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PROJETO

SAHURÉ

EXPEDIÇÃO MARÍTIMA:
DO EGITO AO BRASIL COM
UM NAVIO DA ÉPOCA DOS FARAÓS

CLÁUDIO SUENAGA
Índice

1. Justificativa histórica........................................01
1.1. Barcos proto-egípcios........................................01
1.2. Barcos e navios egípcios.....................................02
1.3. Expedições marítimas a Punt..................................08
1.4. Min of the Desert............................................11
1.5. Barcas solares de Rá.........................................13
1.6. Egípcios no Brasil...........................................16
2. Homenagem e tributo a Thor Heyerdahl...........................37
3. Objetivo.......................................................52
4. O navio egípcio a ser (re)construído...........................54
5. Fontes/Referências.............................................56
1

1. Justificativa histórica

1.1. Barcos proto-egípcios

As mais antigas representações de barcos conhecidas foram encontradas no hiperárido


planalto de Tassili n’Ajjer, no sudeste da Argélia, perto das fronteiras da Nigéria e da Líbia,
onde as areias escaldantes do Saara devoram tudo que se move e a temperatura chega aos 53º
C.
As grutas de Tassili comportam a mais importante coleção de arte rupestre do mundo,
com mais de quinze mil desenhos e pinturas (correspondentes a apenas 20% do total, já que a
maior parte foi destruída pela erosão) que retratam as atividades cotidianas dos habitantes
locais como a caça e a pesca, os rituais religiosos, as mudanças climáticas, as migrações
animais e a evolução da vida humana na orla do Saara entre doze a seis mil anos atrás.
A maior parte das cenas retratadas são de animais: leões, girafas, avestruzes, elefantes,
zebras, bois, crocodilos e até hipopótamos, o que prova que esta região deserta e inóspita já
foi fervilhante de vida. Não é à toa que o significado de Tassili seja “plataforma dos rios”.
Durante o período Subpluvial Neolítico (aproximadamente de 8000 a 3000 a.C.), o clima do
Saara era bastante aprazível. Um rio se estendia do Ocidente para a África Oriental. No lugar
das dunas havia rios, lagos e pastos. Os povos nômades da África perceberam que tais
cavernas ofereciam excelentes possibilidades para isolamento e instalação. Por volta de 7000
a.C., havia caçadores, dançarinos, xamãs e até marinheiros. Por volta de 2500 a.C., o clima
alterou-se drasticamente, tornando-se cada vez mais quente e seco, e a savana começou a se
transformar no deserto que é hoje, forçando as populações da área a se concentrarem ao longo
do Vale do Nilo.
Na arte rupestre saariana há uma profusão de representações de barcos semelhantes aos
que viriam a ser usados pelos antigos egípcios para navegação, transporte e pesca e até para
descrever as viagens para o outro mundo.
Uma pintura situada entre 10000 e 6000 a.C., mostra um par de arqueiros dentro de um
barco de estilo tipicamente egípcio, com cabeças de animais nas duas extremidades arqueadas
e elevadas em forma de lua crescente. Uma outra mostra dois barcos com a mesma curvatura,
com duas cabinas altas e redondas no convés, indicando que eram barcos de grande porte. Um
petróglifo no alto de um penhasco em Wadi Barramiya, no deserto oriental, mostra dois
barcos, cada qual com um tripulante cujos braços se encontram flexionados da mesma
maneira, como se estivessem a manobrar remos. Já um petróglifo localizado em Wadi
Hammamat, no deserto oriental, sugere claramente um sentido religioso, com a embarcação
representando talvez uma jornada espiritual para o outro mundo. Curiosamente, muitos dos
ocupantes dos barcos nas pinturas rupestres do deserto oriental aparecem na mesma posição,
com os braços erguidos e flexionados formando um círculo em torno de suas cabeças, posição
também encontrada em estátuas de divindades pré-históricas e em pinturas rupestres de várias
outras partes do globo.
Os habitantes do Tassili também representavam deuses com cabeças de animais, tal
como no Egito Antigo mais tarde, e alguns de seus rebanhos aparecem com o disco solar entre
os chifres, como os touros Ápis.
A arte rupestre de Tassili n’Ajjer indica, portanto, uma forte conexão de seus autores
com os futuros construtores das pirâmides, ou seja, tudo indica que ali teria florescido a
cultura – ou pelo menos parte dela – que deu origem à civilização do Vale do Nilo.
2

1.2. Barcos e navios egípcios

Os povos que, vindos do sudeste do Saara ou do Oriente Próximo chegaram ao Vale do


Nilo, encontraram um verdadeiro oásis e compreenderam que não teriam necessidade de
seguir caminhando através do deserto. Estabeleceram-se ali e cultivaram a terra.1 Aos poucos
foram se mesclando às tribos locais africanas e a outros migrantes, formando o povo egípcio.2
Esse povo vivia em vários reinos na região situada entre a primeira catarata do Nilo (Assuã,
no sul do Egito, a 950 quilômetros do Cairo) e o Delta do Nilo, mas acabou unido pelo
próprio Nilo e organizado em dois grandes grupos: o Alto e o Baixo Egito. Em 2850 a.C., o
faraó Menés ou Narmer (da Época Tinita), unificou o Egito e fundou a Primeira Dinastia,
tornando-se o primeiro faraó do Egito unificado.3
A mais antiga civilização cultural e cientificamente organizada4 encontrou junto ao Nilo
condições de desenvolvimento até atingir o apogeu durante o Império Novo (1550-1070
a.C.),5 uma era cosmopolita durante a qual, graças às campanhas militares do faraó Tutmés III

1
A planície do Nilo, cuja fertilidade assegurava o sustento de caçadores e coletores nômades desde o Pleistoceno
Médio (780.000-120.000 a.C.), deu aos homens a oportunidade de desenvolver uma economia agrícola
sedentária e uma sociedade mais sofisticada e centralizada que se tornou um marco na história da civilização
humana.
2
Os antigos egípcios foram o resultado de uma mistura das várias populações que se fixaram no Egito ao longo
dos tempos, oriundas do nordeste africano, da África Negra e da área semítica. A questão relativa à etnia dos
antigos egípcios é por vezes geradora de controvérsia, embora à luz dos últimos conhecimentos da ciência falar
de raças humanas revela-se um anacronismo. Até meados do século XX, por influência de uma visão
eurocêntrica, os antigos egípcios eram considerados praticamente como brancos; a partir dos anos 1950, as
teorias do “afrocentrismo”, segundo as quais os egípcios eram negros, afirmaram-se em alguns círculos. Importa
também referir que as representações artísticas são frequentemente idealizações que não permitem tirar
conclusões neste domínio. De qualquer forma, os egípcios tinham consciência da sua alteridade: nas
representações artísticas dos túmulos os habitantes do Vale do Nilo surgem com roupas de linho branco,
enquanto que os seus vizinhos líbios e semitas se apresentam com roupas de lã. A língua dos egípcios (hoje uma
língua morta) é um ramo da família das línguas afro-asiáticas (camito-semíticas). Esta língua é conhecida graças
à descoberta e decifração pelo linguista e egiptólogo francês Jean-François Champollion (1790-1832) da Pedra
de Roseta, onde se encontra inscrito um decreto promulgado por Ptolomeu V Epifânio (205-181 a.C.) em duas
línguas (egípcio e grego clássico) e em três escritas (caracteres hieroglíficos, escrita demótica e alfabeto grego).
O número de habitantes do Antigo Egito variou ao longo da história. Durante o período Pré-Dinástico
(compreendido entre o Neolítico Antigo e o início da Monarquia Faraônica formada pelo rei Menés, ou seja,
entre 4000 e 3000 a.C.), a população rondaria as centenas de milhares; durante o Império Antigo (2686-2181
a.C.), situar-se-ia nos dois milhões, atingindo os quatro milhões por altura do Império Novo (1550-1070 a.C.).
Quando o Egito se tornou uma província romana, estima-se que a população seria de cerca de sete milhões.
Assim como hoje, a esmagadora maioria da população habitava as terras agrícolas situadas nas margens do Nilo,
sendo escassas as populações que viviam no deserto.
3
Enquanto vivo, o faraó era encarado como uma personificação do deus Hórus, enquanto que seu antecessor
falecido era associado a Osíris, pai de Hórus, houvesse ou não relação consanguínea entre os soberanos. A partir
da Quinta Dinastia (2500-2350 a.C.), a terceira das quatro dinastias que formaram o Império Antigo, os reis
apresentam-se como filhos de Rá, o deus solar. A Quinta Dinastia foi um período turbulento com distúrbios de
natureza religiosa, política e econômica. A nobreza começava a ameaçar a hegemonia monárquica. Antes da
Quinta Dinastia, o faraó era considerado deus, mas agora era filho encarnado de Rá, o deus sol, a mais
importante divindade egípcia. Cada vez que Rá e seus sacerdotes subiam de importância, o poder do “rei-deus”
diminuía. Depois vieram os problemas econômicos, pois o Egito pagou alto preço para a construção das
pirâmides, sendo também oneroso mantê-las.
4
A partir de 4000 anos a.C., três grandes focos de civilização estavam definidos: no Vale do Nilo (Egito), na
Mesopotâmia (Oriente Médio, entre os rios Tigre e Eufrates) e no litoral Egeu (entre Grécia e Turquia).
5
Por volta de 1350 a.C., a estabilidade do Império Novo foi ameaçada quando Amen-hotep IV ou, na versão
helenizada, Amenófis IV, subiu ao trono e instituiu uma série de reformas radicais e caóticas. Após mudar o seu
nome para Akhenaton (O Esplendor de Aton), decretou como a divindade suprema o até aí obscuro deus sol
Aton, suprimindo o culto de outras divindades e atacando o poder religioso instalado. Mudando a capital para a
nova cidade de Akhetaten (Horizonte de Áton, atual Amarna), Akhenaton tornou-se desatento aos negócios
estrangeiros, deixando-se absorver pela devoção a Aton e pela sua personalidade de artista e pacifista. Durante
3

(sexto faraó da 18ª Dinastia que reinou entre 1479 e 1425 a.C.), o Egito dominou uma área
que se estendia desde a Núbia, entre a quarta e quinta cataratas do Nilo, até o Rio Eufrates,
exercendo total hegemonia entre as demais existentes no Médio Oriente, após o que entrou em
declínio, sendo conquistado por uma sucessão de potências. Com a morte de Ramsés XI em
1070 a.C., Nesbanebdjed ou Smendes (forma grega do nome, relacionado com o culto do
deus-carneiro em Mendes, cidade próxima de Tânis), fundador da 21ª Dinastia, assumiu a
autoridade sobre o norte do Egito (no sul governavam os sumo-sacerdotes de Amon) e
transferiu a capital de Pi-Ramsés para Tânis, na região oriental do Delta do Nilo, reinando até
1043 a.C., no começo do Terceiro Período Intermediário. Por volta de 730 a.C., líbios vindos
do oeste fragmentaram a unidade política do país. O governo dos faraós terminou
oficialmente em 31 a.C., quando o Egito caiu sob o domínio do Império Romano e se tornou
uma província romana, após a derrota da rainha Cleópatra VII na Batalha de Ácio. Nesta
altura, a navegação pelo Mediterrâneo já era à vela/remo e a sociedade enfraquecida por
numerosas intrigas políticas negociava em precárias condições e sem sucesso uma forma
digna de manter o Egito livre. Entre 30 a.C. e 640 da Era Cristã, o Egito foi dominado
sucessivamente pelos romanos e muçulmanos (mamelucos e turcos otomanos), tendo estes
mantido sua hegemonia até os dias atuais. Neste intervalo, cabe lembrar a dominação francesa
de Napoleão entre 1798 e 1801, a conclusão do Canal de Suez em 1869, e a dominação
inglesa entre 1882 e 1952, quando foi proclamada a República.6
É imprescindível conhecermos um pouco do Rio Nilo (chamado pelos antigos egípcios
de itéru, ou “grande rio”) para entendermos seus barcos, os mais antigos construídos por uma
civilização organizada. O poderio da civilização egípcia deveu-se em grande parte às riquezas
proporcionadas pelo Vale do Nilo.7 O historiador grego Heródoto (485-420 a.C.), depois de
viajar por esse país, cunhou a emblemática frase “Aegyptos dorón esti tou Nilo” (“O Egito é
uma dádiva do Nilo”) e descreveu em detalhes a construção de barcos egípcios conforme
testemunhou in loco. Para os antigos egípcios, o Nilo era uma verdadeira bênção dos deuses,
sendo considerado sagrado e adorado como um deus, ao qual dedicavam hinos e orações.
Reconhecido como o maior rio do mundo, o Nilo nasce em Jinja (Uganda), na borda norte do
Lago Vitória, no centro do continente africano, e percorre 6.695 quilômetros até a foz. Após
cruzar o Egito do sul para o norte, projeta suas águas no Mar Mediterrâneo. Sua profundidade
média oscila entre 8 e 12 metros. Sua largura é normalmente menor do que 500 metros. Na
altura do Cairo, abre-se em leque formando um extenso delta de 150 quilômetros de extensão
com centenas de ilhas, canais naturais e artificiais de dois braços volumosos em sua foz que se

seu reinado, as relações comerciais com o Mar Egeu (minoicos e micênios) são cortadas e os hititas começam a
fazer perigar a soberania egípcia na Síria. Após sua morte, o culto de Aton foi rapidamente abandonado, e os
faraós Tutankhamon, Ay e Horemheb apagaram todas as referências à heresia de Akhenaton, agora conhecida
como Período Amarna.
6
Hoje o Egito faz parte da Liga Árabe junto com outros 23 países que a compõem, orgulhando-se de ser a mais
pacífica e talvez sem querer, uma das mais abertas à influência Ocidental. O atual território do Egito, porém, não
pode ser comparado ao do Antigo Egito, pois o Sinai e partes dos desertos Oriental e Ocidental, estão dentro dos
limites do Egito.
7
Os egípcios usaram vários nomes para se referirem à sua terra. O mais comum era Kemi (de onde se originou a
palavra “química”), “a Terra Negra” ou “Terra Fértil”, que se aplicava especificamente ao território nas margens
do Nilo e que aludia à terra negra trazida pelo rio todos os anos. Decheret, “Terra Vermelha”, referia-se aos
desertos que circundavam o Nilo, onde os egípcios só penetravam para enterrar os seus mortos ou para
explorarem pedras e metais preciosos. Também poderiam chamá-la Taui (“as Duas Terras”, ou seja, o Alto e o
Baixo Egito), Tameri (“Terra Amada”) ou Ta-netjeru (“A Terra dos Deuses”). Na Bíblia, o Egito é denominado
Misraim. A atual palavra Egito deriva do grego Aigyptos (pronunciado Aiguptos), que se acredita derivar por sua
vez do egípcio Het-Ka-Ptah, “a mansão da alma de Ptah”. Os habitantes atuais do Egito dão o nome Misr ao seu
país, uma palavra que em árabe pode também significar “país”, “fortaleza” ou “acastelado”. Segundo a tradição,
Misr é o nome usado no Alcorão para designar o Egito, e o termo pode evocar as defesas naturais de que o país
sempre dispôs. Outra teoria é que Misr deriva da antiga palavra Mizraim, que por sua vez deriva de md-r ou mdr,
usada pelos locais para designar o seu país.
4

entende por longas distâncias desde Alexandria, no Mediterrâneo, até Port Said, no Canal de
Suez. A leste do Nilo encontra-se o Deserto Oriental Africano (comumente conhecido como
Deserto Oriental), que se estende até o Mar Vermelho, e a oeste o Deserto da Líbia
(comumente conhecido como Deserto Ocidental), onde existem vários oásis dos quais se
destacam os de Siuá (a 560 quilômetros a oeste do Cairo e a 300 quilômetros ao sul do porto
de Marsa Matruh), Kharga (200 quilômetros a oeste do Vale do Nilo), Farafra (a 300
quilômetros do Vale do Nilo, com seu Deserto Branco, conhecido por Sahara el Beyda, a
45 quilômetros a norte do oásis), Dakhla (a 350 quilômetros do Nilo) e Bahariya (a 360
quilômetros do Cairo).
O Nilo inundava entre julho a setembro, quando as geleiras da Etiópia derretiam e
faziam o Nilo transbordar. As enchentes e as chuvas sazonais depositavam húmus nas
margens favorecendo a agricultura e pecuária; também fornecia água fresca, peixes e aves
aquáticas, além de servir para o transporte e comércio. Entre outubro e novembro, as águas
baixavam e o solo começava a ser tratado e semeado. Entre janeiro e abril faziam a colheita.
Como o nível do rio era inconstante, os egípcios desenvolveram diques, barragens e canais de
água para melhor aproveitarem as águas do rio, assim como o “nilômetro”, uma construção
usada para medir as enchentes. Durante o período das enchentes os cidadãos eram deslocados
para as cidades para trabalharem em outras tarefas.
A inundação previsível e a irrigação controlada do vale fértil produziam colheitas
excedentárias, o que propiciou o desenvolvimento social e cultural. Com recursos
excedentários, o governo patrocinou a exploração mineral do vale e nas regiões do deserto ao
redor,8 o desenvolvimento inicial de um sistema de escrita independente, a organização de
construções coletivas e projetos de agricultura, o comércio com regiões vizinhas e campanhas
militares para derrotar os inimigos estrangeiros e afirmar o domínio egípcio. Motivar e
organizar essas atividades foi uma tarefa burocrática dos escribas de elite, dos líderes
religiosos e dos administradores sob o controle de um faraó que garantiu a cooperação e a
unidade do povo egípcio no âmbito de um elaborado sistema de crenças religiosas. As muitas
realizações dos antigos egípcios incluem o desenvolvimento de técnicas de extração mineira,
topografia e construção que permitiram a edificação das monumentais pirâmides, templos e
obeliscos; um sistema de matemática, geometria e astronomia, um sistema prático e eficaz de
medicina, sistemas de irrigação e técnicas de produção agrícola, os primeiros navios
conhecidos, faiança e tecnologia com vidro, novas formas de literatura e o mais antigo tratado
de paz conhecido, o Tratado Egípcio-Hitita, usualmente designado por Tratado de Kadesh (ou
Qadesh, que marcou o fim oficial das negociações entre as duas grandes potências do Médio
Oriente àquela altura, que se seguiram aos conflitos armados de grandes proporções que
culminaram na célebre batalha de Kadesh, travada dezesseis anos antes), celebrado entre o
faraó egípcio Ramsés II (o terceiro faraó da 19ª Dinastia que reinou entre 1279 e 1213 a.C.,
durante o Império Novo) e o rei hitita Hatusil III por volta de 1259 a.C.
Para um povo que vivia numa terra banhada em toda a sua extensão por um rio do porte
do Nilo, nada mais natural que o barco fosse o principal meio de transporte. Carros com rodas
seriam inúteis nas areias do deserto e na lama do vale do rio. O meio mais prático e rápido de

8
Os egípcios trabalharam em depósitos de minério de chumbo e galena em Gebel Rosas para fazer chumbo
líquido, prumos e pequenas figuras. O cobre, o metal mais usado para a fabricação de ferramentas no Antigo
Egito, era fundido em fornos de minério de malaquita e turquesa extraídas do Sinai, que só pertenceu ao Egito
após sua conquista no Império Novo. Através de lavagem, eram coletadas pepitas de ouro em sedimentos de
depósitos aluviais. Outro processo para obtenção do ouro, mais trabalhoso, era a moagem e lavagem do quartzito
de ouro. Depósitos de ferro encontrados no norte do Egito foram utilizados na Época Baixa. Depósitos de pedras
decorativas, tais como pórfiro, quartzo, feldspato verde, ágata, diorito, grauvaque, berilo, alabastro e cornalina
pontilhada dos desertos oriental e ocidental foram coletadas antes mesmo da Primeira Dinastia. Nos período
ptolomaico e romano, os mineiros trabalharam em jazidas de esmeraldas de Wadi Sikait e ametista em Wadi el-
Hudi.
5

viajar e transportar cargas pesadas (de grãos e gado vivo a obeliscos de granito) eram
embarcações de diversos tamanhos que possuíam, no geral, remos presos à proa. Pedras para
as pirâmides com até 300 toneladas desceram 1.000 quilômetros ao longo do Nilo, a remo.
Ainda não se sabe exatamente de que modo os egípcios transportavam até os barcos e nele
depositavam os obeliscos monolíticos cortados das pedreiras do Alto Egito e esculpidos em
granito numa peça inteiriça de 30 a 40 metros e pesando entre 100 e 300 toneladas. Várias
embarcações e pontilhões certamente eram requeridos para o deslocamento, pois as pedreiras
ficavam no lado oriental, enquanto os templos no lado ocidental. Pedras de construção de alta
qualidade eram abundantes no Egito; os antigos egípcios extraíram calcário ao longo do Vale
do Nilo, granito de Assuã e basalto e arenito dos barrancos do Deserto Oriental.
Os egípcios, contudo, não dispunham de madeira apropriada para construir
embarcações. Estima-se que as primeiras, construídas há pelo menos seis mil anos, foram
feitas com hastes de junco ou papiro. O barco em papiro era largo no meio e tinha a forma de
foice, com uma popa que se podia elevar e se mantinha em tensão através de um cabo ligado
ao casco. O barqueiro o deslocava com uma vara que apoiava no fundo do rio. Com cordas e
caules de papiro eram construídas canoas ligeiras, empregadas para perseguir o crocodilo e o
hipopótamo em meio à vegetação aquática, ou para atingir os locais onde as aves se
agrupavam em meio ao verde, ou ainda na busca dos cardumes dos peixes mais apreciados.
Madeira de cedro importada do Líbano era reservada para a construção de barcos reais e
navios de grande porte. No geral, as embarcações, fossem de pequeno ou grande porte, não
possuíam quilha nem reforços, no que eram muito leves, uma vez que a calmaria do Nilo não
os exigia.
Na cultura Maadiana (ou Maadi-Buto, entre 3800-3200 a.C., contemporânea de Naqada
I-II), dentro do período Pré-Dinástico (4000-3000 a.C.), compreendido entre o Neolítico
Antigo e o início da Monarquia Faraônica constituída pelo rei Menés, verificou-se o
surgimento dos primeiros cemitérios bem definidos, assim como de um intenso comércio com
os povos vizinhos para obtenção de mercadorias raras e exóticas não encontradas no Egito.
Importavam produtos do Oriente Médio (madeira de cedro, nódulos de sílex, cerâmica,
ferramentas de pedra, resinas, óleos, vinho, cobre e basalto), Alto Egito, em particular da
Núbia9 (ouro, incenso, marfim, pentes, paletas cosméticas, cabeças de clava, plumas de
avestruz e peles de leopardo) e Deserto Oriental (malaquita, manganês, cornalina, conchas e
pérolas). Também mantinham comércio com a Palestina, evidenciado por jarros de óleos de
estilo palestino encontrados nas sepulturas dos faraós da Primeira Dinastia. Uma colônia
egípcia foi fundada no sul de Canaã antes mesmo da Primeira Dinastia. Na época de Narmer
foi produzida cerâmica egípcia em Canaã, que era exportada para o Egito. Houve também
comércio com a Anatólia para adquirir estanho e para o fornecimento suplementar de cobre,
dois metais necessários para a fabricação do bronze. Os egípcios valorizavam a pedra azul
lápis-lazúli, que tinha de ser importada do Afeganistão. Os parceiros do Egito no comércio
mediterrânico também incluíram a Creta e a Grécia, que forneciam, entre outras mercadorias,
o azeite. Em troca de suas importações de luxo e de matérias-primas, o Egito exportava
principalmente grãos, ouro, linho e papiro, além de outros produtos acabados, incluindo
objetos de vidro e pedra. Para o Oriente, exportavam cerâmica, conchas e cereais, e para o
Alto Egito, cobre, basalto e sílex.
Grande parte desse comércio certamente tinha de ser feito por via fluvial e marítima. O
Museu do Louvre, em Paris, exibe a gravura de uma antiga embarcação egípcia, um barco a

9
Provavelmente a mais antiga civilização negra da África, baseada na civilização anterior do Alto Egito, tanto
que Napata antes de ser a capital da Núbia independente da sua metrópole colonial egípcia, era uma mera colônia
egípcia ao sul de Assuã, anexada durante o Médio Império. Aparentemente os núbios eram filhos de colonos sul-
egípcios com escravas nilóticas que deram origem ao reino de Cuche, que existiu entre o terceiro milênio a.C. e
o século IV d.C.
6

vela desenhado em um jarro da cultura Gerzeana ou Naqada II (também conhecida por


Garzeanze A, correspondente a uma das etapas da fase pré-dinástica da história do Egito),
datado de aproximadamente 4000-3500 a.C.
Os primeiros barcos egípcios a vela construídos com tábuas unidas com cordas e usados
no Rio Nilo datam de 3000 a.C., ou ainda antes. Como o Nilo corre do sul para o norte, mas o
vento sopra geralmente do norte para o sul, se eles queriam ir para o sul bastava içar as velas.
Se queriam navegar para o norte, diminuíam a ação das velas e utilizavam a correnteza do rio.
Os faraós logo atinaram para a necessidade de uma marinha forte. Por volta do ano 2800
a.C. foram construídas, muito provavelmente, as primeiras grandes embarcações em madeira.
Feitas com tábuas muito leves, não exigiam quilha nem costado de reforço. Com ferramentas
de pedra, as pranchas de madeira eram cortadas e moldadas e, depois, amarradas
(“costuradas”) com cordas ou firmadas juntas com cavilhas de madeira. Também sabiam
como prender as tábuas juntas com peças encaixáveis (caixa e espiga). Por fim eram
calafetadas (“seladas”) com papiro (junco) ou breu para que a água não penetrasse.
Basicamente era assim que também se fabricavam barcos, canoas e bateiras (pequena
embarcação sem quilha) que eram usados para a circulação por todo o país, para o transporte
das colheitas e para as visitas de peregrinação aos principais santuários dos deuses egípcios.
No Império Antigo ou Antigo Reino (2686-2181 a.C.), com a capital em Mênfis,
iniciado com a unificação dos dois reinos empreendida pelo faraó Menés, houve grandes
progressos na irrigação e na agricultura, além da construção de grandes pirâmides e a
organização de diversas expedições para exploração mineral nas minas do Sinai (utilizado
como rota de comunicação para o corredor sírio-palestino, que a rigor seria a faixa de terra
litorânea que liga o Egito à Mesopotâmia) e Mar Vermelho, assim como campanhas militares
contra núbios e líbios.
A Pedra de Palermo10 informa que em 2600 a.C., Snefru, o primeiro faraó da Quarta
Dinastia (de 2613 a 2494 a.C., a segunda das quatro que formaram o Antigo Império, durante
o qual as grandes pirâmides de Gizé foram construídas) que reinou entre 2630 a.C. e 2609
a.C. ou 2613 a.C. e 2589 a.C.,11 construiu uma frota de grandes navios e enviou quarenta

10
Fragmento de uma pedra de basalto medindo 43 centímetros de altura por 30 centímetros de largura (sendo
que a pedra original teria 2,10 metros de altura e 60 centímetros de largura), provavelmente feita durante a
Quinta Dinastia (2392-2283 a.C.), na qual se gravaram, em ambos os lados, uma lista de reis egípcios desde a
época Pré-Dinástica até à época de Neferirkaré (terceiro rei da Quinta Dinastia no Império Antigo, tendo
sucedido a seu irmão Sahuré e reinado de 2458 a 2438 a.C.), bem como eventos associados aos seus reinados
(guerra, construção de templos, cobrança de impostos). O nome se deve ao fato do fragmento se encontrar desde
1877 no Museu Arqueológico de Palermo, na ilha italiana da Sicília. Outros seis fragmentos que fariam parte da
pedra encontram-se no Museu Egípcio do Cairo e no Petrie Museum de Londres.
11
Durante o reinado de Snefru surgiu pela primeira vez a pirâmide lisa ou “perfeita” no Egito. A Snefru estão
associadas duas pirâmides, a maior das quais em Meidum, um complexo funerário a cerca de 80 quilômetros a
sul de Mênfis, na margem ocidental do Nilo, junto à região do Faium. Esta pirâmide foi intermédia entre a
pirâmide escalonada (ou em “degraus”) de Djoser e as pirâmides perfeitas do tempo da Quarta Dinastia. Foi
inicialmente concebida como uma pirâmide de sete degraus, tendo posteriormente sido acrescentado mais um.
Ademais, acrescentou-se nas paredes exteriores da pirâmide um revestimento de calcário que a transformou
numa pirâmide perfeita. O revestimento acabou por desmoronar, dando à pirâmide o seu aspecto atual de torre
quadrangular sobre uma colina de rocha. Quando a corte se mudou para Dahchur (necrópole situada próxima de
Mênfis), no ano 15 de seu reinado, Snefru ordenou a construção da pirâmide conhecida como “Curvada” ou
“Romboidal”, com arestas arqueadas que mudam de ângulo no meio da estrutura de 102 metros de altura.
Certamente não foi esta a intenção original de Snefru, já que, não satisfeito com o resultado final da obra, o que
teria se devido à pressa com que foi executada, Snefru mandou erigir, a alguns quilômetros ao norte, a Pirâmide
Vermelha, considerada a primeira pirâmide verdadeira construída no Egito. O seu nome deve-se ao fato de seu
revestimento exterior em calcário ter praticamente desaparecido, deixando exposto a pedra vermelha que foi
usada na construção.
7

deles para Biblos, na Fenícia (atual Líbano), chamada pelos antigos egípcios de Kypt, de onde
regressaram com rico carregamento do famoso cedro.12
Um dos filhos de Snefru e Hetep-heres, sua meia-irmã, foi Khufu (ou Quéops, cujo
reinado se estendeu de 2551 a 2528 a.C.), tido como construtor da Grande Pirâmide de Guiza
ou Gizé. Em uma mastaba a leste de Gizé, sobre o sarcófago do príncipe Minkhaf I (filho de
Khufu, meio-irmão de Djedefre e irmão mais velho de Khafra), há inscrições de oferendas e,
entre elas, uma lista de barcos.

12
Considerado o maior povo navegante da Antiguidade, os fenícios viviam numa área de apenas 400
quilômetros, entre as montanhas e o mar, onde hoje está o Líbano, parte de Israel e da Síria. Segundo Heródoto,
era um povo formado por tribos de semitas vindas do Índico. No início eram pastores que acabaram empurrados
até o mar por tribos mais poderosas. Por vocação ou necessidade, especializaram-se no comércio e na navegação.
Foram influenciados por três grandes culturas, das quais eram vizinhos: a egípcia, a mesopotâmica e a cretense.
Situada no cruzamento das rotas comerciais, a Fenícia desempenhou importante papel na história do
Mediterrâneo, possivelmente desde 4000 a.C. Seu principal produto de exportação foi, por muito tempo, o cedro
do Líbano. Mais tarde adquiriram renome na manufatura de tecidos vermelho-escuros, fato que acabou lhes
rendendo o nome. É que, em grego, panos vermelhos significavam phoinios, que eram vendidos pelos phoinikes,
ou fenícios, do rosto vermelho queimado pelo sol ou dos panos rubros que fabricavam. Além de hábeis artesãos
e comerciantes de peso, por volta do século VIII a.C. os fenícios viriam a repassar aos gregos o alfabeto, herdado
provavelmente de outro povo semita do Oriente Próximo.
8

1.3. Expedições marítimas a Punt

Durante o reinado de Sahuré (“aquele que está próximo de Rá”), o segundo faraó da
Quinta Dinastia que reinou entre cerca de 2487 e 2475 a.C. e estabeleceu a primeira frota
marinha egípcia, manteve-se uma intensa atividade comercial com a região do Oriente
Próximo (Líbano, Palestina e Mesopotâmia). A Pedra de Palermo menciona expedições ao
Sinai e à mítica terra ou reino de Punt (situada provavelmente no Chifre da África, designação
da região Nordeste que inclui a Somália, a Etiópia, o Djibouti e a Eritreia, com uma área de
aproximadamente 2 milhões de km²), de onde se trazia ouro, malaquita, electrum (uma liga
natural de ouro e prata), mirra, resinas aromáticas, ébano, marfim e animais silvestres como
macacos e babuínos. A expedição a Punt teria voltado com 80 mil medidas de ntyw, ou
mirra,13 23.030 duelas (tábua encurvada com que se forma o corpo de tonéis, barris, etc.) em
madeira (preciosíssima no deserto) e 6 mil medidas de electrum. O que a Pedra de Palermo
não informa é a localização de Punt. O nome de Sahuré foi encontrado estampado numa
pequena peça de ouro numa cadeira libanesa. Também foram encontrados cartuchos da
Quinta Dinastia em recipientes libaneses de pedra. Cenas retratadas no templo de Sahuré
mostram ursos sírios.
Sankhkare Mentuhotep III (ou Montuhotep III), faraó da 11ª Dinastia que reinou de
2010 a 1998 a.C., enviou uma expedição a Punt durante o oitavo ano de seu reinado. Uma
inscrição em Wadi Hamamat descreve a expedição como sendo composta por oito mil
homens sob o comando do oficial Hennu (ou Henenu). Ao saírem de Koptos (ou Qift, cidade
a cerca de 43 quilômetros ao norte de Luxor, na margem leste do Rio Nilo, que já existia
desde o ano 4000 a. C. e adquiriu grande importância por ser o enclave estratégico das rotas
de caravanas que interligavam o Vale do Nilo ao Mar Vermelho e nos quais se veneravam os
deuses Min, Hórus e Ísis) em direção ao Mar Vermelho, eles cavaram doze poços para uso em
futuras expedições e afugentaram da região os rebeldes. Voltaram de Punt com incenso, goma
e perfumes.
Senuseret III (ou Sesóstris III), quinto faraó da 12ª Dinastia que reinou de 1878 a.C. a
1842 a.C., marcando o apogeu do Império Médio, construiu um “Canal de Suez” antigo,
ligando o Rio Nilo ao Mar Vermelho para a realização de trocas diretas com Punt.
Aventura ainda mais ousada a Punt aconteceu durante o reinado de Hatshepsut (que
reinou durante o Império Novo por cerca de 22 anos, no começo do século XV a.C.), a
primeira mulher a governar o Egito.14 Quinta soberana da 18ª Dinastia (estabelecida em 1550
13
Derivada de uma árvore do mesmo nome, a mirra era usada para fazer incenso, resina que os egípcios
queimavam em profusão nos templos, daí ser tão procurada e valorizada. O incenso era largamente usado nos
rituais de adoração aos deuses. Grandes quantidades eram queimadas diariamente nos templos em todo o
território egípcio. Na parte da manhã queimava-se Olíbano (uma resina aromática conhecida também como
franquincenso), ao meio-dia Mirra, e à noite Kyphi (Kapet, um indutor de sonhos que também era usado como
remédio para aliviar a epilepsia, a asma, as dores de cabeça, ouvidos, estômago e fígado e que, quando ingerido,
era um antídoto contra o veneno de serpentes).
14
Hatshepsut teria sido a verdadeira soberana durante quase todo o período do reinado de seu meio-irmão e
marido, o faraó Tutmósis II – cuja maior realização foi ter esmagado, pouco depois que assumiu o trono, uma
revolta na Núbia que levou ao fim do reino de Kush –, devido a saúde precária deste. Teria sido justamente para
impedir o avanço de sua esposa como monarca do Egito que Tutmósis II nomeou como herdeiro e sucessor
Tutmés III, o filho que tivera com sua esposa secundária Ísis. Apesar de Hatshepsut ter realizado um reinado
bem sucedido marcado por expedições comerciais a Punt, um elegante templo mortuário, um par de obeliscos
colossais e uma capela em Karnak, Tutmés III tentou apagar o seu legado em represália pela usurpação do seu
trono. Em seus retratos oficiais, Hatshepsut era representada vestida de homem, formalidade que seria mantida
para todas as mulheres reinantes no Egito. Mais de mil anos depois, a célebre Cleópatra (69 a.C.-30 d.C.) seria
repreentada também com um falso estojo de barba preso ao queixo. Um faraó não deveria ser mulher, mas se o
fosse, devia ser “promovido” a homem. Hatshepsut foi também a primeira rainha retratada em forma de esfinge.
Assim, pela primeira vez, esse ser mítico apresentou traços femininos. Foi devido a essa tradição que mais tarde
os gregos considerariam a esfinge um ser feminino.
9

a.C. após a expulsão dos hicsos – povos de origem asiática que dominaram o Egito por quase
duzentos anos – e que se estendeu até 1295 a.C.) e esposa do faraó Tutmés II ou Tutmósis II
(nascido por volta de 1510 a.C., e que reinou de 1493 ou 1492 a 1479 a.C.), seu meio-irmão,
com quem teve duas filhas (as princesas Neferure e Neferubiti), Hatshepsut mandou preparar
uma alentada expedição comercial pelo Mar Vermelho até Punt em busca de suas cobiçadas
riquezas.
O périplo surge detalhado num baixo-relevo do palácio de Hatshepsut em Deir el-Bahari, um
complexo de sepulturas e templos mortuários na margem ocidental do Nilo, no lado oposto à
cidade de Luxor, em frente à antiga Tebas. As cenas gravadas na pedra mostram de forma
pormenorizada a construção de cinco grandes navios e a organização da expedição que partiu
do Nilo, adentrou por um canal, hoje desaparecido, que levava diretamente de um braço do
Nilo até a saída do Suez, no Mar Vermelho, e desceu para o sul, costeando as terras africanas.
Guiando-se pelos antigos mapas, os cinco navios seguiram por uma embocadura do rio que
conduzia à fabulosa terra de Punt, cuja soberana foi retratada como sendo bastante obesa e as
casas como tendo a forma de colmeia e estando assentadas sobre palafitas sombreadas por
palmeiras e, provavelmente, árvores de mirra. O regresso se fez meses depois, carregados de
ouro, marfim, ébano, incenso, mirra, resinas e especiarias, além de animais como leopardos,
cães e “macacos com cabeça de cão” (babuínos). A cena final mostra dignitários de Punt
apresentando suas “maravilhas” à rainha Hatshepsut.
A última expedição conhecida a Punt ocorreu sob Ramsés III, o segundo faraó (entre
1194 e 1163 a.C.) da 20ª Dinastia e o último grande faraó do Império Novo a exercer uma
grande autoridade sobre o Egito. Um registro em papiro informa que “foram construídos
grandes navios de transporte carregados com bens ilimitados do Egito. Eles chegaram à terra
de Punt, não afetados por (qualquer) infortúnio, seguros e respeitados”, e que assim
retornaram. Mas de onde exatamente? O papiro não diz e apenas deixa claro que a expedição
de Ramsés III chegou a Punt através do Mar Vermelho.
A localização exata de Punt é incerta e controversa. Os textos sagrados e baixos-relevos
do palácio de Hatshepsut em Deir el-Bahari que reproduzem animais como girafas e macacos,
além de choças, parecem indicar alguma zona na região da África Oriental que corresponderia
ao que é hoje a Somália, Sudão, Eritéria, Etiópia, sul da Núbia ou até mesmo o Omã. Análises
conjuntas recentes de dados arqueológicos, zoológicos, botânicos e minerais convergem para
o Delta do Gash, na zona oriental do sul do Sudão. Há ainda a possibilidade de que Punt fosse
a designação não propriamente de um Estado ou de uma cidade, mas de uma região extensa
que abrangeria zonas da Península Arábica banhadas pelo Mar Vermelho como o próprio
Iêmen, onde cresciam as plantas de mirra tão apreciadas pelos egípcios.
Os primeiros debates acerca da localização de Punt se iniciaram em 1858, quando o
recém fundado Supreme Council of Antiquities (Conselho Supremo de Antiguidades), divisão
do Ministério da Cultura do Egito, começou a escavar os grandes templos em torno de Tebas.
Baseado em textos hieroglíficos recém descobertos que descreviam Punt como fonte de
substâncias aromáticas situada a leste do Egito, o egiptólogo alemão Heinrich Karl Brugsch
(1827-1894) sugeriu pela primeira vez que Punt se localizava na Península Arábica, afinal de
contas os próprios gregos atribuíam os “perfumes da Arábia” como sendo originários de uma
terra a leste do Egito. O célebre egiptólogo francês François Auguste Ferdinand Mariette
(1821-1881), fundador do Serviço de Antiguidades do Egito (do qual foi diretor de 1858 a
1880) e do Museu de Bulak, antecessor do Museu Egípcio do Cairo, derrubou essa suposição
com duas descobertas. Uma delas era uma lista hieroglífica que o faraó Tutmés III havia
deixado no Templo de Karnak, em Tebas, que situava Punt ao sul do Egito. A outra era um
baixo-relevo de Hatshepsut, o qual, entre outras evidências, apontava para a África,
mostrando claramente animais africanos como sendo nativos de Punt, incluindo a girafa e o
rinoceronte, nenhum deles encontrado na Arábia. Mariette supôs então que Punt ficava na
10

costa da Somália, também conhecida por seus aromas, incluindo os lendários incenso e mirra.
A reforçar essa assunção, está o fato de que a ponta do Chifre da África, uma região semi-
autônoma dentro da moderna Somália, atende pelo nome de Puntland.
A hipótese de Mariette não sofreu contestações por mais de um século, até que em 1968
o etnólogo alemão Rolf Herzog (1919-2006), que presidiu o Institut für Ethnologie Freiburg,
pôs a localização de Punt em dúvida mais uma vez. Com base em um estudo detalhado da
flora e fauna e outros elementos de Punt representados no baixo-relevo de Hatshepsut, Herzog
trouxe o reino mítico para bem mais perto, especificamente para o sul do Egito, entre o Atbara
(rio do nordeste da África que nasce no noroeste da Etiópia, 50 quilômetros ao norte do lago
Tana, e deságua no Nilo, na cidade de Atbara, no Sudão, sendo um três rios que se encontram
e formam o Nilo e o último afluente do Nilo antes que este desague no Mediterrâneo) e a
confluência do Nilo. Punt, para Herzog, teria sido atingido por terra e pelo rio, mas não pelo
mar.15
Em 1971, Kenneth Anderson Kitchen (1932-), egiptólogo e especialista britânico em
estudos orientais e clássicos da Universidade de Liverpool, derrubou a teoria da incapacidade
egípcia de navegar para longe de Herzog com a simples observação de que os peixes e outras
espécies marinhas (como a lagosta e a lula) retratados pelos escultores de Hatshepsut sob os
navios de Punt, são indubitavelmente espécies que vivem no Mar Vermelho. Kitchen, que
passou quatro décadas pesquisando e escrevendo sobre Punt, estabeleceu o que é até hoje a
posição mais aceita sobre a localização de Punt. De acordo com Kitchen, Punt situava-se, em
termos geográficos atuais, em uma região a leste do Sudão e ao norte da Etiópia que se
estendia desde o Mar Vermelho até o Rio Nilo.
O egiptólogo francês Dmitri Meeks, da Université Paul Valéry, avançou e expandiu a
localização de Punt em 2003 ao situá-la ao longo de toda a costa ocidental da Península
Arábica, desde o Golfo de Aqaba, no extremo sul da Jordânia, ao Iêmen. Meeks diz que
“quando se leva em conta as referências antigas sobre Punt, a imagem se torna clara. Punt
situa-se em relação ao Vale do Nilo, tanto para o norte, em contato com os países do Oriente
Próximo da área do Mediterrâneo, como para o leste ou sudeste, enquanto que suas mais
distantes fronteiras estão para o sul. Só a Península Arábica satisfaz todas essas indicações.”

15
Herzog, Rolf. “Punt”, in Ägyptologische Reihe, Glückstadt, Vol. 6, 1968 [Abhandlungen des Deutschen
Archäologischen Instituts Kairo].
11

1.4. Min of the Desert

Em 2008, a arqueóloga norte-americana especialista em arqueologia náutica e navios


egípcios Cheryl Ward, diretora do Centro de Arqueologia e Antropologia e professora
associada do Departamento de História da Coastal Carolina University, à frente de uma
equipe internacional de especialistas e com a imprescindível ajuda dos experientes arquitetos
navais australianos Tom Vosmer e Patrick Couser, começou a concretizar o seu projeto de
reconstruir um dos navios de Hatshepsut com as mesmas técnicas utilizadas nos recuados
tempos e testá-lo em alto-mar. Para tanto, Ward e sua equipe se valerem das representações
em baixo-relevo dos navios de Hatshepsut no monumento funerário de Deir el-Bahari, que de
tão finamente detalhadas forneceram os elementos necessários para a sua fiel reconstituição,
bem como das últimas e oportunas descobertas feitas nas escavações de Mersa Gawasis,16
jazida na costa do Mar Vermelho, 26 quilômetros ao sul do atual Porto de Safaga, uma cidade
portuária fundada entre 282 e 268 a.C., originalmente chamada Philotera pelo faraó greco-
egípcio Ptolomeu II, que nomeou a cidade em homenagem à sua falecida irmã. Em Mersa
Gawasis, arqueólogos liderados por Kathryn A. Bard, da Boston University, e Rodolfo
Fattovich, professor de Arqueologia e Antiguidade Etíope no Instituto Universitario Orientale,
de Nápoles, desenterraram evidências reais do comércio com Punt: um estaleiro onde os
contemporâneos de Hatshepsut equiparam um navio depois de o terem transportado pelo Nilo
até o mar, parcialmente desmontado, através do deserto, além de grandes tábuas e pranchas de
madeira, enxárcias (conjunto dos ovéns, os cabos que aguentam a mastreação para um e outro
bordo), redes, âncoras de pedra e outros artefatos relacionados com a expedição náutica. Eles
também trouxeram à luz produtos reais provavelmente trazidos de Punt, incluindo ébano e
obsidiana (vidro vulcânico), nenhum deles nativos do Egito, incluindo caixas de carga com
um texto hieroglífico que descreve o conteúdo como as “maravilhas de Punt”.
Os arqueólogos obcecados por Punt supõem que os navios direcionados àquele reino
eram desmontados e levados 160 quilômetros através do deserto de Qift (ou Koptos), a 43
quilômetros ao norte de Luxor, na margem leste do Nilo, onde este rio mais se aproxima do
Mar Vermelho. Eram então remontados no antigo porto do Mar Vermelho de Saww (hoje
Mersa Gawasis, sendo Mersa = Porta, e Gawasis = Marinheiro) e daí partiam para Punt. Ao
regressarem, descarregavam os navios em Mersa Gawasis e transportavam a carga em
caravanas de burros de volta para o Nilo, onde os embarcavam em outros navios rumo ao sul,
para a capital Tebas. Algumas inscrições apontam ainda que uma outra opção para chegar a
Punt era viajar para o sul ao longo do Nilo, passando pela Núbia e mais além. Alguns
estudiosos acreditam que os egípcios optaram por esta via durante o Antigo Reino, quando
povos amigáveis governavam a Núbia, e apenas optaram por cruzar o deserto quando no
início do Império Novo, por volta de 1550 a.C., reinos hostis bloquearam a rota terrestre para
o sul do Mar Vermelho.
A reconstrução do navio faraônico batizado de Min of the Desert (Min ou Menu era o
deus da fertilidade e da vegetação, culto que remonta ao período Pré-Dinástico, no Quarto
Milênio a.C.), financiado pela Sombrero & Co., decorreu entre 2 de abril e 15 de outubro de
2008, nos modernos estaleiros Hamdi Lahma & Brothers Shipyard, em Rashid, Rosetta, perto
de Alexandria, no Delta do Nilo. O navio de 20,30 metros de comprimento, 4,90 metros de
boca, 1,20 metros de calado, mastro único implantado a meia nau, vela retangular de 14
metros x 5 metros confeccionada em algodão e 30 toneladas de deslocamento, foi construído
com madeira de pinheiros Douglas, árvores que apresentam – mormente no que tange a sua

16
Em dezembro de 2001, a Universidade de Nápoles [University of Naples ‘L’Orientale’ (UNO)] e o Instituto
Italiano para a África e o Oriente [Italian Institute for Africa and the Orient (IsIAO)], de Roma, junto com a
Universidade de Boston [Boston University (BU)], iniciaram um projeto arqueológico conjunto em Mersa/Wadi
Gawasis, na costa do Mar Vermelho, sob a direção de Rodolfo Fattovich (UNO/IsIAO) e Kathryn A. Bard (BU).
12

densidade – algumas similitudes com os cedros utilizados no tempo dos faraós. A equipe
montou as pranchas do casco através de junções de cavilhas e encaixes, sem pregos nem
armações, como um puzzle.
O sistema de propulsão mais utilizado para este tipo de embarcações era à vela e remos,
mas quando o vento ou a força da corrente não o permitiam, arrastavam os navios atados a
cordas que puxavam pelos caminhos de sirga paralelos à margem. Em qualquer dos casos,
tratavam-se de barcos sem quilha. A grande interrogação, pois, para Ward e a sua equipe, era
saber se os egípcios tinham de fato conseguido chegar a países longínquos e atravessar o Mar
Vermelho contra ventos e marés em embarcações como o Min, ou se nesse tipo de navio era
apenas possível navegar a favor do vento e das correntes; neste caso, os marinheiros de
Hatshepsut ter-se-iam limitado a contornar a costa em direção ao sul, talvez até ao litoral
sudanês, no máximo.
A resposta começou a surgir nos primeiros testes de navegabilidade e nas primeiras
viagens em dezembro de 2008 e finalmente no dia 17 de janeiro de 2009, quando o Min do
Deserto cortou as amarras no pequeno Porto de Safaga, na costa do Mar Vermelho, a 26
quilômetros ao norte de Mersa Gawasis e a 53 quilômetros ao sul de Hurghada. O barco de 20
metros de comprimento sulcou o Mar Vermelho com uma tripulação de 24 pessoas, entre
marinheiros e estudiosos de várias nacionalidades. Cavalgando as ondas a uma velocidade de
nove nós (16,6 km/h ou 4,6 m/s), graças ao impulso das velas, cobriu uma extensão de 278
quilômetros e demonstrou que os antigos egípcios poderiam perfeitamente ter feito longas
viagens e chegar até ao Iêmen, à Arábia ou à Somália em busca das matérias-primas que
escasseavam no seu país.17

17
Um documentário sobre esta aventura épica abordando desde a construção do Min até seu lançamento exitoso
ao mar, foi rodado sob a direção de Stephane Begoin em regime de co-produção pelas redes de televisão ARTE,
BBC, PBS-NOVA e NHK. O da BBC intitula-se The Pharaoh Who Conquered the Sea, e o da PBS-NOVA,
Building Pharaoh’s Ship. Ambos foram lançados em 2010.
13

1.5. Barcas solares de Rá

A importância dos barcos na vida cotidiana egípcia é refletida no papel que


desempenharam na mitologia e na religião. Os egípcios acreditavam que o deus sol Ré (Rá)
deslocava-se numa barca pelo céu, “a barca de milhões de anos”, e que o rei ao morrer unia-se
a Rá, velejando em seu barco nas águas do mundo subterrâneo. Os barcos sagrados de Rá,
conhecidos como barcas solares, eram chamados de Mandjet e Mesektet. O Mandjet era o
barco que Rá utilizava para atravessar o céu e o Mesektet era o barco que levava Rá até o
submundo. O barco solar que viajava ao submundo levando o morto em seu caminho na busca
da vida eterna é constantemente retratado no Livro dos Mortos (cujo nome original em
egípcio era Livro de Sair Para a Luz), redigido na época do Império Novo, mas que recolheu
textos bem mais antigos do Livro das Pirâmides (Império Antigo) e do Livro dos Sarcófagos
(Império Médio).
Pelo papel crucial desempenhado por Rá, no decorrer dos séculos todos os deuses
importantes foram associados a ele – Amon, em Tebas, Ptah, em Memphis, e Aton, em
Heliópolis, juntaram a seus nomes o de Rá.
Para os egípcios, todas as noites quando o Sol se punha, Rá iniciava mais uma decisiva
batalha contra a serpente do caos, da destruição e do mal Apep ou Apophis (Apófis), inimigo
de Rá. Apófis surge como uma serpente gigantesca de 30 metros de comprimento, servida por
hordas de demônios, a maioria possuindo qualidades de serpentes de fogo. Segundo o Amduat
(“O livro de como é no submundo”), texto funerário do Império Novo que apareceu completo
pela primeira vez na tumba de Tutmés III, no Vale dos Reis, o submundo era dividido em 12
horas que Rá precisava enfrentar para no outro dia reaparecer novamente no horizonte, saindo
vitorioso de mais uma batalha e trazendo a luz que os humanos tanto necessitavam. Nos
túmulos do Vale dos Reis, muitas imagens evocam esta viagem noturna. O Amduat dava
detalhes do que o deus iria encontrar durante a jornada de 12 horas no Duat, um lugar de
trevas onde existiam diversos demônios, conhecido também como o submundo. Assim como
Rá, os faraós começaram a associar o Amduat com a sua própria vida e o livro servia para que
o faraó morto soubesse os nomes dos deuses bons e ruins que iria encontrar na passagem
junto com Rá em seu barco. Os antigos egípcios acreditavam que modelos de barcos em
miniatura ajudariam o falecido a ultrapassar os obstáculos da vida após a morte. Alguns faraós
foram enterrados com barcos de tamanho natural. O mais famoso e elaborado destes barcos,
dotado de proa e popa esculpidas e uma cobertura, é o que pertenceu ao faraó Quéops.
Quando em 1954 encontrou-se uma estrutura em pedra durante a limpeza de rotina
próxima a Grande Pirâmide, pensou-se inicialmente que se tratava de um muro que cercaria o
edifício. Após uma escavação mais profunda – ou remoção sistemática – realizada pelo
arqueólogo egípcio Kamal El Mallakh, foram encontrados dois fossos cujas paredes eram
feitas de pedra calcária e guardavam em seu interior as peças desmontadas de um barco feito
de madeira de cedro. Para o trabalho de montagem foi contratado o restaurador egípcio Hag
Ahmed Youssef Moustafa (mais tarde conhecido como Haj Ahmed Youssef) que, apesar da
sua experiência de vinte anos trabalhando na restauração de tumbas tebanas, acreditava que
seus conhecimentos e os conhecimentos dos cientistas eram limitados quanto à montagem dos
antigos barcos. Assim, durante três meses visitou artesões locais e fez modelos de navios em
escala treinando para a tarefa que o esperava no platô de Gizé. O barco escolhido para ser
montado possuía 1.224 peças que foram cuidadosamente transportadas uma a uma para um
galpão próximo ao local para a sua restauração. O tratamento de preservação de cada peça
variava. As esteiras de junco e as cordas de linho, por exemplo, eram tratadas em resinas para
que não se esfarelassem. Ao todo, foram treze camadas de madeira, todas elas fotografadas e
catalogadas.
14

Como a técnica dos egípcios faraônicos havia se perdido, Moustafa não sabia quais as
disposições das peças para montá-las, mas tentou segui-las de acordo com a ordem que foram
postas dentro do fosso. A equipe de Moustafa precisou iniciar e reiniciar o processo de
montagem quatro vezes, até que um dos ajudantes notasse que as peças que se encaixavam
perfeitamente possuíam símbolos comuns que pareciam servir como guias. Apesar da ajuda
antiga, os remos não possuíam indicações e foram postos onde os restauradores supunham
que seria o seu local original. Ao final de nada menos do que dezesseis anos de trabalho, a
embarcação de 43,6 metros de comprimento, 58 centímetros de largura, com uma proa que se
eleva a 5 metros e uma popa a 7 metros, estava finalmente remontada.
O seu design, estreito e comprido, é de característica papiriforme, em imitação ao
aspecto dos pequenos barcos de papiro. Como era de praxe, os antigos construtores não
haviam recorrido a nenhum tipo de metal para a sua fixação. Tudo era unido por meio de
encaixes e cordas de linho, o que atestava a maestria e engenhosidade da construção naval
faraônica. O barco era perfeitamente utilizável não apenas em termos rituais, indicando que
poderia ter outrora navegado, ainda mais devido ao desgaste por fricção das cordas com a
madeira que teria sido causada muito possivelmente pelo inchaço desta última ao ficar em
contato com a água. O barco pode ter transportado o corpo de Khufu de Mênfis para Gizé e,
no final, como uma relíquia sagrada, sido guardado próximo à sua pirâmide. Hoje o barco está
exposto em um museu construído em cima do fosso onde permaneceu guardado por séculos.
Um segundo poço, encontrado no mesmo ano, também contém uma embarcação, mas
permaneceu intacta e guardada em seu local original. Em 2008, uma equipe japonesa
da Universidade de Waseda, em Tóquio, liderada pelo arqueólogo Sakuji Yoshimura, inseriu
uma pequena câmera no fosso para avaliar as condições do artefato. Em 2011, decidiu-se
retirar o barco de seu lugar original. Tal responsabilidade foi confiada à Universidade de
Waseda e ao Instituto Japonês para Investigação e Restauração. A Universidade doou ao
Ministério de Antiguidades Egípcias US$ 10 milhões para poder retirar o artefato de seu
lugar, restaurá-lo e remontá-lo para que ficasse, então, ao lado do primeiro barco encontrado.
Na primeira fase do resgate (a de retirada dos pilares de calcário) foi encontrado o nome de
Khufu dentro de um cartucho, assim como o do seu filho e sucessor Djedefre (cujo nome
significa “Duradouro como Rá”, e que foi o primeiro rei a usar o título de “O Filho do Deus
Sol”, o que é visto como uma indicação da crescente popularidade do culto ao deus sol, Rá),
porém o deste último está sem a proteção de um cartucho. Isso teria sido devido ao fato de
que o fosso foi lacrado ainda no reinado de Khufu, já que o seu filho e substituto ainda não
gozava da proteção real.
Desde 1991, os arqueólogos sabiam que havia pelo menos uma dúzia de barcos de
madeira trezentos anos mais antigos do que os de Khufu, ou seja, os mais antigos barcos no
mundo construídos com pranchas de madeira, enterrados nas areias do deserto em Abidos (a
13 quilômetros do Nilo e a 480 quilômetros ao sul do Cairo), nas proximidades de um
volumoso muro que circundava as imediações do sepulcro de pedra do faraó Khasekhemwy
(2686 a.C.), último rei da Segunda Dinastia (2770 a 2649 a.C.).
De 1991 a 2000, quatorze grandes barcos de madeira datados de 3000 a.C., de
comprimentos variando entre 18 e 24 metros, ostentando notáveis evidências da riqueza, do
poderio e da perícia tecnológica dos primeiros tempos da civilização egípcia, foram
desenterrados por uma equipe de arqueólogos dos Institutos de Belas Artes das Universidades
de New York, Pennsylvania e de Yale, liderados pelo egiptólogo David O’Connor, professor
da Universidade de New York e diretor do Abydos Boats Project (Projeto Barcos de Abidos),
que faz escavações no local desde 1967 sob os auspícios do Ministério da Cultura do Egito e
do Conselho Supremo de Antiguidades.
Assim como os de Khufu, os barcos eram perfeitamente funcionais, porém não
evidenciavam sinais de uso. Cada barco, pertencente à frota real, havia sido cuidadosamente
15

preenchido e revestido com tijolos e argamassa para que o faraó pudesse utilizá-lo apenas no
“além”. Além disso, cada cova em si estava moldada de maneira a ter a forma do barco que
continha. As cavidades estavam tampadas e caiadas, dando a impressão de uma grande frota
branca, e uma grande pedra arredondada havia sido colocada perto da proa ou popa de vários
barcos, sugerindo âncoras. Os posicionamentos dessas pedras pareciam deliberados e não
aleatórios. Durante escavações realizadas entre maio e junho de 2000, descobriu-se que os
barcos foram colocados em suas covas muitos anos antes da edificação daquele muro e da
construção do túmulo de Khasekhemwy, de maneira que, provavelmente, estavam destinados
ao uso póstumo de um soberano muito mais antigo, talvez mesmo Aha, o primeiro faraó da
Primeira Dinastia (2920 a 2770 a.C.).
Os especialistas acreditam que os barcos não eram simples maquetes, mas meios viáveis
de transporte que poderiam acomodar até trinta remadores. O modo como foi construído é
único entre os barcos egípcios antigos que sobreviveram. Ao que parece, foram construídos de
fora para dentro, em contraste com a técnica de construção naval posterior, que se iniciava
com uma armação interna. Com fundo chato, aproximadamente 23 metros de comprimento e
2 a 3 metros de largura no ponto mais largo, eles possuem apenas 60 centímetros de
profundidade, com proas e popas mais estreitas e capacidade para trinta remadores. O casco
apresenta pranchas de madeira grossa, unidas por cordas que passam através de entalhes. As
junções entre as pranchas estavam preenchidas com feixes de canas para evitar a entrada da
água, enquanto que canas adicionais atapetavam o chão do barco. Resíduos de pigmento
amarelo indicam que estes barcos provavelmente foram pintados. Trabalhadores peritos
altamente especializados e que não contavam com outros instrumentos a não ser ferramentas
de pedra, eram requeridos para construir tais embarcações. A tarefa exigia planejamento e
disciplina e um alto nível de organização, o que certamente os egípcios já possuíam há cinco
mil anos.
16

1.6. Egípcios no Brasil

A busca de matérias-primas e bens comerciais inexistentes ou escassos no Egito pode


ter sido o impulso inicial que levou os antigos egípcios a construírem navios capazes de
navegar em mar aberto e o principal motivo que os levaram a se aventurarem pelo Oceano
Atlântico, como antes pelo Mar Vermelho. É lícito supor, portanto, que milhares de anos
antes de Cabral, os antigos egípcios tenham aportado no Brasil – assim como em outros
pontos do continente americano – e por aqui deixado suas marcas e o legado de sua cultura.
Desde pelo menos o início do século XIX, não muito tempo depois da chegada do
regente Dom João VI e da Comitiva Portuguesa à Baía de Guanabara em 7 de março de 1808,
a intelligentsia da época já sabia e discutia acerca das inscrições, reconhecidamente muito
antigas, existentes no alto da Pedra da Gávea,18 na zona sul do Rio de Janeiro. O segundo
número da Revista Trimestral de Historia e Geographia ou do Jornal do Instituto Historico
Geographico Brasileiro, de julho de 1839, publicou o texto “Relatorio sobre a inscripção da
Gavia mandada examinar pelo I.H.G. Brasileiro”, de autoria do escritor do romantismo,
jornalista (fundador de várias revistas, dentre elas a Lanterna Mágica, de humor político),
pintor, caricaturista (foi o primeiro a publicar uma caricatura no Brasil, em 1837), arquiteto,
historiador de arte, professor, político e diplomata paulista Manuel José de Araújo Porto-
Alegre, o Barão de Santo Ângelo (1806-1879), e do historiador, político, jornalista e poeta
carioca Januário da Cunha Barbosa (1780-1846).19 O texto em questão, lido por Barbosa na
sessão de trabalhos da oitava reunião extraordinária do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB)20 em 23 de maio de 1839 e cujos trechos transcrevo a seguir em português
atual, aventava que “assim como Pedro Álvares Cabral e Afonso Sanches, empurrados pelos
ventos, descobriram o continente da América, também alguns desses povos antigos que a
ambição do comércio forçava a sulcar os mares podia, por iguais motivos, aportar às nossas
praias e escrever sobre uma pedra um nome ou um acontecimento para que, em qualquer
altura, as gerações vindouras lhe restituíssem a glória de tão grande descoberta”.

18
A Pedra da Gávea foi assim cognominada – assim como o Rio de Janeiro – pela expedição do capitão Gaspar
de Lemos (comandante de um dos navios da frota de Pedro Álvares Cabral por ocasião do Descobrimento do
Brasil, em 22 de abril de 1500, e que foi por ele designado para retornar a Portugal levando ao rei Dom Manuel I
a carta de Pero Vaz de Caminha) que partiu de Lisboa em 10 de maio de 1501 (só retornando em 7 de setembro
de 1502) e de que participou igualmente o navegador e explorador italiano (a serviço de Portugal e Espanha)
Américo Vespúcio. A Pedra da Gávea foi a primeira montanha carioca a ser batizada com um nome português
após ter sido avistada no dia 1º de janeiro de 1502 pelos seus marinheiros, que associaram a sua silhueta ao
formato de um cesto de gávea (o cesto de observação instalado no ponto mais elevado na embarcação para
monitoramento nos navios e perscrutação do horizonte em busca de sinais de terra), dando origem ao termo
usado para toda a região da Gávea Pequena e para o atual bairro da Gávea. Outros feitos da expedição de Gaspar
de Lemos foram as descobertas do arquipélago de Fernando de Noronha; da baía que batizou de Baía de Todos
os Santos, em 1º de novembro de 1501; da Baía da Guanabara, que confundiu com um rio e batizou de Rio de
Janeiro, em 1º de janeiro de 1502; de Angra dos Reis, em 6 de janeiro; e da Ilha de São Vicente, em 22 de
janeiro de 1502.
19
Barbosa pertencia à Maçonaria, onde foi eleito orador em 1822, tendo atuação destacada no processo da
Independência. Em 1825 foi nomeado cônego da Capela Real por Dom Pedro I. Entre 1829 e 1832, publicou
Parnaso Brasileiro, uma das primeiras antologias poéticas nacionais. Contribuiu assiduamente com biografias,
necrológios e estudos para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual foi um dos
fundadores em 1838 juntamente com o marechal Raimundo José da Cunha Matos. Barbosa foi um dos
apoiadores e incentivadores da obra do historiador brasileiro Francisco Adolfo Varnhagen.
20
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) é a mais antiga e tradicional entidade de estudos,
pesquisas e preservação histórico-geográfica, cultural e de ciências sociais do Brasil, tendo sido fundado em 21
de outubro de 1838. Em março de 1839 recebeu o patronato do imperador D. Pedro II, que além de seu protetor
tornou-se um ativo membro, presidindo centenas de sessões. O vínculo com o governo imperial era quase que
total: cinco anos após a sua fundação, 75% do orçamento do IHGB era coberto pelo governo, porcentagem que
se manteve durante todo o século XIX.
17

A inscrição foi primeiramente analisada por Frei Custódio, um professor de grego


versado em línguas orientais e em epigrafia (parte da paleografia que estuda as inscrições
antigas gravadas em matéria sólida) que se dedicou à zoologia e à botânica na Academia
Militar do Rio de Janeiro. Ao vê-la in loco, o capelão-mor de Dom João VI concluiu que o
Brasil tinha sido visitado por nações conhecedoras de navegação, as quais aqui teriam
chegado bem antes dos portugueses. Frei Custódio certificou Cunha Barbosa de que havia
copiado a inscrição fielmente e comunicado a descoberta ao próprio Dom João VI.
Cônsios de que “a descoberta de uma inscrição é um fato que pode revolucionar a
história, reconquistar ideias perdidas e aniquilar outras em pleno domínio”, e que “um nome e
uma frase em uma lápide podem preencher lacunas imensas restaurando conjecturas e abrir
uma estrada luminosa do passado ao futuro”, os membros do IHGB encarregaram uma
comissão de analisar e copiar a inscrição no próprio local, comissão esta que “não poupando
aos meios e fadigas que uma primeira excursão demanda para obter um resultado digno da sua
missão”, foi acompanhada de perto por José Rodrigues Monteiro, capelão de Sua Majestade
Imperial, o qual, “participando dos incômodos sofridos nesta exploração arqueológica”,
testemunhou a cópia que se fez da inscrição.
Araújo Porto-Alegre e Cunha Barbosa assim descreveram o local da inscrição no topo
da Pedra da Gávea onde a Comissão teve de se esfalfar:

“A inscrição da Gávea se acha colocada de maneira vantajosa para essas


conjecturas, pois está voltada para o mar, e situada numa face da rocha cúbica, pouco
escarpada, com caracteres colossais de 7 a 8 palmos (de 1,40 metros a 1,60 metros),21 ao
rumo de L.S.E., e podem ser vistos a olho nu por todas as pessoas que por ali passarem;
e é notável que todos os habitantes daqueles lugares conheçam as letras de pedra. A
inscrição assim colocada está exposta à fúria das tempestades e dos ventos do meio-dia
e, por consequência, deve estar muito gasta, tanto mais que o granito da pedra em que
está gravada (donde se conclui que a lenda que a cabeça seria de gnaisse não tem
fundamento, pois a inscrição fica na cabeça) é pouco consistente, por conter muito talco
e mica, e na sua base existem três cavidades esburacadas que lhe dão o aspecto de uma
grande máscara. [...] Um dos dados arqueológicos que reforçam qualquer conjectura
tendente a averiguar a origem de tais monumentos é a possibilidade de se poder ou não
gravar naquela altura imensa uma inscrição tão colossal e o caráter geológico do mesmo
local. [...] O homem que, levado àqueles lugares, quisesse deixar uma recordação de sua
passagem, facilmente seria seduzido pela majestade e grandeza do morro da Gávea e
pela disposição daquela pedra, com uma face quase plana e fronteira ao mar.”

O relatório da Comissão do IHGB é concluído com Araújo Porto-Alegre e Cunha


Barbosa fazendo votos para que surgisse um “Champollion brasileiro” que viesse a decifrar de
vez as inscrições da Gávea, “se é que são inscrições”.22
O arqueólogo, linguista, coronel, numismata e comerciante amazonense Bernardo de
Azevedo da Silva Ramos (1858-1931),23 contrariamente ao que proclamam alguns, não foi
esse Champollion, até porque não contou com a sorte de lhe cair o equivalente de uma Pedra

21
Na realidade os caracteres têm entre 2,50 metros e 3 metros.
22
Porto-Alegre, Manoel de Araújo & Barboza, J. da Cunha. “Relatorio sobre a inscripção da Gavia mandada
examinar pelo I.H.G. Brasileiro”, in Revista Trimestral de Historia e Geographia ou do Jornal do Instituto
Historico Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, nº 2, julho de 1839, pp.86-91 [Tomo Primeiro, 1º-4-1839].
23
Silva Ramos viajou pela Europa e Oriente Médio passando pela Palestina e pelo Egito adquirindo
conhecimentos de diversas línguas, entre as quais a hebraica, a fenícia e o sânscrito. Foi o fundador e presidente
da Associação dos Proprietários de Manaus, um dos fundadores do Clube Republicano do Amazonas, e fundador
do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (em 25 de março de 1917). Nos seus livros deixou catalogadas
mais de duas mil inscrições encontradas em cerâmicas, por ele próprio, nos Estados do Amazonas e do Pará.
18

de Roseta às mãos. Em 1928, enquanto terminava de redigir sua monumental obra em quatro
grandes volumes intitulada Inscripcões e tradiçoes da America prehistorica, especialmente do
Brasil,24 pôs-se a traduzir e a interpretar, de modo a incluí-las em seu livro, as inscrições da
Gávea a partir do desenho copiado pela comissão do IHGB quase cem anos antes.25 Bernardo
nunca viu as inscrições pessoalmente, e certamente se os tivesse visto, mesmo num ângulo
ruim, perceberia que aquelas marcas não correspondiam exatamente ao desenho do IHGB.
Não que a comissão não tenha divisado as inscrições de perto o bastante ou em um ângulo
favorável para dispensar o uso da fantasia a que comumente se recorre para o preenchimento
de certas lacunas. Ocorre que dependendo da época do ano e do horário, a incidência de luz e
sombras sobre as inscrições distribuídas numa linha reta de 30 metros costumam alterar-lhe a
configuração.
De qualquer forma, Silva Ramos procedeu a sua famosa e até hoje muito citada
tradução que em português ficou sendo: “Tiro, Fenícia, Badezir, primogênito de Jethbaal”,
sendo Tiro capital da Fenícia, Badezir (ou Baalazar) o rei daquela cidade-estado entre 855 e
850 a.C., e Jethbaal o pai que reinou entre 887 e 856 a.C. com o nome Ithobaal I (em hebraico
Ethbaal), citado no Antigo Testamento (I Reis 16:31) como o rei de Sidon e pai de Jezabel,
mulher do rei Acabe, embora outros registros históricos o mencionem também como rei de
Tiro, já que na época os dois reinos estavam unificados. Silva Ramos, infelizmente, tinha a
tendência de interpretar qualquer risco numa pedra como sendo letras de algum alfabeto,
preferencialmente fenício, e não foi de modo diferente que agiu em relação às inscrições da
Gávea, lendo-as da direita para a esquerda, tal como exigem os caracteres hebraicos e a
linguagem púnica.
Com isso, Silva Ramos acrescentou à sua obra mais uma prova da passagem dos
fenícios pelo Brasil, juntando-o aos seus outros achados na Amazônia e aos cerca de três mil
letreiros e inscrições (a metade do Brasil e de outros países americanos, e a outra metade dos
países dos três velhos continentes) que vinha assiduamente coletando há trinta anos. É incrível
que esta tradução esdrúxula seja até hoje aceita por muitos como uma prova indubitável de
que a Pedra da Gávea e os demais monumentos no Rio de Janeiro tenham sido obras dos
fenícios, quando eles mesmos não chamavam de Fenícia (Foenisian) suas terras, mas de
Canaã (Canaan), o que por si só invalida toda a tradução. Quem os chamava de fenícios eram
os gregos, de modo que a tradução só poderia ser considerada certa se um grego tivesse
supervisionado a feitura das inscrições, o que, convenhamos, seria por demais forçado. Os
fenícios, portanto, não foram os autores das inscrições na Pedra da Gávea, o que não significa
que não tenham passado pelo Rio de Janeiro.
Havia uma forte tendência ou moda no começo do século XX no Brasil em apontar os
fenícios como a nossa maior influência colonizadora antes dos portugueses, afinal, seria um
contrassenso não acreditar que justamente eles, exímios navegadores que eram e contando
com a madeira ideal para fabricar seus navios, isto é, o cedro do Líbano, não ousassem
enfrentar o Atlântico, sendo eles próprios destemidos e excelentes comerciantes.
Contemporâneo de Silva Ramos, o austríaco Ludwig Schwennhagen (cujas datas de
nascimento e falecimento são desconhecidas)26 foi o principal proponente e o mais ardoroso

24
Silva Ramos, Bernardo de Azevedo da. Inscripcões e tradiçoes da America prehistorica, especialmente do
Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1932 [O primeiro volume foi publicado pela Imprensa Nacional do
RJ, e o segundo, por falta de recursos oficiais, na França].
25
As inscrições da Pedra da Gávea são tratadas por Silva Ramos no primeiro volume de sua obra Inscripcões e
tradiçoes da America prehistorica, especialmente do Brasil, à pág. 436A, sob o título “As Inscrições do Morro
da Gávea”. Como foi dito, o desenho das inscrições que reproduziu não é dele, mas da comissão do IHGB.
26
Schwennhagen havia sido membro da Sociedade de Geografia Comercial de Viena e sócio do jornal anti-
semita de Berlim Staatsbürgerzeitung, pelo qual entrou em conflito com Hirsch Hildesheimer (1855-1910),
estudioso, escritor e ativista judeu, professor desde 1880 de história judaica e geografia no Seminário Rabínico
de Berlim para o judaísmo ortodoxo, que tinha sido fundada por seu pai, Esriel Hildesheimer, em 1873.
19

defensor da teoria da presença dos fenícios no Brasil. Tendo chegado em Teresina na primeira
década do século XX,27 a população, que o chamava de “Chovenágua”, dizia que ele era um
“alemão” calmo e grandalhão que ensinava história, bebia cachaça nas horas de folga e
passava a maior parte do tempo percorrendo o Piauí e outros recantos do Nordeste em busca
de provas da presença de povos fenícios por aquelas bandas.28 Em 1928, a Imprensa Oficial
de Teresina publicou a primeira edição de seu original e peculiar livro Antiga História do
Brasil – De 1100 a.C. a 1500 d.C. (com o subtítulo de Tratado Histórico de Ludovico
Schwennhagen, professor de Filosofia e História),29 que permaneceu praticamente
desconhecido até 1970 quando só então foi reeditado pela Editora Cátedra, do Rio de
Janeiro.30
O descobrimento do Brasil pelos fenícios, bem como a primeira imigração de povos
brancos a este continente,31 teria ocorrido, segundo Schwennhagen, em decorrência da Guerra
de Troia, conflito bélico entre gregos e troianos que se estendeu sobre a Trácia e Ásia Menor
com consequências desastrosas para muitos povos.32 Os troianos tinham como aliados mais de
trinta povos da Ásia, ao passo que os agressores gregos, cinquenta povos e tribos. Os fenícios,
competidores marítimos e comerciais dos gregos, ficaram ao lado dos troianos e prestaram
auxílio aos vencidos levando milhares deles para suas colônias e assim fundando diversas
novas cidades com o nome de Troia. Conquistada e destruída sete vezes ao longo de um
século, como provaram as escavações, Troia foi destruída definitivamente em 1184 ou 1181
a.C. (no final da Idade do Bronze no Mediterrâneo) e nos decênios seguintes começou a
emigração dos povos cários (da Cária, região do sudoeste da Anatólia ao sul da Jônia, a
sudoeste da Frígia e a leste da Lícia, originalmente chamada “Fenícia”, pois uma colônia
fenícia assentara-se lá em tempos remotos, antes dos gregos) dos territórios ocupados pelos
gregos.
A vinda dos fenícios para o Brasil e a instalação de pontos de apoio em nosso território
foram justificadas por Schwennhagen pela necessidade que eles tinham de conduzir para a
Europa, África e Ásia as riquezas que lhes eram solicitadas, principalmente pelos egípcios, os
maiores compradores de ouro na Antiguidade. Nesse tocante, os fenícios garantiam aos
egípcios a acumulação de suas riquezas individuais para que se preparassem devidamente
para a ressurreição. Os egípcios embalsamavam e embelezavam os corpos por acreditarem
que a alma um dia voltaria a habitá-los, razão pela qual esperavam o grande dia com

27
No prefácio que redigiu para a segunda edição de Antiga História do Brasil reeditado pela Editora Cátedra em
1970, Moacir C. Lopes informa ter encontrado na Biblioteca Nacional um livreto intitulado Meios de melhorar a
situação econômica e moral da população do interior do Amazonas, transcrição das conferências proferidas por
Ludwig Schwennhagen, membro da Sociedade de Geografia Comercial de Viena, d’Áustria, e Luciano Pereira
da Silva, publicista [Rio de Janeiro, tipografia do “Jornal do Comércio”, 1912]. As conferências foram feitas no
salão nobre da Associação Comercial do Amazonas na noite de 15 de agosto de 1910, ou seja, desde pelo menos
esta data Schwennhagen já andava percorrendo o Brasil. O próprio Schwennhagen reporta em seu livro ter
viajado “no Alto Solimões e nos rios do Acre, no ano de 1910, quando não estudava ainda a antiguidade do
Brasil” [Fenícios no Brasil (Antiga História do Brasil, de 1100 a.C. a 1500 a.C.), 4a ed., Rio de Janeiro, Cátedra,
1986, p.62].
28
Moacir C. Lopes no prefácio à segunda edição de Fenícios no Brasil (Antiga História do Brasil, de 1100 a.C.
a 1500 a.C.) [Rio de Janeiro, Cátedra, 1970].
29
Como podemos ver, nesta primeira edição o seu nome foi aportuguesado para Ludovico – se com seu
consentimento ou não, jamais saberemos.
30
O exemplar que temos em mãos é a quarta edição publicada em 1986 e que traz o título de Fenícios no Brasil
(Antiga História do Brasil, de 1100 a.C. a 1500 d.C.); apres. e notas de Moacir C. Lopes. 4a ed., Rio de Janeiro,
Cátedra, 1986.
31
Ibid., p.81.
32
Descrita na Ilíada do poeta grego Homero (932 ou 928-905 ou 898 a.C.) e descoberta pelo arqueólogo alemão
Heinrich Schliemann (1822-1890) nos anos 1870. A verdadeira Tróia descoberta e escavada por Schliemann fica
em Hisarlik, na Anatólia, próximo à costa em que está hoje a província turca de Çanakkale, a sudoeste do Monte
Ida.
20

tranquilidade, acumulando ouro, prata e pedras preciosas para reaparecerem na vida futura
com os meios financeiros que correspondiam às suas posições anteriores.33
Apoiando-se em Diodoro da Sicília (Diodoro Sículo, 90-30 a.C.),34 historiador grego
que fornece, nos capítulos 19 e 20 do 5º livro de sua monumental História Universal, a
descrição da primeira viagem de uma frota de fenícios que saiu da costa da África, perto de
Dacar, e atravessou o Oceano Atlântico rumo sudoeste, Schwennhagen observa que

“os navegadores fenícios encontraram as mesmas correntezas oceânicas de que se


aproveitou Pedro Álvares Cabral para alcançar o continente brasileiro e chegar com uma
viagem de ‘muitos dias’ às costas do Nordeste do Brasil. Conforme o cálculo
cronológico, [...] devemos colocar essa viagem, esse primeiro descobrimento do Brasil,
na época de 1100 a.C. Diodoro conta a viagem da frota dos fenícios quase com as
mesmas palavras com que narram os compêndios escolares brasileiros a viagem de
Cabral: os navios andavam para o sul, ao longo da costa da África, mas, subitamente,
perderam a vista do continente e uma violenta tempestade levou-os ao alto mar. Ali,
perseguindo as mesmas correntezas, descobriram eles uma grande ilha, com praias
lindas, com rios navegáveis, com muitas serras no interior, cobertas por imensas
florestas, com um clima ameno, abundante em frutas, caça e peixe, e com uma
população pacífica e inteligente. Os navegantes andaram muitos dias nas costas dessa
ilha (que foi a costa brasileira entre Pernambuco e Bahia), e tendo voltado ao Mar
Mediterrâneo, contaram a boa nova aos tirrênios, que eram parentes e aliados dos
fenícios de Tiro. Estes resolveram logo mandar também uma expedição à mesma ilha e
fundar ali uma colônia.”35

As primeiras entradas em massa de imigrantes fenícios em nosso país, segundo


Schwennhagen, teriam ocorrido pela foz do Rio Parnaíba [que banha os estados do Maranhão
e do Piauí e cujo nome é uma junção dos termos tupis paranã (“mar”) e aíb (“ruim”), ou seja,
“mar ruim”], onde Tutoia (atual município no extremo norte maranhense, a 463 quilômetros
de São Luís) era o porto de recepção, e dali dividiram-se em três tribos. Os que se
estabeleceram entre o Rio Parnaíba e a Serra do Ibiapaba (nas divisas do Ceará e do Piauí)
ficaram sendo os tabajaras; os que se estabeleceram no Rio Potí (que banha o Ceará e o Piauí)
os potiguares; e os que se fixaram nas terras do Ibiapaba em direção ao leste, na foz do Rio
Parnaíba, onde Tutoia era o porto de recepção, os cariris. Schwennhagen afiançou que ao
longo do Parnaíba teriam sido encontrados canais artificiais pré-cabralinos semelhantes aos do
antigo Rio Nilo, e que os fenícios que chegaram ao Delta do Parnaíba, um dos três deltas a
mar aberto no mundo (os outros estão no Rio Mekong e no Rio Nilo) e o único das
Américas,36 sabiam que os braços da foz levavam a um rio importante que dava acesso ao
interior do Brasil.37
A Ilha de São Luís, ainda de acordo com Schwennhagen, teria sido escolhida pelos
fenícios como ponto de entrada para uma segunda leva de imigrantes. Em Tuapon (“burgo de

33
Schwennhagen, Ludwig. Fenícios no Brasil (Antiga História do Brasil, de 1100 a.C. a 1500 d.C.), 4a ed., Rio
de Janeiro, Cátedra, 1986, p.42.
34 Diodoro esteve no Egito entre 60 a.C. e 57 a.C., onde realizou suas primeiras pesquisas, e em 56 a.C. viajou para Roma e lá
ficou por várias décadas consultando os arquivos e registros disponíveis. Sua uma única obra, a Biblioteca Histórica, também
chamada de História Universal, reunia 40 livros escritos em grego, sendo que somente os livros 1-5 e 11-20 sobreviveram
praticamente na íntegra; dos outros, restam apenas alguns fragmentos. Mesmo assim, é o mais extenso relato sobre a história
da Grécia e de Roma que chegou até nós, desde as origens míticas até as últimas décadas da República Romana.
35
Schwennhagen, Ludwig, op.cit., p.33.
36
O Delta do Parnaíba é composto de 73 ilhas fluviais que ocupam uma área de 2.700 km2. A foz do rio se
ramifica em cinco braços, dando origem a um sistema labiríntico de rios, igarapés, florestas de restinga e
mangues.
37
Schwennhagen, Ludwig, op.cit., p.46.
21

Tupan”), como foi nomeada, teriam fundado numerosas vilas e aldeias das quais ainda
remanesciam 27 quando da chegada dos europeus. De lá teriam atravessado pequenos rios e
seguido navegando até onde hoje fica Belém, capital do Pará. Os fenícios vindos de Iônia
teriam denominado de Ion o litoral maranhense, já que, com suas centenas de ilhas e
penínsulas, mostrava uma surpreendente semelhança com o litoral da Iônia asiástica.
Maranhão, que em tupi significa “mar que corre” [pela junção dos termos pará (“mar”) e
nhan (“correr”)], derivaria do fenício Mara-Ion (“A Grande Iônia”).38 Os vestígios mais
palpáveis dos fenícios no Maranhão estariam no Rio Pinaré (que nasce na Serra do Gurupi e
deságua no Rio Mearim, próximo da foz do mesmo na Baía de São Marcos), onde o Lago
Maracu mostra uma linha de estearias (restos das palafitas de habitações lacustres indígenas)
petrificadas incluindo os restos dos estaleiros daquele povo. Nas margens do Rio Gurupi (na
divisa do Maranhão com o Pará, com aproximadamente 720 quilômetros de extensão), os
fenícios teriam explorado as minas auríferas, tendo como base a Aldeia de Carutapera (“Taba
dos Carus”, sendo que Carus era o nome que os indígenas davam aos fenícios). À chegada dos
portugueses, ainda remanescia ali uma aldeia de índios tupis que sabiam da existência
daquelas minas auríferas.39
Tutoia (cujo nome seria a derivação de Tur, a metrópole dos fenícios, e de Troia) teria
sido fundada pelos fenícios e descendentes de Troia por volta de 1080 a.C., segundo
Schwennhagen. Como é de praxe a eliminação da consoante r na língua tupi, a cidade passou
a ser conhecida como Tutoia, de onde os fenícios teriam exportado minérios, produtos
químicos e madeiras nobres.40 A colonização das paragens do Baixo Parnaíba e da Serra
Ibiapaba teria começado por volta de 1050 a.C. A subida do Rio Parnaíba, em ambos os seus
braços, até Goiás e a Grande Lagoa, ter-se-ia realizado nos decênios seguintes, de modo que
em 1000 a.C. já estava iniciada a exploração das minas, em redor da Grande Lagoa, bem
como da Serra dos Dois Irmãos, onde existiriam mais de cem furnas e grutas da antiga
mineração. Na Serra Ibiapaba, extraíam cobre e salitre (largamente utilizado pelos egípcios
para embalsamar os mortos), enquanto que, de outras regiões, ouro fino, chumbo, prata e
principalmente salitre. A crença na reencarnação, atinou Schwennhagen, era estimulada pela
esperteza comercial dos fenícios, que retiravam o salitre das grutas do interior da Brasil,
mormente da Gruta de Ubajara (no município de mesmo nome no Ceará). Formada por rochas
calcáreas, a gruta, para Schwennhagen, não era mera obra da natureza, mas resultante de
escavações para a retirada de salitre por um sistema de filtração artificial ainda hoje usado na
Síria e na Ásia Menor. O subterrâneo de Alto Alegre, no município de Piracuruca (a 196
quilômetros de Teresina), teria sido igualmente escavado por mãos humanas para retirar
pedras que na Antiguidade serviam para enfeitar os templos e as imagens das divindades. Os
fenícios levavam as turmalinas azuis e os cristais transparentes para as suas inúmeras oficinas
de lapidação.41
A raiz do tupi, na acepção de Schwennhagen, estava na língua dos cários, fenícios e
pelasgos, de modo que o nome da capital venezuelana Caracas recuaria à religião monoteísta
de Car, trazida pelos sacerdotes que acompanhavam os fenícios, e o infinitivo do verbo
sacrificar em fenício, tu-na, teria originado “tupã” (“trovão” em tupi).42 Schwennhagen
afirmava que os fenícios transladaram em seus navios esses povos da Venezuela para o norte
do Brasil, mais precisamente o local do congresso dos povos tupis em Sete Cidades,43 no
38
Ibid., p.46, 47 e 84.
39
Ibid., p.83.
40
Ibid., p.37.
41
Ibid., p.114 e 115.
42
Ao contrário do erro de interpretação cometido pelos jesuítas que usualmente se propala, Tupã não era
exatamente um deus, e sim a manifestação de um deus, seu ato divino na forma do som do trovão.
43
A 176 quilômetros de Teresina e a 16 quilômetros de Piripiri, cidade que é a sua porta de entrada, Sete
Cidades tornou-se uma unidade de conservação com o nome de Parque Nacional de Sete Cidades em 5 de junho
22

extremo norte do Piauí, que foi batizado pelos piagas (os antigos sacerdotes druidas, de onde
veio o termo “pagés”) de Piagui, de onde se originou Piauhy. Piauí significaria, portanto,
“terra dos piagas”, e não “rio do peixe piau”, devido à abundância desse tipo de peixe nas
águas do Parnaíba, conforme a explicação popular. De fato, somente no século XIX é que
surgiu a nomenclatura Piauhy; anteriormente, o nome corrente era Piagui.44
Os fenícios, reivindicava Schwennhagen, fizeram de Sete Cidades um entreposto
comercial e palco para suas cerimônias religiosas.45 Os geólogos atribuem a um simples acaso
e capricho da natureza a aparente coordenação planejada das imponentes formações
geomorfológicas – com os mais diversos formatos a sugerir estátuas (de deidades, figuras
mitológicas como dragões e esfinges, seres humanos, guerreiros, animais, etc.), templos,
obeliscos, menires, torres, castelos, canhões, fortalezas, muralhas, degraus, dólmens etc. –
nitidamente separadas em sete áreas distintas cortadas por avenidas e ruas. A ausência de
monólitos, de pedras talhadas e de encaixes artificiais, no entanto, corrobora o parecer dos
geólogos de que as formas foram esculpidas em arenito pelas águas e pelos ventos ao longo
de duzentos milhões de anos. De data muito mais recente são as cerca de duas mil pinturas e
inscrições rupestres. As pinturas nas paredes de difícil acesso flutuam a uma altura de cerca
de 8 metros e caracterizam-se pela predominância de desenhos geométricos. O conjunto é
ordenado e harmônico, com variações de cruzes, círculos, círculos concêntricos, quadrados
dentro de círculos, linhas retas, curvas e paralelas, representações do Sol (roda com raios), da
Lua, de estrelas, animais e mãos. O sociólogo e antropólogo franco-argentino Jacques de
Mahieu (1915-1990) visitou Sete Cidades em 1974 e em seu livro Os Vikings no Brasil
atribuiu as inscrições e pinturas rupestres aos vikings, pela semelhança com os caracteres
rúnicos.46 Pela sua antiguidade, Sete Cidades certamente teve um passado sucedido por

de 1961 por decreto do então presidente Jânio Quadros. Com uma área de 6.221,48 hectares e um perímetro de
36 quilômetros (a área aberta à visitação turística possui cerca de 12 quilômetros de trilhas), seu clima é quente e
tropical semi-árido, com temperatura média anual de 26º C. Situado numa faixa de transição entre os
ecossistemas do cerrado e da caatinga, protege espécies da fauna e da flora encontradas nos dois ecossistemas.
44
Schwennhagen, Ludwig, op.cit., p.103.
45
Os romanos incorporaram as tradições dos fenícios e buscavam avidamente o que chamavam de “Insula
Septem Civitatum”, que significaria Ilha das Sete Tribos ou Ilha dos Sete Povos (no latim, civitas não significa
apenas cidade, mas a coletividade dos cidadãos de determinada comunidade), que acabou fixada nas línguas
modernas como Ilha das Sete Cidades. A busca por este novo Éden, onde existiriam ouro e muitas outras
riquezas, continuou na Idade Média, gerando lenda atrás de lenda. O primeiro documento ibérico referente às
Sete Cidades é uma crônica em latim da cidade de Portus Cale (donde provém o nome Portugal, e que é a atual
cidade do Porto), escrita por volta de 750 por um clérigo cristão, quando o reino ibérico dos visigodos já tinha
colapsado ante a invasão muçulmana (iniciada em 711). Quando os árabes invadiram a Lusitânia, o arcebispo de
Portus Cale, a fim de escapar à dominação muçulmana, deliberou partir para a terra das “Sete Civitates”, que as
lendas asseguravam existir no meio do oceano ocidental. Em 734, o arcebispo, acompanhado por outros prelados
e cinco mil fiéis, embarcou numa frota de vinte veleiros. Apesar da crônica narrar que a frota chegou sã e salva
ao seu destino, não se teve mais notícia do arcebispo nem de sua tripulação. Com o advento da Era das Grandes
Navegações, os múltiplos relatos de registros visuais fortuitos e de expedições organizadas para a posse da ilha e
de suas riquezas multiplicaram-se. Um dos casos mais consistentes foi o mapa apresentado em 1473 pelo
açoriano Fernão (ou Fernando) Teles ao rei Dom Afonso V de Portugal. Do roteiro constava uma longa costa,
com várias ilhas, baías e rios que só podia ser a costa do Norte do Brasil, entre o Maranhão e o Ceará, com o
Delta do Parnaíba. Dom Afonso V, porém, não acreditou em Fernão Teles, pelo que da carta de doação
concedida não consta referência às Sete Cidades, mas apenas a uma grande ilha ocidental que se pretenderia
povoar. O mapa de Teles encontra-se no setor de ilhas, na Torre do Tombo, em Portugal. Em 1485, Fernão
Ulmo, genro de Teles, logo depois da morte do sogro, conseguiu nova carta de doação na qual o rei se
comprometia a fornecer navios e forças militares para a conquista das ilhas e terras firmes de Sete Cidades. Esses
documentos indicam que muito antes da primeira viagem de Colombo, a corte do rei Dom João II já sabia que a
Ilha das Sete Cidades era um grande continente.
46
Tal como Schwennhagen, Mahieu se maculara com o racismo. Colaboracionista do governo fantoche pró-
nazista de Vichy, após a libertação da França foi um dos primeiros a se refugiar na Argentina de Juan Domingo
Perón. Naturalizado argentino, dirigiu o Instituto de Ciências Humanas de Buenos Aires e tornou-se ideólogo do
movimento peronista. Nos anos 50, tornou-se mentor de um grupo de jovens nacionalistas católicos e na década
23

diversos povos e culturas, sendo mais provavelmente uma combinação de formações naturais
propícias complementadas por uma sutil intervenção humana.
Se Sete Cidades foi um importante centro comercial e religioso, o que teria provocado
sua decadência? Schwennhagen aponta duas causas, uma de ordem econômica: o Piauí foi
abandonado quando descobriram jazidas de ouro e salitre na Bahia e Minas Gerais. Os
engenheiros abriram longas estradas em direção do sudoeste e o trabalho colonial transferiu-
se do norte para o sul do país. A outra causa foi de ordem ideológica: os piagas se espalharam
para diversos pontos do Brasil, fazendo com que o Piauí perdesse a antiga celebridade de
centro religioso. Devido à grande extensão do território brasileiro, os sacerdotes não
conseguiram manter comunicação constante com a sede central. Isso levou ao
enfraquecimento da ordem que, aos poucos, perdeu seu antigo brilho.47
Além de comerciarem com os egípcios e serem grandes aliados de Troia,
Schwennhagen postula que os fenícios selaram uma aliança com o rei David (que reinou
sobre Judá de 1010 a 1003 a.C., e sobre o reino unificado de Israel de 1003 a 970 a.C.) para a
exploração conjunta do Amazonas. No caminho, estabeleceram numerosas estações marítimas
entre a Bahia e o Pará. Quando David tornou-se rei de Israel na idade de 31 anos, Hirão
(forma abreviada de Airão, “irmão dum poderoso”), o rei de Tiro (mencionado em II Samuel
5:11), enviou mensageiros com madeira de cedro, carpinteiros e pedreiros que lhe edificaram
uma casa. Em acordo comercial com Salomão, Hirão recebeu várias cidades em troca da
provisão de ouro e madeira de cedro e cipreste que serviu para a construção do Templo de
Salomão, cidades essas que não agradaram a Hirão. Numa associação de interesses
comerciais, Salomão valeu-se da frota marítima dos fenícios e recorreu a Hirão quando da
construção de seu templo, tendo o rei de Tiro designado um seu homônimo, o arquiteto Hirão,
para comandar os trabalhos da construção do templo. Schwennhagen assegura que os judeus
fundaram colônias comerciais nas regiões do Alto Amazonas e ali se mantiveram durante
muitos séculos, “tendo deixado, indubitavelmente, rastros da civilização e da língua
hebraica”, tanto que o grande Rio Solimões deveria o seu nome ao rei Salomão, cuja forma
popular era sempre “Solimão”. A antiga língua brasílica, porém, não chegou a ser muito
influenciado pela hebraica, pois “o tupi é muito mais antigo e pertence à grande família das
línguas pelasgas, que foram faladas em todos os países do litoral mediterrâneo”.48
Schwennhagen refere-se ao tratado sobre o país de Ophir de Henrique Onfroy de
Thoron (publicado em Paris em 1868 com o título de Voyages des flottes de Salomon et
d’Hiram en Amérique: Position geographique de Parvaim, Ophir & Tarschisch, e
posteriormente em Manaus em 1876, tendo sido reproduzido em 1900 no livro As duas
Américas, de Cândido Costa), como aquele que “acabou com todas as lendas e conjeturas a
respeito das misteriosas viagens da frota de Salomão”:

“Thoron sabia latim, grego e hebraico, e conhecia a língua tupi, como também a
língua ‘quíchua’, que é ainda falada nas terras limítrofes entre o Brasil e o Peru. Da
bíblia hebraica prova ele, palavra por palavra, que a narração dada no 1º Livro dos Reis,
sobre a construção, a saída e viagem da frota dos judeus, junto à frota dos fenícios,
refere-se unicamente ao Rio Amazonas. As viagens repetiram-se de três em três anos; as
frotas gastaram um ano entre os preparativos e a viagem de ida e volta, e ficaram dois

seguinte passou a chefiar a filial argentina do movimento neonazista espanhol CEDADE (Círculo Español de
Amigos de Europa), tarefa de que se incumbiu até a sua morte em 1990. Partidário da eugenia e da limpeza
racial, escreveu vários livros misturado esoterismo com teorias antropológicas inspiradas pelo racismo científico.
Sustentava que a população nativa americana era de origem ariana, enquanto a latino-americana descendia dos
antigos vikings, no que foi apoiado por numerosos neonazistas.
47
Schwennhagen, Ludwig, op.cit., p.106-107.
48
Ibid., p.42 e 43.
24

anos no Alto Amazonas, para organizar a procura do ouro e de pedras preciosas.


Estabeleceram ali diversas feitorias e colônias, e ensinaram aos indígenas a mineração e
lavagem de ouro pelo sistema dos egípcios, descrito por Diodoro, minuciosamente, no
3º livro, capítulos 11 e 12. Ali, no Alto Amazonas, exploraram as regiões dos rios
Apirá, Paruassu, Parumirim e Tarchicha. No livro dos Reis, da Bíblia, está bem narrado
quantos quilos de ouro o rei Salomão recebeu dessas regiões amazônicas.”49

A poderosa aliança entre fenícios, egípcios, troianos e judeus, alude Schwennhagen,


conteve os planos conquistadores dos assírios e favoreceu as empresas coloniais no Atlântico,
até que o chefe dos mercenários líbios, Shoshenk I (chamado de Sisaque na Bíblia), fundador
da 22ª Dinastia e que reinou de 943 a 922 a.C., apoderou-se do governo do Egito destronando
a Dinastia dos Tanitas (os reis da 21ª Dinastia cuja capital ficava em Tânis).50 Shoshenk I
incitou Jeroboão (o primeiro rei de Israel), da tribo de Efraim, a fazer uma revolução contra
Salomão, o terceiro rei de Israel que o governou durante cerca de quarenta anos (de 1009 a
922 a.C.). Como resultado, o Reino de Israel foi dividido em dois Estados. Jeroboão ficou
como rei das províncias do Norte, e Roboão, filho de Salomão, com Jerusalém e a província
da Judeia. No quinto ano de governo de Roboão, Shoshenk I, à frente de seu grande exército,
invadiu a Judeia, sitiou Jerusalém e obrigou Roboão a entregar-lhe quase todos os objetos de
ouro do templo. Assim, Shoshenk I levou para o Egito a maior parte do ouro que Salomão
recebera da Amazônia, além de quatro grandes escudos de ouro que pesavam cinco quilos
cada um. O usurpador mandou colocar no Templo de Amon, em Karnac, uma grande lápide,
na qual foram narrados os pormenores dessa guerra contra a Judeia e enumeradas as peças de
ouro que o vendedor trouxera para colocá-las nos templos egípcios.51
As relações marítimas e comerciais entre a Fenícia e o Brasil, estima Schwennhagen,
perduraram por 769 anos, chegando ao fim quando a cidade de Tiro acabou destruída pelo
conquistador macedônico Alexandre Magno (356-323 a.C.) em 332 a.C.52 Para
Schwennhagen,

“está largamente provado que existiu, no primeiro milênio antes da era cristã, uma
época de civilização brasileira. Já conhecemos dois mil letreiros e inscrições espalhados
sobre todo o território brasileiro e escritos nas pedras com instrumentos de ferro ou de
bronze, ou com tintas indeléveis, quimicamente preparadas. Essas inscrições
petroglíficas foram feitas por homens que sabiam escrever e usaram os alfabetos dos
povos civilizados do Mar Mediterrâneo. Já provado também se acha que existiu uma
navegação transatlântica entre esses povos e o continente brasileiro, durante muitos
séculos antes de Cristo. A maior parte dos letreiros brasílicos são escritos com letras do
alfabeto fenício e da escrita demótica do Egito. Existem também inscrições com letras
da antiga escrita babilônica, chamada sumérica. Além disso, temos letreiros escritos
com hieróglifos egípcios, e podemos diferenciar, em outros lugares, variantes de letras
que se encontram nas inscrições da Ilha de Creta, da Cária, da Etrúria e Ibéria.
Encontram-se também letras gregas e mesmo latinas.”53

49
Ibid., p.39 e 40
50
Para centralizar o poder, Shoshenk I retirou-o da mão dos sumos-sacerdotes e extinguiu a sua linhagem,
instalando em Tebas seu filho, o faraó Osorkon I, que teria governado até a 889 a.C..
51
Costa, Candido & Thoron, Vicomte Enrique Onffroy de. As duas Américas, 2ª ed. Ampliada, Lisboa, J.
Bastos, 1900.
52
Schwennhagen, Ludwig, op.cit., p.29 e 30.
53
Ibid., p.27 e 28.
25

Schwennhagen estava convencido de que os egípcios tinham vindo ao Brasil em navios


fenícios no tempo do faraó Shoshenk, em torno do ano 940 a.C. Essa imigração teria recebido
um novo impulso em decorrência da invasão dos núbios em 750 a.C., que anarquizou todo o
Egito.
Ao visitar e examinar minuciosamente a cachoeira de Paulo Afonso (cujas quedas
d’água, de até oitenta metros de altura, alimentam hoje uma série de usinas do Complexo
Hidrelétrico no município baiano de Paulo Afonso),54 no Rio São Francisco, para averiguar a
lenda indígena em torno Upá Assu, uma enorme lagoa ou mar interno com uma largura média
de duzentos quilômetros que se estenderia desde a dita cachoeira até Remanso (às margens do
São Francisco, na microrregião de Juazeiro), Schwennhagen viu ali o “Kartum brasileiro”,
uma grandiosa obra de engenharia egípcia executada em torno de 600 a.C., semelhante àquela
que foi feita para desviar as águas das vastas lagoas da Núbia, transformando seus pântanos
em boa terra para a agricultura e formando o majestoso Rio Nilo. Schwennhagen avaliou que
essa queda d’água “artificial” constituída por

“cinco canais simétricos que despejam suas águas separadamente na mesma


cavidade larga, quadrangular, de 50 metros de profundidade, cortada na pedra viva, [...]
deixou para o moderno Brasil uma fonte incalculável de energia mecânica, criou a
admirável obra irrigatória do Vale Opalino, quer dizer, do Baixo São Francisco, o qual
foi chamado por um engenheiro inglês, com muita razão, de o ‘Egito brasileiro’. Essa
antiga obra secou a bacia pantanosa da ‘Grande Lagoa’, fechou com o correr do tempo a
saída das águas pelo ‘Rio Real’, o qual desapareceu, apesar da procura dos comissários
dos limites sergipanos-baianos, e prejudicou também o Rio Parnaíba, na sua qualidade
de grande via comunicatória entre o Norte e o Centro do Brasil”. Schwennhagen
encontrou também “em ambas as margens do Rio Parnaíba, os restos de uma antiga
irrigação, no sistema dos trabalhos irrigatórios do Nilo. São canais artificiais que ligam
o rio a lagos, formados pelas águas da enchente. No Baixo São Francisco conservou-se
até hoje aquela grande obra egípcia; mas também o Vale do Parnaíba possui ainda
muitos restos valorosos daquele antigo trabalho, os quais devem ser aproveitados na
época atual.”55

O historiador alagoano Alfredo Brandão (1874-1944) em sua obra em dois volumes


Escripta Prehistorica no Brasil, de 1937, escreve no prefácio: “Os marinheiros egípcios
deixaram vestígios por toda a parte, desde a embocadura do Amazonas até à Baía de
Guanabara. Tem de quatro a cinco mil anos de idade e podemos avaliar que as comunicações
por mar entre os dois continentes se perderam numa data posterior.”56
A tese da presença egípcia no Brasil milhares de anos antes de Cabral teve como adepto
e defensor ninguém menos do que o historiador, escritor, embaixador, advogado e professor
Antônio Baptista Pereira (1880-1960), um dos maiores especialistas em egiptologia de seu
tempo e autor, entre outros, dos clássicos Civilisação contra barbarie (1928) e A formação
espiritual do Brasil (1930). O prolífico e brilhante intelectual gaúcho formado e fixado

54
Até 1725, não há nenhum registro nos arquivos tanto do Brasil como de Portugal que se refira a estas quedas
d’água com o nome de Paulo Afonso, que eram conhecidas como Sumidouro, Cachoeira Grande e Forquilha. Em
3 de outubro de 1725, o português Paulo Viveiros Afonso recebeu uma sesmaria, nas terras da capitania de
Pernambuco, cujo limite era o Rio São Francisco, no local das grandes cachoeiras. Estendendo seus limites para
o outro lado do rio, Paulo Viveiros Afonso teria criado o arraial que ficou conhecido como Tapera de Paulo
Afonso.
55
Schwennhagen, Ludwig, op.cit., p.112-116.
56Brandão, Alfredo. Escripta Prehistorica no Brasil: (ensaio de interpretação) com um appendice sobre a prehistoria de
Alagoas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937.
26

espiritualmente em São Paulo, genro do polímata Rui Barbosa de Oliveira, o Águia de Haia
(1849-1923), demarcou veredas inaugurais audaciosamente percorrendo centenas de
quilômetros em busca dos primitivos caminhos indígenas. Em companhia do jornalista Júlio
de Mesquita Filho (1892-1969), filho de Júlio de Mesquita (1862-1927), proprietário do jornal
O Estado de S. Paulo, e do arqueólogo, professor (de Pré-história na Universidade de São
Paulo, da qual foi um dos fundadores), jornalista e poeta Paulo Duarte (1899-1984), caminhou
a pé de São Paulo a Santos a fim de retraçar os velhos caminhos do Peabiru (também
conhecido como Caminho Velho do Mar, Trilha dos Tupiniquins ou de Piquiri, que é o nome
regional do Peabiru), a trilha ou estrada transcontinental inca de oito palmos de largura – em
alguns trechos pavimentada com pedras – usada pelos índios guaranis antes da chegada dos
europeus. Ao longo de seus mais de cinco mil quilômetros, o Peabiru cortava os territórios do
Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil ligando Cuzco, no sul do Peru, à cidade de São Vicente, no
litoral sul paulista.
Ao poeta Paulo Bomfim (1926-2019), Baptista Pereira disse certa vez: “A barca dos
mortos, no tempo dos faraós, saía do Egito e aportava na Baía de Guanabara. O caminho
mítico que os colonizadores encontraram, com pegadas impressas na rocha, não era de Tomé,
e sim de Tutmés.”
Em entrevista concedida no final de 1954 a O Cruzeiro, a revista nacional de maior
circulação à época, Baptista Pereira ratificou que muito antes dos fenícios e de qualquer outro
povo navegador, os egípcios do tempo de Ramsés II, ou seja, há mais de 3.200 anos, já teriam
por aqui passado, conforme indicaria a coincidência linguística de muitos radicais de palavras
egípcias com a estrutura dos vocábulos guaranis: “Assim, o verbo ver que em egípcio é
‘rechá’ corresponde a ‘jhechá’ em guarani. O mesmo com fazer (‘apó’ em egípcio e ‘yapó’
em guarani), e dormir (‘nemo’ em egípcio e ‘nema’ em guarani), além de inúmeros
substantivos como casa (‘oga’ e ‘onga’), pedra (‘itá’ e ‘tá’), etc.”
De acordo com Baptista Pereira, as origens dos nomes do bairro carioca de Ipanema e
da Ilha Rasa (a cerca de 14 quilômetros do sul da barra da entrada da Baía de Guanabara e a 9
quilômetros da Ponta do Arpoador), bem visível da Praia de Ipanema, conforme incorporados
e conservados pelos indígenas fluminenses, seriam de origem egípcia. O nome “IPANEMA”,
uma vez decomposto (I-PA-NEMA), significaria, em egípcio, “lugar onde dorme o pai”. O
“pai” seria Amon-Rá,57 o principal deus dos egípcios de 2000 a 663 a.C., quando os assírios
conquistaram Tebas e impuseram o culto aos seus próprios deuses. Ora, os que contemplam o
gigante deitado formado pelas montanhas cariocas e que está quase todo estendido no bairro
de Ipanema são unânimes em afirmar que o corpo nunca é completamente divisado, a não ser
de um lugar, mais precisamente de uma ilha, de onde se avista, perfeitamente, a figura inteira
e nítida desse gigante. Essa ilha é justamente a Ilha Rasa. O seu nome, porém, não é
condizente com suas características, já que com sua área de 230.000 m2 não é propriamente
“Rasa”, mas uma das mais altas que se podem observar na costa. A esse respeito, Baptista
Pereira explicou que RASA não é nome brasileiro ou português, mas a junção dos vocábulos
egípcios RA e SA que significam “VER A RA” (AMON-RA). Os súditos dos faraós teriam
aportado naquela ilha e, fascinados com a figura de pedra que avistavam no lugar onde hoje é
Ipanema, teriam dito que, dali, era possível ver Amon-Rá (o gigante de pedra que parecia
reproduzir a figura daquele deus) e deixaram a ilha com o nome de RA-SA, chamando

57
Com a expulsão dos governantes hicsos do Egito pelo exército do fundador da 18ª Dinastia Ahmose ou Ahmés
(que governou por cerca de 25 anos, entre 1580 e 1558 a.C. ou entre 1550 e 1525 a.C., e inaugurou o Império
Novo, período em que se sobressaem Hatchepsut, Amenófis III e Aquenáton), Tebas se tornou a cidade mais
importante do Egito, a capital de uma nova dinastia. Consequentemente, o patrono local de Tebas, o deus Amon,
se tornou nacionalmente importante. Todos os sucessos passaram a ser atribuídos a Amon, que foi fundido com o
deus sol Rá tornando-se Amon-Rá, rei supremo dos deuses e força criadora de vida, identificado com o sol que
dá vida ao país.
27

posteriormente o local onde se estendia o corpo do gigante de IPANEMA, ou seja, “lugar


onde dorme o pai”.
A reportagem de O Cruzeiro referendou Baptista Pereira citando uma descoberta feita
poucos meses antes na cidade de Dourados, estado do Mato Grosso, às margens do Riacho
Pira-Vevé, onde foi encontrado um camafeu egípcio reproduzindo a figura da rainha Tuya
(Tuy ou Mut-Tuya, sendo Mut o nome da deusa-mãe que fez acrescentar ao seu nome),
esposa do faraó Seti I (o segundo faraó da 19ª Dinastia, ou Dinastia Ramséssida, que
governou entre cerca de 1291 a 1278 a.C.) e mãe da princesa Tia, de Ramsés II e talvez de
Henutmire. O túmulo de Tuya no Vale das Rainhas, chamado pelos egípcios de Taset-Neferu
(“O Lugar da Beleza”), Tainet-aat (“O Grande Vale”) e Taset-resit (“O Vale do Sul”, porque
situado ao sul do Vale dos Reis),58 estava coberto com todos os tipos de honrarias como
poucas rainhas tinham merecido antes. A decifração das inscrições hieroglíficas que
contornam o camafeu de Dourados feita pelo arqueólogo paraguaio Pablo Alborno revelou a
seguinte mensagem: “A mulher rainha, após a morte, eleva sua alma ao mundo dos deuses e,
por suas virtudes, encontra um céu espiritual no descanso eterno.” O camafeu teria sido
adquirido pelo médico e pequisador de história antiga Camilo Ermelindo (1896-1968)59 da
pessoa que o encontrou pelo preço de uma garrafa de cachaça. Para a reportagem de O
Cruzeiro, só haveria duas explicações plausíveis para a inusitada presença dessa medalha no
meio da floresta brasileira: “Ou o nosso país pertenceu ao lendário continente da Atlântida – e
nesse caso a viagem do Egito até aqui poderia se fazer por terra, em caravanas – ou então eles
eram melhores navegadores que os fenícios e estiveram por estes brasis, a passeio, muito
antes dos estaleiros de Tiro haverem lançado no Mediterrâneo o seu primeiro navio.”60
As mais notórias evidências arqueológicas da presença egípcia no Brasil talvez não
estejam ocultas e inacessíveis em selvas inóspitas, mas, como indicou o próprio Baptista
Pereira, bem à vista de todos, em plena zona sul do Rio de Janeiro. Já me referi às inscrições
no lado leste da Pedra da Gávea, na lateral da chamada “cabeça do Imperador”, que junto com
outras inscrições e sinais podem ser vistas parcialmente a olho nu, de grande distância. A
esfinge esculpida em granito, na qual as inscrições estão gravadas, pode ser mais bem
apreciada da Estrada das Canoas, no bairro de São Conrado, ou do alto da Pedra Bonita, sua
vizinha mais próxima. Sua altura é de nada menos do que 286 metros, ou seja, mais de
quatorze vezes mais alta do que a Esfinge de Gizé, que mede 20 metros. Vista de perto ou de
longe, tem a grandeza dos monumentos faraônicos e reproduz, em um de seus lados, a face
severa de um patriarca de testa alta, olhos profundos e longas barbas que contempla o
amanhecer como se esperasse por alguém que desvendasse os seus segredos. Cabe assinalar
que a face não sofreu qualquer ação recente, ou seja, não foi talhada para homenagear o
imperador Dom Pedro II.
O restante da formação lembra o corpo de um felino deitado, destacando-se um corte na
rocha, marcando o joelho e a pata traseira do animal. Outrora, esta parte traseira virada para o
mar era conhecida como Pedra do Elefante devido a uma rocha comprida e perpendicular
parecida com uma tromba (na verdade a cauda) que, conforme contavam os moradores mais
antigos das proximidades, rolou do alto da Pedra da Gávea numa noite chuvosa de 1919. A
cabeça apresenta dois olhos (duas grutas não muito fundas e sem ligação entre si que indicam
com exatidão absoluta o norte magnético, isto é, 0 ou 365 graus), nariz e orelhas; pedras

58
Necrópole na margem ocidental do Nilo, defronte a Luxor, antiga Tebas, onde existem cerca de oitenta
túmulos de rainhas e princesas do tempo do Império Novo, sobretudo das 19ª e 20ª Dinastias, identificados pela
sigla QV (Queen’s Valley) seguida de um número.
59
Nascido em Andradas (MG), Ermelindo foi um dos primeiros médicos de Dourados e muito contribuiu para a
construção da história da medicina naquela cidade, tanto que o Centro Acadêmico de Medicina da Universidade
Federal da Grande Dourados foi batizado com seu nome.
60
Gueiros, José Alberto (texto de). “Faraós no Brasil”, in O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 13-11-1954, p.28-29.
28

enormes no topo da cabeça sugerem um tipo de coroa, toucado ou adorno. Na parte nordeste
da cabeça, há um nicho ou cavidade na forma de um portal medindo 15 metros de altura, 7
metros de largura e 2 metros de profundidade. Um observatório na parte sudeste na forma de
um dólmen apresenta algumas figuras esculpidas. No topo da cabeça, no ponto culminante, há
uma pirâmide pequena feita de um único bloco de pedra. Inscrições situadas em redor do
corpo da montanha, bem abaixo da esfinge, dão a volta à montanha estendendo-se por
centenas de metros. Elas são mais bem observadas por quem olha da estrada de São Conrado-
Barra da Tijuca. Ao longo do topo da montanha há outras inscrições pequenas que se
assemelham a cobras, raios de Sol, etc. Há uma gruta tipo sifão na parte onde o maciço toca o
mar, com a parte abobadada acima do mar e com ventilação natural, onde se encontra uma
escadaria em sentido ascensional que, segundo dizem, conduziria ao interior do monumento.
Outra forma de acesso seria por um túnel submarino, hoje praticamente obstruído, que liga a
pedra a uma ilha próxima. Oculta sob a espessa vegetação, que também esconde a parte
traseira da esfinge, existiria uma escadaria de cerca de cinquenta degraus muito rentes
(provavelmente desgastados pela erosão) que levaria a um terraço de formas ainda mais
perfeitas que, evidentemente, teria sido esculpido. Aí existiria um trono com o braço direito
semidestruído voltado para o leste, isto é, para o nascente.
É singular o aspecto da formação superior da montanha, um autêntico platô a 842
metros acima do nível do mar. De seu topo pode-se vislumbrar o horizonte a uma distância de
até 100 quilômetros. Apenas por ser um ponto de observação privilegiado, dever ter sido
escalada por muita gente nos séculos anteriores, principalmente quando havia alguma ameaça
de invasão, como foi o caso das invasões francesas no século XVIII. Consequentemente,
eventuais vestígios de passagens anteriores devem ter sido remexidos e alterados. Lendas
dando conta de que se poderia atingir o interior da pedra pelo alto, através de um túnel oculto
na cabeça da esfinge ou por um corredor lateral cuja entrada estaria disfarçada sob a aparência
de uma pedra, estimularam a ação de caçadores de tesouros e aventureiros inescrupulosos que
na busca de galerias, câmaras, mesas, túmulos, esquifes, múmias, ânforas, esculturas, quadros
e principalmente ouro, conduziram a destruição final de monumentos de inestimável valor
arqueológico que ainda subjaziam no topo.
A despeito de tantos indícios a indicar a artificialidade da Pedra da Gávea, a versão
oficial estabelecida pelos geólogos é a de que ela, assim como todas as montanhas do Rio de
Janeiro, não passam de um mero produto da erosão fluvial e eólica desde que se formaram no
período Pré-Cambriano há seiscentos milhões de anos. Suas formas características se
deveriam tão somente a fenômenos de intemperismo ou meteorização, característico dos
trópicos. A arqueologia oficial, por sua vez, despreza-a complemente e jamais demonstrou
qualquer interesse em realizar escavações ou pesquisas mais aprofundadas na área.
Naturalmente houve um violento trabalho de erosão, como se nota pelo desgaste da superfície
da rocha que compõe a face, que é de uma cor mais clara do que o resto da montanha, como
se fosse de data bem mais recente. Os tamoios desde incontáveis séculos já chamavam a
Pedra da Gávea de Metaracanga (“Cabeça Enfeitada”), sendo Metara o botoque de enfeite
usado no lábio inferior, e Canga, cabeça. Eles também se referiam a Pedra da Gávea como
“cabeça de um deus”, ou seja, reconheciam haver ali uma escultura. A Pedra da Gávea,
indubitavelmente, é bem mais do que um simples capricho da natureza, embora,
evidentemente, tenha sofrido a ação da erosão. E para fazer uma especulação fantástica,
poderíamos deixar no ar a possibilidade de que, sim, os egípcios teriam iniciado a construção
de um monumento na Pedra da Gávea que, por algum motivo desconhecido, não foi
terminado.
O pesquisador Antônio Carlos Dumortout Werneck publicou um artigo na edição de
outubro de 1973 da revista Planeta em que proclamava ser a Pedra da Gávea a maior e mais
antiga esfinge do mundo esculpida há trinta mil anos por uma avançadíssima civilização
29

autóctone que exportou para o Egito e para o resto do mundo o hábito de erigir monumentos
de pedra como a esfinge. Para Werneck, o Brasil deveria ter sido o berço de uma das
primeiras civilizações do mundo, uma vez que o nosso território acha-se na sua maior parte
sobre solos da Era Primária ou Paleozoica (entre 542 milhões e 245 milhões de anos atrás), os
mais antigos do planeta e os que primeiramente se consolidaram.61 Apesar do quão antigo de
fato é o solo de nossa terra, aventar que há cinquenta ou cem mil anos surgiu por aqui uma
civilização autóctone que foi a matriz da egípcia e de todas as outras é hoje totalmente
inadmissível, uma vez que as evidências arqueológicas apontam como berço civilizatório,
bem como o lugar de surgimento dos primeiros seres humanos, o Oriente Médio, a África e a
Ásia.
O pesquisador carioca Eduardo B. Chaves publicou em 1977 o livro Mensagem dos
deuses: Para uma revisão da História do Brasil, o primeiro inteiramente dedicado a provar
que não só a Pedra da Gávea e seus entornos teriam sido trabalhados artificialmente, mas toda
a cadeia de montanhas do Rio de Janeiro. Para quem a vê do mar, a cordilheira que se estende
ao longo de pelo menos 18 quilômetros na orla da cidade abrangendo os bairros da Barra da
Tijuca, São Conrado, Leblon, Ipanema, Copacabana, Botafogo e Urca, adquire as formas de
um Gigante Adormecido. A cabeça e os pés desse Gigante são formados, respectivamente,
pela Pedra da Gávea e o Pão de Açúcar, ao passo que o Corcovado, o Morro dos Irmãos, a
Lagoa Rodrigo de Freitas e a Ilha Rasa formam o resto do corpo.62
Quanto às inscrições, Chaves eliminava totalmente a possibilidade de serem fenícias
“porque a face da Pedra da Gávea apresenta-se como a de um velho barbudo. Como se sabe,
os fenícios eram imberbes devido a um tratamento que lhes aplicavam ao nascer, e
possivelmente não fariam uma escultura imensa que não fosse semelhante a um dos seus.”63
Chaves considerava a possibilidade de nem mesmo serem inscrições, mas “esculturas de
semidivindades egípcias já bastante desgastadas pela erosão”. As supostas divindades, em
linha, olhariam para o mar, em direção a África.
A respeito da lamentável destruição de monumentos artificiais no topo da Pedra da
Gávea, o arqueólogo Joacir Nogueira confidenciou a Chaves que em meados da década de 50,
quando tinha 16 anos, acompanhou um certo “arqueólogo”, do qual não quis revelar o nome,
até o alto da Pedra da Gávea. Esse “professor” tinha o firme propósito de entrar na Pedra da
Gávea e, segundo uma “revelação” que lhe tinham feito, “a entrada estaria no sol”. O único
sol de que o professor, assim como Joacir, tinham conhecimento na Pedra da Gávea era um,
esculpido, no alto da cabeça, em alto-relevo. Sem ter como o impedir, Nogueira assistiu
passivamente a destruição, à marretada, do sol no alto da cabeça. “Claro que ninguém entrou
por ali. Lá, no local, não ficou mais do que frangalhos de pedras, e não um buraco
suficientemente grande para que alguém penetrasse no interior supostamente oco”, arrematou
Chaves.64
Os templos do Egito Antigo eram locais construídos para os deuses habitarem na Terra.
O termo mais utilizado pelos antigos egípcios em seu idioma para descrever o edifício do
templo significa “mansão” ou “recinto” de um deus. A presença do deus no templo unia os
reinos humano e divino e permitia aos humanos que interagissem com a divindade através dos
rituais. Estes, acreditava-se, sustentavam o deus e permitia que ele continuasse a desempenhar
seu papel apropriado na natureza. Eram, portanto, parte crucial na manutenção da maat, a
ordem ideal que regia a natureza e a sociedade humana na crença egípcia. Manter a maat era o

61
Werneck, Antônio Carlos Dumortout. “A esfinge da Gávea”, in Planeta, São Paulo, Ed. Três, nº 14, outubro
de 1973, p.42-54.
62
Chaves, Eduardo B. Mensagem dos deuses: Para uma revisão da História do Brasil, Lisboa, Bertrand, 1977,
p.25-26.
63
Ibid., p.46.
64
Ibid., p.53 e 54.
30

propósito principal da religião egípcia, e por consequência este também era o propósito dos
seus templos. Já que a ele próprio não era atribuído qualquer poder divino, o faraó era visto
como o representante do Egito perante os deuses, e o seu mais importante protetor da maat.
Teoricamente, portanto, era sua obrigação executar os rituais do templo. Embora não se saiba
ao certo com que frequência os faraós participavam de fato dessas cerimônias, a existência de
templos por todo o Egito tornava obviamente impossível que eles os fizessem em todos os
casos, e na maior parte do tempo essas funções eram delegadas aos sacerdotes. O faraó, ainda
assim, tinha a obrigação de manter, financiar e expandir os templos de todo o seu reino.
Embora o faraó delegasse sua autoridade, a realização dos rituais dos templos ainda era uma
função oficial, restrita a sacerdotes de alto escalão. A participação da população na maior
parte das cerimônias não só era desnecessária como até mesmo proibida. Muito da atividade
religiosa no Egito Antigo, entretanto, ocorria em santuários privados e comunitários,
separados dos templos oficiais. Por serem a ligação primordial entre o reino humano e o
divino, os templos gozavam de grande respeito.
Cada templo tinha uma divindade principal, embora a maioria também fosse dedicada a
outros deuses. Nem todas as divindades, no entanto, tinham templos dedicados a ela. Muitos
demônios e deuses domésticos eram invocados apenas em práticas religiosas privadas ou
mágicas, com pouca ou nenhuma presença nas cerimônias oficiais. Também existiam outros
deuses que desempenhavam papéis importantes na cosmologia da religião egípcia, porém por
motivos incertos não haviam sido honrados com seus próprios templos. Destes deuses que
tinham seus próprios templos, muitos eram cultuados principalmente em determinadas regiões
do Egito, embora muitos deuses que tinham ligações locais fortes também fossem importantes
no resto do país. Até mesmo divindades cujo culto era realizado por todo o país tinham uma
associação forte com as cidades nas quais se localizavam seus principais templos. Nos mitos
de criação egípcios, o primeiro templo se originou como um local utilizado como abrigo por
um deus (qual divindade exatamente era algo que variava de acordo com a cidade onde o mito
era narrado), situado sobre o monte de terra onde se iniciara o processo da criação. Cada
templo no Egito, portanto, era equivalente a este templo original, e ao local da própria criação
do mundo. Como lar primordial do deus e localização mitológica da fundação da cidade, o
templo era visto como o ponto central da região, a partir da qual a divindade padroeira da
cidade a governava.
Dada a importância dos templos para a própria estabilidade social e a necessidade
constante de contato com a imanência divina, ao aportarem no Rio de Janeiro os egípcios logo
encontraram na Pedra da Gávea, pelo seu formato prévio e altura, o local ideal para a
construção do seu principal templo-monumento em terras brasileiras. Não fazia sentido nem
tampouco seria viável, tendo em vista a topografia e o pouco tempo disponível, desmanchar
montanhas de pedra bruta para transformá-las em blocos de pedra e depois remontá-las.
Optaram pela solução mais conveniente e prática, a de uma interferência sutil, pouco invasiva,
porém não menos marcante, que consistiu em aproveitar o formato já existente da montanha e
conferir-lhe os contornos de uma esfinge, com especial trato no que tangia ao rosto, que
ganhou olhos e nariz bem definidos e uma barba protuberante. Assim também fizeram com
outras montanhas do Rio de Janeiro que adquiriram os contornos de gigantes deitados olhando
para o céu, como é o caso do Morro do Corcovado. Os morros do Pão de Açúcar e da Urca, na
Enseada do Botafogo, foram modificados em grau talvez mínimo, tendo os egípcios por sorte
já os encontrado com seu formato que em muito lembra uma esfinge – nesse caso, de longe a
maior do mundo –, no que lhes bastou deixarem uma gravura pronunciada em forma de uma
gigantesca Íbis (lembrando que no Antigo Egito, o deus Toth, conhecido na Grécia como
Hermes Trimegisto, pois era associado a Hermes, deus grego do conhecimento, da escrita e da
magia, era representado com cabeça de íbis) pernalta de 120 metros de altura no Morro do
Pão de Açúcar, em posição exata para ser iluminada pelo Sol em qualquer época do ano
31

(sendo que seu lado direito é muito mais definido do que o esquerdo), porém mais bem visível
por aqueles que se disponham a olhar a partir da Marina da Glória quando o Sol alcança o seu
zênite, ao meio-dia. Uma parte do Pão de Açúcar parece ser de fato esculpida, tanto que serve
de abrigo em escaladas. Mesmo que a natureza tenha agraciado os egípcios com formas
prévias, ainda assim teria sido necessário o emprego de arrojadas técnicas e muita mão de
obra para moldarem de forma tão precisa e acurada quilômetros e quilômetros de altas
montanhas.
Afeito à possibilidade de os antigos egípcios terem vindo à América do Sul e de a mítica
terra de Punt ter estado localizada no Brasil,65 o pesquisador carioca Sérgio O. Russo retomou
a linha desenvolvida por seu conterrâneo Eduardo B. Chaves e em 1985 lançou seus dois
primeiros livros (Nas fronteiras do desconhecido e Nos domínios do mistério) nos quais
procurou acrescentar novos dados e inferições acerca da Pedra da Gávea e das demais
montanhas esculpidas do Rio de Janeiro.66
No ano seguinte, em seu terceiro livro (Nos portais do inexplicável),67 Russo relatou a
escalada que fez à Pedra da Gávea partindo da íngreme Estrada das Canoas e penetrando nas
matas da Floresta da Tijuca. Uma vez no topo, Russo fez as melhores observações e obteve as
melhores e mais detalhadas fotos jamais tiradas do rosto da Pedra da Gávea e de seus
arredores. Frente a frente com o “rosto de ancião, que ostenta uma fisionomia grave e
extraordinariamente intensa apesar do desgaste causado pela erosão das idades”, constatou
serem “seus olhos, duas profundamente escavadas cavernas” que “se dirigem ao interior da
rocha maciça. O nariz, de uma fidelidade absoluta e elaborado dentro de uma perspectiva
assombrosa, confere àquela face misteriosa um aspecto grave, dir-se-ia mesmo patriarcal. Sua
enorme testa, onde são visíveis as espantosas marcas de um corte único, preciso e
absolutamente retilíneo, feito sabe-se lá com que aparelhagens, choca o espectador atônito. A
sua barba colossal se dirige rumo às profundezas do abismo vertiginoso. Ela é retilínea e
também retangular, espantosamente semelhante àquelas usadas pelos veneráveis faraós do
Antigo Egito! Não existe boca naquela face. Para aqueles que entendem de Esoterismo, a
explicação é bastante lógica: Silêncio, Segredo Guardado!” Enquanto admirava as gigantescas
proporções daquele monumento, Russo calculou com razoável precisão a sua altura como
sendo de aproximadamente 144 metros.68
O topo, aquilatou Russo, era “um planalto gigantesco, estranhamente aplainado... onde
na sua face sul, isto é, naquela voltada para o mar, poderiam folgadamente pousar quaisquer
tipos de máquinas que aterrissem ou decolem na vertical!” Russo viu ali “blocos de pedra
enormes, partidos ao meio com absoluta precisão; exatamente como se faz com uma
laranja”.69
As tão faladas inscrições, estampadas na lateral leste do rosto de pedra e situadas bem
acima da orelha, causaram-lhe “assombro pela sua simetria: são enormes mesmo. Mais de três
metros de altura cada caracter! Estão alinhadas em local simplesmente inacessível, em pleno
paredão rochoso.”70 Russo descartou completamente a versão oficial de as inscrições serem
“meros trabalhos erosivos, assim como certos setores mais obliterados e radicais querem nos
fazer crer”, bem como sua origem pretensamente fenícia ou viking,71 considerando-as
espantosamente semelhantes com o hebraico e o egípcio arcaico.72 À esquerda da cabeça de

65
Russo, Sérgio O. Nos domínios do mistério, Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1985, p.54.
66
Russo, Sérgio O. Nas fronteiras do desconhecido, Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1985; IDEM, Nos domínios do
mistério, Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1985.
67
IDEM, Nos portais do inexplicável, Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1986.
68
Ibid., p.90-92.
69
Ibid., p.73-78.
70
Ibid., p.79.
71
Ibid., p.100-102.
72
Ibid., p.119.
32

pedra, Russo constatou que “existem profundamente gravados na rocha orifícios que, à
medida que o Sol segue o seu curso, estampam de maneira impressionante as figuras e uma
íbis, um ganso e outros dois peixes! [...] Note-se também que situadas à direita daquelas
figuras, já na lateral do rosto de pedra, existe uma profusão de inscrições, somente visíveis
quando iluminadas pela luz solar; à tarde.”
“A um passo do abismo enregelante”, Russo deparou-se com “outro rosto de homem
[...] na lateral do maior, a qual se acha voltado para a face norte e não visível desse ponto”. Na
área em que se situaria o nariz desse rosto, Russo descobriu gravado um perfeito e “enorme
triângulo equilátero cujo vértice aponta para cima, e também um hieróglifo tipicamente
egípcio, embora já desgastado pelo tempo: A Cruz Ansata, ou ANKH, a chave da vida e
símbolo da imortalidade!”73 Tais coisas forçosamente o levaram a perguntar “exatamente
como alguém poderia ter chegado até lá para confeccionar essa multiplicidade de enigmas.
Ainda mais se levarmos em conta que, ainda hoje, mesmo com as nossas modernas técnicas,
uma façanha desta natureza seria praticamente impossível, mesmo para os alpinistas mais
ousados.”74
A orelha, uma caverna de 7 metros de largura por 5 metros de profundidade, a qual se
chega após uma descida bem acidentada, “curiosamente lembra a constituição interna do
ouvido humano”.75 Dentro de um fosso, Russo localizou “uma escadaria absolutamente
artificial” que daria “acesso ao alto da cabeça de pedra”, conforme “as insistentes lendas que
cercam o local”. Ali do topo, Russo pôde avistar em toda a sua plenitude a vizinha Pedra
Bonita, de onde costumam saltar os praticantes dos voos de asa-delta, constatando que seu
“topo também foi misteriosamente aplainado em ascendência curvilínea”.76
De maneira inédita, Russo apresentou outras peças do estonteante quebra-cabeças que
forma o gigante-deitado de 18 quilômetros de extensão. Da Avenida Alvorada, estrada que
liga a região da Baixada de Jacarepaguá à Barra da Tijuca, nota-se que a Pedra da Gávea,
vista dali de um ângulo diametralmente oposto, forma os contornos de um homem deitado de
nariz pronunciado e mão colocada ao peito, “exatamente como as múmias egípcias”.
Rumando para o afastado bairro do Recreio dos Bandeirantes, praia situada a 18 quilômetros
da Pedra da Gávea, Russo localizou ao longe uma montanha que lembra o rosto de um moai
da Ilha da Páscoa.77 A Esfinge da Gávea, curiosamente, olha para uma montanha cujo topo
apresenta a forma de uma pirâmide.78
Pela tradição mitológica, a esfinge é uma cabeça humana com corpo de leão que
simboliza a evolução do homem desde o animal, o triunfo do espírito humano sobre a besta.
Sua fisionomia serena irradia um poder cósmico, uma aura que estimula a mente evocando
ecos de uma esplendorosa civilização há muito desaparecida. Sobrelevando-se às paixões
transitórias e mundanas, olha com sorriso enigmático para o norte magnético da Terra,
desprezando as mutilações dos homens e transcendendo tempo e espaço, para o infinito
insondável do universo. A palavra egípcia que designava a esfinge era shesep-ankh, que
significa “imagem viva”, e que os gregos traduziram erroneamente por sphigx, que significa
“atar, ligar”, uma vez que a esfinge é composta por um elemento animal e outro humano
ligados entre si. Na Grécia, a esfinge era um monstro alado com cabeça de mulher e corpo de
leão que se sentava em Tebas, ao lado de uma estrada, junto a um precipício, e estrangulava
os que, passando por ela, não fossem capazes de decifrar o enigma que propunha.

73
Ibid., p.84.
74
Ibid., p.92.
75
Ibid., p.80.
76
Ibid., p.97.
77
Ibid., p.104-107.
78
Russo, Sérgio O. Nos domínios do mistério, Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1985, p.133.
33

Inúmeras esfinges encontram-se espalhadas pelo Brasil, invariavelmente situadas em


locais repletos de lendas, folclores, mitos, mistérios e fenômenos sobrenaturais, como que a
guardar segredos ou a indicar algo.
A sudoeste de Goiás, na região de Paraúna, a 155 quilômetros de Goiânia, existem
paredes colossais nas faldas de uma serra, uma muralha com cerca de 15 quilômetros, um
sistema de túneis com seções de 4 metros de diâmetro, cavados no interior de uma rocha,
esculturas zoomorfas e antropomorfas, etc. Enormes blocos de pedra encontram-se
sobrepostos, dando a nítida impressão de ruínas ciclópicas. Numa delas, o pesquisador Alódio
Tovar, autor do livro A face oculta da natureza: O enigma de Paraúna, constatou o
delineamento de uma incrível figura zoomorfa, um grande felino ou talvez uma esfinge. A
Serra das Galés está repleta de formações de arenito, sendo que algumas delas receberam os
nomes de Pedra da Tartaruga, Cálice de Pedra, Esfinge, Índio, Lorde Francês, Máquina de
Escrever, etc.79
Na trilha que dá acesso ao Pico das Agulhas Negras (2.887 metros), ponto culminante
da Serra da Mantiqueira, aproximadamente a 2.500 metros acima do nível do mar, blocos
graníticos (sienito) conhecidos como “Pico das Prateleiras”, sugerem a forma de uma esfinge.
Rumo a noroeste, em direção a Minas Gerais, formando um triângulo alongado que
passa pelo topo do Pico das Agulhas Negras, no município de Itamonte, a 417 quilômetros de
Belo Horizonte, há uma grande cabeça de pedra conhecida como Pedra do Picu ou “Esfinge
de Itamonte”, que se eleva abruptamente da vegetação circundante.
No Parque Estadual de Vila Velha (chamada pelos índios de Itacuretaba, que significa
literalmente “Cidade Extinta de Pedra”), a 100 quilômetros da capital Curitiba e a 18
quilômetros de Ponta Grossa, no Paraná, entre as gigantescas figuras de arenito avermelhado
(com uma idade de cerca de 340 milhões de anos) a sugerir formas de animas (tais como o
camelo, o rinoceronte, o leão, o urso, a cabeça de gorila, a tartaruga, o gavião e a baleia), de
objetos (tais como a bota, a garrafa e a taça), de castelos, torres e muralhas (com até 30 metros
de altura), de monólitos, da proa de um navio e até de uma pirâmide (ladeada por um rosto de
pedra), destaca-se a de uma esfinge, que parece montar guarda no local.
Na cidade de Quixadá, no Ceará, a 167 quilômetros de Fortaleza, há uma colossal figura
moldada no topo de uma montanha à beira do Açude do Cedro denominada popularmente de
“Pedra da Galinha Choca”, mas que se trataria na verdade de uma esfinge, visto que apresenta
um imenso rosto leonino bem como o prolongamento do seu corpo.
Para o arqueólogo peruano Daniel Ruzo de los Heros (1900-1991), principal
pesquisador dos monumentos graníticos confeccionados há cerca de dez mil anos pela
desaparecida cultura de Huanca em uma área de cerca de 4 km2 em Marcahuasi (planalto dos
Andes de origem vulcânica a leste de Lima, na cadeia montanhosa que sobe para a margem
direita do Rio Rimac), no Peru, a uma altitude de 4 mil metros, tudo isso “faz parte de
evidentes provas que atestam a existência, há milhares de anos no passado terrestre, de uma
civilização de caráter religioso solar, que se estendia do Egito aos Andes e ao Brasil”.
Uma esfinge se ergue imponente no topo do Morro do Paranambuco, logo após o costão
rochoso da Praia do Sonho, em Itanhaém, litoral sul de São Paulo. Segunda cidade mais
antiga do Brasil, escolhida em 22 de abril 1532 pela expedição do navegador português
Martim Afonso de Sousa para servir de povoação durante sua estada em São Vicente,
Itanhaém (palavra de origem tupi que significa “prato” ou “bacia de pedra”, pia batismal em
que os jesuítas batizavam os índios), a 111 quilômetros da capital paulista, ao que tudo indica
abrigou, há milhares de anos, uma civilização avançada cuja quase totalidade dos vestígios –
incluindo ciclópicos monumentos de pedra – desapareceram pela ação do tempo ou, o que é
pior, pelo descaso dos que deveriam cuidar de preservá-los.
79
Tovar, Alódio. A face oculta da natureza: O enigma de Paraúna, 2ª ed., Goiânia (GO), Imery Publicações,
1986.
34

A arqueologia e a história oficial, no entanto, ainda não reconhecem que uma cultura de
porte ali tenha vicejado ou ao menos deixado vestígios de sua passagem, apesar de,
sabidamente, ter sido o litoral sul paulista cortado por uma das rotas principais do Peabiru e
densamente povoado pelo chamado “homem do sambaqui”, grupos pescadores-coletores que
se destacaram pela sofisticada indústria baseada em artefatos de pedra polida e sobretudo
pelos sambaquis (samba = concha; qui = monte), montículos de conchas e restos de alimentos
que chegavam a atingir mais de 30 metros de altura e 500 metros de comprimento. A prova
mais evidente da presença de grande contingente sambaquieiro na região, às margens do Rio
Preto, foi completamente destruída pelos moradores que inadvertidamente usaram as conchas
amontoadas como matéria-prima da argamassa para feitura de suas casas.
Em 1983, Fábio Daró e Henrique Viana Arce, membros do Instituto Paulista de
Arqueologia, tomaram conhecimento de que um morador havia encontrado uma urna durante
trabalhos realizados no quintal de sua residência. Dirigindo-se ao local, depois denominado
Sítio Arqueológico Tanigua I, constataram a existência de um cemitério tupi-guarani
composto por urnas de cerâmica contendo esqueletos e oferendas funerárias. Uma das urnas,
datada do século XVI, integra o acervo da Prefeitura e foi exposta em abril de 2002 no Museu
da Casa de Câmara e Cadeia por ocasião da comemoração dos 470 anos da cidade.
O historiador Luiz Galdino em seu livro Peabiru: Os incas no Brasil, alude aos
caminhos do Peabiru em Conceição de Itanhaém, Iguape e Paranaguá, noticiados pelo santista
José Bonifácio de Andrada e Silva, o “Patriarca da Independência”. Segundo Galdino, “o
litoral sul de São Paulo, centralizado por Iguape, acabou por se transformar no mais
importante repositório de peças e descobertas que concorreram para viabilizar a hipótese da
origem incaica desses caminhos. Tão grande foi a quantidade de machados de prata e de
cobre, descobertos na região, que poucos viajantes tornaram à Europa sem levar o seu
exemplar.”80
Espraiando-se por uma área de 597,4 km2, a natureza exibe em Itanhaém traços
exuberantes. Conhecida como “Amazônia Paulista”, a bacia hidrográfica compõe-se de cerca
de 2 mil quilômetros de rios navegáveis e não navegáveis, riachos e cachoeiras, manguezais,
florestas de planície e matas ciliares. O Rio Itanhaém, principal rio do município, deságua no
mar, entre o Morro ou Mirante do Sapucaitava (“forma de semente” em tupi-guarani, o ponto
mais alto de Itanhaém) e a Praia do Centro. Formado pelas águas escuras do Rio Preto e pelas
límpidas águas do Rio Branco, possui ainda outros afluentes: Campininha, Curitiba, Aguapeú
e Mambu. Mas são os 47 quilômetros de praias o principal atrativo dos turistas e da população
flutuante, que no verão eleva o número de habitantes de setenta para quatrocentos mil. A praia
mais badalada e frequentada é a do Sonho. De suave curvatura, possui 800 metros de águas
calmas e claras. Inicia-se depois da Praia dos Pescadores e termina no imponente costão do
Morro do Paranambuco, onde fica a Praia das Conchas, cuja areia grossa deriva literalmente
de restos de conchas.
É justamente no topo do Morro do Paranambuco, a última elevação dos costões – após
isso, somente os Maciços da Jureia no município de Peruíbe –, entre a Praia do Sonho e
Cibratel (a de maior extensão e largura do município), que há um imponente conjunto de
pedras que, visto de determinados ângulos da praia, afigura-se como uma esfinge, daí ter sido
batizado de “Pedra da Esfinge”. Há quem veja nela a representação do perfil de uma mulher
aos moldes egípcios.
A esfinge só surgiu por causa da escavação do topo do morro em seu processo de
urbanização, no começo do século XX, como atestam as fotos da época. Manteve-se,
portanto, oculta sob a terra por sabe lá quantas eras, protegida da implacabilidade do tempo e
dos homens, tal qual a sua “matriz”, a Esfinge de Gizé, perto do Cairo, no Egito, que por

80
Galdino, Luiz. Peabiru: Os incas no Brasil, Belo Horizonte, Estrada Real, 2002, p.131-132.
35

várias vezes teve de ser desenterrada das areias do deserto. Há mais de seis mil anos, na
Quarta Dinastia, Khafra (Khafre ou Quéfren, que reinou durante 26 anos, em torno de 2570
a.C., construtor da segunda maior das pirâmides de Gizé, a de Quéfren, único templo
remanescente do período) desenterrou o monstro de pedra e providenciou sua imortalidade
mandando que nela se inscrevesse seu nome. O jovem príncipe Tutmés IV (ou Tutmósis IV,
oitavo rei da 18ª Dinastia que reinou de 1412 a 1402 a.C.), certo dia, cansado da caçada,
adormeceu entre as grandes patas, ao que o “deus sol” lhe apareceu em sonho e o impeliu a
afastar as areias que a recobriam. Em 162 d.C., o imperador romano Marco Aurélio (121-180)
desenterrou a Esfinge para que os homens pudessem admirá-la. Ao triunfo do cristianismo
seguiu-se o seu completo abandono: só o rosto espreitava acima da areia; o restante do corpo
teve de esperar até o século XIX, quando os egiptólogos finalmente o trouxeram à luz.
Escalei o morro pelas suas encostas, preterindo a estrada, para que fosse observando as
diversas formas assumidas pela esfinge à medida que me aproximava. O esforço da subida,
naqueles últimos dias de verão e sob uma inclemente temperatura de mais de 30º C, valeu a
pena. Lá do alto se tem uma linda vista do oceano, das praias adjacentes e de uma parte da
cidade. Fiquei a imaginar os primeiros navegadores aportando com suas naus naquele
magnífico cenário e os índios ali postados acompanhando atônitos tão inusitada chegada.
Inerentemente ao processo de desbastação que a descaracterizou, a esfinge se encontra
bastante desgastada, porém ainda conserva os “traços originais” conferidos pelos seus autores,
isto é, se é que os houve, uma vez que para os geólogos trata-se meramente de um produto da
erosão.
Os três maciços de pedra que a compõe, observados distintamente, sugerem variadas
figuras. Uma delas, a que propriamente constitui a cabeça da esfinge, lembra o perfil de um
rosto de traços negroides. No platô de uma das pedras que formam o corpo de leão e que se
eleva a cerca de 10 metros de altura, uma bandeira brasileira foi fixada. O conjunto transmite
a impressão de uma obra artificial, adrede planejada. A cabeça é a que mais denota isso por
apresentar ângulos retos e cavidades ou depressões do que outrora foram os olhos e a boca.
Encimando-a, há um enorme bloco triangular, de cortes precisos, caprichosamente colocado à
guisa de realce ou complemento à face e sugerindo um toucado real, tal como na Esfinge de
Gizé. E tal como uma de suas tantas congêneres, a famosa Esfinge da Gávea, no Rio de
Janeiro, a Esfinge de Itanhaém está de costas para o sul, para o Oceano Atlântico, e com o
enigmático rosto voltado na direção do norte magnético da Terra. E tal como a lenda grega, a
Esfinge de Itanhaém, de lineamentos femininos, está à beira de um precipício nos propondo o
enigma de sua origem e significação.
Próxima dali, integrando o “complexo arquitetônico da esfinge”, encravada entre o
costão rochoso da Praia do Sonho e o Atlântico, está a Cama de Anchieta, uma curiosa
formação rochosa que lembra um leito, com pequeno aclive na parte esquerda e coberta por
um “dossel”. O acesso se dá por trilhas entre rochas irregulares e escorregadias, por isso deve
ser feito com cuidado. Reza a lenda que em suas peregrinações por Conceição de Itanhaém, o
padre jesuíta espanhol José de Anchieta (1534-1597) lá se deitava para descansar, meditar e
buscar inspiração para as suas poesias. Numa pequena enseada no sopé do morro, formada
por rochas de grande e médio porte, convenientemente denominada de Pocinho de Anchieta, o
padre jesuíta teria ensinado os índios a fazer uma barreira de pedras para dessa forma
represarem os peixes.
Embora em desacordo com a posição dos comodistas que pretendem ver na Esfinge de
Itanhaém apenas o “capricho da natureza”, admito que de fato não há elementos de peso para
corroborar a hipótese de que uma civilização extremamente evoluída tenha deixado em
Itanhaém as suas silenciosas porém grandiloquentes marcas, talvez um testemunho perene
para os homens do futuro. O fato iniludível é que na base de todos os insólitos monumentos
que desafiam a nossa compreensão por todos os quadrantes da Terra, subjaz uma origem
36

comum, uma história oculta de mistérios muito maiores do que se imagina, considerando que
muita coisa ainda há para ser descoberta.
37

2. Homenagem e tributo a Thor Heyerdahl

A maior inspiração para este projeto vem de Thor Heyerdahl (1914-2002), biólogo,
geógrafo, antropólogo, arqueólogo, explorador e escritor norueguês que em 1947, junto de
cinco conterrâneos (Knut Haugland, Bengt Emmerik Danielssen, Erik Hesselberg, Torstein
Raaby e Herman Watzinger), realizou o feito de percorrer 8 mil quilômetros de Oceano
Pacífico a bordo da “Kon-Tiki” (nome do herói mítico polinésio da solitária Ilha de Fatuhiva,
pertencente ao grupo das Ilhas Marquesas, que segundo a tradição oral teria trazido os
antepassados dos ilhéus desde o leste),81 réplica de uma jangada primitiva de pau-de-balsa que
construiu com materiais e técnicas pré-colombianas, demonstrando que os mares não se
constituíam em barreiras intransponíveis, como se pensava, mas antes em autênticas “vias
expressas” a interligar povos e continentes.
A tese de Heyerdahl, publicada pela primeira vez em 1941 enquanto trabalhava no
Museu da Colúmbia Britânica,82 era a de que os traços etnológicos e linguísticos comuns entre
a Polinésia e a América do Sul eram o resultado de duas ondas migratórias. A primeira, de
povos incaicos, teria ocorrido por volta do ano 500, ou seja, os primitivos povoadores das
Ilhas dos Mares do Sul teriam partido do Peru – em balsas de madeira – e não da Indonésia,
no sudeste asiático, como era consenso entre a comunidade científica da época, tanto mais
porque, conforme Heyerdahl observara, o vento e as correntes oceânicas fluíam do leste para
oeste. Centenas de anos depois, um segundo grupo étnico teria chegado ao Havaí em canoas
duplas provenientes da Colúmbia Britânica. O principal argumento contra as ideias de
Heyerdahl era a de que os pré-colombianos não possuíam barcos capazes de cruzar o Oceano
Pacífico, o que se constituía em falácia ou ignorância, já que bastou uma simples ida à
biblioteca para que Heyerdahl desenterrasse relatórios deixados pelos primeiros europeus que
haviam atingido a costa do Pacífico na América do Sul repletos de esboços e descrições das
enormes jangadas manobráveis dos indígenas, os quais possuíam vela quadrada, quilha
corrediça e um comprido remo de direção na popa.83
Uma vez que os cientistas receberam a sua tese com frieza e cepticismo, Heyerdahl
decidiu lançar-se em uma expedição marítima para prová-la. A tosca embarcação, uma balsa
de junco totora similar às utilizadas pelos mochicas (cultura que floresceu no norte do Peru
entre 100 a.C. e o ano 800), foi construída no Peru com troncos de pau-de-balsa (Ochroma
pyramidale, madeira leve e resistente, mais leves do que a cortiça, encontrada entre as matas
tropicais ao norte da América do Sul até o sul do México) cortados nas florestas ao sopé da
Cordilheira dos Andes, no Equador (trazidos para o Peru flutuando rio abaixo), e amarrados
uns aos outros com cordas de cânhamo, sem um único prego, cravo ou cabo.

81
Ao estudar as lendas do deus sol Viracocha [em quíchua, Apu Kun Tiqsi Wiraqutra, sendo que tiqsi significa
“fundamento, base, início”, enquanto wiraqutra provém da fusão dos vocábulos wira (gordo) e qutra (lago,
lagoa)], o ser supremo, criador do Universo e de tudo o que existe, equivalente ao deus judaico-cristão,
Heyerdahl se deu conta de que o nome original de Viracocha usado no Peru em tempos idos era Kon-Tiki ou
Illa-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki: “Kon-Tiki era sumo sacerdote e rei-sol dos lendários ‘homens
brancos’ dos incas que tinham deixado as enormes ruínas nas margens do Lago Titicaca. Reza a lenda que Kon-
Tiki foi atacado por um chefe chamado Cari que veio do Vale Coquinho. Numa batalha travada numa ilha do
lago Titicaca, os misteriosos brancos barbados foram trucidados, mas Kon-Tiki e seus companheiros mais
chegados escaparam e, mais tarde, aportaram à costa do Pacífico, de onde finalmente desapareceram sobre o mar
para as bandas do ocidente. Já eu não tinha dúvida de que o branco deus-chefe Sol-Tiki que, segundo os incas,
havia sido, pelos pais destes, expulso do Peru para o Pacífico, era idêntico ao branco deus-chefe Tiki, filho do
sol, quem os habitantes de todas as ilhas orientais do Pacífico reconheciam como o primitivo fundador da sua
raça” [Heyerdahl, Thor. A Expedição Kon-Tiki, 7a ed., São Paulo, Melhoramentos, 1959, p.16-17].
82
New York, International Science, 1941.
83
Heyerdahl, Thor. A Expedição Kon-Tiki: 8.000 km numa jangada através do Pacífico, 7a ed., São Paulo,
Melhoramentos, 1959, p.20 e 22.
38

Nos nove dos mais grossos troncos de balsa selecionados para serem os toros mestres,
fundos sulcos foram escavados para impedir que as cordas que passavam por eles para
amarrar toda a jangada não escorregassem. Os nove troncos foram então colocados lado a
lado na água para que pudessem todos cair livremente na sua posição natural flutuante antes
de serem fortemente amarrados uns aos outros. O toro mais longo, de 13,70 metros de
comprimento, foi colocado no centro e se projetava bem além dos outros numa e na outra
ponta. Toros cada vez mais curtos foram postos simetricamente a um e a outro lado de modo
que os lados da jangada tivessem 9 metros de comprimento e a proa emergisse como um
arado grosseiro. Depois que os nove troncos de balsa foram fortemente amarrados uns aos
outros com corda de cânhamo de 1 polegada e de ¼ de polegada, de comprimentos diferentes,
os toros finos de balsa medindo 30 centímetros por 5,50 metros foram amarrados de través
sobre aqueles, com intervalos de cerca de 90 centímetros. Sobre a estrutura foi posta uma
coberta de proa medindo 3,60 metros por 5,50 metros feita de taquaras amarradas à jangada
na forma de sarrafos separados e cobertos com esteiras soltas de bambu trançado. No meio da
jangada, perto da popa, ergueram uma pequena cabana aberta feita de bambu com paredes
também de bambu e telhado de fasquias de bambu com folhas de bananeira que se
encaixavam umas nas outras como se fossem telhas. Media 2,40 metros por 4,20 metros, e
para diminuir a pressão do vento e do mar era de altura tão baixa que não podiam ficar em pé
sem bater a cabeça no teto. As paredes e a coberta eram feitas de fortes hastes de bambu
amarradas e eram tapadas por uma sebe de varas também de bambu. À frente da cabana
levantaram dois mastros de mangueiro (de uma dureza de ferro) de 8,80 metros de altura que
se inclinavam um para o outro e no topo eram amarrados em cruz. A enorme vela quadrada de
lona medindo 4,60 metros de altura por 5,50 metros de largura, tendo ao centro a cara barbada
de Kon-Tiki (uma cópia fiel da cabeça do rei sol esculpida em pedra vermelha sobre uma
estátua nas ruínas da cidade de Tiahuanaco), pintada de vermelho pelo artista Erik, foi
carregada numa verga feita de dois paus de bambu amarrados. Os nove enormes toros de
madeira afilavam-se ligeiramente nas extremidades à moda indígena, para poderem deslizar
com mais facilidade na água, e tábuas bem baixas para proteção contra borrifos foram ligadas
à proa acima da superfície do mar. Em vários lugares onde existiam grandes fendas entre
toros, introduziram ao todo cinco sólidas pranchas de abeto cujas pontas imergiam na água
sob a jangada. Foram postas mais ou menos a esmo e penetraram a 1,50 metros na água, tendo
25 metros de espessura e 60 centímetros de largura. Ficavam seguras no respectivo lugar por
meio de cunhas e cordas e serviam de pequeninas quilhas paralelas. Quilhas deste tipo eram
usadas em todas as jangadas de pau-de-balsa no tempo dos incas e eram destinadas a evitar
que as jangadas chatas de pau vogassem para qualquer lado à mercê do vento e das ondas.
Não puseram nenhuma grade ou proteção em volta da jangada, mas tinham um toro de balsa,
comprido e delgado, que de cada lado oferecia apoio aos pés. A construção toda era uma
cópia fiel das antigas embarcações do Peru e do Equador, com exceção dos guarda-borrifos,
colocados nas proas, que posteriormente se verificou serem inteiramente desnecessários.84
Respeitadas as linhas gerais, a tripulação estava livre para arrumar os demais detalhes a
bordo como lhe aprouvesse. Embaixo da cabana, entre as vigas transversais, oito caixotes
foram amarrados. Dois foram reservados para instrumentos científicos e filmes, e os outros
seis foram distribuídos a cada um dos tripulantes, tendo cada um sido inteirado de que poderia
trazer consigo coisas de seu uso privado que coubessem no seu caixote. Sobre os caixotes
foram postas esteiras de junco trançado e os colchões de palha. Knut e Torstein reservaram
um canto da cabana de bambu para o transmissor de ondas curtas que com os seus 13.990 kc
(kilociclos por segundo ou milhares de ciclos por segundo, um termo obsoleto para kilohertz)
não emitia mais do que 6 watts, tendo mais ou menos a mesma potência de um maçarico

84
Ibid., p.55 e 56, 61 e 115.
39

elétrico. Durante a viagem, a dupla sempre esteve às voltas para manter em funcionamento a
pequena estação de rádio de 30 centímetros acima da superfície da água. Todas as noites eles
se revezavam para enviar ao éter informações e observações acerca da viagem que
radioamadores avulsos captavam e retransmitiam ao Instituto Meteorológico de Washington e
a outros centros. Do lado externo da parede da cabana, Bengt instalou um fogareiro “Primus”
no fundo de um caixote vazio solidamente amarrado ao convés. Este caixote, abrigado contra
os ventos alísios de sudeste que, via de regra, sopravam do lado oposto, era a “cozinha” onde
fritavam os peixes e preparavam outros pratos.85
O Kon-Tiki levava provisões para quatro meses na forma de sólidas caixinhas de
papelão impermeabilizadas com uma camada uniforme de asfalto e dispostas lado a lado sob a
coberta de bambu entre as nove baixas vigas transversais que sustentavam a coberta. Numa
fonte cristalina jorrando de uma alta montanha, encheram 56 latinhas de água, contendo ao
todo 250 galões de água potável, as quais foram amarradas entre as vigas transversais de
maneira que a água do mar pudesse sempre borrifá-las. Sobre a coberta de bambu amarraram
o resto do material e grandes cestos de vime cheios de frutas frescas que comeram dentro de
poucas semanas antes que apodrecessem. Dos duzentos cocos que levaram, a metade que
havia sido posta entre as provisões especiais abaixo do convés, com as ondas a banhá-las
incessantemente, se estragaram devido ao contato com a água salgada. Foram os olhos dos
cocos que absorveram a água e os amoleceram, ocasionando a invasão da água salgada.86
Como os antigos navegadores incas, por sua vez, se preparavam para suas viagens há
mil anos atrás? Heyerdahl forneceu-nos um quadro bastante factível:

“Fossem quais fossem os planos desses adoradores do Sol, ao fugirem de sua


pátria eles certamente se proveram de mantimento para a viagem. Carne seca, peixe e
batata doce eram a parte mais importante de seu primitivo regime alimentar. Quando os
navegantes em jangada daqueles tempos se fizeram ao mar, ao longo da erma costa do
Peru, dispunham de amplo abastecimento de água a bordo. Em vez de vasilhas de barro,
geralmente usavam enormes cabaças que resistiam a golpes e choques, enquanto ainda
mais próprias ao uso em jangada eram as grossas hastes de gigantescos bambus;
furavam todos os nós e introduziam a água por um buraquinho no fundo, que vedavam
com um batoque ou com breu ou resina. Trinta ou quarenta dessas grossas hastes de
bambu ficavam à sombra e se conservavam frias – a uns 26º C, na corrente equatorial –
graças à água fresca do mar que as estava sempre banhando. Um depósito dessa espécie
continha duas vezes a quantidade de água que nós usamos em toda a nossa viagem, e
podia ser levada quantidade ainda maior simplesmente amarrando mais hastes de bambu
na água, por baixo da jangada, onde, além de não ocuparem espaço, nada pesavam.
Verificamos que, volvidos dois meses, a água doce começou a alterar-se e ter um gosto
ruim. Mas, a esse tempo, a gente já deixou bem atrás a primeira área do oceano onde há
pouca chuva, e já chegou, há muito, a regiões nas quais grossas pancadas de chuva
podem equilibrar a provisão de água. Distribuímos diariamente para cada homem um
bom litro de água, e raro era o dia em que a dose se esgotava. Ainda mesmo que os
nossos predecessores tivessem partido de terra sem provisões adequadas, enquanto
vogavam pelo mar, ter-se-iam arranjado com a corrente, na qual havia peixe em
abundância. Não se passou um dia em toda a nossa viagem em que não houvesse peixes
em redor da jangada e que não pudessem ser facilmente apanhados. Mal houve um dia
sem que ao menos peixes-voadores viessem espontaneamente cair a bordo. Sucedeu até
que grandes bonitos, comida deliciosa, subiam à jangada com as massas de água que

85
Ibid., p.60, 67, 86, 87 e 130.
86
Ibid., p.16, 91, 59 e 60.
40

entravam pela popa, e ficavam a rabear na embarcação quando a água escorria por entre
os toros como num crivo. Morrer de fome era impossível.”87

Sobre o Kon-Tiki viajaram os seis destemidos noruegueses durante 101 dias, do Porto
de Callao, na costa do Peru, de onde partiram em 28 de abril, até os recifes do Atol de Raroia,
no Arquipélago de Tuamotu, extremo sul da Polinésia, aonde chegaram em 7 de agosto,
provando que os povos pré-colombianos possuíam habilidades muito avançadas para a
navegação em alto mar e, portanto, podiam perfeitamente ter chegado à Polinésia por volta do
ano 500 desta maneira, seguindo a trajetória do Sol e se deixando levar pelo vento e pela
Corrente de Humboldt [corrente oceânica que percorre o Pacífico, assim denominada em
homenagem ao geógrafo, naturalista e explorador alemão Alexander von Humboldt (1769-
1859), que a descobriu e a estudou].
A aventura, inédita em seu gênero, foi das mais arriscadas e perigosas – praticamente
ninguém acreditou no sucesso da expedição e não faltaram os que tentassem dissuadi-los a
abandonarem tão desvairada ideia. Até apostas foram feitas em torno do número de dias que a
jangada aguentaria. Completamente sozinhos em alto-mar, estiveram muitas vezes às voltas
com violentas tempestades, cercados de tubarões e quase viram a jangada destroçada pela
fúria da arrebentação. Contrariando porém todos os prognósticos desfavoráveis, o sucesso
coroou a expedição sobre a qual mais tarde se escreveram dezenas de livros e centenas de
artigos e reportagens.
Não obstante tamanha façanha, só superada em termos de importância à chegada do
homem a Lua 23 anos depois, Heyerdahl ainda teve de continuar enfrentando a
incompreensão e a reticência. O manuscrito de Kon-Tiki, oferecido primeiramente às editoras
americanas, foi rejeitado sob a alegação de que o público não iria se interessar por uma
história em que ninguém – à exceção do papagaio verde, presente de despedida de uma pessoa
amiga de Lima, levado a bordo à guisa de mascote, que dois meses após a partida foi tragado
por um vergalhão que invadiu a embarcação pela popa – havia morrido. E Heyerdahl provou
mais uma vez o quanto estavam errados. A epopeia que narrou em detalhes emocionantes em
seu livro majoritariamente voltado ao grande público, Kon-Tiki ekspedisjonen 88 vendeu mais
de 30 milhões de exemplares e foi traduzido para 67 idiomas desde que foi lançado em 1948.
Em American Indians in the Pacific: The theory behind the Kon-Tiki Expedition, lançado em
1952, Heyerdahl se vale dos dados incontestáveis e abrangentes que coletou durante a
expedição para tentar convencer a comunidade acadêmica de que os primeiros colonos da
Polinésia saíram do Peru por volta do ano 500 e que uma nova vaga de colonos chegou da
costa noroeste da América do Norte entre 1000 e 1300. As cenas mais emocionantes filmadas
durante a sensacional viagem foram editadas em 1950 por Olle Nordemar na película em
preto-e-branco Kon-Tiki, vencedor do Oscar de melhor documentário em 1951. Em 2012, a
história da Kon-Tiki finalmente virou filme (intitulado, como não poderia deixar de ser, Kon-
Tiki) com roteiro de Petter Skavlan, direção de Joachim Ronning e Espen Sandberg e com o
ator Pål Sverre Valheim Hagen no papel de Thor Heyerdahl.
Eleito em 1999 o norueguês do século, Heyerdahl nasceu na cidade de Larvik (no
condado de Vestfold, a cerca de 105 quilômetros a sudoeste de Oslo) em 6 de outubro de
1914. Seu pai era dono de uma fábrica de água mineral e de uma cervejaria, enquanto sua
mãe, bióloga darwinista, dirigia o museu local. Desde tenra idade ele percorria as florestas
adjacentes e escalava as montanhas de trenó. Apesar do seu gosto pela natureza e pela

87
Ibid., p.88.
88
Títulos em inglês: The Kon-Tiki Expedition: By raft across the South Seas e Kon-Tiki: Across the Pacific in a
raft. No Brasil, o livro foi publicado em maio de 1951 pela Editora Melhoramentos com o título de A Expedição
Kon-Tiki: 8.000 km numa jangada através do Pacífico, com uma bela encadernação e capa dura azul com
detalhes dourados.
41

aventura, ele permaneceu com medo da água depois do trauma de quase morrer afogado na
infância e não aprendeu a nadar senão aos 22 anos de idade.
Recém-graduado em Zoologia e Geografia na prestigiosa Universidade de Oslo, bem
como recém-casado, Heyerdahl recebeu uma ajuda financeira para pesquisar a vida animal na
pequeníssima e isolada Ilha de Fatuhiva, pertencente ao grupo das Ilhas Marquesas. Na
véspera de Natal de 1936, junto com sua esposa Liv Coucheron Torp (de quem se divorciaria
em 1947 em decorrência do ressentimento gerado por conta de seu total engajamento na
Expedição Kon-Tiki), foi para lá fugir àquilo que considerava ser o “punho de ferro da
civilização”. O casal em plena lua de mel foi adotado por Teriieroo, o chefe da Ilha de Taiti.
A experiência de viver ao estilo primitivo, no entanto, não se mostrou das mais aprazíveis.
Logo que chegou em Fatuhiva, Heyerdahl descobriu que os nativos estavam sofrendo de uma
série de doenças, incluindo a lepra e a elefantíase, induzidas pelo contato com os europeus.
Ele e Liv passaram meses morando em uma rústica choupana por eles mesmos construída
sobre estacas, debaixo das palmeiras e perto da praia, alimentando-se de raízes, frutos
silvestres, peixes e camarões de rio, embora logo descobrissem que o estômago moderno
estava desadaptado à dieta primitiva. Liv adoeceu gravemente e Heyerdahl teve que apelar à
medicina moderna para salvá-la. O tempo em que permaneceu na ilha, no entanto, não foi
desperdiçado. Após cair acidentalmente em um rio, Heyerdahl descobriu que podia nadar.
Enquanto pesquisava as origens transoceânicas dos animais da ilha, dedicou-se a conhecer as
tradições dos polinésios. Como teriam ido ali parar e que tipo de herança cultural teriam
trazido com eles? De um ex-canibal, o velho Tei Tetua, único sobrevivente de todas as
extintas tribos da costa oriental de Fatuhiva, Heyerdahl ouviu a história do mítico herói Tiki, a
quem os nativos consideravam ao mesmo tempo deus, chefe e filho do sol. Desde então, uma
única questão passou a orientar a sua vida e as suas teorias: como e quando o homem
primitivo aprendeu a fazer travessias marítimas? Heyerdahl contou em detalhes as
experiências que viveu em Fatuhiva em seu livro Green was the Earth on the seventh day,
publicado em 1997.89
A sua convicção na existência de laços entre os povos antigos jamais diminuiu, muito
pelo contrário. Em 1953, liderou uma expedição arqueológica norueguesa ao Arquipélago das
Galápagos (grupo de treze ilhas no Oceano Pacífico a cerca de 1.000 quilômetros a oeste da
costa do Equador que por sua elevada biodiversidade atraiu a visita do jovem Charles Darwin
em 1835), onde, seis anos antes, quase desembarcara com a balsa Kon-Tiki. Em meio a
árvores de cactos, entre lagartos gigantescos e as maiores tartarugas do globo, desenterrou,
com a ajuda dos arqueólogos E. K. Reed e Arne Skjölsvod, mais de dois mil fragmentos de
jarros (pertencentes a 130 jarros diferentes) deixados pelos precursores dos incas que haviam
partido das costas da América do Sul e ali aportado depois de terem navegado ao largo com
suas balsas. Peritos em Washington analisaram os fragmentos e estabeleceram que mil anos
antes de Colombo, os precursores dos incas tinham realizando repetidas visitas às Ilhas
Galápagos.90 No ano seguinte, Heyerdahl, que tem parte de sua família no Brasil,91 veio ao
nosso país como convidado para participar do Congresso Internacional de Americanistas, em
São Paulo, ao que aproveitou para conhecer e estudar os nossos índios. Assessorado pela
indigenista Harald Schultz, de quem obteve muitas e preciosas informações, e acompanhado
de sua segunda esposa, a bela Yvonne Dedekam-Simonsen (com quem havia se casado em
1949 e de quem se divorciaria em 1979), e da pesquisadora Wilma Chiara, Heyerdahl

89
Heyerdahl, Thor. Green was the Earth on the seventh day, Cary, North Carolina, Kodansha America, 1997.
90
IDEM, Aku-Aku: O segredo da Ilha da Páscoa, São Paulo, Melhoramentos, 1959, p.10-11.
91
O pai de Thor, Bertrand, teve mais três filhos além dele. Um dos filhos também se chamava Bertrand.
Bertrand (segundo) veio para o Brasil antes de 1920, onde teve uma filha, Shirley, que seguiu com a família no
Brasil.
42

penetrou incógnito nas selvas do Brasil Central e esteve na Aldeia dos Carajás, perto de
Aruanã, nas margens do Rio Araguaia.92
No início de 1955, Heyerdahl começou a planejar uma expedição arqueológica à Ilha da
Páscoa (assim chamada por ter sido descoberta na tarde do dia de Páscoa de 1722 pelo
holandês Jacob Roggeveen, mas chamada pelos nativos de Rapanui, ou, conforme a
denominação mais antiga, Te Pito o te Henua, ou “Umbigo do Mundo”), a primeira de grande
porte e de longa permanência jamais realizada na mais distante e solitária ilha do Pacífico
conhecida por suas centenas de misteriosas estátuas gigantes. Obteve o patrocínio do então
príncipe Olavo V da Noruega (1903-1991, rei a partir de 1957), e a permissão, da parte do
governo do Chile, por intermédio do Ministério do Exterior da Noruega, para que a expedição
pudesse escavar na Ilha da Páscoa. Em setembro, à frente de um grupo de 23 homens
(incluindo cinco arqueólogos, um médico, um fotógrafo, além de especialistas das mais
diversas áreas) e acompanhado de sua esposa Yvonne, de sua filha Anette e de seu filho Thor
Jr., Heyerdahl, chegou ali a bordo de um navio que alugara de uma usina de enlatamento de
peixe de Stavanger devidamente reequipado com peças de recâmbio, aparelhamento especial
e demais suprimentos suficientes para um ano.
As escavações – as primeiras empreendidas na ilha – conduzidas pelos cinco
arqueólogos (três norte-americanos, um norueguês e um chileno), logo descobriram que a ilha
teve no passado uma grande quantidade de bosques que haviam sido derrubados pelos
moradores nativos e que estes cultivavam muitas plantas oriundas da América do Sul.
Datações feitas por Carbono-14 mostraram que a ilha havia sido ocupada desde
aproximadamente o ano 380 (portanto cerca de mil anos mais cedo do que se acreditava) em
três épocas culturais distintas, a segunda das quais concebeu os moais, as famosas estátuas
gigantes de pedra. Escavações indicaram também que muitas obras feitas de pedras
(encaixadas com precisão admirável) eram deveras semelhantes às construídas pelas antigas
civilizações peruanas.
No topo do penedo de Orongo, a equipe de Heyerdahl encontrou pinturas rupestres que
representavam botes de junco em forma de crescente e munidos de mastros, um dos quais
possuía amarras laterais, afora uma grande vela quadrada. A esse respeito, pormenorizou
Heyerdahl:

“É sabido que, outrora, os habitantes da Ilha da Páscoa construíram para seu uso
botes de junco para um e para dois homens, iguais aos que os incas e os predecessores
haviam usado ao longo da costa do Peru, desde tempos imemoriais. Mas ninguém
jamais tivera notícias de os antigos nativos da Ilha da Páscoa haverem feito botes de
junco, de proporções suficientes para aplicação de velas. Eu tinha pessoalmente razões
especiais para me interessar por isto: velejara no Lago Titicaca em botes de junco desta
espécie, levando índios montanheses, do planalto de Tiahuanaco, na qualidade de
tripulantes. Eu sabia que se tratava de embarcações esplêndidas, de incrível capacidade
de carga e de insuspeitada velocidade. Ao tempo das conquistas espanholas, grandes
botes de junco desta categoria se encontravam também em uso no mar aberto, ao largo
da costa do Peru; e antigos desenhos, encontrados em jarros dos tempos pré-incaicos,
mostram que, durante o mais remoto dos períodos da civilização peruana, o povo
construiu navios propriamente ditos, com juncos, exatamente como os antigos egípcios
armaram barcos de papiro. Jangadas, compostas de troncos de balsa e embarcações com
forma de bote, feitas de junco de água doce, constituíam meios inafundáveis de
transporte, que o povo do Peru preferia para todo o seu tráfego marítimo. Eu também
sabia que os barcos de junco podiam flutuar durante muitos meses, sem começar a fazer
92
Gueiros, José Alberto (reportagem) & Wilma Chiara (fotos). “Novas aventuras de Thor Heyerdahl – Kon-
Tiki”, in O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 13-11-1954, ano XXVII, nº 5, p.34-B a 34-E.
43

água; um barco de junco do Lago Titicaca, que amigos peruanos levaram para o sul do
Pacífico, enfrentou as vagas como um cisne, singrando duas vezes mais rápido do que
uma jangada de balsa. E agora os botes de junco apareciam, de súbito, numa velha
pintura de forro, na casa nº 19, de Ed, já em ruínas, à orla da cratera do maior vulcão da
Ilha da Páscoa.”93

O arqueólogo Arne Skjölsvod desenterrou perto da cratera Rano Raraku o corpo de uma
estátua gigantesca que estivera metida no chão com apenas a cabeça acima do nível do solo.
No peito da estátua havia uma imagem representando um grande bote de junco com três
mastros e várias velas, sendo que do convés do bote, uma longa linha corria para baixo, até
uma tartaruga esculpida à altura do estômago do gigante. Heyerdahl registrou que “todos eles
se manifestavam convencidos de que este era o próprio navio de Hotu Matua, porquanto ele
desembarcara na ilha com várias centenas de homens a bordo de dois navios tão espaçosos
que Oroi, o pior inimigo de Hotu Matua, realizara a viagem na qualidade de clandestino. Não
há honus, ou tartarugas, de nenhuma espécie na ilha nos dias de hoje; entretanto, quando Hotu
Matua chegou, um de seus homens fôra ferido ao tentar agarrar uma tartaruga enorme, na
praia, em Anakena”. Arguiu Heyerdahl que “aqueles infatigáveis gênios da engenharia não
eram apenas meros peritos construtores em pedra; fôra na qualidade de marinheiros, de
categoria mundial, que eles haviam encontrado o seu caminho para este pequeno paraíso, o
mais solitário do mundo, onde, durante séculos, foram capazes de construir as suas estátuas de
pedra em paz. Uma vez que eles dispunham do junco totora, e faziam uso dele para armar
pequenas embarcações, não havia, com efeito, razão alguma pela qual não pudessem ser
capazes de aumentar-lhes as proporções, de acordo com as conveniências, pelo processo de
atar juncos mais longos, e em maior quantidade, em feixes adequados.”94 Heyerdahl apurou
ainda que “no século passado, o Padre Roussel teve informação da existência de grandes
navios que poderiam transportar quatrocentos passageiros e que possuíam proa altaneira,
erguida como o colo de um cisne, ao passo que a popa, igualmente alta, se apresentava
dividida em duas partes separadas. Muitos dos barcos de junco, que nós encontrávamos
pintados em antigos jarros no Peru, são exatamente como estes. O padre Sebastião viera a
saber que houve um grande navio, com a forma de uma jangada rasa, ou chata. Isto se
chamava vaka poepoe, e era também usado quando os navegadores encetavam longas
viagens, com muitas pessoas a bordo.” A expedição encontrou em estátuas, bem como na
própria pedreira, várias dessas figuras representando embarcações feitas de feixes de juncos
nitidamente separados, incluindo um bote com mastro e vela quadrada e um bote de junco
com mastro atravessando diretamente o umbigo redondo de um moai de 10 metros.95
Heyerdahl armou suas tendas no antigo local de residência do lendário rei Hotu Matua,
e quando começou a trazer à luz do dia estátuas descomunais e esculturas estranhas de que
ninguém nunca antes tivera notícias, os habitantes da Ilha da Páscoa logo começaram a
atribuir-lhe poderes supernaturais e a considerá-lo como um dos seus antepassados que
regressara para junto deles. Com o transcorrer dos meses, os vínculos que ligavam o “Senhor
Kon-Tiki” aos nativos tornaram-se inquebrantáveis. Os insulares admitiram que ele possuía
um poderoso aku-aku (espécie de espírito protetor, de uso privado, que o ajudava em tudo
quanto ele empreendia) e então o iniciaram nas suas tradições mais secretas, permitindo que
se tornasse o primeiro europeu a adentrar em suas cavernas subterrâneas repletas de esculturas
de pedra, as quais revelaram aspectos inusitados sobre a cultura e a religião da Ilha da Páscoa.
Havia pelo menos quinze dessas cavernas de família (pertencentes somente aos descendentes
dos orelhas-compridas e indivíduos que possuíssem sangue de orelha-comprida em suas

93
Heyerdahl, Thor. Aku-Aku: O segredo da Ilha da Páscoa, São Paulo, Melhoramentos, 1959, p.171-172.
94
Ibid., p.177 e178.
95
Ibid., p.178 e 179.
44

veias) ainda em uso, sendo que muitas outras permaneciam ocultas. Mediante astutas
negociações em que teve de vencer uma série de tabus e superstições, Heyerdahl obteve
dezenas dessas valiosas esculturas de pedra, algumas remontando a centenas de anos. A mais
valiosa era uma peça representando um bote de junco redondo com três mastros e velas
espessas, profundamente sulcadas, que se situavam em orifícios redondos, ao longo da coberta
abaulada.96
A corroborar as teorias de Heyerdahl, alguns moradores da ilha contaram que de acordo
com suas lendas eles originalmente haviam chegado provenientes do Leste, que só poderia ser
a América do Sul.
Após ter permanecido na Ilha da Páscoa por quase um ano (de setembro de 1955 a
agosto de 1956), a expedição resolveu rumar para Rapa Iti [chamada de Rapa Iti (“pequena”)
para ser distinguida da Ilha da Páscoa, chamada de Rapa Nui (“grande”)], uma das ilhas do
Arquipélago das Austrais, na Polinésia Francesa, a 1.240 quilômetros ao sul do Taiti,
descoberta pelo capitão inglês George Vancouver em 1791. Heyerdahl queria investigar a
antiga lenda, contada pelos nativos de Rapa Iti, de que a ilha fôra povoada primeiramente por
mulheres que ali chegaram (muitas delas grávidas) a bordo de barcos primitivos procedentes
da Ilha da Páscoa.97 Com uma área de 40 km², seus cumes mais elevados em Morongo Uta
(“Paz de Espírito”) se parecem com as pirâmides do México cobertas de vegetação ou com as
fortificações escalonadas dos incas. A intenção era escavar justamente o topo da colina que
consiste em uma série de plataformas ou terraços planos feitos de pedra, encimados por uma
torre de vigia. A vegetação que a revestia foi removida completamente e uma área vermelho-
escura da rocha foi exposta. Ao redor, se erguiam outros picos que consistiam em pirâmides
artificiais. De acordo com Heyerdahl, “era errado denominar aquilo de fortaleza. Era errado
dizer que aquilo constituía um conjunto de terraços agrícolas. Porque lá em cima, nas alturas
extremas, a inteira população da ilha tivera, outrora, sabe Deus quando, o seu lugar
permanente de moradia.”98
Apesar de haver abundância de chão plano no leito dos vales, os que primeiramente ali
chegaram optaram por escalar as faldas acima e atingir o topo das escarpas mais inacessíveis,
fixando-se ao redor dos picos mais elevados. Como constatou pessoalmente Heyerdahl,

“atacaram a rocha viva com instrumentos de pedra e transformaram o topo da


montanha em torre inexpugnável. Ao redor e abaixo dessa torre, o rochedo inteiro foi
cavado e modelado em terraços enormes. [...] Outrora, aquela deveria ter sido uma
aldeia muito bem fortificada. Um fosso gigantesco, com parapeito do lado elevado da
aldeia, barrava o caminho a quem quer que fosse que se avizinhasse procedendo do
espinhaço do sul. Centenas de milhares de pedras de basalto duro tinham sido
penosamente carregadas, do leio do vale ao topo da montanha, para dar apoio aos
terraços sobre as quais se haviam erguido as cabanas, para que eles não ruíssem e não se
precipitassem no abismo, sob os efeitos das violentas tempestades de chuva, comuns em
Rapaiti. Os blocos de pedra, não lavrados, haviam sido juntados de maneira magistral,
sem emprego de reboco; aqui e acolá, um canal de drenagem corria através da muralha;
ou, então, umas pedras compridas se projetavam e formavam uma espécie de escada,
indo de um terraço a outro. Havia lá mais de oitenta terraços, naquela aldeia de
Morongo Uta; e todo o conjunto acusava uns 55 metros de altura, com a expansão de
uns 450 metros. Era, assim, a maior estrutura contínua jamais descoberta em toda a
Polinésia. [...] a população de Morongo Uta cortara nichos pequenos, em forma de
domo, na rocha, por trás dos terraços, e ali construíra, para seu próprio uso, templos em

96
Ibid., p.208.
97
Ibid., p.309.
98
Ibid., p.323.
45

miniatura; no chão plano de tais templos havia renques de quadrados de pequenos


prismas de pedra, que se alinhavam na orla como se fossem peões de xadrez. As
cerimônias que não podiam ser levadas a termo em frente àqueles templos de bolso
eram realizadas lá em cima, na plataforma superior da pirâmide, por baixo da abóbada
descampada do céu, na companhia do Sol e da Lua. [...] Todos os outros cumes eram
ruínas de aldeias fortificadas do mesmo tipo de Morongo Uta. Com frequência,
paredões continuavam acima dos flancos dos vales, como se fossem lances de
escadarias; por toda parte, podiam encontrar-se relíquias de um sistema artificial de
irrigação, com canais que se ramificavam, partindo de correntezas, e que conduziam
água aos terraços de faldas de montanhas, os quais, de outra maneira, teriam
permanecido secos.”99

Mas o que havia induzido aquele povo a refugiar-se em tão grandes alturas? Para
Heyerdahl, a resposta era bastante evidente:

“O povo de Rapaiti sentia-se atemorizado quanto a um poderoso inimigo de fora –


um inimigo que era conhecido por ele, e cujas canoas de guerra poderiam aparecer na
linha do horizonte, sem aviso. Talvez que os primeiros habitantes da ilha tenha sido
empurrados para aquele lugar fora de mão, procedendo de outra ilha, que o mencionado
inimigo já houvesse conquistado. Poderia esta outra ilha ter sido a Ilha da Páscoa?
Poderia a lenda de Rapaiti haver surgido de um grão de verdade, como a história da
batalha do fosso de Iko? As batalhas dos canibais, na terceira época da Ilha da Páscoa,
teriam sido o bastante para espavorir qualquer povo, pondo-o em fuga em direção do
mar, e fazendo isso até mesmo a mulheres grávidas, ou com suas crianças. Em época
ainda mais recente, ou seja, no século passado, uma jangada de madeira, com tripulação
de sete nativos, aportou sã e salva, na Ilha de Rapaiti, depois de vogar ao largo de
Mangareva, que nós mesmos havíamos visitado, no nosso percurso da Ilha da Páscoa
para cá.”100

Tal como a Pedra da Gávea e demais montanhas do Rio de Janeiro, os picos de Rapaiti
haviam sido trabalhados pela mão do homem

“como se fossem monumentos marítimos à memória de navegadores sem nome,


de uma idade já esquecida – navegadores que tinham muitas centenas de milhares de
milhas atrás de si, quando desembarcaram neste lugar isolado do mundo. Todavia,
muitas centenas de milhas não eram suficientes para remover de seu espírito o medo de
que outros singradores do mar pudessem seguir-lhe as pegadas. O oceano é vasto, mas
até mesmo o barco mais miúdo, que consiga flutuar, pode vencer grandes distâncias,
desde que se lhe dê tempo. Até mesmo a machadinha de pedra das dimensões mais
reduzidas fará com que a rocha ceda, desde que mãos perseverantes a martelem durante
o tempo que para isso se requerer. E o tempo era uma comodidade de que os povos
antigos possuíam uma provisão inexaurível. Se o tempo é dinheiro, eles tinham uma
enorme fortuna nas prateleiras terraceadas das suas montanhas inundadas de sol – uma
fortuna muito maior do que a de qualquer magnata dos dias de hoje.”101

99
Ibid., p.324 e 325.
100
Ibid., p.326.
101
Ibid., p.328.
46

Os pormenores da expedição à Ilha da Páscoa e a Rapa Iti foram registrados por


Heyerdahl em seu livro Aku-Aku: Påskeøyas hemmelighet (Aku-Aku: O segredo da Ilha da
Páscoa), publicado em 1957.
No final dos anos 1960, depois de ter visto cerâmicas incas em que apareciam navios de
junco semelhantes às do Egito faraônico, Heyerdahl começou a fazer planos para seu regresso
ao elemento oceânico, desta vez para provar que a civilização do Vale do Nilo havia chegado
à América antes de Colombo. Com base em desenhos e modelos do Antigo Egito, o Rá, assim
batizado em referência ao deus sol egípcio, foi construído por fabricantes de barcos do Lago
Chade, no centro-norte da África, usando papiro obtido do Lago Tana, na Etiópia. Se os
barcos de papiro com suas proa e popa concebidas especialmente para singrarem em águas
rasas navegavam apenas pelo Nilo, depreendeu Heyerdahl que bastava apenas que lhes
fossem aumentadas a proa e elevadas a popa com a ajuda de cordas para que se tornassem
capazes de viajar pelo mar. E assim, em 25 de maio de 1969, Heyerdahl e sua tripulação
multinacional composta por Norman Baker (Estados Unidos), Carlos Mauri (Itália), Yuri
Senkevich (União Soviética), Santiago Genoves (México), Georges Sourial (Egito) e
Abdullah Djibrine (Chade), dos quais apenas Heyerdahl e Baker possuíam experiência em
navegação, deixaram o Porto de Safim (ou Safi), antigo entreposto fenício na costa oeste do
Morrocos, numa tentativa de provar que os barcos de papiro dos antigos egípcios tinham sido
capazes de atravessar o Atlântico. Porém, 2 meses e 2.800 milhas (5.180 quilômetros) depois,
o Rá foi atingido por uma forte tempestade a 600 milhas (1.110 quilômetros) de Barbados e,
devido a uma falha no projeto, ou, segundo outras versões, a uma falha da tripulação que não
puxou o cordame em direção à curva da popa, ficou completamente encharcado e afundou. A
tripulação foi forçada a abandonar o barco a algumas centenas de quilômetros antes das Ilhas
do Caribe e foi salva por um iate que passava nas proximidades.
Uma nova tentativa foi empreendida por Heyerdahl logo no ano seguinte com um barco
semelhante, o Rá II, construído com junco totora por Demetrio, Juan e Jose Limachi, índios
bolivianos habituados a navegarem nesse tipo de embarcação milenar nas águas do Lago
Titicaca. Por precaução, o Rá II foi construído com feixes de papiro curto que tem a tendência
de ficar menos saturado de água. A Expedição Rá II, constituída basicamente pela mesma
tripulação do Rá I, à exceção de Djibrine, substituído pelo japonês Kei Ohara e pelo
marroquino Madani Ait Ouhanni, partiu igualmente do Marrocos em 17 de maio e em 12 de
julho de 1970 chegou com sucesso a Bridgetown, capital de Barbados (o país mais oriental do
Caribe, nas Índias Ocidentais), demonstrando que os antigos marinheiros egípcios poderiam
perfeitamente ter realizado viagens transatlânticas navegando com a Corrente das Canárias,
corrente marítima do Atlântico Nordeste (cujo nome deriva das Ilhas Canárias, ao longo das
quais a corrente passa) que flui para sudoeste ao longo da costa noroeste da África até à região
do Senegal, onde inflete para o oeste, afastando-se da costa e transformando-se na Corrente
Equatorial do Norte, que cruza o Atlântico de leste para oeste. Em 1972 foram lançados o
livro The Ra Expeditions, escrito por Heyerdahl, e o filme Ra (ou The Ra Expeditions),
dirigido por Heyerdahl e Lennart Ehrenborg, indicado para o Oscar de melhor documentário.
No final de 1977, Heyerdahl resolveu empreender outra viagem com um barco de junco,
desta vez para demonstrar que por volta do ano 3.000 a.C., o comércio e a migração teriam
ligado a Suméria, na Mesopotâmia, com a Civilização do Vale do Indo, no que é hoje o
Paquistão, além de uma série de outros centros culturais no Oriente Médio e no nordeste
africano. Construído no Iraque pelos mesmos índios bolivianos do Ra II, o Tigris (Tigre)
contou com uma tripulação internacional de onze homens, incluindo Heyerdahl: Norman
Baker (Estados Unidos), Carlo Mauri (Itália), Yuri Senkevich (União Soviética), Germán
Carrasco (México), Hans Petter Bohn (Noruega), Rashad Nazar Salim (Iraque), Norris Brock
(Estados Unidos), Toru Suzuki (Japão), Detlef Zoltze (Alemanha) e Asbjørn Damhus
(Dinamarca). Medindo 18 metros de comprimento, 6 metros de largura, com um peso
47

estimado em 33 toneladas, mastro duplo e vela quadrada de 10 metros de altura, o Tigris


partiu em 24 de novembro de 1977 de Al-Qurnah, uma pequena vila no sul do Iraque onde os
rios Tigre e Eufrates se encontram, e navegou através do Golfo Pérsico rumo ao Paquistão,
fazendo em seguida o seu caminho de volta para o Mar Vermelho. Ao contrário dos barcos
anteriores, o Tigris possuía condições de manobrabilidade, podendo rumar para o destino
especificado com antecedência e não apenas flutuar à mercê das correntes marítimas e do
vento. Ao deixar o Rio Shatt al-Arab, formado pela confluência dos rios Tigre e Eufrates e
que deságua no Golfo Pérsico após um percurso de cerca de 200 quilômetros, o Tigris rumou
a Bahrein, um pequeno estado insular do Golfo Pérsico com fronteiras marítimas com o Irã a
nordeste, com o Qatar a leste e com a Arábia Saudita a sudoeste. Em tempos antigos esta
região foi um importante centro comercial para os sumérios e, portanto, uma parada natural e
obrigatória para a expedição. Depois navegaram para Muscat (Mascate, também conhecida
como “cidade amuralhada”) no Golfo de Omã, cujos vestígios de ocupação humana remontam
a 6000 a.C. e onde se encontram remanescentes de cerâmica de Harappa, indicativos de
contatos com a Civilização do Vale do Indo, e de lá para Karachi, o centro financeiro,
comercial e portuário do Paquistão e a capital da província de Sind, no sul do país. Em 3 de
abril de 1978, após mais de quatro meses no mar e com o Tigris ainda em plenas condições de
navegabilidade, esta que acabou sendo a última das expedições épicas de Heyerdahl teve de
ser interrompida por causa dos combates da Guerra de Independência da Eritreia,102 da Guerra
na Somália,103 da furiosa Guerra de Ogaden,104 e principalmente pela recusa do Iêmen do
Norte (ou República Árabe do Iêmen) em permitir que penetrassem em suas águas do outro
lado do Golfo de Aden (reentrância no norte do Índico, à entrada do Mar Vermelho, entre a
costa norte da Somália e a costa sul da Península Arábica, na extremidade sul do Iêmen).105
Os membros da expedição desembarcaram no país neutro Djibouti após terem percorrido
6.800 quilômetros através do Golfo Pérsico e do Mar Arábico. No litoral de Djibouti, a
tripulação resolveu deliberadamente queimar o barco como um protesto contra as sangrentas
guerras que assolavam a região do Mar Vermelho e do Chifre da África. A intenção de
Heyerdahl era encerrar a expedição em Massawa (ou Maçuá), cidade portuária da Eritreia, na
costa do Mar Vermelho, a noroeste de Asmara, local de grande importância geográfica ao
longo da história, ocupada pelo Egito, Império Otomano, Itália, Reino Unido e Etiópia, pois
foi através desta “porta” que ele tinha transportado os materiais usados na construção tanto do
Ra I como do Ra II. O jornalista, escritor e aventureiro norueguês Ragnar Kvam Jr., que em
1987 vendeu tudo o que possuía, comprou um veleiro e embarcou em uma extensa
circunavegação, em sua biografia autorizada de Thor Heyerdahl dividida em três volumes (o
primeiro foi publicado em 2005, o segundo em 2008 e o terceiro em 2013), revelou que as
ambições desta expedição eram bem maiores do que Heyerdahl havia anunciado
publicamente. De acordo com Kvam Jr., Heyerdahl pretendia contornar o Cabo da Boa

102
Conflito em que o governo da Etiópia lutou contra forças separatistas da Eritreia de 1961 a 1991.
103
País membro da Liga Árabe que para reforçar a sua relação com o resto do continente africano se juntou a
outras nações africanas e começou a apoiar o Congresso Nacional Africano na África do Sul contra o regime do
apartheid e os separatistas eritreus na Etiópia.
104
Guerra ocorrida nos anos de 1977 e 1978 entre a Etiópia e a Somália na disputa pelo território de Ogaden,
com a União Soviética que de aliado da Somália passou a apoiar a Etiópia, que anteriormente tinha sido apoiada
pelos Estados Unidos, o que levou este a apoiar a Somália.
105
O Iêmen do Norte esteve em situação de guerra civil quase contínua até 1970. Nos anos 1970, passaram a
ocorrer vários confrontos entre este Estado e a comunista República Democrática do Iêmen, com duas breves
guerras civis (em 1972 e em 1979). Em 1981 finalmente chegou-se a um acordo para a constituição de um
Estado reunificado, acordo esse promulgado somente em 22 de maio de 1990, quando ambas as repúblicas se
fundiram na República do Iêmen.
48

Esperança para provar que os antigos povos da Mesopotâmia haviam cruzado o Oceano
Atlântico.106
O incansável Heyerdahl ainda envolveu-se na investigação da povoação inicial das Ilhas
Maldivas, no Oceano Índico, a sudoeste do Sri Lanka e da Índia e ao sul do continente
asiático, constituído por 1.196 ilhas. Em Tenerife, a maior ilha do Arquipélago das Canárias,
descobriu uma pirâmide com orientação solar datada do tempo dos guanches, o povo nativo
de tez e olhos claros, cabelos por vezes loiros e elevada estatura que faria parte dos povos
protoberberes que colonizaram o norte de África, desde o Egito à atual Mauritânia há treze
mil ou quinze mil anos atrás.
Inspirado em Heyerdahl, em 1984 o advogado, explorador e aventureiro argentino
Alfredo Barragán, junto com mais quatro compatriotas (Jorge Iriberri, Horacio Giaccaglia,
Daniel Sánchez Magariños e Félix Arrieta), organizou e empreendeu o que batizou de
“Expedición Atlantis”. Com fervor romântico e muita bravura, em 22 de maio partiram do
Porto de Tenerife, nas Ilhas Canárias, e 52 dias depois, em 12 de julho, tendo percorrido 3.200
milhas náuticas (5.000 quilômetros), chegaram em La Guaira, capital do estado e do
município de Vargas, no centro-norte da Venezuela, a 30 quilômetros de Caracas, provando
que 3.500 anos antes de Colombo, navegantes africanos poderiam perfeitamente ter chegado
às costas da América levados apenas pelas correntes marítimas. A travessia foi feita com uma
balsa de troncos muito semelhante ao Kon-Tiki, medindo 13,60 metros de comprimento por
5,80 metros de largura, dotada de uma cabana de bambu, sem timão e com somente uma vela.
De 1988 a 1992, Heyerdahl liderou amplas escavações em Túcume, a maior
concentração de pirâmides em todo o mundo, com 250 estruturas piramidais construídas de
tijolos de barro (adobe) por volta do ano 1100 e espalhadas em uma área de 220 hectares a 33
quilômetros ao norte da cidade de Chiclayo, noroeste do Peru. Ao lado do sítio arqueológico
(chamado pela população local de “El Purgatorio”) se encontra a pequena cidade de Túcume,
no centro da província de Lambayeque, o maior vale do litoral norte do Peru. A fundação da
cidade entre 1000 e 1100, coincidiu com a queda de Batán Grande – que acabou queimada e
abandonada – ao longo do Rio Chancay. Acredita-se que o local foi ocupado primeiramente
pelo povo de Sicán ou Lambayeque entre 1000 e 1370, seguido pelo de Chimú entre 1370 e
1470, e finalmente pelos incas entre 1470 e 1532 (data da chegada dos espanhóis). Em 1547,
o local foi abandonado.
Bastante erodidas devido a abundante chuva que cai nesta parte da costa peruana, as
pirâmides teriam servido de centros de cultos religiosos e/ou palácios residenciais para a elite
aristocrática. Das 26 grandes pirâmides, a principal delas é a Pirâmide do Sol (Huaca del Sol),
com uma base de 345 metros, 160 metros de largura e 50 metros de altura. Usada para rituais,
cerimônias e como tumba real, foi construída pela cultura Mochica (100-800) perto do pico
vulcânico de Cerro Blanco, próximo a Trujillo, no Vale do Moche. Por volta do ano 450, oito
plataformas haviam sido concluídas. A técnica consistia em ir adicionando novas camadas de
tijolos diretamente sobre as antigas. Mais de uma centena de diferentes comunidades
contribuíram na confecção dos 130 milhões de tijolos de adobe que a compõem e que faz dela
a maior estrutura de adobe pré-colombiana construída nas Américas. A segunda maior
pirâmide é Huaca de la Luna, com uma base quadrada de 87 metros e 21 metros de altura. A 5
quilômetros ao sul de Trujillo e a 500 metros da Huaca del Sol, foi construída pela mesma
cultura Moche ou Mochica (100-800 d.C.) em época posterior. Composta de três plataformas
sobrepostas (construídas ao longo de seiscentos anos), delimitada por grandes paredes de
adobe com áreas de interconexão, a Huaca de la Luna era um centro de culto da fertilidade
agrícola. Em um altar cerimonial do último templo construído, foram descobertos os restos de
quarenta soldados sacrificados. As esculturas retratam divindades com cabeça de condor e
106
Kvam Jr., Ragnar. Thor Heyerdahl. Mannen og havet – Bind I (2005); Thor Heyerdahl. Mannen og verden –
Bind II (2008); Thor Heyerdahl. Mannen og mytene – Bind III (2013).
49

raposa, pescadores, uma cobra, enormes caranguejos com facas cerimoniais, personagens de
mãos dadas e sacerdotes. Huaca Larga ou Grande Pirâmide, construída entre 1000 e 1350,
mede 450 metros de comprimento, 100 metros de largura e 40 metros de altura. A leste de
Huaca Larga, o Templo da Pedra Sagrada é pequeno e tem a forma de U. Dentro de Huaca I,
na ala sudeste, com 32 metros de altura e rampa de acesso longa, alta e estreita, se encontra
Huaca las Balsas. Um pássaro mítico é representado de muitas maneiras em Huaca las Balsas:
de pé na crista de uma onda, segurando um objeto redondo ou remando em jangadas. A figura
do pássaro é tão importante que é decorado com um grande cocar em forma de meia-lua,
símbolo de poder. Essas imagens são recorrentes nas sete camadas sobrepostas, cada uma
cobrindo a camada anterior. As cenas relacionadas com jangadas e criaturas do mar perfazem
a quase totalidade das encontradas em Huaca las Balsas.
Bastou ouvir a lenda de que o lugar foi fundado pelo rei Naymlap, um herói mítico que
teria partido do México com sua corte de servos e soldados em uma grande frota de jangadas
de balsa e construído a cidade com a ajuda de camponeses locais em torno de Cerro La Raya,
uma elevação rochosa que fica no meio da planície, para que Heyerdahl rumasse sem demora
para lá. Ao ver aquela paisagem que lhe “parecia de outro planeta”, ficou tão fascinado que
não se limitou a armar uma tenda nos arredores, mas construiu ali um casarão. Todos os dias
ele ia a cavalo ao local das escavações para supervisionar os trabalhos que estavam sendo
patrocinados conjuntamente pelo Museu do Kon-Tiki107 e pelo Instituto Nacional de Cultura
do Peru (atual Ministério da Cultura). O seu maior colaborador era o arqueólogo peruano
Walter Alva (1951-), especialista em cultura Moche que em 1987 descobriu em Sipán o corpo
intacto de um senhor Moche cheio de joias e ouro que a National Geographic Society
descreveu como “o mais rico túmulo pré-colombiano intacto do Hemisfério Ocidental”.
Heyerdahl pretendia descobrir os segredos enterrados naquele que foi o centro de um
vasto império que permaneceu inatacado durante mil anos até cair nas mãos dos incas. As
escavações encontraram vários túmulos contendo fantásticos objetos funerários, incluindo
belas estatuetas de prata. Também foram achados indícios de que ali se praticava um
comércio inter-regional com o Equador, o Panamá e o Chile (donde se originariam objetos de
lápis-lazúli). Uma bem preservada parede de adobe estava decorada com o desenho de
homens a bordo de dois navios de grande porte feitos de junco e rodeados por peixes e aves
marinhas. Também foi encontrado um pote de cerâmica negra que mostrava dois homens a
bordo de um barco de junco. O projeto de Heyerdahl culminou com a criação de um museu
em Túcume ao lado de Huaca I.
Olav Heyerdahl (nascido em 1977) cresceu ouvindo as histórias contadas por seu avô
Thor Heyerdahl. Quando a Expedição Kon-Tiki estava às vésperas de completar sessenta
anos, Olav resolveu ao mesmo tempo homenageá-la e desempenhar seu próprio papel na saga.
A maneira que encontrou para fazer isso foi construir uma jangada de madeira de pau-de-
balsa da mesma maneira como o seu avô e com ela percorrer o mesmo trajeto da Kon-Tiki. A
Expedição Tangaroa (The Tangaroa Expedition), como foi batizada, em referência ao deus do
mar maori Tangaroa, tornou-se possível graças ao apoio financeiro de vários patrocinadores,
entre eles Branding Larvik, Skagen Fondene e AGR, além do apoio da Universidade de
Bergen, na Noruega, e do auxílio prestado pela Marinha Peruana e pela SIMA (Servicio
Industrial de la Marina). A equipe foi novamente composta por seis homens, sendo quatro
noruegueses, um sueco e um peruano: Torgeir Sæverud Higraff (historiador, engenheiro
mecânico e líder da expedição), Anders Berg (fotógrafo sueco), Olav Heyerdahl (carpinteiro,
engenheiro civil, mergulhador e neto de Thor), Bjarne Krekvik (capitão), Øyvin Lauten

107
The Kon-Tiki Museum Institute for Pacific Archaeology and Cultural History, sediado em Oslo, uma das
atrações turísticas mais populares na Noruega, abriga artefatos e objetos originais das expedições de Thor
Heyerdahl, entre eles a balsa Kon-Tiki, o barco de papiro Ra II e uma réplica do Tigris.
50

(diretor-executivo) e Roberto Sala (ex-oficial da Marinha Peruana e especialista em


navegação).
Os troncos foram cortados assim como antes nas florestas do Equador em novembro de
2004 e selecionados em fevereiro de 2005. Enquanto a Kon-Tiki usou nove troncos
(lembrando que o mais longo media 13,70 metros de comprimento), a Tangaroa usou onze,
sendo que o mais longo media 16 metros, enquanto os demais 14 metros. Apesar da madeira
ser das mais leves, ainda assim os troncos pesavam juntos mais de 20 toneladas. A construção
da balsa Tangaroa começou na primavera de 2006. Como se fez na Kon-Tiki, cordas de
cânhamo foram usadas para amarrar os troncos e as vigas transversais sem que fosse preciso
apelar para um único prego, parafuso ou fio de arame. A cabine de bambu foi feita desta vez
em estrutura reforçada para resistir a ondas gigantes e tempestades. O telhado e as paredes da
cabine, bem como o deque, foram cobertos com esteiras de totora vindas de Puno (cidade no
sudeste do Peru, às margens do Lago Titicaca). Em relação à que foi usada na Kon-Tiki, a
vela quadrada foi consideravelmente ampliada e aperfeiçoada. Enquanto a predecessora media
4,60 metros de altura por 5,50 metros de largura, a atual media 16 metros de altura por 8
metros de largura, possuía maior aderência e permitia até mesmo que navegassem contra o
vento. As nove pranchas guara medindo 4 metros de comprimento por 50 centímetros de
largura podiam ser elevadas ou abaixadas de modo a orientar a balsa na direção desejada,
enquanto que as cinco utilizadas na Kon-Tiki (medindo 1,50 metros por 60 centímetros) eram
fixas e não podiam ser elevadas ou abaixadas. Na época, Heyerdahl não sabia como usar as
guaras para manobrar a balsa. Destarte, sua tripulação estava totalmente à mercê dos ventos.
Somente anos mais tarde, em 1953, é que Heyerdahl compreendeu o seu engenhoso
mecanismo de funcionamento, que consiste em elevar ou abaixar as pranchas de acordo com
as condições específicas do vento para manter a balsa na direção desejada. A tripulação da
Tangaroa soube aproveitar-se muito bem disso e dispondo de todo o aparato tecnológico do
século XXI do qual não abriram mão (GPS, painéis solares, notebooks e aparelhos de
dessalinização), reduziu sensivelmente a sua estadia no mar. Enquanto a tripulação da Kon-
Tiki lutava diariamente para enviar notícias por meio de um transmissor de ondas curtas, a da
Tangaroa atualizava as informações diretamente em seu website.
Na sexta-feira, dia 28 de abril de 2006, a Expedição Tangaroa iniciou sua longa jornada
rumo a Polinésia, no mesmo local (Porto de Callao) e na mesma data em que Thor Heyerdahl
partiu com a Kon-Tiki em 1947. As muitas bandeiras içadas representavam as nacionalidades
dos tripulantes (Noruega, Suécia e Peru), bem como os países participantes da expedição
(Equador e Polinésia Francesa), além da Comunidade de Larvik, na Noruega. Quando a Kon-
Tiki estava a meio caminho através do Pacífico, a tripulação pescou uma cavalinha-serpente
(Gempylus Serpens), espécie rara de peixe jamais capturada viva. Por uma estranha
coincidência, a Expedição Tangaroa capturou uma amostra semelhante, quase nas mesmas
coordenadas, 59 anos depois. Olav, que também fazia parte da Expedição Plastiki, que
procurava chamar a atenção para a saúde dos nossos oceanos, particularmente para a grande
quantidade de detritos plásticos, comparou as condições do Pacífico à época da expedição de
seu avô com as daquele momento e constatou significativas e tristes mudanças. A Corrente de
Humboldt estava repleta de lixo e detritos diversos. Enquanto a tripulação da Kon-Tiki
pescava atum às fartas, a da Tangaroa só conseguiu capturar um único atum durante toda a
viagem. Pior ainda em relação aos tubarões e as baleias, que costumavam rodear
constantemente a Kon-Tiki, enquanto a Tangaroa não chegou a avistar nem um único
exemplar deles.
Tangaroa chegou a cobrir em um só dia a distância de mais de 80 milhas náuticas (148
quilômetros), superando o recorde de velocidade da Kon-Tiki. Esta segunda expedição
mostrou que a viagem pode ser feita bem mais rapidamente apenas aproveitando melhor as
correntes e os ventos por meio de uma vela maior e do uso adequado das pranchas guara.
51

Assim é que enquanto a Kon-Tiki levou 101 dias para completar a viagem, a Tangaroa foi um
mês mais rápida, desembarcando no Atol de Raroia em 8 de julho. A viagem foi feita sem
conflitos, situações dramáticas ou incidentes. Os tripulantes disseram que agora eram
melhores amigos do que quando haviam iniciado a jornada. Um muito orgulhoso Thor
Heyerdahl Jr. saudou seu filho mais novo Olav com estas palavras: “A expedição foi
planejada e realizada de uma maneira que superou todas as expectativas, e eu sei que meu pai
teria ficado muito orgulhoso se tivesse vivido para ver esta expedição.” Com imagens de
Anders Berg e direção de Havard Jenssen, o documentário A Tangaroa Expedition
(Ekspedisionen Tangaroa) foi lançado em DVD em 2007.
Um feito no campo das navegações marítimas da modalidade inaugurada por Heyerdahl
em 1947 para provar contatos antigos intercivilizacionais, foi alcançado no dia 8 de julho de
2019 pela equipe liderada pelo antropólogo japonês Yousuke Kaifu, do Museu Nacional de
Natureza e Ciência de Tóquio. Cinco pessoas a bordo de uma canoa primitiva escavada em
um tronco de árvore, completaram a viagem de mais de 200 quilômetros de Taiwan (pequena
nação insular a 180 km a leste da China) até a província de Okinawa (a prefeitura mais ao sul
do Japão, formada por 169 ilhas que formam o arquipélago Ryukyu, no Mar da China
Oriental, a cerca de 640 km do resto do Japão e da China) em cerca de 45 horas. Nos últimos
três anos, Kaifu e outros pesquisadores envolvidos no projeto vinham tentando provar a
hipótese de que seres humanos teriam migrado de Taiwan a Okinawa há cerca de 30.000 anos,
durante o período Paleolítico. Tentativas anteriores de fazer esta travessia usando um barco de
junco e uma jangada de bambu não haviam bem sucedidas.
As teorias de Heyerdahl, a despeito de tantos indícios e provas a favor, continuam a ser
contestadas, por vezes de forma virulenta, no meios científicos-acadêmicos. Enquanto a noção
de migração através do Pacífico já não é um anátema, o da migração cultural transatlântica
continua sendo controversa, em parte porque, como é usualmente aceito, as grandes
civilizações da América do Sul floresceram muito tempo depois das do Egito e do Oriente
Médio. De qualquer forma, suas viagens pelos oceanos o convenceram da unidade essencial
da humanidade (“O oceano não nos separa, mas nos une”, disse ele), bem como o de que bem
antes dos europeus, antigas culturas do Oriente Médio, do norte da África, da Ásia e da
América do Sul já andavam a “civilizar” o mundo espalhando as suas influências nos campos
da arquitetura, da astronomia e da religião. E é precisamente isso que pretendo provar
navegando com uma réplica de um barco faraônico do Egito ao Brasil.
52

3. Objetivo

Construir uma réplica, a mais exata possível, de um navio egípcio empregando materiais
semelhantes e obedecendo aos mesmos princípios, técnicas e padrões utilizados pelos antigos
egípcios, para com ele partir do Porto de Safaga (nas coordenadas 26º 44 N, 33º 56 E),
navegar pelo Mar Vermelho, contornar a costa oriental da África e o Cabo da Boa Esperança,
cruzar o Oceano Atlântico e finalmente desembarcar no Porto do Rio de Janeiro (nas
coordenadas 22 54’ 23” S, 43 10’ 22” O) ou em algum outro ancoradouro carioca como o
Porto de Itaguaí (antigo Porto de Sepetiba, na cidade de Itaguaí), o Porto de Niterói (na Baía
de Guanabara, centro da cidade de Niterói), o Porto de Angra dos Reis (na cidade de Angra
dos Reis, sul do Rio de Janeiro) ou o Porto do Forno (na extremidade norte da Praia dos
Anjos, na cidade de Arraial do Cabo, sudeste do litoral carioca).
Via Cabo da Boa Esperança, a distância de 8.863 milhas náuticas (16.414 quilômetros)
entre o Porto de Safaga e o Rio de Janeiro, a uma velocidade média de 5 nós (9,25 km/h),
pode ser coberta, sem paradas e salvo complicações, em torno de 74 dias. Como é nossa
intenção realizar vários estudos e pesquisas adicionais pelo caminho, calculamos o tempo da
viagem em no mínimo 90 e no máximo 150 dias. A jornada seria bastante abreviada caso
optássemos pela via do Canal de Suez e do Estreito de Gibraltar, já que a distância se
reduziria a 6.646 milhas náuticas (12.308 quilômetros). À mesma velocidade média de 5 nós,
o tempo da viagem ficaria em torno de 55 dias. Contudo, como essa rota já foi percorrida pela
Expedição Rá II de Thor Heyerdahl em 1970, bem como considerando que as viagens
marítimas egípcias se faziam pela rota do Mar Vermelho, preferimos o caminho mais
longo.108
Tal périplo indicaria a viabilidade de os antigos egípcios terem realizado a mesma
viagem naqueles tempos ao menos uma vez, o que explicaria os vários indícios arqueológicos
da presença daquela cultura em nosso país e no continente americano.
Por extensão, reforçaríamos a possibilidade de os egípcios terem estabelecido uma
autêntica “civilização global” já naqueles tempos, o que explicaria os surpreendentes
paralelos culturais – como a crença na ressurreição do mortos, a mumificação, a construção de
pirâmides escalonadas, calendários e hieróglifos – em todos os continentes. Cairia por terra,
consequentemente, ou ao menos desmentiríamos parcialmente a falsa noção de que os
egípcios não eram grandes navegadores como os fenícios ou os gregos e que quase não se
aventuraram nas suas embarcações para além do curso do Nilo ou das proximidades da costa
africana.
Pelo que se tem notícia, nenhuma expedição marítima egípcia ousou ir mais longe do
que a do faraó Necho II (660 a.C.-593 a.C.), que governou o Egito a partir de 610 a.C.,
durante a 26ª Dinastia. Necho II mandou fazer um canal que ligava o braço oriental do Nilo
ao Mar Vermelho e organizou uma expedição com uma tripulação mista de fenícios e
egípcios, liderado pelo fenício Hanon, para circunavegar o continente africano, antecipando-
se em dois milênios e um século ao navegador e explorador português Vasco da Gama (1460
ou 1469-1524), que em 1498 se destacou por ter sido o comandante dos primeiros navios
europeus a navegar da Europa para a Índia, no que contornou a costa ocidental, a extremidade
sul e a costa oriental do continente africano para assim aceder às riquezas da Índia. A
expedição egípcio-fenícia saiu do Mar Vermelho, contornou toda a costa africana e três anos
depois retornou ao Egito pelo Mar Mediterrâneo.
Se não restam dúvidas de que antigos egípcios construíram grandes e elaborados barcos
para navegar ao longo do Rio Nilo e do Mar Vermelho, a questão agora é saber se

108
Para efeito de comparação, a distância do Brasil ao Egito via aérea é de 4.375 milhas (7.041 quilômetros).
Um voo comercial normal entre o Brasil e o Egito leva em torno de 8 horas e 45 minutos, a uma velocidade
média de 434 nós (805 km/h).
53

atravessaram o Oceano Atlântico e chegaram ao continente americano, particularmente ao


Brasil. Indícios arqueológicos diversos a indicar que não só desembarcaram mas procuraram
estabelecer sua cultura também por aqui, não tem sido aceitos pela arqueologia oficial sob o
argumento cada vez mais superado e falacioso de que não possuíam nem técnicas nem
conhecimentos náuticos suficientes para cruzar oceanos. O nosso objetivo é provar
exatamente o contrário.
54

4. O navio egípcio a ser (re)construído

O transporte de cargas pesadas, o comércio internacional e a guerra exigiam navios mais


fortes do que os de papiro. O design das primeiras embarcações de madeira com seu fundo
plano e popa quadrada era semelhante ao dos velhos barcos de junco. Como não usavam
quilha, o mastro ficava preso à amurada (parte do costado do navio que fica acima do convés).
Mais tarde, sob a influência de Biblos, os egípcios adotaram um único mastro central, que por
vezes era coberto com um acabamento de bronze onde as cordas eram amarradas.
A Expedição Min of the Desert optou por um modelo de navio mercante de Hatshepsut,
que em média tinha cerca de 22 metros de comprimento e 5 metros de largura. Sem quilha,
sua estabilidade era mantida com uma corda grossa presa sob tensão em uma ou outra
extremidade do navio. Havia quinze remos remo de cada lado, dois remos conectados usados
como leme, um único mastro e uma vela horizontal de 15 metros de largura. A popa era
decorada com uma escultura de uma flor-de-lótus.
O modelo de navio que escolhi para o projeto, no entanto, é bem mais antigo, típico das
embarcações utilizadas durante o reinado do faraó Sahuré, na Quinta Dinastia, há mais de
4.400 anos. Esses navios feitos de cedro eram semelhantes aos dos fenícios pelo fato de
Sahuré ter encarregado construtores de navios da antiga cidade de Biblos, na Fenícia, para
criar sua frota. A tecnologia náutica fenícia era a mais avançada e a grande responsável pelo
domínio comercial exercido em todo o Mediterrâneo oriental. Eles dispunham de navios de 70
a 80 toneladas de deslocamento capazes de suportar longas viagens, comparáveis em tamanho
à caravela Santa Maria de Colombo. É certo que os fenícios também estiveram na América e
no Brasil conforme atestam pinturas rupestres e inscrições tipicamente fenícias encontradas
em várias partes do continente. Assim, por tabela, não deixaríamos de estar igualmente
provando a presença fenícia no continente.
Levando em conta que o navio será todo o nosso mundo no tempo que se estender à
nossa frente, os mínimos detalhes a bordo terão de ser pensados para proporcionar o máximo
rendimento e eficiência.
Engenheiros náuticos, arquitetos navais e construtores de barcos antigos deverão ser
convidados a integrar a equipe da Expedição Sahuré-Thor Heyerdahl. A ideia seria aproveitar
os membros da equipe do bem sucedido Min of the Desert com todo o seu know-how já
adquirido. Para eles, seria um desafio adicional e uma oportunidade única de avançarem
extraordinariamente em suas realizações. Para nós, significaria poder contar com o
conhecimento e a experiência de profissionais gabaritados que fariam aumentar em muito
nossas chances de sucesso. Seria desejável que pudéssemos contar com a ajuda não só dos
arquitetos navais australianos Tom Vosmer e Patrick Couser e dos demais integrantes do Min
of the Desert, como Kathryn Bard, Rodolfo Fattovich, Adam Alexi-Malle, Mosaad El-Hedek,
Mohamed Abd El-Maguid, Ramsey Faragallah, Hamdy Lahma, Mahrous Lahma, Reda
Lahma, Yosry Lahma, Craig Sechler e David Vann, como também de sua idealizadora e líder,
a arqueóloga norte-americana Cheryl Ward. Não sendo possível, porém, contar com os
mesmos, iremos recorrer a outros profissionais do Brasil e do exterior que estejam dispostos a
encarar este nosso ousado projeto.
O estaleiro ideal para a construção de nosso navio seria o mesmo do Min of the Desert,
ou seja, o moderno e bem equipado Hamdi Lahma & Brothers Shipyard, em Roseta (Rashid
em árabe), cidade da província de Al-Buhaira, a 65 quilômetros a leste de Alexandria (a
segunda cidade mais importante do Egito), à costa do Mar Mediterrâneo e à entrada do Delta
do Nilo, nas coordenadas 31º 24’ N, 30º 25’ E. Embora o porto mais próximo do estaleiro seja
o de Alexandria, o principal do Egito, à beira ocidental do Delta do Nilo, entre o Mar
Mediterrâneo e o Lago Mariut, nas coordenadas 31º 12’ 16” N, 29º 52’ 48” E, o porto ideal
para nossa partida seria o de Safaga, de onde também partiu o Min of the Desert e de onde
55

partiam as expedições egípcias ao reino de Punt. Não sendo possível, porém, contar com o
estaleiro de Hamdi Lahma & Brothers Shipyard, iremos considerar dentre as alternativas a
que melhor atenda aos nossos propósitos.
A tripulação deverá ser composta de sete pessoas sem distinção de nacionalidade, sendo
ao menos um especialista em navegação, um especialista em construção e reparo de navios
antigos, um arqueólogo, um historiador (no caso o autor deste projeto), um especialista em
tecnologia e comunicação, um biólogo e um fotógrafo/cineasta. Seria de grande valia caso
pudéssemos contar também com ao menos um mergulhador, um linguista, um antropólogo e
um médico. O número de pessoas a bordo terá de ser o mais reduzido possível (considerando
sete como o ideal) a fim de diminuir ao máximo o peso, já que cada membro adicional
representaria uma quantidade extra de suprimentos a serem transportados, os quais deverão
ser suficientes para garantir a sobrevivência em alto mar por pelo menos três meses. Cada um
terá direito a levar consigo a bordo itens pessoais dentro de certos limites de peso e dimensões
a serem especificados.
Ao longo da verga no topo do mastro deverão tremular com destaque as bandeiras do
Brasil e do Egito, tendo ao lado as bandeiras dos países estrangeiros que terão dado à
expedição suporte e apoio prático.

Modelo de navio egípcio utilizado nos tempos do faraó Sahuré que pretendemos
construir para navegar do Egito ao Brasil.

Idealização e concepção de Cláudio Tsuyoshi Suenaga - Mestre em História pela


Universidade Estadual Paulista (Unesp); especialista em História Antiga, Arqueologia,
História das Religiões e Mitologia; escritor, jornalista, professor e pesquisador; aventureiro,
explorador e expedicionário.
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© CLÁUDIO SUENAGA
Direitos reservados.
Proibida a reprodução por quaisquer meios
sem a autorização expressa do autor.

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sob o nº 652.416, livro 1.255, folha 333.

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