade > 60 anos; presença de comorbidades (DRC, cirrose...); uso de altas
doses de AINE; associaçã o com corticosteroides, AAS ou anticoagulantes.
 Tabagismo: O cigarro está relacionado à maior incidência e recorrência de DUP, cicatrizaçã o mais lenta das
ú lceras, menor resposta terapêutica e maior chance de complicaçõ es (sobretudo perfuraçã o). Mecanismos
propostos para a diá tese ulcerosa incluem diminuiçã o da produçã o de bicarbonato pelo duodeno, lentidã o
no esvaziamento gá strico, maior incidência de infecçã o por H. pylori e produçã o e radicais livres lesivos à
mucosa.
 Outros fatores: Há predisposiçã o genética de DUP em pacientes com histó ria familiar em parentes de 1º
grau. Além disso, existe forte associaçã o com doença pulmonar crô nica, DRC, cirrose, nefrolitíase,
deficiência de alfa-1-antitripsina e mastocitose sistêmica (aumento da produçã o e liberaçã o de histamina).
OBS: A síndrome de Zollinger-Ellison (SZE) decorre da presença de gastrinoma, levando à formaçã o de ú lceras pépticas em
diversos segmentos do TGI além do estô mago e duodeno pela produçã o excessiva de gastrina e, consequentemente, de
HCl.
B) QUADRO CLÍNICO
A síndrome dispéptica é a manifestaçã o clínica clá ssica da DUP, sendo o principal sintoma a dor epigá strica em
queimaçã o, cujas características diferem de acordo com a localizaçã o da ú lcera:
 Úlcera duodenal  A dor ocorre tipicamente em jejum e à noite, sendo aliviada pelo uso de antiá cidos e pela
ingestã o de alimentos, podendo gerar hiperfagia e ganho ponderal. O despertar noturno pela dor é frequente,
geralmente entre meia-noite e 3h (pico de secreçã o á cida por descarga vagal).
 Úlcera gástrica  A dor costuma ser desencadeada pela ingestã o de alimentos, podendo gerar anorexia e perda
ponderal, e é menos responsiva a antiá cidos. O despertar noturno pode ocorrer, mas é menos comum.
C) DIAGNÓSTICO
1. DIAGNÓ STICO DA LESÃ O: O diagnó stico de ú lcera péptica requer a realizaçã o de exame complementar,
sendo a endoscopia digestiva alta (EDA) o padrã o-ouro, pois permite a visualizaçã o direta da lesã o. O exame
baritado (seriografia) é uma alternativa indicada apenas quando a EDA nã o estiver disponível, pela baixa
A queixa de sintomas dispépticos recentes nem sempre indica EDA. A conduta inicial indicada é a pesquisa do H.
pylori por exames nã o invasivos e, caso positivo, tratamento empírico com erradicaçã o da bactéria. Caso negativo,
um curso empírico de 4 semanas com antissecretores é a medida sugerida. A EDA é indicada em casos refratá rios
ou recorrentes, pacientes > 40 anos ou com sinais de alarme: perda ponderal, anemia, sangramento, vô mitos
recorrentes, disfagia, massa abdominal, adenopatia, histó ria familiar de CA gá strico e gastrectomia parcial pré via.

acurá cia.
O aspecto endoscó pico da ú lcera depende do momento em que é observada, de acordo com seu ciclo vital, que é
dividido em 3 fases: A (active) – ativa; H (healing) – em cicatrizaçã o; S (scar) – cicatrizada.

A EDA també m deve diferenciar ú lceras gá stricas benignas e malignas, uma vez que, em 20% dos casos, o câ ncer
pode mimetizar uma massa ulcerada ao exame macroscó pico. Assim, é obrigató ria a bió psia das bordas da lesã o
em todas elas. Alé m disso, deve-se repetir a EDA apó s 6 a 8 semanas de tratamento para avaliar a cicatrizaçã o e
coletar novas bió psias, uma vez que as ú lceras malignas podem cicatrizar de forma incompleta. Já as ú lceras
duodenais raramente sã o neoplá sicas, nã o exigindo coleta de bió psia ou EDA de controle rotineiramente.

2. INVESTIGAÇÃ O DE H. PYLORI: Todo paciente com DUP deve ser testado para a bactéria, seja por testes
invasivos (se houver indicaçã o de EDA) ou nã o invasivos, e tratado, se positivo. Para a realizaçã o dos testes,
deve ser descontinuado o uso de IBPs por 2 semanas (exceto para sorologia) e de ATBs e sais de bismuto por 4
semanas. Como exame de controle de cura, é indicado o TRU (ou a histologia, se for feita nova EDA).
D) TRATAMENTO
1. TRATAMENTO CLÍNICO
 Medidas gerais: O paciente deve seguir a dieta normal, evitando apenas alimentos que exacerbem os
sintomas. O uso de AINEs deve ser pesquisado e suspenso. O fumo, que prejudica os mecanismos de
reparo e proteçã o da mucosa, e o á lcool, que aumenta o risco de hemorragia digestiva, devem ser
evitados.
 Tratamento farmacoló gico: Visa à reduçã o da acidez do conteú do gá strico somada à erradicaçã o do H.
pylori, quando se encontra presente, o que reduz a taxa de recidiva.
o TRATAMENTO DA LESÃ O ULCEROSA
 1ª linha  Antissecretores: inibidores de bomba de prótons (omeprazol, pantoprazol), considerados
fá rmacos de escolha, e bloqueadores H2 (ranitidina, cimetidina), ambos prescritos por 4-8 semanas
para inibiçã o da secreçã o gá strica, permitindo a cicatrizaçã o da ú lcera. Se nã o houver cicatrizaçã o da
ú lcera, pode-se considerar novo tratamento com aumento da dose ou troca do medicamento.
 2ª linha  Antiácidos (hidró xido de alumínio/magné sio, bicarbonato de só dio), usados para alívio
imediato dos sintomas, e sucralfato, droga citoprotetora que protege a base da ú lcera, formando uma
película que impede a açã o do á cido, da pepsina e dos sais biliares, e estimulando a produçã o de
prostaglandinas, bicarbonato e muco.
o ERRADICAÇÃ O DO H. PYLORI  É indicada em todos os casos de DUP com H. pylori positivo, atravé s de
esquema de pelo menos 3 drogas (2 ATB + IBP), sendo o mais utilizado omeprazol + claritromicina +
amoxicilina, 12/12h, por 14 dias, mantendo o IBP por 4-8 semanas em casos de ú lcera gá strica ou ú lcera
gastroduodenal complicada.
OBS: Em casos de falha à terapia inicial, sã o preconizados como esquemas de 2ª linha a terapia tripla IBP +
levofloxacino + amoxicilina ou a terapia quá drupla IBP + sal de bismuto + doxiciclina + metronidazol, ambas por
14 dias, sendo utilizado o regime restante como 3ª linha se nova falha.
2. TRATAMENTO CIRÚ RGICO
Existem 2 indicaçõ es bá sicas: intratabilidade clínica (nã o cicatrizaçã o da ú lcera apó s tratamento ou recidiva
apó s término da terapia) ou presença de complicações (hemorragia, perfuraçã o e obstruçã o). Nos casos de
ú lceras refratá rias, deve ter sido confirmada a erradicaçã o do H. pylori, a suspensã o do uso de AINEs, a ausência
de malignidade e a exclusã o de SZE para a indicaçã o cirú rgica.
 Ú lcera duodenal: A cirurgia visa a inibiçã o da secreçã o á cida, através de vagotomia para interrupçã o da
estimulaçã o das células parietais pela ACh, podendo ser feita em 2 modalidades:
o Vagotomia gástrica proximal (superseletiva)  Preserva a inervaçã o vagal do antro e do piloro,
cortando somente as ramificaçõ es que inervam o fundo e corpo gá stricos (nervos de Latarjet). Por
preservar mais a anatomia e fisiologia gá stricas, é o procedimento de escolha em casos eletivos, exceto
se houver deformaçã o do bulbo duodenal, pois aumenta a chance de recidiva.
o Vagotomia troncular  É realizada a secçã o dos troncos vagais anterior e posterior, desnervando nã o
só todo o estô mago, mas diversas outras vísceras abdominais, podendo causar diarreia pó s-vagotomia
pela desnervaçã o do sistema biliar, levando a secreçã o excessiva de bile que ganha o có lon e causa
diarreia secretó ria. A perda das contraçõ es antrais retarda a trituraçã o e o esvaziamento gá strico de
só lidos, causando estase gá strica que deve ser evitada por um procedimento cirú rgico adicional, uma
drenagem:
 Piloroplastia: É feita a destruiçã o do piloro e a perda de sua funçã o esfincteriana, o que determina
problemas como gastropatia por refluxo biliar e síndrome de dumping (esvaziamento gá strico
acelerado, causando sintomas pela presença de conteú do hiperosmolar no duodeno). Por isso, é
reservada somente para procedimentos emergenciais, por demandar menor tempo cirú rgico.
 Antrectomia: É feita a retirada do antro e do piloro, seguida de reconstruçã o, geralmente à Billroth
II, uma vez que é indicada para casos de deformaçã o do bulbo duodenal. É a cirurgia com menor
taxa de recidiva, uma vez que a retirada adicional do antro interrompe a produçã o de gastrina.

Apó s a ressecçã o gá strica, deve ser feita uma reconstruçã o para reconectar o TGI e permitir o fluxo e digestã o do
alimento, utilizando-se uma das seguintes técnicas:
 Billroth I  o estô mago remanescente é anastomosado ao duodeno (gastroduodenostomia); é mais fisioló gica,
mas aumenta a chance de refluxo biliar, nã o devendo ser feita se for necessá ria ressecçã o do bulbo duodenal
 Billroth II  o estô mago é anastomosado ao jejuno (gastrojejunostomia), deixando a alça duodenal pendente,
com o coto suturado, permitindo a recepçã o da bile a uma distâ ncia segura do estô mago
 Y de Roux  o braço do Y é formado pelo duodeno e início do jejuno, enquanto o restante do jejuno é elevado
e anastomosado ao remanescente gá strico, o que diminui ainda mais a chance de refluxo biliar

 Ú lcera gá strica: O procedimento depende do tipo e localizaçã o da ú lcera, mas, em todos os casos, deve ser
retirada a porçã o do estô mago que contém a ú lcera.
Tipo I Gastrectomia distal (hemigastrectomia) + reconstruçã o à Billroth I
Tipo II Vagotomia troncular com antrectomia + reconstruçã o à Billroth II
Tipo III Vagotomia troncular com antrectomia + reconstruçã o à Billroth I
Tipo IV < 2 cm da junçã o: cirurgia de Csendes (gastrectomia subtotal + Y de Roux)
2-5 cm da junçã o: cirurgia de Pauchet (hemigastrectomia com extensã o vertical + Y de
Roux)

E) COMPLICAÇÕES
1. HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA: É a complicaçã o mais comum da DUP (10-15% dos pacientes), sendo mais
comum na ú lcera da parede posterior do bulbo duodenal, por sangramento da artéria gastroduodenal.
Manifesta-se subitamente com melena e hematêmese, nos casos mais graves. Inicialmente, deve-se estabilizar o
paciente, com hidrataçã o vigorosa e transfusã o de hemoderivados, passagem de sonda nasogá strica e
administraçã o de IBP parenteral. Logo apó s, deve-se realizar uma EDA para estimar o risco de ressangramento.
Os pacientes com Forrest Ia, Ib, IIa e IIb devem receber
tratamento endoscó pico. Se houver hemorragia ativa, deve-se
administrar epinefrina na base da ú lcera e associar um 2º método
(coagulaçã o térmica ou clipes metá licos no vaso sangrante). Na
ausência de sangramento ativo, emprega-se modalidade ú nica.
OBS: Se persistir a instabilidade hemodinâ mica (infusã o de > 6 U de
concentrado de hemá cias) ou o sangramento apó s terapia endoscó pica,
deve-se realizar tratamento cirú rgico. Enquanto, na ú lcera duodenal, a
sutura do leito ulceroso é suficiente, na ú lcera gá strica, há grande
probabilidade de ressangramento, devendo ser feita a ressecçã o da
ú lcera em cunha e a realizaçã o de uma operaçã o definitiva em seguida.
2. PERFURAÇÃ O: É a 2ª complicaçã o mais encontrada e com maior mortalidade (15%), sendo mais comum na
ú lcera de parede anterior do bulbo duodenal. A perfuraçã o pode ser livre, com o conteú do gastroduodenal
caindo na cavidade abdominal e ocasionando peritonite difusa, ou tamponada (ú lcera penetrante/terebrante),
quando o orifício é criado, mas o derramamento é evitado através de bloqueio por ó rgã os adjacentes (baço,
pâ ncreas, lobo esquerdo do fígado, có lon transverso). Os pacientes apresentam dor abdominal difusa, postura
antá lgica e sinais de irritaçã o peritoneal. Exames de imagem revelam ar fora da cavidade (pneumoperitô nio).
 A ú lcera duodenal pode ser rafiada e protegida com omento (tampã o de Graham). Perfuraçõ es > 3cm podem
exigir recobrimento do defeito com omento ou serosa do jejuno somado à instalaçã o local de dreno
(duodenostomia) ou até vagotomia troncular com antrectomia e reconstruçã o à Billroth II.
 A ú lcera gá strica tipo I deve ser tratada com gastrectomia distal e reconstruçã o à Billroth I se houver estabilidade
(em pacientes instá veis, realizar fechamento com tampã o de omento seguido de bió psia e erradicaçã o do H.
pylori). As ú lceras tipo II e III se comportam como duodenais, sendo tratadas com fechamento simples com ou
sem realizaçã o de cirurgia definitiva.
3. OBSTRUÇÃ O: É a complicaçã o menos frequente, sendo mais comum em pacientes que já possuem estenose
piló rica. A obstruçã o da saída gá strica pode causar plenitude epigá strica, saciedade precoce, ná useas e vô mitos
repetidos na forma aguda, além de perda ponderal, desidrataçã o e alcalose metabó lica em casos crô nicos. Os
pacientes devem receber hidrataçã o venosa com soro fisioló gico, IBP e lavagem gá strica 2x/dia, além de
correçã o do DHE e á cido-bá sico. A terapia é feita com dilataçã o endoscó pica, necessitando em média de 5
sessõ es.

Você também pode gostar