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CAPÍTULO

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Síndrome antifosfolípide
Aleksander Snioka Prokopowistch / Ana Cristina de Medeiros Ribeiro
Hérica Cristiani Barra de Souza

1. Introdução coagulação para a detecção de anticorpos antifosfolípides,


sendo que mais de 1 anticorpo antifosfolípide pode estar
A síndrome antifosfolípide (SAF) é uma condição patoló- associado à atividade do anticoagulante lúpico.
gica de hipercoagulabilidade associada à presença no plas-
2 - Anticorpos anticardiolipina: são, geralmente, de-
ma de anticorpos antifosfolípides, cujas principais manifes-
tectados por ELISA e podem ser da classe IgM, IgG ou IgA.
tações se relacionam a tromboses arteriais e/ou venosas,
Vale ressaltar que, aproximadamente, 50% dos pacientes
morbidades gestacionais e plaquetopenia. Estima-se que
com SAF portadores de anticorpos anticardiolipina podem
5% da população geral e 50% dos indivíduos portadores de
apresentar testes falsos positivos para VDRL, uma vez que,
Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) possuam tais anticorpos,
nesse exame, o substrato é formado por partículas conten-
mas apenas uma parte deles em algum momento termina
do cardiolipina. No entanto, o VDRL falso positivo apresenta
por apresentar alguma manifestação clínica da SAF. Nos pa-
baixa sensibilidade e fraca correlação com a ocorrência de
cientes com LES portadores de anticorpos antifosfolípides,
tromboses, não devendo ser usado como teste de scree-
o risco de trombose venosa é de, aproximadamente, 50%
ning para SAF.
em 20 anos; os mais sujeitos ao quadro são aqueles com
títulos mais elevados e persistentes de tais anticorpos. A 3 - Anticorpo anti-beta2-glicoproteína-I (anti-beta2-
síndrome é denominada primária quando ocorre na ausên- -GP-I): o beta2-GP-I é o antígeno-alvo mais comum dos
cia de doenças do colágeno, e secundária quando aparece anticorpos antifosfolípides. Geralmente, os anticorpos anti-
associada a alguma colagenopatia (LES, por exemplo). cardiolipina de pacientes com SAF são dependentes de be-
ta2-GP-I; no entanto, nem sempre pacientes positivos para
Tabela 1 - Manifestações comuns de SAF anticardiolipina são também positivos para anti-beta2-GP-I.
- Abortamentos de repetição sem causa aparente; Não há padrões internacionais para a detecção desse anti-
- Trombose venosa ou arterial recorrente; corpo até o momento, e sua pesquisa ainda não é usual na
- Livedo reticularis; avaliação da SAF.
- Eventos cardiovasculares em indivíduos jovens; Há outros anticorpos antifosfolípides, como antifosfati-
- Isquemia coronária transitória; dilserina e antianexina-V, porém seu papel na SAF ainda é
- Trombocitopenia inexplicada. incerto, e sua pesquisa não faz parte da avaliação padrão
da síndrome.

2. Anticorpos antifosfolípides
3. Critérios diagnósticos
Os 3 principais tipos de anticorpos antifosfolípides rela-
cionados à SAF são: Os critérios definidos pelo Colégio Americano de
1 - Anticoagulante lúpico: apesar do nome, sua ativi- Reumatologia para a classificação da SAF são:
dade associa-se a um estado pró-coagulante in vivo, ten-
do sido assim denominado por ser capaz de prolongar, in
A - Critérios clínicos
vitro, o Tempo de Tromboplastina Parcial Ativada (TTPA), - Trombose vascular: 1 ou mais episódios de trombose
não corrigível pela adição de plasma normal ao ensaio. A arterial, venosa ou de pequenos vasos, em qualquer
pesquisa do anticoagulante lúpico é um teste funcional de tecido ou órgão.

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REUMATOLOGIA

- Morbidades gestacionais:
• Um ou mais óbitos de fetos morfologicamente nor-
mais após a 10ª semana de gestação;
• Um ou mais partos prematuros de neonatos morfo-
logicamente normais até a 34ª semana de gestação;
• Três ou mais abortamentos espontâneos até a 10ª
semana de gestação.

B - Critérios laboratoriais
- Detecção no sangue de anticorpos anticardiolipina IgG
ou IgM em títulos moderados a elevados em 2 ou mais
ocasiões separadas por, pelo menos, 6 semanas;
- Detecção no sangue de anticoagulante lúpico em 2 ou Figura 1 - Livedo reticular
mais ocasiões separadas por, pelo menos, 6 semanas,
Quanto às afecções neurológicas observadas na SAF,
conforme os guidelines da Sociedade Internacional de
alterações cognitivas e síndromes demenciais são relati-
Trombose e Hemostasia.
vamente comuns, mesmo na ausência de manifestações
O diagnóstico da SAF definida requer a presença de, no isquêmicas evidentes do SNC. Da mesma forma, coreia e
mielite transversa também podem ocorrer na SAF, sem as-
mínimo, 1 critério clínico e de, pelo menos, 1 critério labo-
sociação a eventos trombóticos.
ratorial, sem limite de tempo decorrido entre a ocorrência
Por fim, vale lembrar a possibilidade da denominada
dos eventos clínicos e os achados laboratoriais. SAF catastrófica, forma bastante grave de manifestação da
síndrome caracterizada por múltiplas tromboses de gran-
4. Quadro clínico des e pequenos vasos em diferentes órgãos e tecidos simul-
taneamente. A mortalidade da SAF, na sua forma catastrófi-
Por se tratar de uma síndrome relacionada a um esta-
ca, pode chegar a 50%.
do de hipercoagulabilidade, a SAF pode produzir eventos
tromboembólicos em, virtualmente, qualquer tecido ou Tabela 2 - Critérios de SAF catastrófica. Fonte: UpToDate, 2011
órgão. Como exemplos mais comuns e importantes, po- Critérios preliminares para a classificação de SAF catastrófica
dem-se citar tromboses venosas profundas (em 32% dos
Critérios
casos), oclusões arteriais agudas de membros, acidentes
- Evidência de envolvimento de 3 ou mais órgãos, sistemas e/
vasculares encefálicos (em 13% dos casos), ataques isquê-
ou tecidos;
micos transitórios do SNC (em 7% dos casos), tromboem-
- Desenvolvimentos das manifestações simultaneamente ou em
bolismo pulmonar (em 9% dos casos), infarto agudo do
menos de 1 semana;
miocárdio, infartos hepáticos ou esplênicos, síndrome de
- Confirmação histopatológica de oclusão de pequenos vasos em
Budd-Chiari, insuficiência adrenal isquêmica e neuropatia pelo menos 1 órgão ou tecido;
óptica.
- Confirmação laboratorial da presença de anticorpos antifosfoli-
Do ponto de vista obstétrico, além das manifestações pídicos (anticoagulante lúpico e/ou anticardiolipina).
citadas nos critérios de classificação da SAF, são possíveis Classificação
outras condições mórbidas durante a gravidez, como pré-
- SAF catastrófica definida – requer a presença dos 4 critérios;
-eclâmpsia, eclâmpsia, síndrome HELLP e retardo de cresci-
- SAF catastrófica provável – requer os 4 critérios, exceto pela
mento intrauterino. presença de apenas 2 órgãos, sistemas e/ou sítios teciduais
Outra alteração comum na SAF é a plaquetopenia (em envolvidos ou os 4 critérios, exceto pela confirmação labora-
22% dos casos), causada por consumo ou mesmo por des- torial de, no mínimo, 6 semanas a partir do óbito precoce em
truição imunomediada de plaquetas. Geralmente é leve, paciente nunca antes testado para antifosfolípides ou critérios
mas pode ser grave a ponto de predispor o paciente a qua- 1, 2 e 4 ou 1, 3 e 4 e desenvolvimento de um 3º evento mais
dros hemorrágicos variados. de 1 semana e menos de 1 mês, a despeito da anticoagulação.
Também são frequentes alterações cutâneas, e o livedo
reticular (20% dos casos de SAF-imagem) é uma das ma- 5. Diagnóstico diferencial
nifestações mais características (embora não específica) da O diagnóstico diferencial da SAF inclui, necessariamen-
síndrome. Outras morbidades cutâneas comuns na SAF são te, outras causas de trombofilias. Dentre as causas con-
tromboflebites superficiais (9% dos casos) e úlceras de pele, gênitas, podem ser citados fator V de Leiden, mutação de
especialmente nos membros inferiores. protrombina, deficiências de proteínas C e S, deficiência de

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SÍNDROME ANTIFOSFOLÍPIDE

antitrombina III e hiper-homocisteinemia. As causas adqui- risco de recorrência dos quadros trombóticos. A intensida-
ridas mais importantes de trombofilia são o uso de anticon- de de anticoagulação atualmente recomendada tem, como
cepcionais orais, terapia de reposição hormonal, gravidez, meta, a manutenção do valor de INR entre 2 e 3. Estudos
neoplasias, traumas, cirurgias e imobilidade. recentes demonstraram que, em pacientes com SAF, a ma-
Na sua forma catastrófica, a SAF pode requerer diagnós- nutenção de INR nesses níveis é tão eficaz quanto em níveis

REUMATOLOGIA
tico diferencial com quadros de púrpura trombocitopênica mais agressivos (3 a 4) para a prevenção de tromboses, não
trombótica e de coagulação intravascular disseminada. sendo indicada, portanto, anticoagulação de alta intensida-
Tabela 3 - Condições associadas de em longo prazo na SAF.
LES (25 a 50%), púrpura trombocitopênica Na gestação, a heparina e o AAS passam a ter papel
idiopática (30%), artrite reumatoide (33%), central no tratamento da SAF, dados os riscos do uso de
artrite psoriásica (28%), síndrome de Sjögren varfarina durante a gravidez. Em gestantes com SAF defi-
(42%), artrite de células gigantes/polimialgia nida e história de tromboses ou perdas embrionárias pre-
reumática (20%), doença mista do tecido
conjuntivo (22%), esclerose sistêmica (25%), coces (antes da 10ª semana de gestação), recomenda-se o
Doenças imuno- doença de Behçet (20%), poliarterite nodosa, uso de anticoagulação plena com heparina de baixo peso
lógicas dermatomiosite/polimiosite, anemia hemolí- molecular associada a baixas doses de AAS. Nos casos de
tica autoimune, hepatite crônica ativa. gestantes com SAF e história de perdas fetais após a 10ª
Observação: as porcentagens entre parên- semana, mas sem antecedentes de tromboses, recomen-
teses representam pacientes com AAF e não da-se o uso de AAS durante a gravidez, associado a doses
necessariamente a presença de manifesta-
ções clínicas da SAF. profiláticas de heparina de baixo peso molecular. Em ges-
Tumores sólidos, leucemia, desordens linfo- tantes com SAF e história de partos prematuros (antes da
Malignidade proliferativas/doença de Hodgkin, mieloma 34ª semana), ou em gestantes portadoras de anticorpos
múltiplo, micose fungoide. antifosfolípides, mas sem manifestações clínicas de SAF,
Doenças Mielofibrose, doença de von Willebrand, pode-se usar somente AAS durante a gravidez, especial-
hematológicas para proteinemias. mente no 2º e no 3º trimestres. Vale ressaltar que o uso
Sífilis, hanseníase, tuberculose, micoplasma, de corticoides no manejo da SAF durante a gravidez é con-
doença de Lyme, malária, infecção pelo HIV, traindicado, devido ao aumento de morbidade materna
Doenças hepatite A, hepatite C, HTLV-1, mononucleo-
(pré-eclâmpsia e diabetes).
infecciosas se, adenovirose, parvovirose, sarampo, vari-
cela, caxumba, infecções bacterianas (endo- Em condições específicas, pode-se lançar mão de ou-
cardite e sepse). tras linhas terapêuticas. Quadros de plaquetopenia grave
Doenças Síndrome de Sneddon, miastenia grave, es- podem requerer prednisona e gamaglobulina intravenosa.
neurológicas clerose múltipla, enxaqueca (hemicrania). Episódios de coreia e mielite transversa exigem o empre-
Clorpromazina, fenitoína, hidralazina, pro- go de pulsoterapia com metilprednisolona. Nos casos de
Medicações cainamida, quinidina, clozapina, estreptomi- SAF catastrófica, há necessidade de terapêutica agressiva,
cina, fenotiazinas.
incluindo, além da anticoagulação com heparina, pulsote-
rapia com corticoide e plasmaférese.
6. Tratamento Do ponto de vista profilático, em pacientes com LES,
portadores de anticorpos antifosfolípides sem manifesta-
Tabela 4 - Objetivos ções clínicas de SAF, pode-se considerar o uso de AAS as-
- Profilaxia; sociado à cloroquina, embora a eficácia dessa medida não
- Tratamento das tromboses agudas; tenha sido rigorosamente demonstrada nos estudos reali-
- Prevenção de futuros eventos trombóticos; zados até o momento.
- Manejo adequado da gravidez em mulheres com SAF.
7. Resumo
O tratamento inicial dos eventos trombóticos agudos re-
lacionados à SAF é o mesmo de qualquer outra trombose, Quadro-resumo
requerendo anticoagulação com heparina. Podem ser usa- - SAF: condição de hipercoagulabilidade associada à presença de
das tanto a heparina subcutânea de baixo peso molecular anticorpos antifosfolípides circulantes;
em dose plena como também a heparina não fracionada - Anticorpos antifosfolípides: detectados através da pesquisa de
em infusão intravenosa contínua. anticoagulante lúpico, anticardiolipina ou antibeta-2-glicopro-
teína-I;
Em todos os pacientes com SAF confirmada, está indi-
cada a anticoagulação oral com varfarina em longo prazo, - Tríade importante na SAF: tromboses vasculares, morbidades
gestacionais e plaquetopenia;
muitas vezes por tempo indeterminado, dado o elevado

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REUMATOLOGIA

- Outros achados clínicos: cutâneos (livedo reticular, trombofle-


bites, úlceras) e neurológicos (demências, coreia, mielite trans-
versa);
- Tratamento: anticoagulação em longo prazo (meta de INR = 2 a
3, eventualmente 3 a 4 para eventos arteriais), heparina profi-
lática e AAS (gravidez), cloroquina, corticoterapia/gamaglobuli-
na/plasmaférese (quadros mais graves).

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