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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Tema I

CONTRATOS DE COMISSÃO E CORRETAGEM. Partes. Obrigações e responsabilidades. Remuneração do


comissário. Comissão del credere. Contrato de corretagem. Obrigações do corretor. Remuneração.
Pluralidade de corretores. Dispensa do corretor.

Notas de Aula1

1. Contrato de comissão

Este contrato é regulado no CC, nos artigos 693 e seguintes, que serão abordados
pontualmente. Trata-se de um contrato muito antigo, já tendo sido presente no Código
Comercial de 1850, vindo agora regulado no CC.
Neste contrato, uma pessoa dá instruções a outra, para que ela realize compra ou
vende de bens no interesse da primeira, mas em nome próprio. Note, então, que é bastante
similar ao contrato de mandato, no qual há esta exata dinâmica de entrega de poderes, mas
no mandato o procurador pratica atos no interesse do mandante, mas também em nome do
mandante, e não em nome próprio, como na comissão – o comissário atua no interesse do
comitente, mas em nome próprio.
Segundo elemento característico da comissão, que o diferencia do mandato, é que
neste segundo o mandante pode conferir ao mandatário poderes para praticar qualquer ato,
enquanto no contrato de comissão os poderes são estritos, para a realização de uma compra
ou de uma venda. O objeto da comissão é exclusivamente a compra ou venda.
Veja o artigo 693 do CC:

“Art. 693. O contrato de comissão tem por objeto a aquisição ou a venda de bens
pelo comissário, em seu próprio nome, à conta do comitente.”

A expressão “à conta do comitente” não significa que este é quem vai pagar pelo
serviço desenvolvido pelo comissário, e sim que os atos de compra ou venda serão
executados à ordem, às instruções do comitente. O comissário faz os atos em seu próprio
nome, em atenção aos interesses do comitente. Por exemplo, a compra ordenada será paga
pelo comissário, e depois reembolsada pelo comitente (a não ser que o contrato estabeleça
um adiantamento de recursos do comitente ao comissário, o que é possível).
Realizadas as operações, de compra ou de venda, o comissário prestará contas de
suas atividades, entregando o que tiver que entregar, e receberá a remuneração contratual
correspondente a seus serviços. Este pagamento, no comum, recebe o próprio nome do
contrato: a remuneração do comissário é também chamada de comissão.
O contrato de comissão, então, forma vínculo jurídico entre duas pessoas, comitente
e comissário. Ocorre que o objeto deste contrato, como visto, é a celebração com terceiros
de contratos de compra e venda, em que o comissário figurará como comprador ou
vendedor. Há duas relações jurídicas distintas, portanto. Firmando esta dinâmica, veja o
artigo 694 do CC:

“Art. 694. O comissário fica diretamente obrigado para com as pessoas com quem
contratar, sem que estas tenham ação contra o comitente, nem este contra elas,
salvo se o comissário ceder seus direitos a qualquer das partes.”
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Aula ministrada pelo professor Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, em 4/12/2009.

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Como se vê, o comitente não é comprador ou vendedor junto aos terceiros. Como
dito, o comissário é quem pactua os contratos em nome próprio. Por isso, qualquer
perturbação na relação de compra ou venda deve ser resolvido entre comissário e terceiros,
nunca envolvendo o comitente – é a mera atenção ao princípio da relatividade dos
contratos.
Contudo, como se vê no próprio final do artigo supra, o comissário, parte comum a
ambos os contratos – o de comissão e o de compra e venda –, pode ceder seus direitos de
comprador ou de vendedor a qualquer das partes. Vejamos um exemplo: comissário adquire
um bem em nome próprio, passando-o ao comitente, mas o bem é alvo de posterior evicção.
Na dinâmica regra, o comitente não teria ação de evicção em face do terceiro vendedor, já
que não travou com ele nenhuma relação jurídica – quem firmou o contrato de compra foi o
comissário. Se, outrossim, o comissário cedeu seus direitos para o comitente, este, evicto,
torna-se legitimado para agir diretamente contra o terceiro vendedor.
Exemplo com os pólos invertidos: se o comitente é vendedor, e o comissário pactua
venda com terceiro comprador. Havendo perturbação quanto à coisa, o terceiro só terá ação
contra o comissário, em regra, que firmou a venda em nome próprio. Contudo se este cedeu
seus direitos ao terceiro, o comprador poderá, agora, avançar contra o comitente,
diretamente, subrogado na posição do comissário a si cedida.

1.1. Boa-fé objetiva no contrato de comissão

Neste contrato, a figura da boa-fé objetiva, e a proteção à confiança como um todo,


assumem grande relevância. Há uma forte expectativa do comitente de que o comissário vá
cumprir com zelo as atribuições a si conferidas, as instruções a si passadas, em busca do
êxito no negócio.
O comissário, por isso, deve seguir com presteza as recomendações do comitente, as
quais, em tese, são as melhores formas de se conduzir o negócio ao sucesso – êxito que é
também a expectativa do comissário, pois é o que justificará sua remuneração, sua
comissão.
É neste sentido que orientam os artigos 695 e 696 do CC, que tratam do dever de
diligência do comissário, o qual está calcado, em suas raízes, na própria boa-fé objetiva:

“Art. 695. O comissário é obrigado a agir de conformidade com as ordens e


instruções do comitente, devendo, na falta destas, não podendo pedi-las a tempo,
proceder segundo os usos em casos semelhantes.
Parágrafo único. Ter-se-ão por justificados os atos do comissário, se deles houver
resultado vantagem para o comitente, e ainda no caso em que, não admitindo
demora a realização do negócio, o comissário agiu de acordo com os usos.”

“Art. 696. No desempenho das suas incumbências o comissário é obrigado a agir


com cuidado e diligência, não só para evitar qualquer prejuízo ao comitente, mas
ainda para lhe proporcionar o lucro que razoavelmente se podia esperar do
negócio.
Parágrafo único. Responderá o comissário, salvo motivo de força maior, por
qualquer prejuízo que, por ação ou omissão, ocasionar ao comitente.”
Agir com boa-fé objetiva é agir conforme o padrão de conduta esperado, ou seja, é
agir conforme a expectativa em si depositada legitimamente, durante todas as etapas do
contrato, na conclusão e execução do contrato. Vale rever o artigo 422 do CC:

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“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do


contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Em atenção a este dever de diligência, se o comissário porventura se vir em situação


tal que não tenha contado com instruções muito precisas, e não tenha tempo de colhê-las,
deverá agir conforme a prudência, a experiência e os usos daquele meio. Veja um exemplo:
suponha que o comissário receba uma ordem do comitente para vender “tantas sacas de
café”, sem mais. Sem receber instruções quanto ao preço, ao tempo da tradição, se é
necessária a exigência de garantias ou não do comprador, etc., ele deverá agir conforme sua
experiência negocial determine, e com a devida prudência, seguindo os costumes do nicho
do mercado cafeeiro. Esta conduta é que revela a necessária diligência, adimplente da boa-
fé objetiva.
É claro que se as instruções forem precisas, a adstrição a elas é fundamental, sob
pena de se responsabilizar, o comissário, por eventuais perdas e danos. Por exemplo, se o
comitente instrui a vender tais sacas de café, em faixa de preço definida, não à prazo, e com
exigência de garantias, o desrespeito a estas instruções, se causar prejuízo, faz este
imputável ao comissário. A infração ao dever de diligência acarreta responsabilidade civil
subjetiva do comissário.
Se as condições do negócio alterarem-se desde quando as instruções foram
passadas, o comissário deverá portar-se de acordo com o que for melhor para o comitente.
Veja um exemplo: se o comando fora para a compra de café a cem reais a saca, mas uma
escassez de produção fez o preço subir a cento e cinquenta, caberá ao comissário, caso não
seja possível renovar as instruções junto ao comitente, julgar se o negócio ainda é favorável
ao comitente, baseando-se em sua experiência, nos costumes e na prudência devida, sempre
buscando o menor prejuizo ou maior lucro no negócio. Se a compra ou venda, fora da
orientação do comitente, for imprudente, alheia aos usos do mercado, ou revelar tremenda
inexperiência do comissário, este responderá pelos prejuízos dela advindos ao comitente.
Os artigos 695 e 696 do CC, supra, são bastante elucidativos sobre estas
responsabilidades, e são absolutamente lapidares em relação à boa-fé objetiva, à confiança
depositada no comissário.

1.2. Responsabilidade civil do comissário

O caput do artigo 696 do CC, supra, oferece os elementos para a exata delineação
da responsabilidade civil do comissário, que é expressamente imputada no parágrafo único
deste mesmo dispositivo, ao dizer que responderá o comissário, salvo motivo de força
maior, por qualquer prejuízo que, por ação ou omissão, ocasionar ao comitente.
Embora o legislador não tenha falado em ação ou omissão culposa ou dolosa, a
responsabilidade do comissário perante o comitente é subjetiva. A relação é contratual
paritária, não de consumo nem de risco, e a presunção que este contrato implica é de que o
comissário atuou corretamente, cabendo comprovar que sua atuação, se causou prejuízo, foi
por violação do dever de diligência, que engloba tudo que se falou sobre a boa-fé objetiva –
confiança, prudência, experiência e atenção aos usos do mercado.
O artigo 697 do CC elimina qualquer dúvida que pudesse existir acerca da natureza
subjetiva da responsabilidade do comissário:

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“Art. 697. O comissário não responde pela insolvência das pessoas com quem
tratar, exceto em caso de culpa e no do artigo seguinte.”

Ora, se respondesse objetivamente pelos seus atos, garantindo o êxito da relação,


qualquer prejuizo que o comitente sofresse não seria por este suportado, e sim pelo
comissário – a não ser a ocorrência de força maior. Se o artigo 697, supra, estabelece
irresponsabilidade pela insolvência do terceiro, excetuando justamente a culpa do
comissário, ou o caso enunciado no artigo 698 do CC, a ser visto, é porque a sua
responsabilidade é subjetiva. Fosse objetiva, mesmo que o terceiro fosse culpado pelo
prejuízo, o comissário responderia perante o comitente, podendo tão-somente regredir
contra o terceiro.
Em síntese: o comissário não responde pelo resultado da operação, se agir de forma
escorreita, respondendo por culpa ou dolo. Mais do que mera insolvência, como diz o
dispositivo supra, ele não responde por qualquer inadimplência, se não deu causa a esta
culposa ou dolosamente, pela inobservância de seus deveres contratuais de diligência. É o
que se colhe da leitura combinada dos artigos 696 e 697 do CC.
Ocorre que o artigo 697, supra, remete ao artigo seguinte, 698 do CC, criando mais
uma hipótese em que o comissário vai responder pela inadimplência, pelos prejuízos do
comitente: trata-se da cláusula del credere.

1.2.1. Comissão com cláusula del credere

Veja o artigo 698 do CC:

“Art. 698. Se do contrato de comissão constar a cláusula del credere, responderá o


comissário solidariamente com as pessoas com que houver tratado em nome do
comitente, caso em que, salvo estipulação em contrário, o comissário tem direito a
remuneração mais elevada, para compensar o ônus assumido.”

Esta cláusula, facultativa no contrato de comissão, faz com que o comissário se


torne um garantidor do êxito da operação que ele contratou, ou seja, fique responsável pelo
sucesso da compra ou venda por ele firmada. Assim, se o terceiro deixar de adimplir a
obrigação contraída, compra ou venda, o comissário assumirá como sua esta obrigação, ou
seja, entregará ao comitente a prestação que o terceiro deixou de entregar.
Sem a cláusula del credere, o risco pela inadimplência é do comitente; com a
cláusula, passa ao comissário, que passa a arcar com os prejuízos, efetuando a prestação
que o terceiro deixou de efetuar.
Por esta assunção do risco, é justo que o comissário passe a receber uma comissão
mais elevada, o que é contemplado pela lei, como se vê na parte final do artigo supra. Mas
esta remuneração maior, mesmo presumível, pode ser afastada no contrato.
Este artigo, contudo, traz uma impropriedade em seus termos. Como visto, a regra
geral, traçada no já abordado artigo 694 do CC, é que o comitente não tem ação contra o
terceiro, nem este tem ação contra o comitente. O artigo 698, supra, erra ao mencionar que
o comissário negocia “em nome do comitente”, pois como se viu, ele negocia em nome
próprio, apenas no interesse do comitente; e fala erroneamente em solidariedade entre os
terceiros e o comissário, o que está errado, vez que o terceiro não se relaciona com o
comitente, em momento algum. A correta leitura, então, é que havendo a cláusula del
credere, o comissário é quem responde pela solvência dos terceiros, garantindo a prestação

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que o terceiro vai efetuar – o comitente só pode demandar o comissário, e não o terceiro,
como indicaria a solidariedade ali mencionada. Em suma, duas são as impropriedades neste
artigo (frutos de ter ele sido transcrito integralmente do Código Comercial, sem as devidas
correções): não há solidariedade; e não há negociação em nome do comitente, mas sim em
nome próprio do comissário.

1.3. Obrigações do comitente

O comitente tem duas obrigações básicas: pagar a comissão, a remuneração devida


ao comissário, que se não for expressamente firmada, será mensurada na forma do artigo
701 do CC; e reembolsar as despesas feitas pelo comissário no exercício do contrato, na
forma do artigo 708 do CC, tais como publicações de anúncios de venda, consultas a órgãos
de proteção a crédito, passagens e hospedagens, etc. Veja os dispositivos:

“Art. 701. Não estipulada a remuneração devida ao comissário, será ela arbitrada
segundo os usos correntes no lugar.”

“Art. 708. Para reembolso das despesas feitas, bem como para recebimento das
comissões devidas, tem o comissário direito de retenção sobre os bens e valores em
seu poder em virtude da comissão.”

Vale dizer que esta remuneração e o reembolso contam com uma vantagem em caso
de insolvência ou falência do comitente: são créditos com privilégio geral, e não meramente
quirografários. Veja o artigo 707 do CC:

“Art. 707. O crédito do comissário, relativo a comissões e despesas feitas, goza de


privilégio geral, no caso de falência ou insolvência do comitente.”

2. Contrato de corretagem

Este contrato está regulado no CC, nos artigos 722 a 729, que serão pontualmente
observados.
O CC trata, em suas previsões, do contrato de corretagem livre. Corretores livres
são aqueles que não têm registro profissional como corretores, ou seja, são os não-
profissionais da corretagem. Há os corretores profissionais, que são registrados nos
respectivos órgãos de classe – como os corretores de imóveis, que são registrados no Creci
(Conselho Regional de Corretores de Imóveis), ou os corretores de seguros, registrados na
Susep (Superintendência de Seguros Privados). Sendo corretores profissionais, as regras
aplicáveis primariamente serão as especiais, dedicadas a cada classe, e não o CC – o qual
pode ser aplicado subsidiariamente, e de forma que não contrarie a legislação especial.
Assim, os preceitos do CC são destinados a dispor regras gerais sobre corretagem
livre, praticada por não-profissionais, como se pode depreender do artigo 729 do CC:

“Art. 729. Os preceitos sobre corretagem constantes deste Código não excluem a
aplicação de outras normas da legislação especial.”

Exemplo de norma especial é a Lei 4.564/64, que regula a relação de corretagem de


seguros, aplicando-se preferencialmente sobre as regras do CC, quando esta for a relação
analisada. Da mesma forma, a Lei 6.530/78 é o diploma que trata da corretagem de

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imóveis, aplicável prioritariamente quando esta for a relação. Quando, eventualmente, estas
leis forem omissas, o CC pode ser invocado, suprindo lacunas.
O artigo 722 do CC traz a definição do contrato de corretagem: trata-se de uma
mediação estrita. Veja:

“Art. 722. Pelo contrato de corretagem, uma pessoa, não ligada a outra em virtude
de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência,
obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções
recebidas.”

Mediação estrita é aquela em que o mediador não conclui o negócio: ele não tem
poderes para concluir o negócio nem mesmo como mandatário de seu cliente. O corretor,
aqui, simplesmente aproxima as partes, que contratarão entre si sem que ele tome qualquer
parte efetiva no contrato, nem mesmo como mandatário de uma delas. Esta é, de fato, a
maior diferença do contrato de corretagem para aqueles contratos de agenciamento e
representação, que serão vistos adiante, em que a mediação é ampla, ou seja, o agente ou o
representante podem receber poderes para concluir o negócio em nome de seu cliente,
como mandatários.
O corretor livre, do CC, é um profissional liberal, colaborador independente, sem
relação de emprego com aqueles a quem presta o serviço. Lato sensu, é um prestador de
serviços, tendo que ser lido o conceito legal acima de forma apenas a deixar claro que não
há o contrato de prestação de serviços típico – o que não afasta a natureza da prestação do
corretor, que é um serviço lato sensu.
O contrato de corretagem é específico, e não é regido como o contrato nominado de
prestação de serviços, mesmo que a corretagem seja um serviço. O corretor, para fins de
incidência do CDC, por exemplo, é um fornecedor de serviços, e não um fornecedor de
produtos – a noção de serviço do CDC não é restrita ao contrato típico de prestação de
serviços, como se sabe2.
Embora a corretagem seja completamente diferente da comissão – o corretor apenas
aproxima as partes, não concluindo negócios, como o faz o comissário –, há um ponto em
comum: o corretor, assim como o comissário, atua seguindo as orientações emanadas do
cliente. Há, também na corretagem, a necessária atenção à boa-fé objetiva e aos deveres de
diligência. O artigo 723 do CC dá esta nota:

“Art. 723. O corretor é obrigado a executar a mediação com a diligência e


prudência que o negócio requer, prestando ao cliente, espontaneamente, todas as
informações sobre o andamento dos negócios; deve, ainda, sob pena de responder
por perdas e danos, prestar ao cliente todos os esclarecimentos que estiverem ao
seu alcance, acerca da segurança ou risco do negócio, das alterações de valores e
do mais que possa influir nos resultados da incumbência.”
A maior preocupação do legislador, neste contrato, é com a remuneração do
corretor, antevendo que este seria o ponto de maior surgimento de conflitos na relação. Dos
oito artigos dedicados no CC a este contrato, cinco são referentes ao pagamento da
comissão ao corretor. Em sua definição e formulação, este contrato é bastante aberto à
autonomia da vontade, mas em relação à remuneração do corretor, há tratamento minucioso
pelo legislador.
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O mesmo raciocínio que se repete em outros institutos, como no depósito: para o CDC, é uma prestação de
serviço, mesmo que o contrato típico seja o de depósito, contrato nominado.

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O artigo 724 do CC, por exemplo, determina que a remuneração que não for
expressamente definida será paga conforme os usos do mercado:

“Art. 724. A remuneração do corretor, se não estiver fixada em lei, nem ajustada
entre as partes, será arbitrada segundo a natureza do negócio e os usos locais.”

O artigo 725 do CC é de difícil interpretação precisando de uma análise mais


detalhada:

“Art. 725. A remuneração é devida ao corretor uma vez que tenha conseguido o
resultado previsto no contrato de mediação, ou ainda que este não se efetive em
virtude de arrependimento das partes.”

A primeira parte do artigo diz que a remuneração do corretor é devida quando o


resultado do contrato de mediação for alcançado, e a segunda diz que mesmo se este não se
efetivar, por arrependimento das partes, ainda assim será devida a corretagem. Parece haver
um conflito em termos, mas não há. Entenda: as partes, no contrato de corretagem, têm o
direito de estabelecer qual será o resultado que se pretende com a corretagem, com, a
intermediação. Se este resultado estiver expresso no contrato, o corretor só terá direito à
remuneração se ele for alcançado; se o resultado não vier expressamente consignado, a
remuneração é devida ao corretor a despeito de ele ter sido alcançado ou não, pois não é um
elemento contratual expressamente inserido como condição à remuneração.
Veja um exemplo: se no contrato constar que “a comissão será devida com a venda
do imóvel”, se esta venda não acontecer, por qualquer que seja o motivo, o resultado não
foi alcançado, e como era cláusula de condição expressa para haver remuneração, esta não
será devida. Se não houver tal cláusula no contrato, presume-se que o que se pactuou é que
o trabalho do corretor em aproximar as partes já é suficiente para azoar direito a
remuneração, mesmo que o negócio não seja ultimado por arrependimento das partes.

2.1. Corretagem com exclusividade:

O artigo 726 do CC traz uma importante regra protetiva do corretor:

“Art. 726. Iniciado e concluído o negócio diretamente entre as partes, nenhuma


remuneração será devida ao corretor; mas se, por escrito, for ajustada a corretagem
com exclusividade, terá o corretor direito à remuneração integral, ainda que
realizado o negócio sem a sua mediação, salvo se comprovada sua inércia ou
ociosidade.”

A cláusula de exclusividade deve ser expressa no contrato de corretagem, fazendo


com que a regra, na inexistência desta cláusula, seja a corretagem sem exclusividade.
Quando o contrato firmar exclusividade para o corretor, se o cliente concorrer com ele, ou
permitir que outros concorram, a ultimação do negócio por quem quer que o faça, mesmo
se não for o corretor, gera para este a remuneração pactuada, como se ele fosse quem
captou o negócio.
A única hipótese em que o corretor com exclusividade não terá direito à comissão
será quando o cliente comprovar que ele atuou com desídia ou inércia, ou seja, ficar
demonstrado que não operou com diligência na consecução da corretagem – o que é uma

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medida de plena justiça, eis que a venda passou ao largo de qualquer atuação empenhada do
corretor, não se justificando sua remuneração.
Nos casos de corretagem com exclusividade com prazo estipulado, se a negociação
se deve aos trabalhos do corretor, ainda que concluída após o término do prazo, é devida a
remuneração.

2.2. Ultimação do negócio após término do contrato de corretagem

Veja o artigo 727 do CC:


“Art. 727. Se, por não haver prazo determinado, o dono do negócio dispensar o
corretor, e o negócio se realizar posteriormente, como fruto da sua mediação, a
corretagem lhe será devida; igual solução se adotará se o negócio se realizar após a
decorrência do prazo contratual, mas por efeito dos trabalhos do corretor.”

O que este dispositivo fixa é que se o negócio almejado se firmar por conta do
trabalho do corretor, mesmo que posteriormente à sua dispensa (quando o prazo da
corretagem for indeterminado) ou à extinção do contato de corretagem por expiração do
prazo para ele estabelecido, a comissão será devida ao corretor. Nada mais justo e óbvio,
ante a própria dinâmica da relação de corretagem: trabalho feito deve ser trabalho pago,
mesmo que o fechamento do negócio seja posterior à extinção do contrato de corretagem.
Se o corretor faz a aproximação entre o comprador e o dono do imóvel e o negócio
se concretiza, ele faz jus à comissão. Veja abaixo um relato sobre casuística que chegou ao
STJ, e a decisão da Terceira Turma do STJ que, por maioria, acompanhou o entendimento
da relatora ministra Nancy Andrighi:

“Duas clientes recorreram contra ação de cobrança de corretor que alegava ter
direito a receber R$ 112.750, equivalentes a 10% do valor da compra do imóvel a
título de comissão por intermediação de venda de imóvel. Em primeira instância, o
valor da comissão foi reduzido para 1% do valor do negócio, considerando que,
apesar de o corretor ter feito a aproximação entre as partes, não teria ajudado na
negociação.
O corretor apelou e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) decidiu
aumentar a comissão para 6%. O TJRS considerou que o corretor havia oferecido o
imóvel para as clientes e que a demora para o fechamento do negócio não foi de
responsabilidade deste. Considerou, porém, que o valor do imóvel tornaria a
comissão de 10% excessiva.
As clientes recorreram ao STJ, afirmando haver dissídio jurisprudencial (julgados
com diferentes conclusões sobre o mesmo tema), havendo o entendimento de que o
intermediador deve participar da negociação para receber a comissão. Além disso,
a concretização do negócio deveria ocorrer dentro do prazo estabelecido
contratualmente.
Na sua decisão, a ministra Nancy Andrighi apontou que nos próprios autos foi
apontada a importância do trabalho do corretor para a concretização do negócio. A
ministra afirma que avaliar a qualidade ou relevância desse trabalho exigiria a
análise de provas, o que é vedado pela Súmula 7 do próprio Tribunal. “Ainda que
assim não fosse, cumpre destacar que o principal e mais árduo trabalho do corretor
é efetivamente aproximar as partes, pois, a partir de então, assume papel
secundário”, acrescentou.
“Para que seja devida a comissão, basta a aproximação das partes e a conclusão
bem sucedida de negócio jurídico. A participação efetiva do corretor na negociação
do contrato é circunstância que não desempenha, via de regra, papel essencial no

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adimplemento de sua prestação. Portanto, esse auxílio, posterior à aproximação e


até a celebração do contrato, não pode ser colocado como condição para o
pagamento da comissão devida pelo comitente”, explica a relatora. E completa:
“Se após o término do prazo estipulado no contrato de corretagem vier a se realizar
o negócio jurídico visado, por efeitos dos trabalhos do corretor, a corretagem ser-
lhe-á devida.”
A ministra Andrighi observou ainda que, mesmo que o corretor não participe do
negócio até a sua conclusão, merece receber a comissão, sendo essa a
jurisprudência dominante do STJ. Quanto à questão do prazo, a ministra admitiu
haver o dissídio. No caso haveria o prazo de 30 dias para a ação do corretor. A
magistrada considerou, entretanto, que a aproximação entre as partes do negócio se
deu dentro desse prazo e que a demora posterior para sua conclusão não seria de
responsabilidade do corretor.
A discussão agora voltar à pauta de julgamentos do Superior Tribunal de Justiça.
As clientes interpuseram embargos de divergência e a questão agora pode ser
levada à Segunda Seção, que reúne a Terceira e a Quarta Turma, se for admitida
pelo ministro ao qual for distribuído.”

Veja a ementa do julgado, REsp. 1.072.397:

“REsp 1072397 / RS. DJe 09/10/2009. CIVIL E EMPRESARIAL.


INTERMEDIAÇÃO OU CORRETAGEM PARA A VENDA DE IMÓVEL.
APROXIMAÇÃO ÚTIL DAS PARTES. VENDA APÓS O PRAZO
ESTIPULADO EM CONTRATO. COMISSÃO DEVIDA.
- A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Aplicação
da Súmula 7/STJ.
- Para que seja devida a comissão, basta a aproximação das partes e a conclusão
bem sucedida de negócio jurídico. A participação efetiva do corretor na negociação
do contrato é circunstância que não desempenha, via de regra, papel essencial no
adimplemento de sua prestação. Portanto, esse auxílio, posterior à aproximação e
até a celebração do contrato, não pode ser colocado como condição para o
pagamento da comissão devida pelo comitente. - Se após o término do prazo
estipulado no contrato de corretagem vier a se realizar o negócio jurídico visado,
por efeitos dos trabalhos do corretor, a corretagem ser-lhe-á devida.
Recurso especial improvido.”

2.3. Rateio das comissões

O artigo 728 do CC trata da situação em que mais de um corretor foi responsável


pela mediação que levou à conclusão do negócio, concluindo com obviedade que o rateio
será em partes iguais, caso não haja previsão contratual que exclua ou firme proporção
diversa a cada um. Veja:

“Art. 728. Se o negócio se concluir com a intermediação de mais de um corretor, a


remuneração será paga a todos em partes iguais, salvo ajuste em contrário.”
Casos Concretos

Questão 1

Paraíso Torrefação de Café Ltda. celebrou contrato de comissão com Casa


Comissária PAES&BARROS Ltda. O contrato continha cláusula expressa quanto ao
percentual da comissão do comissário, bem como a cláusula del credere. O comitente

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ajuizou ação de cobrança em face do comissário para recebimento da quantia devida e


não paga por determinado comprador, por venda realizada pelo comissário. O pedido foi
julgado procedente. Correta a decisão? Resposta fundamentada.

Resposta à Questão 1

Como o contrato conta com a cláusula del credere, o comissário garante a prestação
inadimplida pelo terceiro comprador. Por isso, a decisão foi correta: é justamente para que o
comissário responda pela prestação do terceiro que existe esta cláusula del credere, trazida
no artigo 698 do CC.
Repare que, mesmo que o artigo 698 do CC fale em insolvência, a correta leitura da
cláusula del credere é a que impõe a responsabilidade do comissário por qualquer
inadimplemento do terceiro.

Questão 2

NEGOCIE BEM Ltda. ajuizou em face de MAURO RODRIGUES ação de cobrança


de comissão de corretagem. O autor alega que foi bastante a aproximação por ele feita do
vendedor do imóvel, ora réu, e do interessado na aquisição do bem, não sendo exigida
para o aperfeiçoamento da corretagem a efetivação da venda, que deixou de ser realizada
apenas porque o proprietário desistiu do negócio. Postula o pagamento de 8% sobre o
valor da venda do imóvel, aduzindo que, apesar de realizado o seu trabalho a contento,
frustrou-se o negócio por circunstâncias alheias à sua vontade. Decida,
fundamentadamente, se o autor tem direito ao recebimento da comissão.

Resposta à Questão 2

Feitas as negociações, o corretor prestou seu serviço, porque sua obrigação


contratual é aproximar as partes interessadas. Na forma da parte final do artigo 725 do CC,
se as partes se arrependerem do negócio para o qual trabalhou o corretor, ainda assim é
devida a porcentagem da corretagem, porque o trabalho de intermediação foi efetivamente
prestado. Somente não seria devida a corretagem se no contrato viesse expressamente
consignada cláusula que condicionasse a remuneração do corretor à ultimação do contrato,
cláusula esta que não veio prevista, a todo ver.
Assim, somente se o contrato de corretagem condicionasse expressamente a
remuneração do corretor à conclusão do contrato mediado, o corretor não faria jus à
comissão que pleiteia.

Questão 3

Contrato de corretagem ajustado com exclusividade e a prazo certo entre


incumbente e corretor. Na execução do contrato, destinado à venda de controle acionário
de sociedade anônima, o corretor, se valendo de toda diligência e boa-fé, apresentou três
interessados ao incumbente, que rejeitou as propostas. No dia seguinte ao término do
prazo, o corretor apresenta ao incumbente o quarto pretendente, com o qual o negócio é

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

concluído. O corretor tem direito ao recebimento da remuneração pelo serviço prestado?


Resposta fundamentada.

Reposta à Questão 3

A despeito da inexistência do termo “incumbente” no CC – que trata esta figura,


contratante do corretor, como “cliente” ou “dono do negócio” –, é fato que o cliente não
pode concorrer com o corretor que tenha exclusividade, e esteja atuando em suas
atribuições.
Dito isto, é claro que se o negócio for ultimado após o prazo do contrato de
corretagem ter-se expirado, mas a sua conclusão só se deu em função da operosidade do
corretor, será devida remuneração: seu trabalho causou o êxito do contrato, o que lhe
garante a comissão, conforme assevera a parte final do artigo 727 do CC.

Tema II

CONTRATOS DE AGÊNCIA, REPRESENTAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO. Distinção. Obrigações do proponente


e do agente. Garantia de zona. Remuneração do agente. Contratos de representação, agência e distribuição.
Características da representação. O representante e a figura do empresário. Exclusividade da representação.
Comissão sobre as vendas. Foro competente. Natureza do crédito na falência do representado.

Michell Nunes Midlej Maron 11


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Notas de Aula3

1. Contratos de agência e representação

Estes contratos também têm por objetividade a mediação entre partes, para a
pactuação de outros negócios, assim como na corretagem. Mas enquanto no contrato de
corretagem a mediação é estrita – o corretor só aproxima os interessados, como visto, não
tomando parte no negócio final –, na agência e na representação a mediação é ampla, ou
seja, o mediador – agente ou representante – pode participar do contrato final como
mandatário. Este é o principal diferencial destes contratos em relação à corretagem.
O contrato de agência, ao contrário do de corretagem, não vinha previsto no Código
Comercial, nem no CC de 1916. É contrato legalmente novo, portanto. Já quanto ao
contrato de representação comercial, antes do CC de 2002, a Lei 4.886/65 veio
regulamentar a profissão do representante comercial autônomo, e o contrato de
representação comercial.
Esta lei teve forte influência do Código Civil italiano, sendo este diploma
comparado a fonte inspiradora básica do contrato de representação ali tratado. Surge, aqui,
um questionamento que é a mais polêmica das questões sobre este tema: em que diferem os
contratos de representação e agência?
De fato, os pontos em comum entre a representação comercial e a agência são
muitos. Vejamos, então, as características de cada um, para ao final traçar as diferenças.
Diz o artigo 710 do CC:

“Art. 710. Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e
sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante
retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-
se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada.
Parágrafo único. O proponente pode conferir poderes ao agente para que este o
represente na conclusão dos contratos.”

A primeira característica do contrato de agência é a habitualidade, como se vê no


caput do artigo supra, que fala em não eventualidade. Seguindo, fala o artigo também na
ausência de dependência do agente, o que indica a sua autonomia, sem vínculo de emprego.
O agente atua à conta do seu contratante, o proponente, ou seja, recebe instruções
dele para consecução do negócio. Este é o objeto do contrato de agência: a realização de
negócios, em zona determinada, mediante remuneração, chamada também de comissão.
No parágrafo único do artigo 710 do CC se apresenta mais uma característica da
agência: o agente pode ser nomeado mandatário do proponente, e, com isso, firmar ele
próprio o contrato final, em nome do proponente.
Resumindo as características contrato de agência, tem-se que é o pacto pelo qual
uma pessoa, física ou jurídica, chamada de agente, recebe instruções do proponente para
realizar negócios, habitualmente e sem relação de emprego, mediante remuneração,
podendo ser mandatário do proponente na conclusão do negócio.
Vejamos, agora, o artigo 1° da Lei de Representação Comercial, Lei 4.886/65:

“Art . 1º Exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa


física, sem relação de emprêgo, que desempenha, em caráter não eventual por
3
Aula ministrada pelo professor Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, em 4/12/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 12


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conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios


mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para, transmití-los aos representados,
praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios.
Parágrafo único. Quando a representação comercial incluir podêres atinentes ao
mandato mercantil, serão aplicáveis, quanto ao exercício dêste, os preceitos
próprios da legislação comercial.”

Repare que são muitas as coincidências: há a habitualidade; a ausência de vínculo


de emprego (autonomia); e a condicionante às instruções passadas pelo contratante (aqui
chamado representado, e não proponente). Pode também, segundo o parágrafo único, ser
mandatário do representado, tal como na agência.
Diferenças que poderiam ser suscitadas, então, são três: o fato de que o contrato de
representação se presta a mediar negócios mercantis, e não quaisquer negócios, como na
agência; a limitação por zona, prevista na agência, mas não na representação; e a presença
da remuneração na forma da comissão, o que não existe no conceito de representação
previsto neste artigo 1°, supra.
Ocorre que o artigo 27 da Lei 4.886/65, que trata das cláusulas obrigatórias do
contrato de representação, apresenta como cláusula necessária a indicação da zona da
representação, como se vê na alínea “d”, o que já afasta esta suposta diferença. Outra
cláusula necessária, estabelecida na alínea “f” deste artigo 27, diz respeito ao pagamento
devido ao representante – afastando a diferença apontada quanto à remuneração. Veja o
artigo na íntegra:

“Art. 27. Do contrato de representação comercial, além dos elementos comuns e


outros a juízo dos interessados, constarão obrigatoriamente: (Redação dada pela
Lei nº 8.420, de 8.5.1992)
a) condições e requisitos gerais da representação;
b) indicação genérica ou específica dos produtos ou artigos objeto da
representação;
c) prazo certo ou indeterminado da representação
d) indicação da zona ou zonas em que será exercida a representação; (Redação
dada pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992)
e) garantia ou não, parcial ou total, ou por certo prazo, da exclusividade de zona ou
setor de zona;
f) retribuição e época do pagamento, pelo exercício da representação, dependente
da efetiva realização dos negócios, e recebimento, ou não, pelo representado, dos
valôres respectivos;
g) os casos em que se justifique a restrição de zona concedida com exclusividade;
h) obrigações e responsabilidades das partes contratantes:
i) exercício exclusivo ou não da representação a favor do representado;
j) indenização devida ao representante pela rescisão do contrato fora dos casos
previstos no art. 35, cujo montante não poderá ser inferior a 1/12 (um doze avos)
do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação.
(Redação dada pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992)
§ 1° Na hipótese de contrato a prazo certo, a indenização corresponderá à
importância equivalente à média mensal da retribuição auferida até a data da
rescisão, multiplicada pela metade dos meses resultantes do prazo contratual.
(Redação dada pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992)
§ 2° O contrato com prazo determinado, uma vez prorrogado o prazo inicial, tácita
ou expressamente, torna-se a prazo indeterminado. (Incluído pela Lei nº 8.420, de
8.5.1992)

Michell Nunes Midlej Maron 13


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§ 3° Considera-se por prazo indeterminado todo contrato que suceder, dentro de


seis meses, a outro contrato, com ou sem determinação de prazo. (Incluído pela Lei
nº 8.420, de 8.5.1992).”

Ora, com a combinação do artigo 1° e do artigo 27 da Lei 4.886/65, vê-se que


apenas uma das três diferenças apontadas ainda poderá ser suscitada, ou seja, apenas no que
diz respeito ao objeto do contrato há diferença: enquanto na agência o objeto é amplo – o
agente deve buscar realizar negócios, em sentido amplo –, na representação o representante
só poderá buscar realizar negócios mercantis, objeto supostamente mais restrito.
Ocorre que sequer esta diferença pode ser apontada, pela simples razão de que
simplesmente não existem mais obrigações mercantis propriamente ditas, diversas das
obrigações civis. O Código Comercial diferenciava obrigações mercantis de obrigações
civis, diferença esta que não mais subsiste no ordenamento. Por isso, a menção a estes
negócios mercantis fazia sentido à época em que esta diferença existia, não mais tendo
qualquer relevância, agora que a obrigação civil e a mercantil não guardam diferenças
legais.
Por isso, não se pode mais falar neste critério distintivo entre agência e
representação. Se se disser que na agência o negócio é civil, enquanto na representação é
mercantil, se estará fazendo referência a distinção que não mais subsiste no ordenamento.
Vê-se, então, um problema curioso: não há como se identificar, na análise dos
dispositivos legais, uma diferença entre estes dois contratos. A representação e a agência, a
todo ver, seriam contratos idênticos. Entretanto, não se pode afirmar que sejam idênticos
estes contratos, pois se estaria constatando uma verdadeira duplicidade de institutos,
inadmissível em um ordenamento coeso e sistemático. A diferença, portanto, está no
tratamento diferenciado que os diplomas, o CC e a Lei 4.886/65, dão a alguns aspectos dos
contratos – afinal, não são idênticos os dispositivos. Vejamos, portanto, as nuances que
diferenciam os institutos.

1.1. Diferenças na resolução contratual

Primeira nuance que diferencia os contratos surge quanto às regras de resolução do


contrato, como se vê no artigo 720 do CC, comparado ao artigo 34 da Lei 4.886/65:

“Art. 720. Se o contrato for por tempo indeterminado, qualquer das partes poderá
resolvê-lo, mediante aviso prévio de noventa dias, desde que transcorrido prazo
compatível com a natureza e o vulto do investimento exigido do agente.
Parágrafo único. No caso de divergência entre as partes, o juiz decidirá da
razoabilidade do prazo e do valor devido.”

“Art . 34. A denúncia, por qualquer das partes, sem causa justificada, do contrato
de representação, ajustado por tempo indeterminado e que haja vigorado por mais
de seis meses, obriga o denunciante, salvo outra garantia prevista no contrato, à
concessão de pré-aviso, com antecedência mínima de trinta dias, ou ao pagamento
de importância igual a um têrço (1/3) das comissões auferidas pelo representante,
nos três meses anteriores.”

Como se vê no artigo 720 do CC, quando o contrato de agência for por prazo
indeterminado, o proponente pode denunciá-lo a qualquer tempo, desde que o faça com
antecedência de ao menos noventa dias, e que a denúncia não seja interferente no prazo

Michell Nunes Midlej Maron 14


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compatível com a natureza do negócio agenciado e com o investimento feito pelo agente.
Em suma, se o agente investe no contrato, e não tem tempo para colher o mínimo retorno, a
denúncia é indevida, mesmo se respeitado o prazo de noventa dias.
Já no artigo 34 da Lei 4.886/65, exige-se que para haver direito ao pré-aviso da
denúncia do contrato de prazo indeterminado, este tenha vigorado por no mínimo seis
meses. Além disso, o aviso prévio, na representação, é de meros trinta dias, e não seis
meses, como na agência. E mais: se a parte quiser findar o contrato de representação sem
atender ao pré-aviso, pode substituir esta notícia pelo pagamento de uma indenização,
correspondente a um terço das comissões pagas nos três últimos meses – substitutividade
que inexiste no CC para o contrato de agência, em que a denúncia tem que ser sujeita ao
aviso prévio, incabível opção por indenizar.

1.2. Diferenças na falência do contratante

A Lei 4.886/65 estabelece, no artigo 44, que quando o representado falir, as


comissões devidas aos representantes serão equiparadas, no concurso de credores, àquelas
de natureza trabalhista. Veja:

“Art. 44. No caso de falência do representado as importâncias por ele devidas ao


representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões
vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, serão considerados créditos da
mesma natureza dos créditos trabalhistas. (Incluído pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992)
Parágrafo único. Prescreve em cinco anos a ação do representante comercial para
pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos que lhe são garantidos
por esta lei. (Incluído pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992).”

Esta disposição não existe no contrato de agência: as comissões do agente não


contam com qualquer privilégio no concurso de credores.

1.3. Diferenças quanto à concorrência

Veja o que diz o artigo 711 do CC:

“Art. 711. Salvo ajuste, o proponente não pode constituir, ao mesmo tempo, mais
de um agente, na mesma zona, com idêntica incumbência; nem pode o agente
assumir o encargo de nela tratar de negócios do mesmo gênero, à conta de outros
proponentes.”

Um determinado proponente não pode constituir mais de um agente na mesma zona,


e tampouco pode o agente tornar-se contratado de mais de um proponente na mesma zona –
a não ser que o contrato permita. Esta é a regra do contato de agência.
No contrato de representação, a Lei 4.886/65 estabelece que esta cláusula é livre, ab
initio, na forma da alínea “h” do artigo 27, há pouco transcrito. Assim, o que é vedado
legalmente no contrato de agência, podendo haver afastamento da regra por expressa
permissão contratual, no contrato de representação não existe vedação presumida por lei.
Na representação, as partes têm que regular se haverá exclusividade por zona ou não; não
havendo, não há que se falar em exclusividade. Em suma: no contrato de agência, há
cláusula legal, mas não cogente, de exclusividade por zona; na representação, inexiste tal
cláusula legal, devendo as partes inserir tal cláusula necessária no contrato.

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1.4. Vedação à cláusula del credere

O contrato de representação não pode contemplar a cláusula del credere, já


abordada no contrato de comissão. Esta vedação, protetiva do representante, é expressa no
artigo 43 da Lei 4.886/65:

“Art. 43. É vedada no contrato de representação comercial a inclusão de cláusulas


del credere. (Incluído pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992).”

1.5. Obrigatoriedade do registro do representante comercial

A maior diferença entre a representação e a agência está espelhada no artigo 2° da


Lei 4.886/65:

“Art. 2º É obrigatório o registro dos que exerçam a representação comercial


autônoma nos Conselhos Regionais criados pelo art. 6º desta Lei.
Parágrafo único. As pessoas que, na data da publicação da presente Lei, estiverem
no exercício da atividade, deverão registrar-se nos Conselhos Regionais, no prazo
de 90 dias a contar da data em que êstes forem instalados.”

É neste artigo que fica lançada a mais clara diferença entre agência e representação:
aqueles que quiserem se intitular representantes comerciais deverão ser registrados nos
respectivos conselhos regionais, exigência inexistente no contrato de agência.
O que se percebe, portanto, é que a atividade de representação comercial é uma
profissão regulamentada, regida por órgãos de classe regionalizados, jungidos a um
conselho federal.
Ora, se o agente não está obrigado a se registrar, como está o representante, são
situações jurídicas diversas, e como tal devem ser tratadas. Sendo assim, os agentes não
podem ter as vantagens que os representantes – como no caso do privilégio na falência –, se
não se encontram exatamente na mesma situação jurídica. São pessoas diversas, em
situações diversas.
Trocando em miúdos, o objetivo do legislador foi fazer da agência algo bastante
similar à corretagem: como visto, pode haver corretagem regulamentada, aquela do corretor
profissional, mas nada impede a corretagem livre, do corretor não-profissional, regrada no
CC. No cotejo entre a agência e a representação, esta é a dinâmica: enquanto o agente é
livre, o representante é registrado, e com isso se diferenciam as relações, pois o agente não
tem as prerrogativas do representante, assim como o corretor profissional não tem as
prerrogativas do corretor livre.
Destarte, o contrato de agência – que é aquele regido pelo CC, pois que celebrado
pelo agente livre – segue as regras do CC, enquanto o contrato de representação, celebrado
por pessoa registrada como representante comercial, observa as regras da Lei 4.886/65.
assim, quanto à pessoa, se ela for registrada como representante, seu contrato será sempre
de representante, e vice-versa – a pessoa não registrada será sempre tida por agente, quando
buscar os objetos que a lei prevê para este contrato.
Assim como há vantagens em ser representante, tal como o privilégio na falência,
há desvantagens: ele deve pagar encargos ao órgão de classe, e sujeitar-se aos regulamentos
deste órgão.

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Percebe-se, portanto, que não há identicidade nos contratos de agência e de


representação, e tampouco há conflito entre os diplomas: cada um rege a sua respectiva
parcela de negócios jurídicos, sendo o contrato de representação aquele firmado por
representantes registrados, regido então pela Lei 4.886/65, e o de agência aquele pactuado
por agentes livres, regido então pelo CC. A nota diferencial fundamental é o registro da
pessoa que realiza o objeto: sem registro, é agente; com registro, é representante.

2. Contrato de distribuição

O artigo 710 do CC, já transcrito, prevê em sua parte final que o contrato de agência
será transformado em contrato de distribuição quando o agente tiver à sua disposição a
coisa a ser negociada.
A diferença é bem simples: no contrato de distribuição, o distribuidor não é
mandatário: é depositário com poderes para vender a coisa a ser negociada, em nome
próprio, e em seguidas passar o valor ajustado ao distribuído. O distribuidor é agente, com a
prerrogativas de vender as coisas por sua conta e risco, e não como mandatário.
Como não se trata de relação de emprego, a competência para lides neste campo é
da justiça estadual, na forma do artigo 39 da Lei 4.886/65:

“Art. 39. Para julgamento das controvérsias que surgirem entre representante e
representado é competente a Justiça Comum e o foro do domicílio do
representante, aplicando-se o procedimento sumaríssimo previsto no art. 275 do
Código de Processo Civil, ressalvada a competência do Juizado de Pequenas
Causas. (Redação dada pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992).”

Casos Concretos

Questão 1

BONS PNEUS E ACESSÓRIOS DE VEÍCULOS Ltda. ajuizou ação de cobrança em


face de PALERMO INDÚSTRIA DE PNEUS S/A. para receber comissões provenientes de
negócios celebrados entre esta e a vendedora de pneus. A autora alegou que tais negócios
se realizaram em desacordo com a cláusula de exclusividade que a beneficiava. Pleiteia
perdas e danos em razão da infração contratual. Afirmou, ainda, que o contrato de

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

representação comercial lhe concedia o direito de exclusividade nas vendas efetuadas na


cidade de Cabo Frio. A ré, em sua contestação, sustentou que a cláusula de exclusividade
não se aplica à cidade de Nova Friburgo, local onde foram feitos os negócios com
terceiros, uma vez que sua abrangência territorial está circunscrita à Região dos Lagos,
razão pela qual não houve infração contratual. Acresce, também, à sua defesa, o contrato
social, demonstrando que as vendas dos pneus eram realizadas em nome da própria
autora, que prestava contas do faturamento mensalmente à ré, e que a autora não tem
registro profissional de representante comercial. Pergunta-se:
a) Houve, como pretende a autora, celebração de contrato de Representação
Comercial? Justifique.
b) Procede a defesa da ré?Respostas justificadas.

Resposta à Questão 1

a) Não: o contrato celebrado foi de agência. Primeiro, porque só quem contrata


representação é o representante comercial registrado. Segundo, porque o
representante não vende em nome próprio (como o faz na comissão): é um
mandatário do representado.

b) A resposta depende das provas: se restar provado que a venda foi realizada
forma da área de abrangência da delimitação de exclusividade, realmente não
houve infração, e a ré tem razão.

Questão 2

Marcondes Massas Alimentícias Ltda. e Pontualidade Representações Comerciais


Ltda. firmaram contrato de representação comercial em 29.12.1999. A segunda sociedade
foi representante comercial da primeira até outubro de 2007, quando a representada
encerrou suas atividades. A representante aforou ação de cobrança para receber o
pagamento das comissões pendentes, de indenização correspondente a 1/12 do total da
retribuição auferida e ao pagamento de aviso prévio, verbas que deveriam ser corrigidas
monetariamente e acrescidas de juros de mora. Juntou a autora os contratos de
representação comercial, as notas de venda e os demais documentos. A ré sustenta que a
representante não comprovou a prestação de serviços e que pela documentação juntada
não é possível determinar os valores devidos. Pergunta-se: O encerramento das atividades
da representada dá ensejo à rescisão contratual? São devidas as verbas pleiteadas pela
representante? Fundamente com amparo legal.
Resposta à Questão 2

O encerramento dá ensejo à rescisão, como dispõe o artigo 36, “d”, da Lei 4.886/65:

“Art . 36. Constituem motivos justos para rescisão do contrato de representação


comercial, pelo representante:
a) redução de esfera de atividade do representante em desacôrdo com as cláusulas
do contrato;
b) a quebra, direta ou indireta, da exclusividade, se prevista no contrato;
c) a fixação abusiva de preços em relação à zona do representante, com o exclusivo
escopo de impossibilitar-lhe ação regular;

Michell Nunes Midlej Maron 18


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d) o não-pagamento de sua retribuição na época devida;


e) fôrça maior.”

Quanto à indenização de um doze avos, o artigo 27, “j”, da mesma lei, já transcrito,
só há direito se a extinção do contrato se der com justa causa. Como o contrato da
casuística dói assim extinto, é-lhe devida esta indenização, assim como as remunerações
pendentes e o aviso prévio, na forma do artigo 34, também do mesmo diploma e já
transcrito.
Os juros e correção monetária são devidos, na forma da regra geral destes encargos,
do artigo 395 do CC, e com a previsão especial do artigo 32, § 2°, da Lei 4.886/65:

“Art. 32. O representante comercial adquire o direito às comissões quando do


pagamento dos pedidos ou propostas. (Redação dada pela Lei nº 8.420, de
8.5.1992)
(...)
§ 2° As comissões pagas fora do prazo previsto no parágrafo anterior deverão ser
corrigidas monetariamente. (Incluído pela Lei nº 8.420, de 8.5.1992)
(...)”

A respeito, veja a Apelação Cível 712.639.530-0 do TJ/SP:


“Apelação 7126395300. Relator(a): Tersio Negrato. Comarca: Guarulhos. Órgão
julgador: 17ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 24/10/2007. Data de
registro: 22/11/2007.
Ementa: REPRESENTAÇÃO COMERCIAL - Representação comercial que restou
configurada, bem como a sua rescisão imotivada por parte da apelante, motivo pelo
qual ela deve arcar com a indenização e com o aviso prévio, e com o pagamento
das comissões pendentes - Recurso não provido. REPRESENTAÇÃO
COMERCIAL - Circunstância em que a apelada comprovou a relação de direito
material entre as partes, restando apenas a quantificação dos valores, que podem
ser aferidos em liquidação de sentença - Recurso não provido.
REPRESENTAÇÃO COMERCIAL - Correta a determinação para que o débito
seja corrigido desde o ajuizamento da ação, na forma do artigo 1o, § 2o, da Lei n°
6.899/81 - Recurso não provido. HONORÁRIOS DE ADVOGADO - Ação de
cobrança de representação comercial em face de massa falida - Honorários
advocatícios que são devidos no processo de conhecimento para a constituição de
crédito contra a massa falida - Recurso não provido.”

Questão 3

Distribuidora de Bebidas Damar Ltda. e Eugênio Romita ajuizaram ação


indenizatória em face de Cervejarias Reunidas Skol Caracu S/A., pleiteando reparação por
danos materiais e morais, sob as alegações de que: (1) houve ocorrência de abuso do
direito na resilição contratual por parte da Cervejaria Skol; (2) o programa de excelência
imposto aos distribuidores no ano de 1995 foi cumprido com tamanho sucesso que um dos
autores fez jus ao recebimento de prêmio concedido no final daquele ano, no Caribe, de
melhor distribuidora brasileira; (3) tanto por força do que foi afirmado por ocasião da
premiação pelo Presidente da Skol, como em razão das diretrizes existentes no programa

Michell Nunes Midlej Maron 19


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de excelência, criou-se uma fortíssima expectativa de manutenção do contrato de


distribuição que deveria ter sido tutelada; (4) os altos investimentos feitos, principalmente
no ano de 1995, não foram amortizados em razão das táticas predatórias praticadas pela
distribuída (a Skol concitou seus distribuidores a realizarem fortes e minudentes
investimentos, que passavam por lay out novo, vestimenta padrão dos funcionários,
reforma de fachadas dos estabelecimentos, aquisição de veículos etc.); (5) a postura dela
em exigir investimentos substanciosos dos distribuidores para alcançar as metas que
estabeleceu, seguida da extinção unilateral do contrato poucos meses depois, foi
contraditória e de má-fé, tendo atingido diversos distribuidores de cerveja que se viram à
beira da falência; e, (6) muito embora à época da contratação estivesse em vigor o
CC/1916, devem nortear o julgamento as regras contidas nos artigos 715/720, do CC/02,
que expressamente preveem o direito à indenização por perdas e danos aos distribuidores
nos casos de resilição unilateral praticada pela distribuída.
A ré contestou e alegou que simplesmente exerceu seu direito potestativo à
denúncia do contrato, nos termos da cláusula contratual, in verbis: "O presente contrato
vigorará pelo prazo de 60 (sessenta) meses, a contar da data de sua assinatura,
prorrogando-se, a partir do seu vencimento, por igual período, desde que não haja
denúncia de qualquer das partes, até 180 (cento e oitenta) dias antes do seu vencimento" e
que informou ao distribuidor com a antecedência prevista.
O juiz julgou improcedente a ação por entender cabível a resilição com base na
cláusula do contrato de distribuição. Correta a decisão? Fundamente.

Resposta à Questão 3

Em breve síntese, a tese da autora é de que houve quebra da boa-fé objetiva, porque
a ré incutiu-lhe expectativa legítima de que o contrato teria continuidade por longo período,
e, faltando com lealdade, resiliu-o de forma súbita e altamente prejudicial à autora. Do
outro lado, há a tese da ré de que o contrato continha a cláusula resilitória e, pacta sunt
servanda, seu direito potestativo em resilir está perfeitamente consoante com a diretrizes
jurídicas contratuais.
O TJ/SP julgou a questão, na Apelação Cível 728.549.090-0 , como se vê:
“Apelação 7285490900. Relator(a): Moura Ribeiro. Comarca: Guarulhos. Órgão
julgador: 11ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 15/01/2009. Data de
registro: 31/03/2009.
Ementa: Contrato de distribuição rompido unilateralmente por parte da distribuída
por resilição - Pretensão indenizatória julgada improcedente - Inconformismo da
distribuidora ponderando que implementou vultosas despesas em favor da
distribuída para incremento das vendas e com sucesso, não podendo suportar a
injusta extinção do contrato - Incidência do art. 160, I, do CC/16 - Incidência da
Lei n° 6. 729/79 e da Lei n° 4.886/65, que foi alterada pela Lei n" 8.420/92 -
Contrato de distribuição que não se confunde com o de representação porque
naquele, como na hipótese, o lucro resulta das vendas que o distribuidor faz por
sua conta e risco - Abuso de direito reconhecido - Inviabilidade da resilição sem
composição dos danos porque quem os causa deve repará-los. Agravo retido
conhecido em parte e não provido - Recurso provido.”

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Tema III

CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. Noções gerais. Estrutura. Disciplina legal.


Partes. Requisitos do contrato.

Notas de Aula4

1. Contrato de alienação fiduciária em garantia

4
Aula ministrada pelo professor Juan Luiz Souza Vazquez, em 2/12/2009.

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Neste contrato há duas partes envolvidas, o credor fiduciário e o devedor alienante.


Em essência, o credor fiduciário empresta dinheiro para que o devedor alienante adquira o
bem almejado, bem este que será a própria garantia deste empréstimo. Portanto, nada mais
é do que um mútuo garantido pelo próprio bem adquirido: o devedor colhe o empréstimo,
adquire o bem e o aliena ao mutuante, como forma de garantia do empréstimo colhido.
A dinâmica, que ocorre toda em um só momento, é a seguinte: o devedor escolhe o
bem; colhe o empréstimo do credor fiduciário; adquire o bem; aliena-o ao credor fiduciário;
e passa a pagar as parcelas ajustadas pelo empréstimo. Ao final desta, terá a propriedade do
bem. Veja que, em um só momento, houve a entrada e saída do bem do patrimônio deste
devedor alienante: adquiriu-o com o mútuo, e ao mesmo tempo entregou sua propriedade
ao mutuante.
O credor fiduciário, então, tem propriedade resolúvel do bem a si alienado:
enquanto as prestações do mútuo estiverem sendo pagas, é o credor que tem o domínio,
restando com o devedor alienante tão-somente a posse direta. Quitadas todas as parcelas, a
propriedade do credor fiduciário se resolve, e o devedor alienante passa a ser proprietário
pleno da coisa.
No leasing, o arrendatário paga para usar o bem, e, ao final, optar pela compra ou
não; na alienação fiduciária, o destino é a compra do bem, não havendo opção.
Veja o conceito de alienação fiduciária traçado por Caio Mário:

“Transferência, ao credor, do domínio e posse indireta da coisa,


independentemente de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de
obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da
dívida garantida.”

Há que se traçar a sutil diferença entre este contrato e a venda com reserva de
domínio: neste, o vendedor passa a posse ao adquirente, mas reserva-se o domínio, a
propriedade, a qual só será entregue ao comprador ao final dos pagamentos de todas as
parcelas, pela primeira vez. Na alienação fiduciária, por um breve momento, o devedor foi
proprietário, entregando o bem em garantia imediatamente; na compra e venda com reserva
de domínio, o devedor, adquirente, jamais foi proprietário, só o sendo quando quitar a
integralidade do preço.
De acordo com Fábio Ulhoa Coelho, a alienação fiduciária trata-se de contrato que
instrumentaliza o mútuo, sendo mutuário o fiduciante e mutuante o fiduciário.
Há três espécies de alienação fiduciária, hoje. A alienação pode ser comum, de
mercado financeiro, ou de imóveis. A comum é regida nos artigos 1.361 e seguintes do CC;
a do mercado financeiro, na Lei 4.728/65, com tratamento processual no Decreto-Lei
911/69; e a de imóveis na Lei 9.514/97. Os dispositivos serão abordados pontualmente, a
seu tempo.

1.1. Credor fiduciário

Há uma certa divergência sobre quem pode ou não figurar como credor fiduciário.
Este sempre foi um ponto controvertido. Vejamos como a matéria era tratada, antigamente.
Em uma interpretação ampla, minoritária, capitaneada por Celso Marcelo de
Oliveira, qualquer pessoa natural ou jurídica poderia figurar como credor fiduciário.

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Em uma interpretação intermediária, também minoritária, capitaneada por Moreira


Alves, qualquer pessoa jurídica empresarial poderia atuar nesta posição, desde que na
concessão do crédito direto ao consumidor – sem desviar do objetivo legal – sob os
argumentos de que não há vedação legal, e de que existiria possibilidade de subrogação. No
entanto, sustentava ser inviável a busca e apreensão e as medidas processuais do Decreto-
Lei. Entenda: se a lei permite a subrogação, qualquer pessoa poderá adentrar na relação,
subrogando-se no direito do credor original, o que torna inócua qualquer restrição a quem
pode figurar como credor fiduciário original.
Por fim, em uma interpretação restritiva, que era a majoritária, orlando Gomes e
Arnoldo Wald defendem que somente as entidades creditícias fiscalizadas pelo Bacen
poderiam figurar como credoras fiduciárias. Vale dizer que, mesmo adotando esta corrente,
o STF passou a admitir também figurarem como tal os consórcios e as equiparadas às
instituições financeiras.
Atualmente, no entanto, a questão é tratada da seguinte forma: seguindo-se o CC de
2002, ou seja, quando se tratar da modalidade comum de alienação fiduciária, a
interpretação deve ser ampla. Assim, o credor fiduciário pode ser pessoa natural ou jurídica,
não precisando ser instituição financeira. Veja o artigo 1.361 do CC:

“Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel


infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.
§ 1° Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por
instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e
Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição
competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro.
§ 2° Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da
posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa.
§ 3° A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o
arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária.”

Seguindo-se a Lei de Mercado de Capitais, Lei 4.728/65, o artigo 66-B determina


que o credor fiduciário precisa ser pessoa jurídica e fiscalizada pelo Bacen, bem como para
créditos fiscais e previdenciários. Veja o dispositivo:

“Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado


financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e
previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de
10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de
atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.(Incluído pela
Lei 10.931, de 2004)
§ 1° Se a coisa objeto de propriedade fiduciária não se identifica por números,
marcas e sinais no contrato de alienação fiduciária, cabe ao proprietário fiduciário
o ônus da prova, contra terceiros, da identificação dos bens do seu domínio que se
encontram em poder do devedor.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004)
§ 2° O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara
fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2o, I, do
Código Penal.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004)
§ 3° É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de
direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que,
salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da
propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é
atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação

Michell Nunes Midlej Maron 23


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garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária


independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou
extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das
despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se
houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.(Incluído pela Lei
10.931, de 2004)
§ 4° No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos
de crédito aplica-se, também, o disposto nos arts. 18 a 20 da Lei no 9.514, de 20 de
novembro de 1997.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004)
§ 5° Aplicam-se à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei os
arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.435 e 1.436 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
(Incluído pela Lei 10.931, de 2004)
§ 6° Não se aplica à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei
o disposto no art. 644 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.(Incluído pela
Lei 10.931, de 2004).”

Quando se tratar de bens imóveis, a Lei 9.514/97 determina que pode ser credor
fiduciário qualquer pessoa jurídica ou natural, e não precisa ser integrante do Sistema
Financeiro Imobiliário (que é o regido pela mencionada lei), mas a emissão dos
certificados de recebíveis imobiliários (título que representa um valor mobiliário) para
securitização de recebíveis, seria restrita às empresas que estão autorizadas a atuar neste
Sistema.

1.2. Registro do contrato de alienação fiduciária

É necessário o registro do contrato no cartório de registro de títulos e documentos


(ou no RGI, se for de bens imóveis), a fim de que a propriedade fiduciária se constitua? A
questão é polêmica.
No regime do CC e do mercado de capitais, constitui-se a propriedade fiduciária
pelo registro do contrato no RTD. Aqui, a questão é pacífica. É no caso de veículos que
surge verdadeiro imbróglio, ante a necessidade ou não deste registro no RTD, eis que já
existe o registro no Detran. A divergência sobre este duplo registro é severa, sendo que
prevalece o entendimento, na doutrina, de que não é necessário o duplo registro, bastando
aquele realizado no Detran para o licenciamento do veículo. Este entendimento encontra
amparo no artigo 1.361, § 1°, do CC, há pouco transcrito. Segunda corrente, no entanto,
exige o registro também no RTD, para atribuição de eficácia erga omnes ao contrato – e é o
que tem prevalecido na jurisprudência do TJ/RJ, mesmo contrariando a súmula 92 do STJ,
que determina que o registro só é fundamental quando necessário opor o contrato a
terceiros.
“Súmula 92, STJ: A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não
anotada no certificado de registro do veículo automotor.”

Luis Roberto Barroso entende que este § 1° do artigo 1.361 do CC é


inconstitucional, e o TJ/RJ acolheu esta tese, julgando inconstitucional este dispositivo na
Argüição de Inconstitucionalidade 9/2006, por violação ao artigo 236 da CRFB, que sedia o
regramento constitucional do sistema registral brasileiro:

“Processo: 0034817-81.2006.8.19.0000 (2006.017.00009). 1ª Ementa -


ARGUICAO DE INCONSTITUCIONALIDADE. DES. VALERIA MARON -
Julgamento: 10/03/2008 - ORGAO ESPECIAL.

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Argüição de Inconstitucionalidade da parte final do § 1º do artigo 1361 do Código


Civil ao atribuir ao DETRAN, órgão do Poder Executivo, competência para efetuar
o registro de contrato relativo a veículo, afrontando o artigo 236 da Constituição
Federal que estabelece que os serviços notariais e de registro são exercidos em
caráter privado e sob a Fiscalização do Poder Judiciário, (§1º) porquanto o
DETRAN é órgão do Poder Executivo. Acolhimento da argüição, por maioria.”

Sendo assim, o registro do contrato é privativo de tabeliães, não podendo ser


incumbido ao Detran. Mesmo com esta decisão, porém, há a discussão, e subsiste o
entendimento de que o registro no cartório só se presta a garantir efeito erga omnes (e não
constitutivo da propriedade fiduciária, que surge com o próprio contrato), em contraposição
à corrente que entende que o registro no Detran basta para haver a atribuição de efeito erga
omnes (posição do STJ, diga-se).
Adicione-se à discussão a previsão da Lei 11.882/08, que, no artigo 6°, dispensa
expressamente o duplo registro, fazendo suficiente o do Detran. Veja:

“Art. 6° Em operação de arrendamento mercantil ou qualquer outra modalidade de


crédito ou financiamento a anotação da alienação fiduciária de veículo automotor
no certificado de registro a que se refere a Lei no 9.503, de 23 de setembro de
1997, produz plenos efeitos probatórios contra terceiros, dispensado qualquer outro
registro público.
§ 1° Consideram-se nulos quaisquer convênios celebrados entre entidades de
títulos e registros públicos e as repartições de trânsito competentes para o
licenciamento de veículos, bem como portarias e outros atos normativos por elas
editados, que disponham de modo contrário ao disposto no caput deste artigo.
§ 2° O descumprimento do disposto neste artigo sujeita as entidades e as pessoas
de que tratam, respectivamente, as Leis nos 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e
8.935, de 18 de novembro de 1994, ao disposto no art. 56 e seguintes da Lei no
8.078, de 11 de setembro de 1990, e às penalidades previstas no art. 32 da Lei no
8.935, de 18 de novembro de 1994.”

No TJ/RJ, também este dispositivo foi julgado inconstitucional pelo Órgão Especial,
pelos mesmos motivos pelos quais declarou inconstitucional o § 1° do artigo 1.361 do CC.
Assim, é firme o entendimento, no TJ/RJ, de que o duplo registro é necessário.
A questão é muito controvertida Veja alguns julgados em sentidos opostos,
começando pelos que dispensam o duplo registro:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.26587. TJ/RJ. AGRAVO DE
INSTRUMENTO - BUSCA E APREENSÃO ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA -
DESNECESSIDADE DE REGISTRO DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA EM CARTÓRIO DE TÍTULOS E DOCUMENTOS, EM SE
TRATANDO DE VEÍCULO. I A legislação em vigor, quanto ao contrato de
alienação fiduciária, seguindo o entendimento dos Tribunais, distingue o tipo de
bem móvel a que incide este ato negocial, para efeitos de registro em cartório de
títulos e documentos.II - Em regra, constitui-se o contrato com o registro em
referido cartório. Excepcionalmente, em se tratando de veículo automotor, basta o
registro na repartição de trânsito competente.III- Construção advinda do
entendimento constante da súmula nº 92, do STJ, que não conflita com o art. 236,
da C.R.F.B., bem como do disposto no art. 1.361, § 1º, do N.C.C. Precedentes do
STJ.VI- Mora comprovada pelo envio de carta com AR positivo no endereço
constante do contrato. Súmula nº 55 deste Tribunal. Recurso a que se dá
provimento parcial de plano, nos termos do art. 557, § 1º - A, do CPC, para afastar

Michell Nunes Midlej Maron 25


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a necessidade do registro e ter por comprovada a mora. DES. RICARDO COUTO


- Julgamento: 22/07/2009 - QUARTA CAMARA CIVEL.”

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.18917. TJ/RJ. AGRAVO DE


INSTRUMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA. Decisão que determinou a vinda aos autos do contrato de alienação
fiduciária registrado em cartório de títulos e documentos do domicílio do devedor
para prova da constituição da propriedade fiduciária. O registro do contrato em
cartório de registro de títulos e documentos tem por objeto assegurar sua
publicidade e torná-lo oponível erga omnes. Desnecessidade do referido registro
para prova entre as partes do negócio jurídico por não ser requisito de sua validade.
Edição da Lei nº 11.882, em 23 de dezembro de 2008. Admissão de anotação da
alienação fiduciária no certificado de licenciamento do veículo no Detran, para a
produção de efeitos perante terceiros, dispensado qualquer registro em outro órgão
ou serventia. Recurso a que se dá provimento, de plano. DES. LUISA BOTTREL
SOUZA - Julgamento: 26/05/2009 - DECIMA SETIMA CAMARA CIVEL.”

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.26542. TJ/RJ. Processual civil. Agravo


de instrumento contra decisão que, em demanda de busca e apreensão, com base
em contrato de alienação fiduciária, determinou que o agravante comprovasse o
registro do contrato em Cartório de Registro de Títulos e Documentos. Tal
providência não pode ser considerada como requisito para a constituição da
propriedade fiduciária. Ao contrário, tem-se que o registro somente deve ser
considerado necessário no que se refere à produção de efeitos perante terceiros de
boa-fé, consoante enunciado 92 da Súmula da Jurisprudência Predominante do
Egrégio Superior Tribunal de Justiça. Avisos do TJ/RJ nº. 18 e 20/2009 que não
tem efeito vinculante, já que somente em controle direto de constitucionalidade é
possível a prolação de decisões com tal efeito. Recurso provido. DES.
ALEXANDRE CAMARA - Julgamento: 16/07/2009 - SEGUNDA CAMARA
CIVEL.”

Exigindo o registro, além da decisão do Órgão Especial do TJ/RJ já transcrita, veja


a seguinte decisão:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.26577. TJ/RJ. Decisão monocrática.


Agravo de instrumento. Decisão do juízo a quo determinando ao autor, ora
agravante, a apresentação do registro do contrato de alienação fiduciária do veículo
no cartório de registro de título e documentos. Arguição de inconstitucionalidade
do art. 1.361, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL PELO E. Órgão especial desta corte de
justiça. Aviso CGJ n.º 11, DE 07/01/2009, recomendando a observância daquele
decisum nas ações de busca e apreensão fundadas em contratos de alienação
fiduciária em garantia. Manutenção da decisão guerreada. Recurso a que se nega
seguimento na forma do art. 557, caput, do cpc. Des. CLEBER GHELFENSTEIN
- julgamento: 20/07/2009 - DECIMA QUARTA CAMARA CIVEL.”

Em síntese, a Corregedoria do TJ/RJ entende que o duplo registro é necessário, mas


há ampla resistência nos órgãos fracionários.
Para bens imóveis, o artigo 23 da Lei 9.514/97 define o RGI como competente, não
subsistindo qualquer discussão:

“Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro,


no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Michell Nunes Midlej Maron 26


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Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o


desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário
possuidor indireto da coisa imóvel.”

1.3. Bens que podem ser objeto de alienação fiduciária

Sempre existiu discussão sobre a possibilidade de bens fungíveis serem objeto de


alienação fiduciária em garantia, eis que quanto aos bens infungíveis é inconteste que
podem ser assim contratados.
Sendo aquelas do o CC, apenas os bens infungíveis podem ser objeto deste contrato,
assim como a de bens imóveis, por razão óbvia. Já aqueles contratos versados na Lei de
Mercado de Capitais podem ter por objeto bens fungíveis ou infungíveis, conforme artigo
66-B, § 3º, desta Lei 4.728/65, já transcrito.
O STJ, apesar de admitir a possibilidade de contratação de bens fungíveis, não
permite em relação aos bens fungíveis consumíveis, como é o caso do estoque, ou, ainda,
aqueles que serão comercializados. A respeito, veja o REsp. 346.240:
“Processual Civil e Civil. Recurso Especial. Alienação fiduciária em garantia.
Ação de busca e apreensão. Ação de consignação em pagamento. Suspensão do
processo. Bens fungíveis e consumíveis (comerciáveis).
(...)
Aplica-se o direito à espécie para manter, por fundamento diverso, a extinção do
processo da ação de busca e apreensão, tendo em vista que, em se tratando de bens
fungíveis e consumíveis (comerciáveis), é inadmissível a alienação fiduciária e
tampouco a ação de busca e apreensão e de depósito a que se refere o Decreto-Lei
nº 911/69. (REsp 346.240/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA
TURMA, julgado em 30/08/2002, DJ 04/11/2002 p. 198).”

Passando a outro tópico, nada impede que se contrate a alienação fiduciária de um


bem que já integre o patrimônio do devedor alienante, consoante súmula 28 do STJ:

“Súmula 28, STJ: O contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por
objeto bem que integrava o patrimônio do devedor.”

Mesmo assim, a questão ainda vem sendo discutida no STJ, sem infirmar a súmula
supra, contudo. Veja o Ag.Rg. no REsp. 843.132:

“AGRG NO RESP 843.132/SC. AGRAVO REGIMENTAL. ALIENAÇÃO


FIDUCIÁRIA. CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. BENS DO
DEVEDOR. 1 - A jurisprudência da Corte admite a alienação fiduciária de bens do
devedor para garantia de contratos de renegociação de dívida. 2 Agravo improvido.
(Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/03/2009,
DJe 02/04/2009).”

É possível a alienação fiduciária das pertenças, aquilo que outrora se chamava de


bem imóvel por acessão intelectual, bens que, móveis na essência, são transformados em
imóveis pela vontade humana. Veja os Recursos Especiais abaixo:

“RESP 150.279-SP. BUSCA E APREENSÃO. MAQUINÁRIO INSTALADO EM


USINA DE PROPRIEDADE DA RÉ. BEM IMÓVEL POR ACESSÃO
INTELECTUAL, PASSÍVEL DE MOBILIZAÇÃO A QUALQUER TEMPO.

Michell Nunes Midlej Maron 27


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

REMOÇÃO DOS BENS DEFERIDA. – A imobilização de coisa móvel por


acessão intelectual não é definitiva, já que pode ser a qualquer tempo mobilizada
por mera declaração de vontade, retornando à condição anterior de coisa móvel,
nos termos do art. 45 do CC/1916. – Devedora fiduciante que deixou de solver
várias prestações e não evidencia o intento de cumprir às inteiras a sua obrigação.
Equipamento que, ademais, permanece paralisado na empresa. Recurso especial
conhecido e provido. (REsp 150.279/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO,
QUARTA TURMA, julgado em 27/09/2005, DJ 24/10/2005 p. 327).”

“RESP 255.499/MA. Alienação fiduciária. Bem imóvel por acessão intelectual.


Art. 43, III, do Código Civil. Precedente da Corte. 1. Como já decidiu a Corte, é
possível a alienação fiduciária de bens imóveis por acessão intelectual. 2. Recurso
especial não conhecido. (Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES
DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/10/2000, DJ 20/11/2000 p. 292).”

Esta discussão restou superada com a edição da Lei 9.514/97, que espancou
qualquer questionamento acerca da possibilidade de alienação fiduciária de bens imóveis.
Como são alienáveis, sem mais dúvidas, os bens imóveis, o raciocínio que hoje deve ser
feito sequer é o dos julgados acima: não é porque as pertenças são essencialmente móveis
que são alienáveis fiduciariamente, e sim porque, mesmo se consideradas imóveis, nada
impede que bens nesta qualidade sejam alienados fiduciariamente. De fato, quer porque têm
essência de móveis, quer porque imóveis podem ser objeto deste contrato, nada impede a
alienação fiduciária de pertenças.
Vale dizer que o STJ permite que o bem nesta condição seja mantido na posse do
devedor, se ele comprovar duas condições: que o bem é imprescindível, a qualquer título
(se for uma indústria, por exemplo, que é essencial à continuidade da produção); e que está
de boa-fé, o que se prova pelo depósito da parte incontroversa do débito. Do contrário, o
bem será retirado da posse do devedor. Veja:

“AGRG NO AG 1094712/MS. AGRAVO REGIMENTAL - AGRAVO DE


INSTRUMENTO - CONTRATO DE FINANCIAMENTO COM ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA EM GARANTIA - MANUTENÇÃO DO DEVEDOR NA POSSE
DO BEM - POSSIBILIDADE - CONSIGNAÇÃO EM JUÍZO DOS VALORES
INCONTROVERSOS - AFASTAMENTO DOS EFEITOS DA MORA -
OCORRÊNCIA - PRECEDENTES - RECURSO IMPROVIDO. (Rel. Ministro
MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/04/2009, DJe
29/04/2009).”

Não se admite a penhora de bem alienado fiduciariamente em razão de dívida do


devedor fiduciário. A regra é lógica: se o bem não pertence ao devedor, estando na
propriedade resolúvel do credor, não pode honrar dívida de quem não o tem como dono.
Debalde há quem entenda que esta penhora pode ser feita, com a seguinte dinâmica:
se imporá o gravame sujeito à condição suspensiva de que o devedor concentrará em si a
propriedade deste bem, no futuro, quando quitar as parcelas, ou seja: tornando-se
proprietário, a penhora terá efeito.
A respeito, veja o Ag.Rg. no Ag. 568.008:

“AGRG NO AG 568.008/SP. EXECUÇÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.


PENHORA SOBRE O BEM DADO EM GARANTIA. IMPOSSIBILIDADE.
RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DOS
PRECEITOS LEGAIS DITOS VIOLADOS. AUSÊNCIA DE INFRINGÊNCIA

Michell Nunes Midlej Maron 28


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

AO ARTIGO 165/CPC. ACÓRDÃO ALINHADO À JURISPRUDÊNCIA DO


STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (...) 3. Súmula
83/STJ: o acórdão arestado está alinhado à jurisprudência deste STJ segundo a qual
"O bem objeto de alienação fiduciária, que passa a pertencer à esfera patrimonial
do credor fiduciário, não pode ser objeto de penhora no processo de execução,
porquanto o domínio da coisa já não pertence ao executado, mas a um terceiro,
alheio à relação jurídica" (REsp .916782/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe
21/10/2008). 4. Agravo regimental não-provido. (Rel. Ministro LUIS FELIPE
SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2009, DJe 04/05/2009).”

O bem alienado fiduciariamente não pode ser adquirido mediante usucapião, em


regra. Veja o REsp. 844.098:

“RESP 844.098/MG. CIVIL. USUCAPIÃO. VEÍCULO. ALIENAÇÃO


FIDUCIÁRIA. INADIMPLEMENTO. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA.
IMPOSSIBILIDADE. POSSE INJUSTA.
I.- A posse de bem por contrato de alienação fiduciária em garantia não pode levar
a usucapião, seja pelo adquirente, seja por cessionário deste, porque essa posse
remonta ao fiduciante, que é a financiadora, a qual, no ato do financiamento,
adquire a propriedade do bem, cuja posse direta passa ao comprador fiduciário,
conservando a posse indireta (IHERING) e restando essa posse como resolúvel por
todo o tempo, até que o financiamento seja pago.
II.- A posse, nesse caso, é justa enquanto válido o contrato. Ocorrido o
inadimplemento, transforma-se em posse injusta, incapaz de gerar direito a
usucapião. Recurso Especial não conhecido. (REsp 844.098/MG, Rel. Ministra
NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA
TURMA, julgado em 06/11/2008, DJe 06/04/2009).”

A Ministra Nancy Andrighi, vencida neste julgamento, admitiu a usucapião, apenas


em atenção ao artigo 1.261 do CC, não sendo admissível a usucapião ordinária. O Ministro
Humberto Gomes de Barros, porém, entendeu que a posse seria clandestina, inadmissível a
usucapião. Só há posse ad usucapionem se houver interversão – sendo que esta inversão se
conta desde a citação da ré da usucapião, momento em que o possuidor manifesta sua
intenção de propriedade.

“Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá
usucapião, independentemente de título ou boa-fé.”

A despeito do julgado negando a usucapião, vê-se que a posição da Ministra é


bastante razoável.
Casos Concretos

Questão 1

Em ação de busca e apreensão de veículo ajuizada por FINANCEIRA FIQUE


FELIZ S/A., o juiz extinguiu o processo sem resolução do mérito, sob o fundamento de o
autor não ter comprovado a titularidade do bem, por não estar o contrato de alienação
fiduciária devidamente arquivado no órgão competente, conforme o preconizado no art.
1.361, §1º, do CC/02. Inconformado, agrava de instrumento o autor, postulando a reforma
da decisão. Analise o pleito do agravante, indicando os dispositivos legais pertinentes à
questão.

Michell Nunes Midlej Maron 29


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Resposta à Questão 1

De início, vale dizer que o contrato, registrado ou não, é exigível entre as partes: o
registro só se presta a criar oponibilidade contra terceiros, mas não entre as partes, pois o
contrato vincula aqueles que o subscrevem. Mesmo que a propriedade fiduciária se
constitua no registro do pacto, o contrato não registrado ainda existe, e é exigível. Neste
sentido, veja o REsp. 875.634:

“RESP 875.634/PB. PROCESSUAL CIVIL, ADMINISTRATIVO E CIVIL –


VEÍCULO AUTOMOTOR – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – INEXIGIBILIDADE
DE REGISTRO DO CONTRATO NO CARTÓRIO DE TÍTULOS E
DOCUMENTOS – PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE ATIVA AD
CAUSAM, AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DE LITISCONSORTE PASSIVO
NECESSÁRIO E DE NULIDADE NO JULGAMENTO DOS EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO – REJEIÇÃO – VIOLAÇÃO AO ART. 535,II, DO CPC –
EXAME PREJUDICADO – MULTA DO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO
CPC – APLICAÇÃO DEVIDA.
(...)
3. Aplicação do entendimento que prevaleceu na Segunda Turma do Superior
Tribunal de Justiça, no sentido de que a exigência do registro em cartório do
contrato de alienação fiduciária de veículo automotor não é requisito de validade
do negócio jurídico, bastando constar tal alienação no certificado de registro
expedido pelo DETRAN. Exame da questão à luz do art. 66, §§ 1º e 10 da Lei
4.728/65, com a redação do Decreto-lei 911/69; do art. 129, item 5º, da Lei de
Registros Públicos (Lei 6.015/73); e dos arts. 122 e 124 do Código Nacional de
Trânsito (Lei 9.503/97). (Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA,
julgado em 03/02/2009, DJe 04/03/2009).”

Veja também o Agravo de Instrumento 2009.002.26876, do TJ/RJ:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.26876. TJ/RJ. AGRAVO DE


INSTRUMENTO. Ação de busca e apreensão. Registro do pacto de alienação
fiduciária em garantia. Desnecessidade para que gere efeitos entre as partes.
Inexistência do registro que acarreta a ausência de validade do aludido pacto em
relação a terceiro de boa fé. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. DES.
PEDRO SARAIVA ANDRADE LEMOS - Julgamento: 23/07/2009 - DECIMA
CAMARA CIVEL.”

Questão 2

EMPRESTA RÁPIDO S/A., sociedade anônima fechada, celebrou contrato de


alienação fiduciária com PEDRO HENRIQUE para a compra de determinado bem
infungível. O contrato foi devidamente registrado no Cartório de Títulos e Documentos.
Em razão do inadimplemento da obrigação assumida pelo devedor fiduciante, o credor
ajuizou ação de busca e apreensão do bem. O pedido foi extinto sem julgamento do mérito
em razão do Código Civil ter afastado as regras do Dec-Lei nº 911/69, que se aplica
somente aos contratos que tenham por objeto bens fungíveis. Correta a decisão? Resposta
fundamentada.

Michell Nunes Midlej Maron 30


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Resposta à Questão 2

A regra é que bens infungíveis podem ser alienados fiduciariamente, havendo


discussão sobre a possibilidade deste contrato recair sobre bens fungíveis. A Lei de
Mercado de Capitais admite quanto a bens fungíveis, mas não de bens consumíveis.
Dito isto, se a credora da questão não for instituição financeira, sendo regida pelo
CC, somente sobre bens infungíveis poderia recair o contrato. Se for instituição financeira,
a lei regente, Lei 4.728/65, permite alienação fiduciária de bens fungíveis.
O regramento processual do DL 911/69 só se aplica às alienações feitas nos moldes
da Lei 4.728/65, ou seja, não há a ação de busca e apreensão ali prevista para as hipóteses
regidas pelo CC. Poderá, sim, haver ação de reintegração de posse, mas não nos moldes do
DL 911/69.
Vale dizer que nas alienações fiduciárias regidas pela Lei 4.728/65, além da busca e
apreensão, cabe também a execução do contrato, como de qualquer contrato. Nas regidas
pelo CC, cabe reintegração de posse, ou também a execução do contrato – assim como na
de bens imóveis.
Em suma, a decisão judicial está correta, partindo-se da premissa que a credora não
é uma instituição financeira, pois de fato o CC não permite a busca e apreensão. Sendo a
credora instituição financeira, mesmo sendo o bem infungível, se aplica o DL 911/65.

Questão 3

Marcelo Penido ofereceu exceção de pré-executividade, sustentando que o


instrumento particular de constituição de alienação fiduciária em garantia onde figura
como devedor foi firmado por pessoa não integrante do sistema financeiro nacional e não
deve ser aceito para fins de reconhecimento como título extrajudicial. O
exequente/fiduciário é sociedade empresária do ramo do vestuário. A exceção foi
desacolhida pelo magistrado, sob o fundamento de que não se constitui privilégio das
instituições financeiras e dos consórcios de automóveis o instituto da alienação fiduciária
em garantia, eis que a lei que introduziu o instituto no direito pátrio não contempla tal
exigência. O instituto pode e deve estar à disposição dos particulares, sempre que atenda a
seus interesses. Correta a decisão? Fundamente.

Resposta à Questão 3

O argumento de que o instituto deve estar sempre disponível serve para a espécie de
alienação fiduciária regida pelo CC, e para a de bens imóveis, eis que qualquer pessoa
jurídica pode ali figurar como credora fiduciária. Porém, sendo da modalidade regida pela
Lei de Mercado de Capitais, Lei 4.728/65, o artigo 66-B determina que o credor fiduciário
precisa ser pessoa jurídica e fiscalizada pelo Bacen (instituições financeiras), ou consórcios
de automóveis, como entende o STF.
A respeito, veja o RE 111.219:

Michell Nunes Midlej Maron 31


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“RE 111219 / RJ - RIO DE JANEIRO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.


Relator(a): Min. ALDIR PASSARINHO. Julgamento: 10/12/1987. Órgão
Julgador: SEGUNDA TURMA. Publicação: DJ 18-03-1988.
Ementa: ALIENAÇÃO FIDUCIARIA EM GARANTIA. FIRMOU-SE A
JURISPRUDÊNCIA DO S.T.F. NO SENTIDO DE QUE SOMENTE AS
INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS E OS CONSORCIOS AUTORIZADOS DE
AUTOMOVEIS E QUE PODEM UTILIZAR-SE DO INSTITUTO DA
ALIENAÇÃO FIDUCIARIA EM GARANTIA. ADMITE A DOUTRINA QUE
AS ENTIDADES ESTATAIS OU PARA-ESTATAIS SÃO IGUALMENTE
LEGITIMADAS PARA RECEBER TAL TIPO DE GARANTIA, COMO
RESULTA DO ART. 5. DO DECRETO-LEI N. 911-69. RECURSO CONHECIDO
E PROVIDO.”

Tema IV

INSCRIÇÃO. Inadimplemento. Constituição em mora do fiduciante. Ação processual adequada. Alienação


fiduciária de imóveis.

Notas de Aula5

1. Alienação fiduciária

1.1. Alienação fiduciária e falência do devedor


5
Aula ministrada pelo professor Juan Luiz Souza Vazquez, em 2/12/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 32


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Falido o devedor alienante, como o contrato de alienação fiduciária é bilateral, a


primeira providência do administrador judicial é decidir se dará continuidade ao pacto ou
não, na forma do artigo 117 da Lei 11.101/05:

“Art. 117. Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser
cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o
aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação
de seus ativos, mediante autorização do Comitê.
§ 1° O contratante pode interpelar o administrador judicial, no prazo de até 90
(noventa) dias, contado da assinatura do termo de sua nomeação, para que, dentro
de 10 (dez) dias, declare se cumpre ou não o contrato.
§ 2° A declaração negativa ou o silêncio do administrador judicial confere ao
contraente o direito à indenização, cujo valor, apurado em processo ordinário,
constituirá crédito quirografário.”

Se não for dado cumprimento ao contrato, cabe a restituição do bem. Se o bem não
for restituído, por não ter sido encontrado, cabe a restituição do equivalente em dinheiro,
mas há quem defenda que somente caberá ao credor fiduciário habilitar-se como credor
quirografário.

1.2. Mora do devedor alienante

Há algumas súmulas sobre o tema que são bastante relevantes:

“Súmula 72, STJ: A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do


bem alienado fiduciariamente.”

“Súmula 245, STJ: A notificação destinada a comprovar a mora nas dívidas


garantidas por alienação fiduciária dispensa a indicação do valor do débito.”

“Súmula 55, TJ/RJ: AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO


ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA COMPROVAÇÃO DE MORA: ‘Na ação de busca e
apreensão, fundada em alienação fiduciária, basta a carta dirigida ao devedor com
aviso de recebimento entregue no endereço constante do contrato, para comprovar
a mora, e justificar a concessão de liminar.’”

O entendimento que prevalece, quanto à comprovação da mora, é que a notificação


é realizada para fins de obtenção de liminar. Não significa que a mora seja ex personae: ela
continua sendo ex re, mas a notificação se faz imperiosa para que possa ser concedida a
liminar da buscas e apreensão.
A notificação deve ser entregue no endereço do devedor, constante do contrato. Se
ele mudou sua residência, e não noticiou o credor, o prejuízo pela falta do recebimento da
comunicação será seu, imputado à sua desídia na informação.
A atuação do cartório, o limite geográfico da atuação do cartório, nesta notificação,
é tema polêmico na jurisprudência: pode um cartório de outro Estado da federação, diverso
daquele em que se encontra o devedor, realizar a notificação para caracterização da mora?
A resposta é negativa, para a maior corrente, porque os limites de atuação do cartório são
restritos à sua circunscrição – trata-se do princípio da territorialidade cartorária.

Michell Nunes Midlej Maron 33


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Mas veja que, por razoabilidade, mesmo que o cartório esteja enviando notificação
para fora de sua área de abrangência, se o ofício se situar no mesmo Estado, em Município
próximo, será válida a notificação. A respeito, veja os Agravos de Instrumento
2009.002.21020 e 2009.002.20578, do TJ/RJ:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.21020. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.


BUSCA E APREENSÃO. LIMINAR. REQUISITO. MORA. PROVA.
NOTIFICAÇÃO. CARTÓRIO. TERRITORIALIDADE. 1 - O ordenamento
positivo, ao regular especificamente a matéria, subordina o deferimento da liminar
à prova da mora por meio de notificação do devedor por Cartório de Títulos e
Documentos ou pelo protesto do título. 2 A notificação pessoal ou o protesto do
título são necessários apenas para a comprovação da mora e não para sua
constituição que resulta do termo final para o pagamento da prestação. 3- Nesse
aspecto, o ordenamento jurídico adota o princípio da territorialidade e só outorga
ao Cartório de Títulos e Documentos o poder de praticar atos na área geográfica da
respectiva delegação. 4- Nesse âmbito, a notificação realizada por cartório do
mesmo Estado e cidade próxima alcança a finalidade da norma que a instituiu e o
ato apresenta-se válido e eficaz e autoriza o deferimento da liminar. DES.
MILTON FERNANDES DE SOUZA - Julgamento: 03/06/2009 - QUINTA
CAMARA CIVEL.”

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.20578. Busca e apreensão. Alienação


fiduciária. Art. 3º, §§ 1º e 2º do Decreto-Lei 911/69. Lei nº 10.931/04. Mora ex re.
Notificação extrajudicial. Efeitos. Tabelião de Notas. Jurisdição. Purga de mora.
Possibilidade. (...) A notificação extrajudicial constitui, in casu, ato notarial em
que se encontra limitada a ação do tabelião de notas. Inteligência do art. 9º da Lei
nº 8.935/94. O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do
Município para o qual recebeu delegação. Lado outro, o pagamento da
integralidade da dívida pendente, previsto na nova redação do § 2º do artigo 3º, do
Decreto-Lei nº 911/69, não necessariamente induz que o débito integral
correspondente às parcelas também vincendas, ainda que válida a cláusula de
vencimento antecipado do contrato, nem exclui a possibilidade de purga da mora
(artigo 401, I, do Código Civil), não se podendo descuidar das normas do Código
de Defesa do Consumidor aos contratos de adesão (artigo 54, § 2º), optando o
devedor pelo pagamento do débito vencido. Precedentes dos STJ e TJERJ. Ante a
especificidade do caso em concreto, a decisão deve ser mantida.Recurso a que se
nega seguimento. DES. MARIO ASSIS GONCALVES - Julgamento: 04/06/2009 -
TERCEIRA CAMARA CIVEL.”

Em sentido contrário, veja a Apelação Cível 2009.001.30036, também do TJ/RJ:

“APELAÇÃO 2009.001.30036. APELAÇÃO CÍVEL. BUSCA E APREENSÃO.


ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. NOTIFICAÇÃO REALIZADA POR CARTÓRIO
SITUADO EM COMARCA DIVERSA DA DO DOMICÍLIO DO DEVEDOR.
POSSIBILIDADE. A Lei nº. 8.935/94 não impõe limite geográfico aos oficiais de
registro de títulos e documentos. Purga da mora que deve abranger a integralidade
do débito, com a inclusão das parcelas vincendas além das vencidas. Inteligência
do § 2º do art. 3º do DL 911/69. Apelação a que se nega seguimento. DES.
FERNANDO FERNANDY FERNANDES - Julgamento: 08/06/2009 - DECIMA
TERCEIRA CAMARA CIVEL.”

Repare que, para esta corrente, a restrição seria apenas para o cartório de notas, não
alcançando o RTD para notificações. Veja outro julgado do TJ/RJ, entendendo também que
o RTD não sofre limitações pela territorialidade:

Michell Nunes Midlej Maron 34


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.16512. Agravo de instrumento.


Decisão que indeferiu a liminar de reintegração de posse em contrato de
arrendamento mercantil. Inaplicabilidade do princípio da territorialidade estrita ao
ato de notificação. Exegese dos artigos 9º e 12 da Lei 8.935/94 e artigos 130 e 160
da Lei 6.015/73. Registro realizado sem qualquer pretensão de conferir eficácia
constitutiva ao negócio jurídico celebrado, de natureza eminentemente
obrigacional. (...) Recurso provido. DES. CELSO PERES - Julgamento:
27/05/2009 - DECIMA CAMARA CIVEL. Data de Julgamento: 27/05/2009.”

É possível a purgação da mora nos contratos de alienação fiduciária? A resposta


dependerá da espécie de alienação fiduciária em questão. Na alienação fiduciária de bens
imóveis, a purga da mora é expressamente prevista, no artigo 26, § 1°, da Lei 9.514/97:

“Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora
o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em
nome do fiduciário.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal
ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do
fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo
de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento,
os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os
encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao
imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.
(...)”

Na alienação regida pela Lei do Mercado de Capitais, atendente ao Decreto-


Lei 911/69, há divergência. A Lei 10.931/04 promoveu alterações neste Decreto-Lei,
permitindo duas interpretações ao artigo 3º, § 2º deste DL, in verbis:

“Art 3º O Proprietário Fiduciário ou credor, poderá requerer contra o devedor ou


terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciàriamente, a qual será
concedida liminarmente, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento do
devedor.
(...)
§ 2° No prazo do § 1°, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida
pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial,
hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação dada pela Lei
10.931, de 2004).
(...)”
A primeira leitura, mais coerente, diz que é possível a purgação da mora, em prazo
de cinco dias. Porém, há uma segunda corrente, que defende descabida a purga da mora,
hoje, após a alteração vinda da Lei 10.931/04, porque o que se constata ali é um
vencimento antecipado da dívida, e não a abertura para purgação da mora.
Assim, para esta segunda corrente, para ficar com o bem o devedor deverá pagar
integralmente a dívida. Para a primeira corrente, mais sensata, o devedor deve pagar apenas
as parcelas vencidas, purgando a mora e mantendo o bem.
A jurisprudência se divide, mas a corrente que defende a purga da mora, com o
pagamento apenas das parcelas vencidas, é majoritária representando a controvérsia, veja o
Agravo de Instrumento 2007.002.35202, do TJ/RJ, em que se entendeu, de forma menos
técnica, que o pagamento integral das parcelas vencidas e vincendas é a única forma de

Michell Nunes Midlej Maron 35


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

purgar a mora – mesmo sabendo-se que se se entender que devem ser pagas as parcelas
vincendas, o que há é vencimento antecipado, e não purga da mora.

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2007.002.35202 – 16ª CÂMARA CÍVEL


(PAGAMENTO INTEGRAL DA DÍVIDA). Agravo de instrumento. Alienação
fiduciária. Decisão que determinou o pagamento de todas as parcelas vencidas e
vincendas, sob pena de não reconhecer a purgação da mora. Em caso de alienação
fiduciária, a mora ou o inadimplemento contratual geram o vencimento de pleno
direito das obrigações assumidas (art. 2º, §3º, do Decreto-Lei nº 911/69). Assim, a
única forma de purgar a mora é mediante o depósito do valor integral do débito.
Daí porque o §2º do art. 3º do Decreto-Lei 911/69, com a redação que lhe deu a Lei
nº 10.931/04, determina o pagamento da integralidade da dívida, e não do valor
vencido. O art. 401, I, do Código Civil é inaplicável ao caso, em razão da
existência de lei especial (Decreto-Lei nº 911/69) regulando a forma de purgação
da mora na alienação fiduciária.(...)DES. AGOSTINHO TEIXEIRA DE
ALMEIDA FILHO - Julgamento: 15/08/2008 - DECIMA SEXTA CAMARA
CIVEL.”

A melhor orientação aparece no Agravo de Instrumento 2009.002.19081, do TJ/RJ,


em que se entendeu que a purgação da mora se dá apenas com a quitação das parcelas
vencida, e não das vincendas:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2009.002.19081. AGRAVO INOMINADO.


ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. POSSIBILIDADE DE PURGA DA MORA,
MESMO APÓS O ADVENTO DA LEI 10.931/04. EXEGESE DO ARTIGO 3º, §
2º DO DEC. LEI 911/69. - A interpretação do artigo 3º do Dec. Lei nº 911/69, seja
na redação original ou na que lhe deu a lei nº 10.931/2004, é a de que a purga da
mora pode ser feita pelo valor do débito vencido e não pela integralidade do
ajustado. Diversos são os precedentes neste TJRJ. DECISÃO MANTIDA.
RECURSO DESPROVIDO. DES. VERA MARIA SOARES VAN HOMBEECK -
Julgamento: 02/06/2009 - PRIMEIRA CAMARA CIVEL.”

Veja outros julgados do TJ/RJ, também neste sentido:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2008.002.00545 – 18ª CÂMARA CÍVEL.


AGRAVO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO.
ALIENACAO FIDUCIARIA PURGAÇÃO DA MORA POSSIBILIDADE
PRESTAÇÕES VINCENDAS EXCLUSÃO. A nova redação do § 2º do art. 3º do
decreto-lei 911/69, através da lei 10.931/2004, não extinguiu o direito de o devedor
purgar a mora. A expressão dívida pendente se relaciona ao débito vencido, não
abrangendo as parcelas vincendas. Entendimento contrário, além de autorizar a
espoliação do consumidor, levaria ao absurdo, penalizando a parte fraca do
relacionamento, sepultando longínquo posicionamento interpretativo encartado no
sistema jurídico, e hoje amparado pelo código de defesa do consumidor.
Provimento do recurso. DES. JORGE LUIZ HABIB - Julgamento: 10/06/2008.”

“AGRAVO DE INSTRUMENTO 2007.002.34397 – 06ª CÂMARA CÍVEL.


Direito Processual Civil. Art. 557 da Lei Processual. Recurso manifestamente
improcedente, ou seja, que evidentemente não terá sucesso.Agravo de instrumento.
Alienação Fiduciária. Busca e apreensão. Decisão que deferiu a purga da mora.
Inobstante a nova redação do artigo 3º, §2º do Decreto-Lei 911/69, não restou
vedada a possibilidade do devedor efetuar o pagamento das prestações vencidas
nos contratos de alienação fiduciária, pois da expressão poderá pagar ressai tal
possibilidade. Apesar de a dívida ser considerada una, o direito positivo consagrou

Michell Nunes Midlej Maron 36


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

a purgação mediante pagamento das parcelas vencidas em atenção à função


econômica e social do contrato de crédito e de venda com pagamento parcelado,
sobretudo os que envolvam situações de maior densidade social. Desprovimento
do recurso. DES. NAGIB SLAIBI - Julgamento: 13/02/2008.”

“APELAÇÃO CÍVEL 2008.001.13733 – 17ª CÂMARA CÍVEL. PROCESSO


CIVIL. BUSCA E APREENSÃO. CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.
PURGA DA MORA. Ação de busca e apreensão em que a devedora exerceu de
forma regular o direito de purga da mora. O devedor tem o direito de purgar a mora
pelo valor das prestações vencidas, mas deve fazê-lo no prazo fixado na lei, como
ocorreu na hipótese. O depósito judicial sem incluir custas judiciais e honorários
de advogado não descaracteriza a purgação da mora porque inexiste condenação
judicial destas verbas, cuja eventual cobrança deve ser feita na fase de
cumprimento de sentença. Recurso desprovido. DES. HENRIQUE DE ANDRADE
FIGUEIRA - Julgamento: 16/04/2008.”

Neste último julgado, vê-se outra peculiaridade: a purga da mora se dá mesmo se o


devedor não depositar custas judiciais e honorários advocatícios, pois são verbas
desconexas da dívida, a serem pagas apenas em eventual condenação, no cumprimento da
sentença.
Vale mencionar, aqui, a súmula 284 do STJ, que trazia limitador percentual para ser
possível a purgação da mora:

“Súmula 284, STJ: A purga da mora, nos contratos de alienação fiduciária, só é


permitida quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do valor
financiado.”

Com a mudança proveniente da Lei 10.931/04, este percentual, realmente arbitrário,


e que já era criticado, não mais subsiste.
Na alienação fiduciária regida pelo CC, também é cabível, indiscutivelmente, a
purga da mora, ao argumento de que esta é a regra geral dos contratos regidos pelo CC, em
prol da função social do contrato e da conservação do negócio jurídico.

1.3. Aspectos procedimentais do Decreto-Lei 911/69

As medidas processuais do DL 911/69 só são aplicáveis aos contratos de alienação


fiduciária regidos pela Lei 4.728/65, do Mercado de Capitais, não sendo aplicáveis às
alienações fiduciárias regidas pelo CC. Portanto, apenas as instituições financeiras e o fisco
poderão se valer destas medidas. Veja o artigo 8º-A do DL:

“Art. 8°-A. O procedimento judicial disposto neste Decreto-Lei aplica-se


exclusivamente às hipóteses da Seção XIV da Lei no 4.728, de 14 de julho de
1965, ou quando o ônus da propriedade fiduciária tiver sido constituído para fins
de garantia de débito fiscal ou previdenciário.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004).”

Segundo Irineu Mariani, para o regime do CC seria possível a ação de depósito ou a


reintegração de posse, mas não as medidas processuais do DL – especialmente a busca e
apreensão. No DL 911/69, são atribuídas as seguintes medidas ao credor: a busca e
apreensão e a execução do contrato. Uma via exclui a outra. Veja o artigo 5° do DL:

Michell Nunes Midlej Maron 37


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“Art 5º Se o credor preferir recorrer à ação executiva ou, se fôr o caso ao executivo
fiscal, serão penhorados, a critério do autor da ação, bens do devedor quantos
bastem para assegurar a execução.
Parágrafo único. Não se aplica à alienação fiduciária o disposto nos incisos VI e
VIII do Art. 649 do Código de Processo Civil. (Redação dada pela Lei nº 6.071, de
1974).”

Para a alienação fiduciária de imóveis, a medida cabível é a reintegração de posse,


ou também a execução do contrato..
A busca e apreensão, quando infrutífera, pode ser convertida em ação de depósito, a
fim de que o credor possa satisfazer-se em equivalente pecuniário ao bem não encontrado.
A prisão civil do devedor, como se sabe, não é mais uma medida admitida pelo
ordenamento. Pelo ensejo, veja O Ag.Rg. no Ag. 655.725

“AgRg no Ag 655.725/RS. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.


AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA A DECISÃO QUE INADMITIU
RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE DEPÓSITO.
PRISÃO CIVIL. DESCABIMENTO. PRECEDENTES DO STJ E
ENTENDIMENTO DO STF. 1. A Corte Especial deste Superior Tribunal de
Justiça proclamou o entendimento de ser incabível a prisão civil do devedor de
contrato com alienação fiduciária em garantia, conforme precedente no AgRg nos
EREsp 784.627, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, julgado em 16/08/2006. 2. No
julgamento do RE 466.343/SP, o STF adotou o entendimento de que os Tratados e
Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos, aos quais o Brasil aderiu, têm
status de norma supralegal, tais como o Pacto de São José da Costa Rica, cuja
autorização à prisão civil por dívida se limitara à hipótese de descumprimento
inescusável de prestação alimentícia, desautorizando a prisão do depositário infiel.
Agravo regimental improvido (Rel. Ministro PAULO FURTADO
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/BA), TERCEIRA TURMA,
julgado em 28/04/2009, DJe 12/05/2009).

1.4. Inscrição do devedor nos cadastros restritivos de crédito

De acordo com o STJ, são necessários três requisitos para que o devedor fiduciário
inadimplente, regularmente inscrito nos cadastros desabonadores do crédito, tenha seus
dados retirados de tais cadastros: deve ajuizar a ação respectiva, hábil a discutir a dívida
integral ou parcialmente; deve demonstrar que há verossimilhança em sua alegação,
coadunando-se, qualquer que seja a sua tese, com a jurisprudência dominante nas Cortes
Superiores; e deve haver o depósito de parte incontroversa, se houver, ou a prestação de
contracautela exigida pelo magistrado. A respeito, veja o REsp. 527.618:

“RESP 527.618/RS. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO


REVISIONAL. CONTRATO DE FINANCIAMENTO COM ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA. INSCRIÇÃO DO NOME DO DEVEDOR NOS CADASTROS DE
PROTEÇÃO AO CRÉDITO. POSSIBILIDADE. FALTA DE REALIZAÇÃO DO
DEPÓSITO DETERMINADO PELO MAGISTRADO.
1.- Para que seja deferido o pedido de cancelamento ou de abstenção da inscrição
do nome do contratante nos cadastros de proteção ao crédito, é indispensável que
este demonstre a existência de prova inequívoca do seu direito, com a presença
concomitante de três elementos: a) ação proposta por ele contestando a existência
integral ou parcial do débito; b) demonstração efetiva da cobrança indevida,
amparada em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal ou do

Michell Nunes Midlej Maron 38


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Superior Tribunal de Justiça; c) sendo parcial a contestação, que haja o depósito da


parte incontroversa ou a prestação de caução idônea, a critério do magistrado
(REsp 527.618/RS, Rel. Min. CÉSAR ASFOR ROCHA, DJ 24.11.03). Agravo
regimental provido. (Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 07/10/2008, DJe 17/12/2008).”

Há um julgado, o REsp. 1.061.530, extremamente esclarecedor sobre o tema, e


sobre outros tantos de alta relevância jurídica, trazendo na orientação de número “4” de sua
ementa uma boa explanação. Veja:

“REsp 1061530 / RS. DJe 10/03/2009. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E


BANCÁRIO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL DE CLÁUSULAS
DE CONTRATO BANCÁRIO. INCIDENTE DE PROCESSO REPETITIVO.
JUROS REMUNERATÓRIOS. CONFIGURAÇÃO DA MORA. JUROS
MORATÓRIOS. INSCRIÇÃO/MANUTENÇÃO EM CADASTRO DE
INADIMPLENTES. DISPOSIÇÕES DE OFÍCIO. DELIMITAÇÃO DO
JULGAMENTO
Constatada a multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de
direito, foi instaurado o incidente de processo repetitivo referente aos contratos
bancários subordinados ao Código de Defesa do Consumidor, nos termos da ADI
n.º 2.591-1. Exceto: cédulas de crédito rural, industrial, bancária e comercial;
contratos celebrados por cooperativas de crédito; contratos regidos pelo Sistema
Financeiro de Habitação, bem como os de crédito consignado.
Para os efeitos do § 7º do art. 543-C do CPC, a questão de direito idêntica, além de
estar selecionada na decisão que instaurou o incidente de processo repetitivo, deve
ter sido expressamente debatida no acórdão recorrido e nas razões do recurso
especial, preenchendo todos os requisitos de admissibilidade.
Neste julgamento, os requisitos específicos do incidente foram verificados quanto
às seguintes questões: i) juros remuneratórios; ii) configuração da mora; iii) juros
moratórios; iv) inscrição/manutenção em cadastro de inadimplentes e v)
disposições de ofício.
PRELIMINAR
O Parecer do MPF opinou pela suspensão do recurso até o julgamento definitivo
da ADI 2.316/DF. Preliminar rejeitada ante a presunção de constitucionalidade do
art. 5º da MP n.º 1.963-17/00, reeditada sob o n.º 2.170-36/01.
I - JULGAMENTO DAS QUESTÕES IDÊNTICAS QUE CARACTERIZAM A
MULTIPLICIDADE.
ORIENTAÇÃO 1 - JUROS REMUNERATÓRIOS
a) As instituições financeiras não se sujeitam à limitação dos juros remuneratórios
estipulada na Lei de Usura (Decreto 22.626/33), súmula 596/STF;
b) A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não
indica abusividade;
c) São inaplicáveis aos juros remuneratórios dos contratos de mútuo bancário as
disposições do art. 591 c/c o art. 406 do CC/02;
d) É admitida a revisão das taxas de juros remuneratórios em situações
excepcionais, desde que caracterizada a relação de consumo e que a abusividade
(capaz de colocar o consumidor em desvantagem exagerada – art. 51, §1º, do
CDC) fique cabalmente demonstrada, ante às peculiaridades do julgamento em
concreto.
ORIENTAÇÃO 2 - CONFIGURAÇÃO DA MORA
a) O reconhecimento da abusividade nos encargos exigidos no período da
normalidade contratual (juros remuneratórios e capitalização) descarateriza a mora;
b) Não descaracteriza a mora o ajuizamento isolado de ação revisional, nem
mesmo quando o reconhecimento de abusividade incidir sobre os encargos
inerentes ao período de inadimplência contratual.

Michell Nunes Midlej Maron 39


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

ORIENTAÇÃO 3 - JUROS MORATÓRIOS


Nos contratos bancários, não-regidos por legislação específica, os juros moratórios
poderão ser convencionados até o limite de 1% ao mês.
ORIENTAÇÃO 4 - INSCRIÇÃO/MANUTENÇÃO EM CADASTRO DE
INADIMPLENTES
a) A abstenção da inscrição/manutenção em cadastro de inadimplentes, requerida
em antecipação de tutela e/ou medida cautelar, somente será deferida se,
cumulativamente: i) a ação for fundada em questionamento integral ou parcial do
débito; ii) houver demonstração de que a cobrança indevida se funda na aparência
do bom direito e em jurisprudência consolidada do STF ou STJ; iii) houver
depósito da parcela incontroversa ou for prestada a caução fixada conforme o
prudente arbítrio do juiz;
b) A inscrição/manutenção do nome do devedor em cadastro de inadimplentes
decidida na sentença ou no acórdão observará o que for decidido no mérito do
processo. Caracterizada a mora, correta a inscrição/manutenção.
ORIENTAÇÃO 5 - DISPOSIÇÕES DE OFÍCIO
É vedado aos juízes de primeiro e segundo graus de jurisdição julgar, com
fundamento no art. 51 do CDC, sem pedido expresso, a abusividade de cláusulas
nos contratos bancários. Vencidos quanto a esta matéria a Min. Relatora e o Min.
Luis Felipe Salomão.
II- JULGAMENTO DO RECURSO REPRESENTATIVO (REsp 1.061.530/RS)
A menção a artigo de lei, sem a demonstração das razões de inconformidade,
impõe o não-conhecimento do recurso especial, em razão da sua deficiente
fundamentação. Incidência da Súmula 284/STF.
O recurso especial não constitui via adequada para o exame de temas
constitucionais, sob pena de usurpação da competência do STF.
Devem ser decotadas as disposições de ofício realizadas pelo acórdão recorrido.
Os juros remuneratórios contratados encontram-se no limite que esta Corte tem
considerado razoável e, sob a ótica do Direito do Consumidor, não merecem ser
revistos, porquanto não demonstrada a onerosidade excessiva na hipótese.
Verificada a cobrança de encargo abusivo no período da normalidade contratual,
resta descaracterizada a mora do devedor.
Afastada a mora: i) é ilegal o envio de dados do consumidor para quaisquer
cadastros de inadimplência; ii) deve o consumidor permanecer na posse do bem
alienado fiduciariamente e iii) não se admite o protesto do título representativo da
dívida.
Não há qualquer vedação legal à efetivação de depósitos parciais, segundo o que a
parte entende devido.
Não se conhece do recurso quanto à comissão de permanência, pois deficiente o
fundamento no tocante à alínea "a" do permissivo constitucional e também pelo
fato de o dissídio jurisprudencial não ter sido comprovado, mediante a realização
do cotejo entre os julgados tidos como divergentes. Vencidos quanto ao
conhecimento do recurso a Min. Relatora e o Min. Carlos Fernando Mathias.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido, para declarar a
legalidade da cobrança dos juros remuneratórios, como pactuados, e ainda decotar
do julgamento as disposições de ofício.
Ônus sucumbenciais redistribuídos.”

Foi em atenção a esta decisão magistral, especialmente no que tange à orientação


“4” ali exposta, que a súmula 380 do STJ veio à luz:

“Súmula 380, STJ: A simples propositura da ação de revisão de contrato não inibe
a caracterização da mora do autor.”

Michell Nunes Midlej Maron 40


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Vale dizer que nos juizados especiais cíveis, majoritariamente, tem sido dispensada
qualquer caução, se percebida verossimilhança, para concessão da liminar em prol do
devedor.

1.5. Saldo remanescente

Tendo o credor fiduciário optado pela busca e apreensão, quando cabível, se esta
obtiver sucesso, mas o bem não for suficiente para adimplir toda a obrigação, a cobrança de
saldo remanescente não pode ser feita pela via executiva. Veja o REsp. 265.256:

“REsp 265256 / SP. DJe 26/02/2009. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.


ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. VENDA EXTRAJUDICIAL.
EXECUÇÃO DO SALDO REMANESCENTE. IMPOSSIBILIDADE.
AUSÊNCIA DE TÍTULO CERTO E LÍQUIDO. PRECEDENTES DA QUARTA
TURMA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.
1. Não se conhece da sugerida ofensa ao art. 585, III, do CPC, porquanto o
mencionado dispositivo não foi prequestionado nas instâncias de origem, fato que
atrai a incidência da Súmula n. 282/STF.
2. O § 5º, do art. 66, da Lei n. 4.728/65, com redação dada pelo art. 1º do DL n.
911/69, proclama que "o devedor continuará pessoalmente obrigado a pagar o
saldo devedor apurado" com a venda extrajudicial do bem alienado
fiduciariamente. Não se pode concluir, contudo, que a norma empresta eficácia
executiva ao contrato celebrado anteriormente, com vistas ao recebimento do saldo
remanescente.
3. O credor pode alienar o bem apreendido como melhor lhe convier, uma vez que
lhe é dado vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública,
avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, circunstância
que evidencia a incerteza do saldo remanescente, uma vez que apurado à revelia do
devedor.
4. A aplicação do art. 5º do DL 911/69, por outro lado, não tem o alcance
pretendido pelo recorrente. Isso porque não se está a dizer que após a venda
extrajudicial poderá preferir o credor a via executiva para o recebimento do saldo
devedor remanescente. Ao reverso, e por óbvio, tal dispositivo apenas concede ao
credor a faculdade de optar pela via executiva ou pela busca e apreensão. Porém,
optando o credor por essa última diretriz - busca e apreensão e posterior venda
extrajudicial -, ser-lhe-á vedada a via executiva, por inexistência de título que a
aparelhe.
5. Por tais fundamentos, não se há reconhecer certeza e liquidez ao saldo
remanescente apurado com a venda extrajudicial do bem, porquanto realizada ao
sabor e conveniência exclusiva do credor, ao largo do crivo do Poder Judiciário e
sem o consentimento do consumidor, que é, sem dúvida, a parte mais frágil da
relação jurídica em exame.
6. Recurso especial não conhecido.”

Por isso, a jurisprudência é tranqüila em afirmar que a cobrança do saldo


remanescente pode ser realizada em ação de cobrança, ou por via da ação monitória. Veja a
súmula 384 do STJ:

“Súmula 384, STJ: Cabe ação monitória para haver saldo remanescente oriundo de
venda extrajudicial de bem alienado fiduciariamente em garantia.”

Michell Nunes Midlej Maron 41


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O descabimento da execução direta do saldo remanescente se deve à alheação da


venda do bem do Judiciário, e sem a participação do devedor, o que leva a uma iliquidez do
valor apurado em seara extrajudicial, tornando não exequível o suposto valor faltante.
Contrário senso, se a venda for feita em sede judicial, e com participação do devedor, esta
lógica se inverteria, podendo-se pensar em execução direta do saldo remanescente – mas
não há precedente neste sentido, ainda.

1.6. Cobrança de encargos abusivos e improcedência do pedido de busca e apreensão

Havendo constatação de que há cobrança de encargos indevidos por parte do credor


fiduciário, o devedor pode alegar esta matéria em contestação da busca e apreensão,
levando à improcedência do pedido nesta ação.
O Ag.Rg. no REsp. 974.768 parametriza o que se entende por encargo indevido em
relação à comissão de permanência:

“AgRg no REsp 974768 / RS. DJe 22/09/2008. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL.


AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL E
AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO CONEXA. CONTRATO DE ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. COBRANÇA CUMULATIVA
COM JUROS REMUNERATÓRIOS E CORREÇÃO MONETÁRIA.
IMPOSSIBILIDADE. MORA DEBENDI. DESCARACTERIZAÇÃO.
COBRANÇA DE ENCARGOS ABUSIVOS NO PERÍODO DA
NORMALIDADE. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. IMPROCEDÊNCIA.
1. É lícita a cobrança de comissão de permanência após o vencimento da dívida,
devendo a mesma observar a taxa média dos juros de mercado, apurada pelo Banco
Central do Brasil, limitada à taxa de juros contratada para o período da
normalidade.
2. Não pode a comissão de permanência ser cumulada com a correção monetária
nem com os juros remuneratórios, nos termos das Súmulas 30, 294 e 296 do STJ.
De igual modo, a cobrança da comissão de permanência não pode coligir com os
encargos decorrentes da mora, como os juros moratórios e a multa contratual
(Precedente: AgRg no REsp n° 712.801/RS, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito).
3. A cobrança de encargos abusivos no período da normalidade enseja a
descaracterização da mora debendi, impondo, na hipótese vertente a improcedência
da ação de busca e apreensão.
4. Agravo regimental desprovido.”

Acerca da comissão de permanência, então, vê-se que ela não pode ser cumulada
com nada, na prática. Mas o STJ tem entendido que quando a comissão de permanência for
o único encargo cobrado de forma abusiva, não haverá improcedência da busca e
apreensão. Veja o EREsp. 860.460:

“ERESP 860.460/RS. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. CONTRATO DE


ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. DESCARACTERIZAÇÃO DA MORA.
ENCARGO ABUSIVO. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. "PERÍODO DE
ANORMALIDADE". BUSCA E APREENSÃO. DEVIDA.
1 - No caso em tela, o único encargo considerado abusivo foi a comissão de
permanência, que não incide no chamado "período de normalidade", motivo pelo
qual encontra-se o devedor em mora, sendo, portanto, devida a busca e apreensão
do bem objeto do contrato de alienação fiduciária. Precedente julgado nos termos
do artigo 543-C do CPC (Resp 1.061.530/RS).

Michell Nunes Midlej Maron 42


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2 - Embargos de divergência acolhidos. (Rel. Ministro FERNANDO


GONÇALVES, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/04/2009, DJe 22/05/2009).”

O que o STJ tem entendido como causa à improcedência da busca e apreensão, por
encargos indevidos, é referente aos encargos indevidos cobrados antes da ocorrência da
mora – porque tais abusos é que, em tese, contribuíram para a própria existência da mora.
Como a comissão de permanência é um encargo que, devida ou indevidamente cobrado, só
tem lugar após o surgimento da mora, não há que se falar em improcedência da busca e
apreensão, portanto.
Sobre a configuração da mora, aquele REsp. 1.061.530, há pouco transcrito, oferece
boa explanação, na orientação “2”, à qual se remete.
Quanto ao anatocismo, capitalização de juros, o STJ entende cabível, se previsto no
contrato e se posterior à MP 2.170/01, como se vê no Ag.Rg. no REsp. 992.272:

“AgRg no REsp 992272 / RS. DJe 15/09/2008. AGRAVO REGIMENTAL NO


RECURSO ESPECIAL - AÇÃO REVISIONAL – CONTRATO DE ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA - JULGAMENTO EXTRA PETITA - INEXISTÊNCIA -
REFORMATIO IN PEJUS. AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO - NULIDADE
DE CLÁUSULAS ABUSIVAS - DECLARAÇÃO DE OFÍCIO -
IMPOSSIBILIDADE - LIMITAÇÃO DOS JUROS REMUNERATÓRIOS -
INADMISSIBILIDADE NA ESPÉCIE - CAPITALIZAÇÃO MENSAL DOS
JUROS - AUSÊNCIA DE PACTUAÇÃO - COBRANÇA -
INADMISSIBILIDADE - INCIDÊNCIA DOS ENUNCIADOS 5 E 7/STJ –
COMISSÃO DE PERMANÊNCIA - LICITUDE NA COBRANÇA, DESDE QUE
NÃO CUMULADA COM JUROS REMUNERATÓRIOS, CORREÇÃO
MONETÁRIA OU ENCARGOS DA MORA - AGRAVO REGIMENTAL NÃO
PROVIDO.
1. Inexiste, in casu, julgamento extra petita, nem configura, o decisum agravado,
reformatio in pejus, uma vez que a questão posta nos autos, referente à comissão
de permanência, foi devidamente apreciada e julgada – de acordo com a
jurisprudência pacífica deste Tribunal Superior – guardando congruência com o
pedido formulado, tendo a lide, por conseguinte, sido decidida nos limites em que
proposta.
2. Tendo o Órgão prolator da decisão recorrida proferido julgamento extra petita –
porquanto enfrentou questões atinentes a direito patrimonial, que não constituíram
objeto de insurgência – devem ser afastadas as disposições ex officio relativas à
vedação da cobrança da tarifa de abertura de crédito e ao afastamento da forma de
cobrança do IOF.
3. No tocante aos juros remuneratórios, não incide a limitação a 12% ao ano,
prevista no Decreto nº 22.626/33, salvo hipóteses legais específicas, visto que as
instituições financeiras, integrantes do Sistema Financeiro Nacional, são regidas
pela Lei nº 4.595/64. Tal entendimento, ressalte-se, não foi alterado após a vigência
do Código de Defesa do Consumidor, cujas normas também se aplicam aos
contratos firmados por instituições bancárias. Visando à harmonização dos
referidos diplomas legais, esta Corte Superior consagrou a manutenção dos juros
no percentual avençado pelas partes, desde que não reste sobejamente demonstrada
a exorbitância do encargo.
4. No que tange à capitalização mensal de juros, o entendimento prevalecente nesta
Corte era no sentido de que esta somente seria admitida em casos específicos,
previstos em lei (cédulas de crédito rural, comercial e industrial), conforme a
Súmula n° 93/STJ. Com a edição da MP 1.963-17, de 30.03.2000 (atualmente
reeditada sob o nº 2.170-36/2001), passou-se a admitir a capitalização mensal nos

Michell Nunes Midlej Maron 43


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

contratos firmados posteriormente à sua entrada em vigor, desde que haja previsão
contratual.
5. No concernente à comissão de permanência, é lícita a sua cobrança após o
vencimento da dívida, devendo observar a taxa média dos juros de mercado,
apurada pelo Banco Central do Brasil, limitada à taxa de juros contratada para o
período da normalidade. Não pode, entretanto, ser cumulada com a correção
monetária nem com os juros remuneratórios, nos termos das Súmulas 30, 294 e
296 do STJ. Destaca-se que a cobrança da comissão de permanência não pode
coligir com os encargos decorrentes da mora, como os juros moratórios e a multa
contratual.
6. Alegações do agravante nada acrescentaram, no sentido de infirmar os
fundamentos do decisum agravado.
7. Agravo regimental não provido.”

O TJ/RJ, porém, trouxe ao ordenamento o seguinte precedente, recentíssimo,


vedando o anatocismo no contrato de alienação fiduciária:

“APELACAO 2009.001.27136. TJ/RJ. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO


DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL
CUMULADA COM REVISIONAL DE OBRIGAÇÃO CREDITÍCIA.
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. VALOR APURADO EM PERÍCIA. RECURSO AO
QUAL SE NEGA SEGUIMENTO COM AMPARO NO ART. 557, DO CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL. I - A possível ciência do consumidor acerca da cobrança
de juros sobre juros é irrelevante, impondo-se a decretação de nulidade das
cláusulas que estipulem tal cobrança; II Embora haja decisões do colendo Superior
Tribunal de Justiça no sentido de se admitir a capitalização de juros quando
contratada, baseando-se na Medida Provisória 1.963, reeditada sob o nº. 2170 - 36,
em 24 de agosto de 2001, a mencionada Medida Provisória foi reconhecida como
inconstitucional pelo colendo Órgão Especial de nossa Corte, decisão à qual
estamos vinculados. Ademais, em plena vigência a Súmula nº 121 do Supremo
Tribunal Federal que inadmite o anatocismo que na hipótese dos autos ficou
comprovado na perícia;III - Recurso ao qual se nega seguimento com amparo no
art. 557, do Código de Processo Civil. DES. ADEMIR PIMENTEL - Julgamento:
05/06/2009 - DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL.”

Sobre juros remuneratórios, remete-se à orientação “1” do REsp. 1.061.530.


Acerca dos juros moratórios, deve ser observada a súmula 379 do STJ:

“Súmula 379, STJ: Nos contratos bancários não regidos por legislação específica,
os juros moratórios poderão ser convencionados até o limite de 1% ao mês.”
1.7. Peculiaridades da alienação fiduciária de bens imóveis

O sistema financeiro imobiliário foi criado para estimular o crescimento da


construção civil, tendo previsto meios eficazes para a circulação do crédito e retomada do
bem em caso de inadimplemento, como por exemplo, a alienação fiduciária.
A idéia é permitir que o financiador possa ter o seu crédito garantido pelo próprio
bem imóvel, com a possibilidade deste, se quiser, ceder seu crédito para uma sociedade
securitizadora, a qual poderá emitir um valor mobiliário denominado CRI – Certificado de
Recebíveis Imobiliários e negociá-lo no mercado de capitais.
São modalidades de financiamento a alienação fiduciária, o leasing (se escolhida
esta modalidade, não poderão ser aplicadas as regras da Lei de Locações), a promessa de
compra e venda, a hipoteca, e o regime fiduciário (em caso de falência da securitizadora, o

Michell Nunes Midlej Maron 44


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

investidor estaria garantido, pois não seriam arrecadados na falência desta os bens em
regime fiduciário).
A alienação fiduciária pode ser firmada em instrumento particular, mas deve este ser
que averbado no RGI.
O saldo remanescente sempre será entregue ao fiduciário; portanto, não há violação
ao artigo 53 do CDC.
Se o imóvel estiver locado, poderá ser denunciado o contrato para despejo em trinta
dias, salvo autorização, por escrito, do fiduciário. É preciso que haja cláusula expressa e
destacada nesse sentido. A denúncia deverá ser realizada em até noventa dias da
consolidação do bem no patrimônio. O fiduciante terá que pagar todas as obrigações,
inclusive de natureza tributária. Deve-se avaliar as benfeitorias realizadas pelo fiduciante.

1.7.1. Securitização de recebíveis com emissão de CRI

Dispor de recursos para correr os riscos do próprio negócio, e não de um


investimento imobiliário. Se esse for o objetivo da empresa, a securitização é um caminho.
Por meio de um título denominado Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI),
regulamentado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), dá para transformar em
dinheiro aquele imóvel que pesa no ativo, sem precisar deixar de utilizá-lo. É possível
também ter um imóvel novo, do jeito que a sua empresa precisa, sem comprometer um
grande volume de recursos para comprar um. Como? Contratando os serviços de uma
securitizadora, o agente autorizado pela CVM a emitir o CRI.
A securitização de recebíveis, neste caso, funciona da seguinte forma: a empresa
transfere o imóvel em questão para a securitizadora, que terá a função de emitir CRIs no
mercado e repassar a ela os recursos captados. Para continuar utilizando o imóvel dali em
diante, a empresa pagará um aluguel à securitizadora durante determinado período. Este
fluxo de recebíveis será o lastro para a remuneração do CRI adquirido pelos investidores.

Casos Concretos

Questão 1

BANCO DINHEIRO FÁCIL S/A. propôs ação de busca e apreensão em face de


ARMANDO DOS SANTOS. O bem não foi encontrado e a ação foi convolada em ação de
depósito (art. 4º, Dec-Lei nº 911/69). Citado, o devedor não depositou o bem nem o seu
equivalente em dinheiro. O autor requereu, e teve indeferido, o pedido de prosseguimento
da ação de cobrança como execução nos próprios autos. Correta a decisão? Resposta
fundamentada.

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 45


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

A decisão foi incorreta, pois deveria ter deferido a execução nos próprios autos.
A respeito, veja o Ag.Rg. no REsp. 760.415:

“AgRg no REsp 760415 / DF. DJ 17/10/2005 p. 313. CIVIL E PROCESSUAL.


EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO
REGIMENTAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. CONVERSÃO
DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO EM DEPÓSITO. PROSSEGUIMENTO
DA COBRANÇA, COMO EXECUÇÃO, NOS PRÓPRIOS AUTOS.
POSSIBILIDADE. DECRETO-LEI N. 911/69. CPC, ART. 906.
I. A jurisprudência da 2ª Seção do STJ, prestigiando o princípio da economia e
celeridade processual, consolidou-se no sentido de que em caso de não-localização
do bem fiduciariamente alienado, é lícito ao credor, convertida a ação de busca e
apreensão em depósito, prosseguir na cobrança da dívida nos próprios autos, sendo
desnecessário o ajuizamento de execução.
II. Aclaratórios convertidos em agravo regimental, a que se nega provimento.”

Questão 2

BANCO GRYPHUS S/A. ajuizou ação de busca e apreensão de bem móvel em face
de MARINALVA. A ação foi extinta sem resolução do mérito por inobservância de
condição especial da ação, qual seja, indevida comprovação da mora do devedor, que se
deu mediante publicação de edital de protesto pelo Cartório competente. Correta a decisão
do magistrado?Analise a questão sob todos os aspectos.

Resposta à Questão 2

A notificação por publicação de edital de protesto é válida, não sendo necessária a


forma pessoal de noticiamento do ato, se o devedor não puder ser encontrado, estando em
lugar incerto.
A comprovação da mora poderá ocorrer, então, por meio da notificação, ou através
do protesto por edital, tal como in casu se fez, se o sujeito estiver em local incerto. Veja o
julgado do STJ no Ag.Rg no Ag. 992.301:
“AGRG NO AG 992.301/RS. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO
REGIMENTAL. BUSCA E APREENSÃO. CONTRATO DE ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA. MORA. COMPROVAÇÃO. PROTESTO POR EDITAL.
IMPOSSIBILIDADE. I- De acordo com a jurisprudência pacífica deste Tribunal a
mora constitui-se ex re nas hipóteses do art. 2.º, § 2.º, do Decreto-Lei n.º 911/69,
ou seja, uma vez não paga a prestação no vencimento, já se configura a mora do
devedor, que deverá ser comprovada por carta registrada expedida por intermédio
de Cartório de Títulos e Documentos ou pelo protesto do título, a critério do
credor. II- A jurisprudência desta Corte considera válido, para esse efeito, o
protesto do título efetivado por edital, desde que comprovado nos autos que o
devedor encontra-se em lugar incerto, o que não ocorreu no presente caso,
conforme consta do acórdão recorrido. Agravo improvido. (Rel. Ministro SIDNEI
BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/08/2008, DJe 11/09/2008).”

O STJ entende apenas que a mora deverá ser comprovada por carta expedida pelo
RTD ou protesto do título. Neste sentido, veja o REsp. 1.093.501:

Michell Nunes Midlej Maron 46


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“REsp. 1.093.501. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BUSCA E APREENSÃO.


MEDIDA LIMINAR. CONSTITUIÇÃO EM MORA DO DEVEDOR.
DECRETO-LEI N. 911/69. 1. A concessão de medida liminar em ação de busca e
apreensão decorrente do inadimplemento de contrato com garantia de alienação
fiduciária está condicionada tão-só à mora do devedor, que deverá ser comprovada
por carta registrada expedida por intermédio de Cartório de Títulos e Documentos
ou pelo protesto do título, a critério do credor (art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei n.
911/69). 2. A discussão das cláusulas contratuais na ação revisional não acarreta o
sobrestamento da ação de busca e apreensão, porquanto não há conexão entre as
ações nem prejudicialidade externa. 3. Recurso especial provido. (Rel. Ministro
JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 25/11/2008,
DJe 15/12/2008)

Para além disso, a entrega da notificação para comprovar a mora sequer exige a
assinatura do próprio destinatário. Veja o Ag.Rg. no REsp. 659.582:
“AGRG NO RESP 659.582/RS. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO
ESPECIAL. BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.
COMPROVAÇÃO DA MORA. ENTREGA DA NOTIFICAÇÃO. ENDEREÇO
DO DEVEDOR. É válida, para efeito de constituição em mora do devedor, a
entrega da notificação em seu endereço, não se exigindo que a assinatura constante
do referido aviso seja a do próprio destinatário. Agravo improvido. (Rel. Ministro
SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/11/2008, DJe
26/11/2008).”

Marco Aurélio Bezerra de Melo entende que a notificação deveria ser pessoal, pois
é um gravame muito severo para ser noticiado fictamente. Mas é posição isolada.

Questão 3

Determinado credor fiduciário ajuizou ação de busca e apreensão em face do


devedor fiduciante por inadimplemento de contrato de alienação fiduciária. O réu, em
defesa, alegou a impossibilidade de devolução do bem por fato alheio à sua vontade: perda
total em acidente. O autor pleiteou a convolação da ação de busca e apreensão em
depósito, o que foi indeferido em razão de falta de interesse do credor. Decida a questão de
forma fundamentada.

Resposta à Questão 3

A convolação da busca e apreensão em ação de depósito é possível, pois o que se


pretende agora, nesta, será o equivalente em dinheiro, eis que o bem não mais pode ser
restituído na espécie.
A respeito, veja a Apelação Cível 2008.001.39280, do TJ/RJ
“APELAÇÃO 2008.001.39280. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA.
CONVERSÃO DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO EM AÇÃO DE
DEPÓSITO. FURTO DO BEM. Possibilidade de o autor, quando não receber o
bem ou o seu equivalente em dinheiro, promover, nos próprios autos, a execução
do seu crédito, nos termos do art. 906 do cpc. Existência de seguro do veículo que
não impede o autor de buscar o seu crédito, uma vez não liquidado o sinistro.

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

DESPROVIMENTO DO RECURSO. DES. ANDRE ANDRADE - Julgamento:


27/05/2009 - SETIMA CAMARA CIVEL.”

Mesmo havendo seguro do bem furtado, há interesse na conversão da busca e


apreensão em ação de depósito, porque nesta a discussão sobre o contrato de seguro,
contrato altamente ilíquido, passará ao largo, sendo adstrita unicamente ao contrato de
alienação fiduciária descumprido.

Questão Extra

Ludovico Quaresma, modesto corretor de seguros, adquiriu veículo de marca


Trambicão, modelo zangão, 1.0, ano 2005/2006 da Concessionária Luxor. Por não dispor
de recursos para comprar o veículo à vista, contraiu empréstimo junto ao Banco Usura
S/A, alienado fiduciariamente o automóvel para a referida instituição. No pacto ficou
estabelecido que pagaria a importância de R$ 36.000,00 ( trinta e seis mil reais),
parcelando o débito em trinta e seis prestações fixas de R$ 1.000,00 (mil reais), com
vencimento para o dia 10 de cada mês. Após o pagamento da trigésima segunda prestação,
o devedor, por motivos pessoais, não conseguiu quitar a trigésima terceira. A instituição
financeira, após regular notificação, propôs ação de busca e apreensão com pedido de
liminar deferido pelo magistrado. Quais os fundamentos de direito material utilizado para
a defesa do devedor? Resposta fundamentada.

Resposta à Questão Extra

O caso invoca a aplicação da teoria do adimplemento substancial da obrigação, não


podendo ser rescindido o contrato que teve seu adimplemento muito próximo da
completitude. A respeito, veja alguns julgados do TJ/RJ:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO: 2009.002.22409. AGRAVO DE


INSTRUMENTO. BUSCA E APREENSÃO. DEFERIMENTO DE LIMINAR.
QUITAÇÃO DE 31 PARCELAS DO TOTAL DE 36. ADIMPLEMENTO
SUBSTANCIAL. PLANILHA DE DÉBITO CONSTANDO PRESTAÇÃO QUE
SE ENCONTRA QUITADA. Inadequada a medida liminar de busca e apreensão
ante ao adimplemento substancial do contrato. Provimento do recurso com base no
art. 557, §1º-A do CPC. DES. CHERUBIN HELCIAS SCHWARTZ - Julgamento:
16/06/2009 - DECIMA SEGUNDA CAMARA CIVEL.”
“AGRAVO DE INSTRUMENTO: 2009.002.20083. Agravo de instrumento.
Decisão que revoga a liminar na ação de reintegração de posse, considerando a
ausência de manifestação da parte autora e a comprovação da purga da mora pelo
réu. Inadimplência de uma prestação. Manutenção. No caso, deve prevalecer a
teoria do adimplemento substancial ou inadimplência mínima, uma vez que a parte
agravada fez por adimplir com quase a totalidade do compromisso estabelecido
com o agravante, ou seja, de acordo com as provas trazidas nestes autos pelo
Banco e o relato exposto na inicial, o agravado encontra-se apenas inadimplente
com uma prestação, não se mostrando legítimo e nem justo diante da drástica e
violenta adoção de medida, traduzida na reintegração de posse, quando existem
outras formas admitidas na legislação em vigor para que se possa efetivar a
satisfação do crédito. Precedentes jurisprudenciais. Artigo 557, caput do CPC.
DES. HELDA LIMA MEIRELES - Julgamento: 10/06/2009 - DECIMA QUINTA
CAMARA CIVEL.”

Michell Nunes Midlej Maron 48


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

A teoria não é sempre aplicada, porém, a depender da casuística. Não a


reconhecendo, veja o julgado abaixo, também do TJ/RJ:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO: 2009.002.01887. Alienação fiduciária. Busca e


apreensão. Liminar. Indeferimento. Teoria do adimplemento substancial.
Pagamento de 28, de um total de 36 parcelas. Não configuração da
excepcionalidade requerida para a aplicação da referida teoria. A teoria do
adimplemento substancial deve ser aplicada com extrema parcimônia, eis que seu
emprego generalizado pode causar desequilíbrio no sistema financeiro, com
reflexos nos custos dos financiamentos e consequente encarecimento do crédito,
gerando efeitos negativos a toda a cadeia produtiva e de consumo. Em assim
sendo, somente em casos excepcionais está o juiz autorizado a afastar a norma
legal que prevê que a liminar de busca e apreensão deverá ser deferida; na espécie,
todavia, não se vislumbra essa excepcionalidade. Recurso provido. DES.
NAMETALA MACHADO JORGE - Julgamento: 01/04/2009 - DECIMA
TERCEIRA CAMARA CIVEL”

Tema V

CONTRATO DE TRANSPORTE DE PESSOAS. Formação e Classificação. Incidência do Código de defesa


do consumidor. Transporte aéreo, rodoviário, ferroviário e aquaviário de passageiros. Direitos e obrigações
do passageiro e do transportador. Bilhete de passagem. Transporte benévolo e responsabilidade civil. Seguro.

Notas de Aula6

1. Contrato de transporte de pessoas

A legislação pertinente ao tema é bastante esparsa, remontando ao Código


Comercial de 1950, que ainda vige na parte de Direito Marítimo. O contrato de transporte,
6
Aula ministrada pela professora Maria Cristina de Brito Lima, em 30/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 49


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

em uma perspectiva mais antiga, era classificado como locação de serviços, mas hoje é um
contrato autônomo, completamente tipificado e delineado na ordem legal, especialmente no
CC e em outros diplomas especiais. A base legal é o Código Civil, nos artigos 734 a 742; o
Código Comercial, nos artigos 629 a 632 (percurso de água); o Código Brasileiro de
Aeronáutica, Lei 7.565/86; e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Serão abordados, separadamente, os contratos de transporte de coisas e de pessoas,
porque cada uma destas modalidades tem tratamento diferenciado na legislação. Isto porque
o contrato de transporte de pessoas envolve o percurso propriamente dito como foco,
enquanto o de coisas foca no percurso e no depósito destas: há um contrato misto de
percurso e depósito, envolvendo responsabilidade pela guarda da carga desde a sua
recepção pelo transportador até sua entrega no destino.
A tipificação geral, hoje, vem no CC, a partir do artigo 730. As disposições gerais
para as duas modalidades de contratos de transporte, de pessoas e coisas, estão nos artigos
730 a 733 deste Código, que serão abordados pontualmente:

“Art. 730. Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a


transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.”

Adiante, no CC, vem o tratamento especial de cada tipo de transporte, pessoas ou


coisas, o que será visto a seu tempo.
O artigo 730, supra, é conceitual, evidenciando bem a principal característica de
todo contrato de transporte, de qualquer espécie: é um contrato eminentemente oneroso,
pois o dispositivo o condiciona à retribuição daquele que é transportado, ou tem coisa
transportada. Sendo gratuito, simplesmente não há contrato de transporte: há relação
extracontratual.
É importantíssimo verificar se há ou não o pagamento pelo transporte prestado, a
fim de definir um aspecto relevantíssimo desta relação: a natureza da responsabilidade do
transportador. Isto porque, quando um contrato é descumprido, a responsabilidade é
objetiva, na forma do artigo 389 do CC:

“Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais
juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos,
e honorários de advogado.”
Quando não há contrato, porque a gratuidade desnatura o contrato de transporte, a
relação que se analisa é extracontratual, despertando a responsabilidade aquiliana, que é
essencialmente subjetiva. É por isso que a verificação da onerosidade no transporte é
fundamental, pois é desta definição que se saberá se a responsabilidade é objetiva ou
subjetiva.
Sendo gratuito o transporte prestado, veja o que diz o artigo 736 do CC:

“Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito


gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem
remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.”

A maior relevância está em se perceber que o transporte gratuito, benevolente, por


cortesia, simplesmente não é um contrato. É uma relação jurídica, mas não é um contrato, e
por isso a responsabilidade extracontratual se impõe, subjetiva.

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

O amigo que transporta outro – a carona –, sem qualquer remuneração, claramente


está inserto no caput do artigo 736 do CC. Já o transporte oferecido pela empresa aos seus
funcionários para cumprimento do itinerário, em ônibus dedicado a tal percurso, mesmo
que os empregados não paguem absolutamente nada, nem sejam descontados no salário, é
oneroso: há vantagens indiretas para o transportador, o empregador, que estará se
beneficiando da pontualidade e da maior tranqüilidade de seus funcionários, que estarão
mais dispostos ao trabalho, incrementando a produção. Por isso, este deslocamento
proporcionado aos empregados é um contrato, subsumindo-se ao parágrafo único do artigo
supra, por gerar vantagens indiretas ao transportador. Na essência, não há cortesia, pois há
finalidade lucrativa subjacente naquele transporte. Destarte, há contrato de transporte – e há
responsabilidade objetiva contratual, portanto.
Mas há algumas situações limítrofes que podem gerar dúvidas sobre a configuração
ou não do contrato, porque a onerosidade, direta ou indireta, não é muito evidente. Como
exemplo, se o amigo que toma carona com outro contribui com algum valor para
pagamento do combustível, tornar-se-á a relação um contrato de transporte? Decerto que
não. Esta contribuição não infirma a gratuidade e cortesia do transporte, porque o amigo
que transporta o outro não o faz com intuito lucrativo: não se trata de uma atividade
empresarial, não se desenhando um contrato, portanto. A retribuição, para se configurar,
deve ser uma verdadeira paga pelo serviço de transporte, e não mera cortesia recíproca.
Outro exemplo de contrato transporte com retribuição indireta está naquela
disponibilização de automóveis coletivos para captação de clientes, por shopping-centers: o
cliente simplesmente toma o transporte em um ponto da cidade, sem desembolsar qualquer
valor, destinando-se ao estabelecimento comercial, onde provavelmente realizará despesas
– aí residindo a onerosidade, a vantagem indireta proveniente daquele serviço de transporte.
Mesmo que um ou outro transportado não consuma nada no estabelecimento, ainda assim
há a potencial vantagem, que transforma o transporte em contrato.
Em suma, o contrato de transporte é espécie eminentemente onerosa, tendo
finalidade lucrativa. Logo, se não se tratar de transporte com tal finalidade, não incidem
sobre a relação jurídica as regras próprias deste contrato – não há contrato.
Pelo ensejo, o contrato de transporte se classifica como oneroso, bilateral,
comutativo, consensual, de duração, de adesão e não solene. Será de adesão apenas quando
se demonstrarem as características desta modalidade, ou seja, a grosso modo, quando
apenas uma das partes produzir as cláusulas, cabendo à outra aderir ou não – como ocorre
nos contratos de transporte público, em que o concessionário dita as regras para o
transportado.
Por ser não solene, a prova do contrato é feita por qualquer meio lícito. É possível,
inclusive, nos contratos de transporte consumeristas, a inversão do ônus da prova, tanto da
existência do contrato quanto da ocorrência da responsabilidade, se houver verossimilhança
nos indícios apresentados pelo transportado.

1.1. Transporte como serviço público

Assim dispõe o artigo 731 do CC

“Art. 731. O transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou


concessão, rege-se pelas normas regulamentares e pelo que for estabelecido
naqueles atos, sem prejuízo do disposto neste Código.”

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

O Estado, na ordem constitucional vigente, só executa atividades econômicas que


sejam essenciais ao interesse coletivo, ou que sejam imperativas à segurança nacional. Por
isso, o serviço de transporte público é, todo ele, concedido à iniciativa privada.
Sendo assim, o transporte público segue as regras da sua delegação ao particular,
mas também se subsume ao CC, no que este for especial. Veja um exemplo: o artigo 739 do
CC estabelece que o transportador pode, em tese, rejeitar o passageiro que não esteja em
condições de higiene suficientes para não perturbar os demais passageiros. Mas e se a linha
concedida ao concessionário for justamente aquela que passa por comunidade agrícola em
que os trabalhadores saem direto da lavoura para casa, será possível esta negativa de
transporte com base na falta de higiene? É claro que, neste caso, a concessão faz pressupor
que haverá transporte de pessoas nestas condições, e o dispositivo do CC não será
aplicável. Veja-o:

“Art. 739. O transportador não pode recusar passageiros, salvo os casos previstos
nos regulamentos, ou se as condições de higiene ou de saúde do interessado o
justificarem.”

1.2. Normas extravagantes

Dispõe o artigo 732 do CC:


“Art. 732. Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber,
desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da
legislação especial e de tratados e convenções internacionais.”

As convenções internacionais sobre transporte existem em profusão, mas a extensão


de sua aplicabilidade gera controvérsias. Veja o artigo 178 da CRFB:

“Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e
terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os
acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 7, de 1995)
Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as
condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior
poderão ser feitos por embarcações estrangeiras. (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 7, de 1995).”

O artigo 732, supra, traz a expressão “quando couber” para limitar a aplicabilidade
dos preceitos especiais ao contrato de transporte. Este cabimento é aferido pelo seguinte
critério: se a norma especial ou internacional representar um retrocesso perante a norma
civil do contrato de transporte, será inaplicável; se representar um progresso, terá lugar.
No conflito entre o CC e o CDC, a situação se resolve pela simples regra da
especialidade. O Código Civil deve ser aplicado com prevalência sobre o Código de Defesa
do Consumidor sempre que regular diretamente uma relação de consumo, isto é, quando o
fato é necessariamente uma relação de consumo e o Código Civil dispôs a seu respeito,
editando regra específica.
É simples: o CDC se aplica a todo e qualquer contrato, mas o CC deve ser
observado nas normas em que se perceber maior especialidade. Voltando ao exemplo do
artigo 739 do CC, não se pode considerar que seja uma afronta ao direito consumerista a

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

negativa de transporte a uma pessoa que, em uma localidade na qual há possibilidade de


asseio, se demonstra em condições tais de falta de higiene que o serviço prestado aos
demais passageiros, também consumidores, fique prejudicado. Aplica-se, portanto, o artigo
739 do CC em detrimento do CDC, sem qualquer erro.
O § 3° do artigo 740 do CC, mesmo diante de relações de consumo:

“Art. 740. O passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de


iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que
feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada.
§ 1° Ao passageiro é facultado desistir do transporte, mesmo depois de iniciada a
viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor correspondente ao trecho não
utilizado, desde que provado que outra pessoa haja sido transportada em seu lugar.
§ 2° Não terá direito ao reembolso do valor da passagem o usuário que deixar de
embarcar, salvo se provado que outra pessoa foi transportada em seu lugar, caso
em que lhe será restituído o valor do bilhete não utilizado.
§ 3° Nas hipóteses previstas neste artigo, o transportador terá direito de reter até
cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa
compensatória.”

Se fosse observado o CDC apenas, o não uso do serviço pelo consumidor imporia
restituição integral, e não seria possível esta retenção a título de multa. Esta retenção é uma
medida legítima, eis que há um prejuízo para o transportador, que poderia ter ofertado
aquele lugar ou espaço para outras pessoas.
Outro exemplo é o da negativa de transporte de determinadas coisas, que seria
impensável diante das normas protetivas do consumidor – pois a negativa de serviço, em
regra, é uma ofensa à relações de consumo –, mas que se torna perfeitamente possível ante
a expressa previsão do artigo 746 do CC:

“Art. 746. Poderá o transportador recusar a coisa cuja embalagem seja inadequada,
bem como a que possa pôr em risco a saúde das pessoas, ou danificar o veículo e
outros bens.”

O transporte de mercadorias frágeis, igualmente, pode ser condicionado à assunção


de risco pelo titular da coisa, que assume o risco pelos eventuais danos causados à carga.
Além disso, o correto acondicionamento da coisa é uma exigência perfeitamente válida,
sem a qual o transportador não é obrigado a admitir o serviço.

1.3. Responsabilidade do transportador

Do artigo 734 do CC colhe-se o entendimento de que há, em todo transporte de


pessoas, uma cláusula implícita de incolumidade. Veja:

“Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas


e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula
excludente da responsabilidade.
Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem
a fim de fixar o limite da indenização.”

A vedação à cláusula excludente de ilicitude não impede, contudo, que haja


cláusulas limitativas da responsabilidade perfeitamente válidas. Como já se pôde antever,

Michell Nunes Midlej Maron 53


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

no transporte de coisas, é perfeitamente possível ao transportador se negar a transportar


bens frágeis, ou fazer tal transporte com cláusula que limite sua responsabilidade.
Veja também o artigo 738 do CC:

“Art. 738. A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas estabelecidas pelo


transportador, constantes no bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se
de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifiquem o
veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço.
Parágrafo único. Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à
transgressão de normas e instruções regulamentares, o juiz reduzirá
eqüitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para
a ocorrência do dano.”

1.4. Seguro obrigatório

No Brasil, há o seguro obrigatório para cobertura de danos pessoais causados por


veículos automotores de via terrestre, o conhecido DPVAT. A sua regulamentação é feita
pelo Decreto-Lei 73/66, a Lei 6.194/74 e a Lei 8.374/91.
Consiste, o DPVAT, em um seguro pago por todos os proprietários de veículos, de
contratação obrigatória, que visa a cobrir danos a quaisquer pessoas envolvidas em
acidentes de trânsito, sejam motoristas, passageiros ou pedestres. Os valores das
indenizações são tarifados, sendo dos poucos casos de indenização tarifada no Brasil (ao
lado do seguro para acidentes de trabalho, pago ao INSS).

Casos Concretos

Questão 1

Segundo a norma insculpida no caput do art. 736 do Código Civil, "não se


subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou
cortesia". Interprete essa regra sob todos os aspectos.

Resposta à Questão 1

O transporte gratuito é feito por simples cortesia ou amizade; logo, refoge das
normas legais sobre o contrato, como dispõe o caput do artigo 736 do CC. A onerosidade,
visto que há vantagens para ambos os contratantes, é essencial ao contrato de transporte. Se
o transportador dele receber vantagens indiretas, mesmo que não tenha havido qualquer
remuneração, o contrato não será considerado gratuito, na forma do parágrafo único deste
artigo citado.

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

A verdade é que o artigo em tela deixa claro que o transporte realmente gratuito não
é sequer um contrato, e por isso a relação extracontratual desperta responsabilidade
subjetiva, e não objetiva, como o é no contrato.

Questão 2

Marta de Goés ajuizou ação indenizatória em face de Tenho Tempo Serviços Aéreos
S/A., pleiteando indenização por danos materiais decorrentes do cancelamento de vôo
internacional e danos morais. O evento ocorreu em 2004 e a ação foi proposta em 2008. A
ré requereu a extinção do processo sem resolução do mérito, por entender prescrita a
pretensão com base na Convenção de Varsóvia, à época vigente. O juiz julgou procedente
o pedido. Na fundamentação da sentença, o julgador entendeu que, no conflito entre as
normas do Código de Defesa do Consumidor e da Convenção de Varsóvia sobre a
prescrição, prevalecem as normas mais favoráveis do Código. Em sede recursal, a ré
sustenta que a decisão recorrida ofende os arts. 5º, §2º, e 178, da Constituição da
República. Argumenta que prevalecem, no âmbito interno, as normas estabelecidas em
tratados internacionais, pois estes têm hierarquia superior às leis. Por outro lado, a
Convenção de Varsóvia é lei especial, e o CDC é lei geral, e aquela se sobrepõe a este,
como determina a Lei de Introdução ao Código Civil. Deve ser provido o recurso? Analise
o caso em todos os aspectos.

Resposta à Questão 2

A jurisprudência é realmente conflitante neste tema, havendo uma posição do STF e


outra, contrária, do STJ. Para o STF, aplica-se o Pacto de Varsóvia, e para o STJ, aplica-se o
CDC. Veja:

“PRAZO PRESCRICIONAL. CONVENÇÃO DE VARSÓVIA E CÓDIGO DE


DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. O art. 5º, § 2º, da Constituição Federal se refere
a tratados internacionais relativos a direitos e garantias fundamentais, matéria não
objeto da Convenção de Varsóvia, que trata da limitação da responsabilidade civil
do transportador aéreo internacional (RE 214.349, rel. Min. Moreira Alves, DJ
11.6.99). 2. Embora válida a norma do Código de Defesa do Consumidor quanto
aos consumidores em geral, no caso específico de contrato de transporte
internacional aéreo, com base no art. 178 da Constituição Federal de 1988,
prevalece a Convenção de Varsóvia, que determina prazo prescricional de dois
anos. 3. Recurso provido. STF. RE 297901. 2ª Turma. Rel. Min. Ellen Gracie.
Decisão unânime.”

Veja agora o entendimento do STJ contrário ao da decisão do STF colacionada


acima:

“Resp nº 742447. 3ª Turma. Rel. Min. Ari Pargendler. Decisão por maioria; J.
20/03/2007.
CONSUMIDOR. PRESCRIÇÃO. TRANSPORTE AÉREO DE PESSOAS. A
reparação de danos resultantes da má prestação do serviço pode ser pleiteada no
prazo de cinco anos. Recurso especial não conhecido.”

Questão 3

Michell Nunes Midlej Maron 55


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Moema Augusta, mãe e sucessora de Moysés Atala, ajuizou ação de indenização


em face de Ferrovia Leste/Oeste S/A. para receber indenização por danos materiais e
morais proveniente de acidente de trem que ocasionou a morte de seu filho de 18 anos. A
ré contestou o pedido e a pretensão autoral, afirmando que o sinistro é fruto de culpa
exclusiva da vítima pelo seu comportamento aventureiro de viajar na escada da
locomotiva, a dificultar, consideravelmente, a eficiência do serviço de fiscalização da
transportadora, que alertada, já tomava as medidas necessárias para a retirada do
passageiro do local indevido, onde deliberadamente se alojara por ousadia, já que distante
do carro destinado ao transporte, onde não fora detectado excesso de lotação. O juiz,
convencido de que houve concorrência de culpas, reduziu o valor pretendido pela autora à
metade e julgou procedente o pedido de dano moral. Considerando-se que o Código de
Defesa do Consumidor é omisso quanto à culpa concorrente do consumidor, pergunta-se:
foi acertada a decisão? Fundamente.

Resposta à Questão 3

Embora o CDC não preveja a culpa concorrente da vítima como causa de redução
do valor indenizatório (apenas a culpa exclusiva, como causa excludente da
responsabilidade), o Código Civil admite expressamente tal possibilidade, no parágrafo
único do artigo 738:

“Art. 738. A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas estabelecidas pelo


transportador, constantes no bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se
de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifiquem o
veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço.
Parágrafo único. Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à
transgressão de normas e instruções regulamentares, o juiz reduzirá
eqüitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para
a ocorrência do dano.”

Se o transportador não toma as devidas providências para evitar a conduta indevida,


demonstra-se conivente, concorrendo para o resultado danoso. Se, ao contrário, tomar todos
os cuidados possíveis para evitar o dano, imputando-se este unicamente à vítima, o
transportador não terá responsabilidade – fato exclusivo da vítima afasta a
responsabilidade.
A respeito, veja o REsp. 388.300:

“CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. QUEDA DE TREM.


MORTE DE PASSAGEIRO QUE VIAJAVA EM ESCADA DA LOCOMOTIVA.
CULPA CONCORRENTE. DANOS MORAIS E MATERIAIS DEVIDOS.
REGIMENTO INTERNO, ART. 257. I. Admissível a concorrência de culpa em
transporte ferroviário, quando verificado comportamento aventureiro da vítima, a
dificultar, consideravelmente, a eficiência do serviço de fiscalização da empresa
transportadora, que, alertada, já tomava as medidas necessárias para a retirada do
passageiro de local indevido, onde deliberadamente se alojara por ousadia, já que
distante do carro destinado ao transporte, onde não fora detectado excesso de
lotação. Redução do valor, em face da concorrência de culpas, à metade. II. Danos
morais e materiais devidos, estes, na esteira de precedentes jurisprudenciais, em
2/3 do salário mínimo até a idade em que o de cujus completaria 25 anos, reduzida

Michell Nunes Midlej Maron 56


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para 1/3 a partir de então, em face da suposição de que constituiria família,


aumentando suas despesas pessoais com o novo núcleo formado, extinguindo-se a
obrigação após alcançada a sobrevida provável, de acordo com tabela utilizada
pela Previdência Social. III. Prestações vincendas garantidas, a critério da ré, ou
pela formação de capital, ou mediante caução. IV. Inexistindo prova de trabalho
assalariado, indevido o 13º salário no cálculo da pensão. V. Recurso especial
conhecido em parte e parcialmente provido. STJ. Resp 388300. 4ª Turma. Rel.
Min. Aldir Passarinho Junior.”

Tema VI

CONTRATO DE TRANSPORTE DE COISAS. Formação. Classificação. Documentos de transporte.


Obrigações e direitos dos contratantes. Responsabilidade civil do transportador.

Notas de Aula7

1. Contrato de transporte de coisas

Trata-se do contrato pelo qual a transportadora, mediante o recebimento pelo


remetente de uma compensação ou remuneração previamente estabelecida, se obriga a
conduzir determinada mercadoria de um lugar a outro, utilizando-se para tanto de veículo
apropriado à natureza do objeto transportado.
A base legal do contrato de transporte de coisas é o Código Civil, nos artigos 743 a
756; o Decreto 1.832/96; a Lei 9.611/98 (transporte intermodal), regulamentada pelo
Decreto. 3.411/2000; o Código Aeronáutico, Lei 7.565/86; a Lei 9.614/98; e o Código de
7
Aula ministrada pela professora Maria Cristina de Brito Lima, em 30/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 57


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Proteção e Defesa do Consumidor, quando for o caso. Vale dizer que é possível, como
orienta a moderna interpretação jurídica, que haja o diálogo entre estas fontes, quando
necessário.
O contrato de transporte de coisas se inicia quando se dá a entrega da coisa ao
transportador, que emite um título representativo daquela entrega – o conhecimento de
transporte. Este título comprova que a coisa está depositada com o transportador, que por
ela será responsável até a entrega ao destino.
Havendo qualquer dano na coisa, a responsabilidade recai sobre o transportador,
portanto. Por isso, é legítima a rejeição da prestação de serviço se a coisa não puder ser
transportada com a segurança a que o transportador estiver afeito. Por exemplo, se a
mercadoria precisa ser mantida a baixa temperatura, e o transportador não possui meios de
mantê-la nestas condições, pode rejeitar o serviço, ou exigir um acondicionamento
específico. Se aceitar, assume a responsabilidade. Veja a cláusula de incolumidade neste
contrato, prevista no artigo 749 do CC:

“Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as


cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado
ou previsto.”

A descrição do bem pelo contratante, quando a embalagem não permitir saber-se do


que se trata, deve ser precisa, inclusive na atribuição de valores. Isto porque a
responsabilidade da transportadora será limitada àquilo que a parte declarou, por simples
questão de boa-fé: se a embalagem continha bem declarado pelo remetente como de um
determinado valor, e na verdade era de valor muito superior, a perda será daquele que
declarou a menor, provavelmente com o intuito de reduzir o valor do frete. Veja que é com
base na declaração do valor que o transportador faz o seguro da carga, e se foi declarado a
menor, igualmente menor será o seguro – e por isso não se pode cogitar que a
transportadora possa sofrer este prejuízo. Sendo ou não relação de consumo, a boa-fé se
impõe.
O conhecimento de transporte ou frete é um título de crédito impróprio, sem perder
o caráter probatório da entrega das mercadorias pelo expedidor ao transportador. Passou a
representar as mercadorias transportadas, pois elas não podem ser retiradas pelo
consignatário ou destinatário mediante simples recibo. Veja que é, por essência, prova de
um contrato, somente sendo título de crédito colateralmente, pois representa as
mercadorias, o que reflete um crédito.
Quanto às obrigações dos contratantes, o remetente tem obrigação de dar, que é
pagar o preço do frete, e o transportador tem obrigação de fazer, que é deslocar a coisa de
um local para outro.

1.1. Responsabilidade civil do transportador

A responsabilidade, contratual, é objetiva, sendo nulas as cláusulas exonerativas, na


forma do artigo 389 do CC, já transcrito, e do artigo 754, parágrafo único, também do CC:

“Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem


apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e
apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira


vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie
o dano em dez dias a contar da entrega.”

O prazo de dez dias, aqui, prevalece sobre os prazos do CDC, de trinta dias para
bens duráveis ou noventa para não duráveis. A regra é mais específica, e como dito, sempre
que o CC for mais específico, este terá prevalência.
O transporte de coisas feito de forma gratuita, por um transportador profissional,
ainda assim é um contrato de transporte, e por isso a responsabilidade é a mesma dos casos
em que haja a cobrança. Isto porque a aceitação do transportador em prestar o serviço de
forma gratuita não se dá por mera cortesia, sendo certa a presença de alguma vantagem
indireta nesta aceitação.
As cláusulas limitativas da responsabilidade, porém, seguem a regra dos artigos
743, 750 e 752 do CC, combinados:

“Art. 743. A coisa, entregue ao transportador, deve estar caracterizada pela sua
natureza, valor, peso e quantidade, e o mais que for necessário para que não se
confunda com outras, devendo o destinatário ser indicado ao menos pelo nome e
endereço.”

“Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do


conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a
coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele
não for encontrado.”

“Art. 752. Desembarcadas as mercadorias, o transportador não é obrigado a dar


aviso ao destinatário, se assim não foi convencionado, dependendo também de
ajuste a entrega a domicílio, e devem constar do conhecimento de embarque as
cláusulas de aviso ou de entrega a domicílio.”

Casos Concretos

Questão 1

ZELÂNDIA SEGUROS MARÍTIMOS E AÉREOS S/A., sub-rogada nos direitos de


sua segurada, ingressou com ação indenizatória em face de TRANSPORTES AÉREOS
CAMPOMAIORENSE S/A. em dezembro de 2007, pelo furto de mercadorias
(equipamentos eletrônicos) embarcadas na Itália com destino ao Brasil. A ação teve por
base a Súmula 188 do STF, os arts. 346, III e 349 do Código Civil e o art. 14 do Código de
Defesa do Consumidor. A decisão monocrática julgou procedente o pedido, condenando a
ré a pagar à autora indenização corrigida, desde o desembolso. O Tribunal de Justiça
reformou a sentença e aplicou a Convenção de Montreal, promulgada pelo Dec. Nº
5910/2006, que estabelece a indenização tarifada, afastando a aplicação do Código de
Defesa do Consumidor, considerado diploma de direito comum salvo nos casos de dolo ou
culpa grave, não demonstrados nos autos. Como não houve declaração especial de valor, a
responsabilidade do transportador fica limitada à quantia de "17 Direitos Especiais de
Saque (DES)" por quilo de mercadoria extraviada. Admitido o recurso especial, analise a
questão em todos os seus aspectos.

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Resposta à Questão 1

A questão trata da incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor em


contraposição à Convenção de Varsóvia, com as modificações da Convenção de Haia, e
Protocolos 1 e 2 de Montreal.
A respeito, veja o RE 351.750:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DANOS MORAIS DECORRENTES DE


ATRASO OCORRIDO EM VOO INTERNACIONAL. APLICAÇÃO DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MATÉRIA
INFRACONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. O princípio da defesa
do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica.
2. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da
Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos
direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor. 3. Não cabe discutir,
na instância extraordinária, sobre a correta aplicação do Código de Defesa do
Consumidor ou sobre a incidência, no caso concreto, de específicas normas de
consumo veiculadas em legislação especial sobre o transporte aéreo internacional.
Ofensa indireta à Constituição de República. 4. Recurso não conhecido. RE
351750; Julgamento: 17/03/2009.”

Destarte, se a norma internacional subverte ou faz retroceder direito fundamental já


alcançado pela legislação pátria, aplica-se a norma interna mais favorável; se incrementa a
proteção ao direito fundamental, o pacto externo deve prevalecer.

Questão 2

Fermak Comercial e Importadora ajuizou ação de rito sumário em face de


Navibrás Afretamentos S/A., objetivando receber indenização no valor de 3.750
rolamentos, do total de 5.000 que havia adquirido no exterior. O juiz, afastando a validade
da cláusula limitativa de responsabilidade, julgou procedente a ação para condenar a
autora a pagar a quantia de R$9.500,00 (nove mil e quinhentos reais), acrescida de
atualização monetária, juros desde a citação, custas e honorários advocatícios. Em suas
razões de apelação, Navibrás Afretamentos S/A. argumenta a validade da cláusula prevista
no contrato de transporte marítimo, onde ficou convencionada a limitação de
responsabilidade do transportador a US$500,00 (quinhentos dólares norte-americanos)
por volume, em caso de perda ou avaria de mercadorias. Considerando a perda de cinco
dos seis volumes transportados, a responsabilidade da transportadora corresponde a
US$2.500,00 (dois mil e quinhentos dólares norte-americanos). Ponderou, ainda, que a
referida cláusula não se confunde com a de "não indenizar", eis que apenas limita o valor
da indenização e não a afasta. Pergunta-se: Merece provimento o apelo? Fundamente.

Resposta à Questão 2

Originariamente, o STJ filiava-se à orientação do STF, consubstanciada na súmula


161 desta Corte:

“Súmula 161, STF: Em contrato de transporte é inoperante a cláusula de não


indenizar.”

Michell Nunes Midlej Maron 60


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Entendia-se, portanto, que tanto a cláusula de não indenizar quanto a limitativa de


responsabilidade, capaz de tornar irrisório o valor da indenização, eram ineficazes. Nesse
sentido, veja os REsp 644 e 29.121:

“REsp 644 / SP. DJ 06/11/1989 p. 16691.


DIREITO COMERCIAL. TRANSPORTE MARITIMO. CLAUSULA
LIMITATIVA DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR. O
DECRETO 19.473, DE 10.12.30, EM SEU ART. 1., REPUTA NÃO ESCRITA A
CLAUSULA RESTRITIVA OU MODIFICATIVA DA OBRIGAÇÃO, E A
TANTO EQUIVALE A LIMITAÇÃO, A VALOR IRRISORIO, DO MONTANTE
DA INDENIZAÇÃO. PRECEDENTES DO STF. RECURSO ESPECIAL
CONHECIDO E PROVIDO.”

“REsp 29121 / SP. DJ 22/03/1993 p. 4540.


CIVIL E COMERCIAL - SEGURO - TRANSPORTE MARITIMO -
INDENIZAÇÃO - CLAUSULA LIMITATIVA DA RESPONSABILIDADE DO
TRANSPORTADOR – SUMULA 161, DO STF.
I- REPUTA-SE NÃO ESCRITA QUALQUER CLAUSULA LIMITATIVA DA
OBRIGAÇÃO DE NÃO INDENIZAR, EM CONTRATO DE TRANSPORTE
MARITIMO, O VALOR CAPAZ DE TORNAR IRRISORIA A INDENIZAÇÃO
RELATIVA AOS DANOS CAUSADOS.
II- PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
III- RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.”

No REsp 39.082, porém, a Segunda Seção, por maioria, admitiu a validade da


cláusula limitativa de responsabilidade. Em decisões posteriores, este entendimento
consolidou-se: “resultando a cláusula limitativa de responsabilidade em transporte marítimo
de opção pelo pagamento de frete menor, não há dizê-la inoperante. Em tal contexto, não
assume relevo o valor irrisório da indenização” (trecho da ementa do REsp. 67.558). No
mesmo sentido, veja o REsp. 36.706 e o REsp. 153.787, todos abaixo transcritos:
“REsp 39082 / SP. DJ 20/03/1995 p. 6077.
TRANSPORTE MARITIMO. RESPONSABILIDADE. ADMISSÃO DE
CLAUSULA LIMITANTE DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR.
RECURSO ESPECIAL CONHECIDO, MAS DENEGADO. MAIORIA.”

“REsp 67558 / SP. DJ 18/09/1995 p. 29962.


TRANSPORTE MARITIMO. CLAUSULA LIMITATIVA DE
RESPONSABILIDADE. RESULTANDO A CLAUSULA LIMITATIVA DE
RESPONSABILIDADE EM TRANSPORTE MARITIMO DE OPÇÃO PELO
PAGAMENTO DE FRETE MENOR, NÃO HA DIZE-LA INOPERANTE. EM
TAL CONTEXTO, NÃO ASSUME RELEVO O VALOR IRRISORIO DA
INDENIZAÇÃO. RECURSO NÃO CONHECIDO, APLICANDO-SE QUANTO
AO CAPITULO DO DISSIDIO A SUMULA N. 83/STJ.”

“REsp 36706 / SP. DJ 09/12/1996 p. 49279.


COMERCIAL. DIREITO MARITIMO. TRANSPORTE. CLAUSULA
LIMITATIVA DE RESPONSABILIDADE. VALIDADE. PRECEDENTE DA
SEGUNDA SEÇÃO. RECURSO DESACOLHIDO.
- E VALIDA A CLAUSULA LIMITATIVA DA RESPONSABILIDADE DE
INDENIZAR INSERIDA EM CONTRATO DE TRANSPORTE MARITIMO.”

“REsp 153787 / SP. DJ 06/04/1998 p. 136.

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

TRANSPORTE MARITIMO. CLAUSULA LIMITATIVA DE


RESPONSABILIDADE. E VALIDA A CLAUSULA LIMITATIVA DA
RESPONSABILIDADE DE INDENIZAR INSERTA EM CONTRATO DE
TRANSPORTE MARITIMO. PRECEDENTES. RECURSO ESPECIAL
CONHECIDO E PROVIDO.”

Destarte, a cláusula de não indenizar é vedada, mas a limitativa é válida.


A força maior, o fortuito externo, como em qualquer caso de responsabilidade
objetiva, afasta a responsabilidade.

Questão 3

Cia. Master Brasil de Eletrônicos ajuizou ação de indenização por danos materiais
no equivalente ao valor da carga de sua propriedade, e por danos morais, a arbitrar,
porque teve sua credibiliade e nome prejudicados junto aos clientes, especialmente junto à
destinatária da carga, sua antiga revendedora. A ação foi proposta contra Transportadora
Rápido Ltda., em razão do não-cumprimento do contrato de transporte que a autora
firmara com a transportadora, não tendo esta realizado a entrega da carga ao
destinatário, nem devolvido a mercadoria recebida para fins de transporte. Em
contestação, a ré negou sua responsabilidade civil de indenizar, alegando que cumpriu o
contrato, mas que houve roubo da carga durante o transporte e enquanto seu caminhão
passava lentamente por quebra-molas, sendo o motorista rendido com arma de fogo, sem
que tivesse facilitado a ação dos meliantes, tudo como ficou registrado no Boletim de
Ocorrência Policial que anexou. Alegou que possui seguro para perda do veículo e para
danos a terceiros, por isso não tem legitimidade para figurar no pólo passivo da ação, pois
nesse caso a responsabilidade é da seguradora. Alegou que somente a pessoa natural ou
física pode sofrer ou reclamar por danos morais, sendo juridicamente impossível tal pleito
da autora. Requereu sua exclusão da lide, e, caso não excluída, a extinção do processo em
razão de sua ilegitimidade. No mérito, requereu fosse julgado improcedente o pedido.
Decida as questões postas pela autora e pela ré, como juiz da causa, abordando sintética e
separadamente cada questão, com a devida fundamentação e justificação.

Resposta à Questão 3

Em relação ao roubo de carga como causa excludente da responsabilidade da


transportadora, veja o REsp. 218.852:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE DE MERCADORIA. ROUBO.


FORÇA MAIOR. AÇÃO REGRESSIVA PROPOSTA PELA SEGURADORA. - O
roubo da mercadoria em trânsito, uma vez evidenciado que o transportador tomou
as precauções e cautelas a que se acha obrigado, configura força maior, suscetível
de excluir a sua responsabilidade. Precedentes do STJ. Recurso especial conhecido
e provido. REsp 218.852 / SP. DJ 03/09/2001 p. 226.”

Vale ressaltar, porém, que quando o roubo se tornar previsível, e se evidenciar falta
de cautela suficiente, este poderá até ser considerado fortuito interno, não afastando a
responsabilidade.
Quanto à legitimidade passiva, nos termos do § 3º do artigo 787, do Código Civil, o
segurado é parte legítima para figurar no pólo passivo da ação movida pelo terceiro em

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

razão da responsabilidade civil daquele. Deve o segurado agir na forma dos §§ 1º e 2º do


artigo 787. Caso o segurador torne-se insolvente ou se recuse a pagar a indenização,
subsistirá a responsabilidade do segurado perante o terceiro, na forma do mesmo artigo
787, § 4º, do CC.

“Art. 787. No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento


de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro.
§ 1° Tão logo saiba o segurado das conseqüências de ato seu, suscetível de lhe
acarretar a responsabilidade incluída na garantia, comunicará o fato ao segurador.
§ 2° É defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação,
bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem
anuência expressa do segurador.
§ 3° Intentada a ação contra o segurado, dará este ciência da lide ao segurador.
§ 4° Subsistirá a responsabilidade do segurado perante o terceiro, se o segurador
for insolvente.”

Quanto ao dano moral da pessoa jurídica, é certamente possível, segundo a súmula


227 do STJ. Contudo, o dano só se configura se houver o real prejuízo à imagem e bom
nome da empresa, e não pela perda de clientela: esta significará perda patrimonial,
consubstanciada em lucros cessantes ou perda de chance.

“Súmula 227, STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

Tema VII

CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. Noções gerais. Elementos do contrato. Disciplina legal.


Natureza jurídica. Obrigações das partes. Espécies de Contratos. Espécies de Contratos. Pagamento de
Valor Residual Garantido (VRG) e Valor Residual.

Notas de Aula8

1. Contrato de arrendamento mercantil

O contrato de arrendamento mercantil, ou leasing, é de alta densidade social,


representando, ao lado da alienação fiduciária, uma das vias de acesso a bens duráveis que
de outra forma dificilmente poderiam ser adquiridos. Por isso, mais do que em qualquer
outra relação, a preservação do contrato deve ser o norte interpretativo das problemáticas
desta relação.
Exemplo disso é quando o arrendatário vem a falir: a primeira providência do
arrendante é pedir a devolução do bem, a restituição, com base no artigo 85 da Lei
11.101/05 – pois o arrendante é dono do bem. Contudo, com base no artigo 117 da mesma
Lei, o juiz pode manter o contrato, se for interesse do arrendatário falido:

8
Aula ministrada pelo professor Juan Luiz Souza Vazquez, em 1/12/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“Art. 85. O proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se


encontre em poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua
restituição.
Parágrafo único. Também pode ser pedida a restituição de coisa vendida a crédito e
entregue ao devedor nos 15 (quinze) dias anteriores ao requerimento de sua
falência, se ainda não alienada.”

“Art. 117. Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser
cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o
aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação
de seus ativos, mediante autorização do Comitê.
(...)”

Destarte, há que se ter em mente a relevância econômica destes contratos de alta


densidade social: sua causa econômica é tremenda, pois sem estes contratos não há como o
mercado de bens de maior valor operar, circulando riquezas. A proteção ao arrendatário,
que via de regra é consumidor, não pode tornar o pacto tão arriscado para o arrendante a
ponto de desestimulá-lo em continuar fazendo novos contratos, por temor do prejuízo, ou
toda a sociedade econômica perderá com isso.
O conceito legal do leasing vem no parágrafo único do artigo 1° da Lei 6.099/1974:

“Art 1º O tratamento tributário das operações de arrendamento mercantil reger-se-á


pelas disposições desta Lei.
Parágrafo único - Considera-se arrendamento mercantil, para os efeitos desta Lei, o
negócio jurídico realizado entre pessoa jurídica, na qualidade de arrendadora, e
pessoa física ou jurídica, na qualidade de arrendatária, e que tenha por objeto o
arrendamento de bens adquiridos pela arrendadora, segundo especificações da
arrendatária e para uso próprio desta. (Redação dada pela Lei nº 7.132, de 1983).”
As normas principais da base legal deste contrato são a Lei 6.099/74 e Resolução
2.309/96 do Conselho Monetário Nacional (que dão o tratamento tributário), e a Lei
11.649/08 (sobre veículo automotor). Ainda deverão ser observadas as Resoluções 3.401/06
e 3.516/07, do Bacen, que traçam regras de liquidação antecipada e fornecimento de
informações aos arrendatários. A Lei 11.649/08 trata da extinção e baixa do leasing de
veículo automotor, como se vê em seu artigo 1°:

“Art. 1° Nos contratos de arrendamento mercantil de veículos automotivos, após a


quitação de todas as parcelas vencidas e vincendas, das obrigações pecuniárias
previstas em contrato, e do envio ao arrendador de comprovante de pagamento dos
IPVAs e dos DPVATs, bem como das multas pagas nas esferas Federal, Estaduais e
Municipais, documentos esses acompanhados de carta na qual a arrendatária
manifesta formalmente sua opção pela compra do bem, exigida pela Lei no 6.099,
de 12 de setembro de 1974, a sociedade de arrendamento mercantil, na qualidade
de arrendadora, deverá, no prazo de até trinta dias úteis, após recebimento destes
documentos, remeter ao arrendatário:
I - o documento único de transferência (DUT) do veículo devidamente assinado
pela arrendadora, a fim de possibilitar que o arrendatário providencie a respectiva
transferência de propriedade do veículo junto ao departamento de trânsito do
Estado;
II - a nota promissória vinculada ao contrato e emitida pelo arrendatário, se houver,
com o devido carimbo de "liquidada" ou "sem efeito", bem como o termo de
quitação do respectivo contrato de arrendamento mercantil (leasing).

Michell Nunes Midlej Maron 64


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Parágrafo único. Considerar-se-á como nula de pleno direito qualquer cláusula


contratual relativa à operação de arrendamento mercantil de veículo automotivo
que disponha de modo contrário ao disposto neste artigo.”

As resoluções do Bacen tratam principalmente da questão da informação dos juros e


do direito de liquidar antecipadamente o contrato, que assiste ao arrendatário, nas condições
ali enunciadas.

1.1. Pólos da relação

Para poder figurar na posição de arrendador, o interessado deve preencher alguns


requisitos. Veja os artigos 3° e 4° da Resolução 2.309 do CMN:

“Art. 3º: A constituição e o funcionamento das pessoas jurídicas que tenham como
objeto principal de sua atividade a prática de operações de arrendamento mercantil,
denominadas sociedades de arrendamento mercantil, dependem de autorização do
Banco Central do Brasil.”

“Art. 4º As sociedades de arrendamento mercantil devem adotar a forma jurídica


de sociedades anônimas e a elas se aplicam, no que couber, as mesmas condições
estabelecidas para o funcionamento de instituições financeiras na Lei nº 4.595, de
31.12.64, e legislação posterior relativa ao Sistema Financeiro Nacional, devendo
constar obrigatoriamente de sua denominação social a expressão "Arrendamento
Mercantil".
Parágrafo único. A expressão "Arrendamento Mercantil" na denominação ou razão
social é privativa das sociedades de que trata este artigo.”

Como se vê, para ser arrendador, é fundamental que haja a autorização do Bacen, e
a sociedade que assim pretenda operar deve ser necessariamente uma S/A. Na praxe, estes
requisitos nem sempre são observados, porém – mas tecnicamente são exigíveis.
Para ser arrendatário, porém, é claro que não há qualquer requisito legal a ser
preenchido, sendo um contrato como qualquer outro.
As sociedades empresárias de arrendamento mercantil são equiparadas às
instituições financeiras. Veja o REsp. 900.527:

“REsp 900527 / SP. DJe 10/06/2008. TRIBUTÁRIO – EMPRESAS DE


ARRENDAMENTO MERCANTIL – EQUIPARAÇÃO A INSTITUIÇÕES
FINANCEIRAS – INCIDÊNCIA DE ALÍQUOTA ZERO DE CPMF – ART. 8º,
INCISO III, DA LEI 9.311/96 – PRECEDENTE DA PRIMEIRA SEÇÃO NO
RESP 826.075/SP.
1. A Primeira Seção, no julgamento do REsp 826.075/SP, pacificou o entendimento
de que as empresas de arrendamento mercantil estão equiparadas às instituições
financeiras, tanto no respeito ao tratamento financeiro, quanto ao tributário.
2. Também pacificado que, em relação a essas empresas, a aplicação da alíquota
zero da CPMF, na forma do disposto no art. 8º, inciso III, da Lei 9.331/96, se
estende às demais operações por elas realizadas para a consecução do seu objeto
social (arrendamento mercantil), desde que previstas no ato do Ministro da
Fazenda (Portaria nº 134, de 11 de junho de 1999).
3. Recurso da FAZENDA NACIONAL não provido.
4. Recurso da empresa provido.”

1.2. Classificação

Michell Nunes Midlej Maron 65


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Na classificação tradicional, o contrato é consensual, se aperfeiçoando no simples


consentimento das partes, exigida a forma escrita; é bilateral, criando obrigações para
ambos os contratantes; é oneroso, pois gera ônus e vantagens para ambos; e é de execução
sucessiva.
Na classificação segundo a finalidade do contrato, há três modalidades de
arrendamento mercantil: o leasing operacional, o leasing financeiro, e o lease-back.

1.3. Natureza jurídica

O leasing é um contrato misto, reunindo características de outros três tipos


contratuais, locação, financiamento e compra e venda, encontrando-se nas parcelas pagas
pelo consumidor um valor referente a cada um desses elementos que o compõem. Ao final
do contrato, faculta-se ao arrendatário o exercício de um dos três direitos, os quais possuem
natureza potestativa: tornar-se proprietário; renovar a locação; ou devolver a coisa. A
respeito, veja a Apelação Cível 2008.001.33209, do TJ/RJ:

“Processo: 0000037-50.2004.8.19.0206 (2008.001.33209). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. CARLOS SANTOS DE OLIVEIRA - Julgamento: 26/08/2008
- NONA CAMARA CIVEL.
AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM RESCISÃO
CONTRATUAL E INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS.
ARRENDAMENTO MERCANTIL. COBRANÇA ANTECIPADA DO VALOR
RESIDUAL GARANTIDO QUE NÃO DESCARACTERIZA O CONTRATO
PARA UMA COMPRA E VENDA À PRESTAÇÃO. SÚMULA Nº 293 DO STJ E
67 DO TJERJ. DESPROVIMENTO DO RECURSO.- O contrato de arrendamento
mercantil reúne características de outros três tipos contratuais: locação,
financiamento e compra e venda, encontrando-se nas parcelas pagas pelo
consumidor um valor referente a cada um desses elementos que o compõem. Ao
final do contrato, faculta-se ao arrendatário o exercício de um dos três direitos:
tornar-se proprietário, renovar a locação ou devolver a coisa, que possuem a
natureza de direitos potestativos. - O apelo da parte ré limita-se a defender a
transformação do contrato de arrendamento mercantil em compra e venda a prazo
em razão da antecipação do pagamento do valor residual garantido, tese que já foi
acolhida outrora pelo Superior Tribunal de Justiça, mas que há muito já se encontra
superada, desde o cancelamento da súmula nº 263, em 27/08/2003, e subseqüente
edição da súmula nº 293, que é taxativa ao dispor que A cobrança antecipada do
valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento
mercantil. O mesmo entendimento restou consolidado no enunciado da súmula nº
67 do TJERJ.- Não implicando o pagamento adiantado do valor residual garantido,
necessariamente, a antecipação da opção de compra, posto subsistirem as opções
de devolução do bem ou prorrogação do contrato, não há que se cogitar de
transferência de propriedade ao réu, como mencionado no recurso de apelação,
cabendo, por isso, a reintegração de posse em favor do autor no caso do
inadimplemento das parcelas devidas, ressalvado o direito do devedor de obter a
restituição das importâncias pagas a título de antecipação do valor residual. Vale
dizer, não se verifica qualquer vantagem indevida ou desproporcional em favor do
arrendante, tendente a contrariar o disposto nos incisos IV e XV do art. 51 do
estatuto consumerista. Desprovimento do recurso.”

Esta definição da natureza do contrato significa, por exemplo, que o arrendador não
pode, por exemplo, emitir duplicatas referentes ao contrato de leasing, porque a duplicata é

Michell Nunes Midlej Maron 66


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título causal, só podendo ser emitida em razão de compra e venda ou prestação de serviços.
Como o leasing é misto, não permite a emissão destes títulos.

1.4. Leasing financeiro vs. leasing operacional

O artigo 5° da Resolução 2.309/96 do CMN apresenta esta modalidade de leasing:

“Art. 5º Considera-se arrendamento mercantil financeiro a modalidade em que:


I - as contraprestações e demais pagamentos previstos no contrato, devidos pela
arrendatária, sejam normalmente suficientes para que a arrendadora recupere o
custo do bem arrendado durante o prazo contratual da operação e, adicionalmente,
obtenha um retorno sobre os recursos investidos;
II - as despesas de manutenção, assistência técnica e serviços correlatos à
operacionalidade do bem arrendado sejam de responsabilidade da arrendatária;
III - o preço para o exercício da opção de compra seja livremente pactuado,
podendo ser, inclusive, o valor de mercado do bem arrendado.”

O artigo 6° da Resolução 2.309/96 do CMN trata do leasing operacional:

“Art. 6º Considera-se arrendamento mercantil operacional a modalidade em que:


I - as contraprestações a serem pagas pela arrendatária contemplem o custo de
arrendamento do bem e os serviços inerentes à sua colocação à disposição da
arrendatária, não podendo o total dos pagamentos da espécie ultrapassar 75%
(setenta e cinco por cento) do custo do bem arrendado;
II - as despesas de manutenção, assistência técnica e serviços correlatos à
operacionalidade do bem arrendado sejam de responsabilidade da arrendadora ou
da arrendatária;
III - o preço para o exercício da opção de compra seja o valor de mercado do bem
arrendado.
Parágrafo único. As operações de que trata este artigo são privativas dos bancos
múltiplos com carteira de arrendamento mercantil e das sociedades de
arrendamento mercantil.”

No arrendamento mercantil operacional, o bem arrendado pertence ao próprio


arrendador, enquanto no arrendamento financeiro o arrendatário é quem indica para o
arrendador qual será o bem que deseja adquirir de terceiro. Enquanto no leasing
operacional há duas figuras, arrendatário e arrendador, no financeiro há três: arrendatário,
arrendador e o terceiro fornecedor. Esta é a diferença principal, da qual decorrem as
demais.
No arrendamento financeiro de um veículo, por exemplo, o arrendatário escolhe o
bem em uma concessionária; esta aciona a instituição arrendadora, que, aprovando o
negócio, compra o bem e, ato contínuo, entrega-o arrendado ao consumidor, que passará a
usar o bem que agora pertence ao arrendador, em típica locação. No leasing operacional,
não há esta dinâmica: o próprio arrendador é quem é dono do bem desde sempre, havendo
apenas a locação, diretamente, com as particularidades que este contrato de leasing carrega.
Uma outra diferença entre estes contratos diz respeito ao valor residual garantido –
o VRG. Pelo ensejo, vale desde logo explicitar este conceito. Este elemento do contrato não
se confunde com o valor residual, em si. Entenda: o arrendatário paga as parcelas mensais
do contrato, e quando chega ao final, tem a chamada tríplice opção: pode renovar o
contrato, extinguí-lo, ou adquirir o bem. Se fizer a opção de compra, terá que pagar um

Michell Nunes Midlej Maron 67


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valor residual que corresponderá ao preço do bem, pois as parcelas pagas ao longo do
contrato representaram a contraprestação pelo uso do bem, ou seja, o aluguel.
Ocorre que este preço seria muito alto, e a opção de compra se tornaria muito
onerosa, tornando-se desvantajosa. Por isso, é permitido aos contratantes pactuar a diluição
do valor residual pelo iter contratual, antecipando em cada parcela um percentual do valor
residual, o que passa a ser o VRG. Assim, ao final, o valor residual propriamente dito será
muito menor, favorecendo a realização da opção de compra, ao final – o que é bom para
ambos, arrendatário e arrendante.
Voltando à diferença entre o leasing financeiro e o operacional, o VRG pode ser
cobrado apenas no financeiro: é vedada sua cobrança no leasing operacional. Isto não
impede, contudo, o exercício da opção de compra, mas esta se torna mais dispendiosa ao
final, eis que o valor residual será mais alto.
Na praxe, o leasing operacional não caminha para a natural aquisição do bem, como
acontece no leasing financeiro. O exercício da opção de compra é quase que o destino certo
do leasing financeiro, enquanto no operacional é uma raridade. Assim o é porque no
leasing operacional, em regra, os bens são muito específicos, tornando-se obsoletos muito
rapidamente, ou necessitando de manutenção constante e altamente especializada
(máquinas de fotocópias, aeronaves, embarcações). Daí se colhe outra peculiaridade prática
do leasing operacional: é quase sempre atrelado a um contrato acessório de prestação de
serviços de manutenção, ante a especialidade técnica desta (como se vê no próprio artigo
6°, I, supra). O valor remuneratório pode estar embutido na parcela mensal, dependendo da
autonomia das partes.
Vale ressaltar que o leasing, de qualquer modalidade, representa, contabilmente,
uma despesa operacional para o arrendatário: é um pagamento de aluguel que está fazendo.
Ao exercer a opção de compra, o arrendatário estará incorporando o bem ao seu patrimônio,
deixando de ser despesa para ser ativo – computando-se como tal para efeitos tributários.
Por não ser possível a cobrança do VRG no operacional, a prestação paga por mês é
a título puro de locação. Por isso, normalmente o aluguel cobrado é maior, porque a chance
de venda do bem ao final é muito menor. No leasing financeiro, ao contrário, a
possibilidade de cobrança do VRG, ao lado da parcela de locação, permite que esta seja
menor, pois quanto mais diluído o valor residual, mais fácil será a aquisição do bem ao
final, o exercício da opção de compra.
O prazo é também um diferenciador entre as modalidades operacional e financeiro,
como se vê no artigo 8° da Resolução 2.309/96 do CMN:

“Art. 8º Os contratos devem estabelecer os seguintes prazos mínimos de


arrendamento:
I - para o arrendamento mercantil financeiro:
a) 2 (dois) anos, compreendidos entre a data de entrega dos bens a arrendatária,
consubstanciada em termo de aceitação e recebimento dos bens, e a data de
vencimento da última contraprestação, quando se tratar de arrendamento de bens
com vida útil igual ou inferior a 5 (cinco) anos;
b) 3 (três) anos, observada a definição do prazo constante da alínea anterior, para o
arrendamento de outros bens;
II - para o arrendamento mercantil operacional, 90 (noventa) dias.”

1.5. Lease-back

Michell Nunes Midlej Maron 68


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O lease-back, chamado leasing de retorno ocorre quando uma sociedade empresária


é proprietária de um bem, móvel ou imóvel, e o vende a uma outra empresa. Esta,
adquirindo-o, imediatamente o arrenda à vendedora. É, portanto, uma operação em que uma
sociedade empresária aliena um bem de sua propriedade a uma instituição financeira,
arrendado-o em seguida, com a opção de readquiri-lo no final do contrato.
Veja que a grande diferença deste contrato para o leasing financeiro está no seu
escopo: enquanto na ordem regular o arrendatário não tem o bem, e pretende obtê-lo para
uso ou aquisição ao final, no lease-back ele é o original proprietário do bem a ser
arrendado, e a operação se destina a proporcionar ao arrendatário recursos financeiros de
que necessita, sem perder a posse do bem. Para tanto, o arrendatário vende o seu bem ao
arrendante, e imediatamente o toma em arrendamento mercantil de retorno, ficando na
posse do bem – passando o contrato, neste momento, a ser idêntico ao de leasing
financeiro.
Há quem classifique este tipo de leasing como uma mera variante do arrendamento
financeiro, justamente porque a única diferença é a figura do vendedor do bem: enquanto
no financeiro é um terceiro, no lease-back é o próprio arrendatário quem vende o bem. A
maior corrente, entretanto, o trata mesmo como modalidade autônoma.

1.6. Leasing vs. compra e venda

A antecipação do VRG não descaracteriza o leasing, transformando-o em compra e


venda. Como dito, o VRG é apenas uma diluição do valor residual ao longo do contrato,
para que a eventual opção de compra fique mais atraente ao final, restando pouco a pagar
caso haja esta opção. Ainda persistem, porém, as duas outras opções – a extinção do
contrato ou a sua renovação.
A respeito, veja a ementa e trecho da Apelação Cível 2007.001.67807, do TJ/RJ:

“Processo: 0069732-56.2006.8.19.0001 (2007.001.67807). 1ª Ementa –


APELACAO DES. SERGIO LUCIO CRUZ - Julgamento: 19/08/2008 - DECIMA
QUINTA CAMARA CIVEL.
AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE.LEASING.MORA
CONFESSADA.BEM APREENDIDO.DEFESA QUE SE AMPARA EM TRÊS
TEMAS: FALTA DE NOTIFICAÇÃO PRÉVIA, DESCARACTERIZAÇÃO DO
ARRENDAMENTO MERCANTIL, PELO ADIANTAMENTO DA VRG E, EM
SENDO DEFERIDA A REINTEGRAÇÃO, OBRIGAÇÃO DE SEREM
DEVOLVIDAS AS PARCELAS PAGAS A TAL TÍTULO.NO
ARRENDAMENTO MERCANTIL, NÃO HÁ QUALQUER LEI QUE EXIJA
PRÉVIA COMPROVAÇÃO DA MORA, MAS, DE QUALQUER SORTE, PARA
TANTO BASTA A REMESSA DA CORRESPONDÊNCIA PARA O ENDEREÇO
CONSTANTE DO CONTRATO, O QUE, NESTE CASO, OCORREU.COMO
POSTO NO VERBETE N° 293 DA SÚMULA DO COLENDO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA, A COBRANÇA ANTECIPADA DO VALOR
RESIDUAL GARANTIDO (VRG) NÃO DESCARACTERIZA O CONTRATO
DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. EM ARRENDAMENTO MERCANTIL
(LOCAÇÃO), NÃO HÁ JUROS, MAS SIMPLES PREÇO DA LOCAÇÃO,
FIXADO PELO ARRENDADOR E LIVREMENTE ACEITO PELO
ARRENDATÁRIO. NÃO CABE DISCUTIR, AQUI, RESTITUIÇÃO DE
VALORES, POR SE TRATAR DE AÇÃO MERAMENTE POSSESSÓRIA.
PROVIMENTO DO RECURSO, PARA JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO,

Michell Nunes Midlej Maron 69


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INVERTIDOS OS ÔNUS SUCUMBENCIAIS, COM DEFERIMENTO DE


GRATUIDADE À APELADA.
(...)
No que tange à descaracterização do leasing pela antecipada cobrança do VRG, a r.
sentença de primeiro grau está na contramão da história, eis que o verbete n° 263
da “Súmula” do Colendo Superior Tribunal de Justiça, que isso proclamava, foi
revogado pela Segunda Seção daquela Corte, no julgamento dos RESPs 443.143-
GO e 470.632-SP, na sessão de 27/08/2003, vigendo, agora, sobre o tema o de n° ,
que reza: “Verbete n° 293. A cobrança antecipada do valor residual garantido
(VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil”. Décima Quinta
Câmara Cível. Apelação Cível n° 2007.001.67807 – Capital. Relator, vencido:
Desembargador Galdino Siqueira Netto. Revisor, designado para Acórdão:
Desembargador Sergio Lucio de Oliveira e Cruz.”

Veja que no acórdão acima há um voto vencido, em que se entende que há, sim esta
descaracterização do leasing, transformando-o em compra e venda, quando há a
antecipação do VRG. Veja trecho:
“No caso presente, na medida em que houve o pagamento antecipado a título de
VRG (Valor Residual Garantido), descaracterizado o contrato de arrendamento
mercantil para de compra e venda parcelada, devendo os respectivos encargos ser
definidos (...)”

Vale mencionar que esta questão já foi tão controvertida que o STJ emitiu duas
súmulas exatamente opostas, a posterior cancelando a anterior, sendo que o primeiro
entendimento era justamente este do voto vencido acima. Veja os verbetes 263 e 293 da
súmula do STJ:

“Súmula 263, STJ: A cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza


o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a
prestação.(*).
(*) Julgando os RESPs 443.143-GO e 470.632-SP, na sessão de
27/08/2003, a Segunda Seção deliberou pelo CANCELAMENTO da
Súmula n. 263.”

“Súmula 293, STJ: A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não
descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil.”

Veja que a súmula 263, supra, era quase sempre desfavorável ao arrendatário e ao
arrendador. Ao arrendador, prejudicavas seu meio judicial de reaver o bem, em caso de
inadimplemento: não poderia haver busca e apreensão, pois na compra e venda não há mais
a sua posse indireta, que há no leasing, locação que é. Ao arrendatário, a compra e venda
representa inserção do bem no ativo, e não despesa operacional, como representa o leasing
– sofrendo tributação pelo imposto de renda, ao invés de desconto nesta tributação.
Fica estabelecido, então, que a antecipação do VRG não desnatura o leasing. Surge,
porém, um argumento inovativo da Fazenda Pública (a quem a conversão em compra e
venda interessa, eis que incidirá IR), quando a situação revelar que resta apenas um valor
ínfimo para o valor residual, ou seja, quase todo ele foi antecipado – entende que isto é uma
compra e venda maquiada. Esta tese não é encampada pela jurisprudência, como se pode
ver no REsp. 897.536, donde se colhem também os argumentos da Fazenda:

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“REsp 897536 / MG. DJ 29/03/2007 p. 241. TRIBUTÁRIO. IRPJ.


ARRENDAMENTO MERCANTIL (LEASING). VALOR RESIDUAL.
IRRISÓRIO. DESCARACTERIZAÇÃO DO CONTRATO PARA COMPRA E
VENDA. IMPOSSIBILIDADE.
1. A legislação que disciplinou o contrato de arredamento mercantil (Lei 6.099/74,
com as alterações da Lei 7.132/83, e Resolução do BACEN 2.309/96) não
estipulou limites para as contraprestações e nem fixou limites ao valor residual.
Assim, a circunstância de ser ínfimo o valor restante ao final do ajuste, pela
concentração das prestações no início do contrato, não permite à Fazenda Nacional
atribuir a este natureza diversa (contrato de compra e venda) daquela pactuada
pelas partes (arrendamento mercantil), imputando à empresa arrendatária a
obrigação de recolher o IRPJ, nos termos do § 1º do art. 11 da Lei 6.099/74.
Precedentes: RESP 543.234/MG, 1ª Turma, Min. José Delgado, DJ de 03.05.2004;
RESP 633.204/MG, 1ª Turma, Min. Luiz Fux, DJ de 13.12.2004; RESP
509.437/MG, 2ª Turma, Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 30.05.2005; RESP
189.931/SP, 2ª Turma, Min. João Otávio de Noronha, DJ de 13.06.2005.
2. Recurso especial a que se nega provimento.”
(...)
A Fazenda Nacional, amparada na alínea a do permissivo constitucional, aponta
ofensa ao artigo 11 da Lei nº 6.009/74, aduzindo, em síntese, que (a) o auto de
infração foi lavrado em razão do fato de que os contratos de leasing celebrados
pela autora tiveram uma grande concentração do montante do pagamento no início
de sua vigência, restando um valor residual ínfimo em relação ao total das
prestações a cargo da arrendatária, o que ensejou a descaracterização do leasing ;
(b) "o que acaba por descaracterizar inteiramente o contrato de leasing é a virtual
inexistência de valor residual a ser pago pela autora no momento da opção de
compra" (fl. 89), o que ocorre nos presentes autos; (c) a compra e venda a prazo,
disfarçada de leasing, teve o único objetivo de classificar os pagamentos efetuados
como despesa operacional, reduzindo a receita tributável, já que, como compra e
venda, tais valores integrariam o ativo fixo da empresa.
(...)”

Da mesma forma, nada impede que o VRG seja antecipado de forma diferente da
usual, que é a diluição mensal. Pode haver a antecipação em uma única parcela inicial, ou
em intermediárias, não se desnaturando por isso o leasing. A Fazenda Pública não poderá
descaracterizar o leasing para compra e venda pelo simples fato de que se ajustaram valores
diferenciados nas prestações, porque não há dispositivo legal que delimite como se opera a
antecipação do VRG. Neste sentido, veja o REsp. 510.159:

“TRIBUTÁRIO - IMPOSTO DE RENDA - ARRENDAMENTO MERCANTIL


(LEASING) - DESCARACTERIZAÇÃO PARA CONTRATO DE COMPRA E
VENDA - NÃO-OCORRÊNCIA - LEI N. 6.099/74 – PRECEDENTES. 1. A
controvérsia trazida a cotejo consubstancia-se na possibilidade de se
descaracterizar contratos de leasing para contratos de compra e venda, para fins de
cobrança de diferenças de imposto de renda de pessoa jurídica. 2. A jurisprudência
deste Tribunal é assente no sentido de que os contratos de leasing não podem ser
descaracterizados pela Fazenda Pública – passando a ser considerados como de
compra e venda –, pelo simples fato de as partes ajustarem valores diferenciados
para as obrigações mensais, se inexiste dispositivo legal que determine a
obrigatoriedade do valor específico para cada prestação. Recurso especial
improvido. (REsp 510.159/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS,
SEGUNDA TURMA, julgado em 04.09.2007, DJ 17.09.2007 p. 232).”

1.7. Resolução contratual

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Na resolução do contrato de leasing, a qualquer título, e em qualquer momento,


impõe a devolução do VRG ao arrendatário, desde que ele devolva, por óbvio, o bem
arrendado, e que os custos da rescisão sejam abatidos do valor a ser restituído. Veja: o
VRG, que é antecipação do valor a ser pago a título de compra do bem, caso exerça esta
opção, poderá ser compensado com valores eventualmente devidos na rescisão (parcelas da
locação em atraso, multas, etc.); restando valor a maior, este deverá ser devolvido ao
arrendatário, mediante devolução do bem.
Neste sentido, veja a jurisprudência do TJ/RJ, na Apelação Cível 2008.001.51485,
cuja ementa e trecho seguem transcritos:

“APELAÇÃO CÍVEL Nº 2008.001.51485. DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL.


DES. MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO.
CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. RESILIÇÃO
UNILATERAL DO CONTRATO POR IMPOSSIBILIDADE ECONÔMICA DE
PAGAR AS PRESTAÇÕES. DEVOLUÇÃO VOLUNTÁRIA DO BEM PELA
ARRENDATÁRIA À ARRENDADORA. POSICIONAMENTO PACIFICADO,
NESTE TRIBUNAL E NO STJ, QUANTO À POSSIBILIDADE DE
DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS A TÍTULO DE VALOR RESIDUAL
GARANTIDO (VRG), BEM COMO À IMPOSSIBILIDADE DE DEVOLUÇÃO
DOS VALORES PAGOS A TÍTULO DE ALUGUÉIS. INTELIGÊNCIA DA
SÚMULA 293 DO STJ. RECURSOS A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, EIS
QUE EM CONFRONTO COM JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DESTA
CORTE E DAS CORTES SUPERIORES, NA FORMA DO ART. 557 DO CPC.
(...)
A pretensão de reforma do julgado para extirpar dali a condenação à restituição do
VRG à Autora é diretamente contrária à posição mais do que assentada na
jurisprudência, tanto deste Tribunal quanto do STJ. Isto porque, de fato, o VRG
destina-se à aquisição futura do bem, e não possui natureza de contraprestação a
nenhuma prestação oferecida pela arrendadora: esta já obtém remuneração da
locação pelos demais valores componentes da parcela mensal paga pela
arrendatária.
O valor do VRG pertence à Autora, pois que fora meramente adiantado por ela ao
Réu para, no futuro, integrar o valor final em caso de opção de compra. Nessa
linha de raciocínio, uma vez resolvido o contrato de arrendamento mercantil, no
qual houve a antecipação do valor residual garantido, impõe-se a devolução do
mesmo devidamente atualizado, sob pena de caracterização de enriquecimento sem
causa, já que a opção de compra não terá ocorrido.”

Outra não tem sido a orientação do STJ:

“CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO.


ARRENDAMENTO MERCANTIL. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. VRG.
DEVOLUÇÃO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. IMPROVIMENTO.
I. Com a resolução do contrato e a reintegração do bem na posse da arrendadora,
possível a devolução dos valores pagos a título de VRG à arrendatária.
Precedentes.
II. Agravo regimental desprovido."
(4ª Turma, AgRg no Ag n. 732639/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, unânime,
DJU de 15.05.2006)”

“RECURSO ESPECIAL – ARRENDAMENTO MERCANTIL – RESOLUÇÃO


POR INADIMPLEMENTO - AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE –

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

VALOR RESIDUAL GARANTIDO PAGO ANTECIPADAMENTE –


DEVOLUÇÃO – POSSIBILIDADE.
Diante da resolução do contrato de arrendamento mercantil por inadimplemento do
arrendatário, é possível a devolução do chamado VRG, pago antecipadamente, à
conta de ser uma conseqüência da reintegração do bem na posse da arrendante.
Recurso especial não conhecido."
(3ª Turma, REsp n. 470.512/DF, Rel. Min. Castro Filho, unânime, DJU de
17.11.2003)”

“RECURSO ESPECIAL – ARRENDAMENTO MERCANTIL – RESOLUÇÃO


POR INADIMPLEMENTO - AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE –
VALOR RESIDUAL GARANTIDO PAGO ANTECIPADAMENTE –
DEVOLUÇÃO E COMPENSAÇÃO - POSSIBILIDADE.
Diante da resolução do contrato de arrendamento mercantil por inadimplemento do
arrendatário, é devida a devolução do chamado VRG, pago antecipadamente, à
conta de ser uma conseqüência da reintegração do bem, assim como a
compensação deste com eventual crédito existente em favor da empresa
arrendante. Recurso especial conhecido e parcialmente provido."
(3ª Turma, REsp n. 373.674/PR, Rel. Min. Castro Filho, unânime, DJU de
16.11.2004)”

Veja a Apelação Cível 2008.001.33045, que chama atenção à possibilidade de


compensação do valor a ser restituído a título de VRG se há débito do arrendatário perante
o arrendante:

“Processo: 0005573-11.2005.8.19.0205 (2008.001.33045) 1ª Ementa -


APELACAO DES. FERNANDO FERNANDY FERNANDES - Julgamento:
30/06/2008 - DECIMA NONA CAMARA CIVEL.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. CONTRATO
DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. DEVOLUÇÃO DO VALOR RESIDUAL
GARANTIDO - VGR. COMPENSAÇÃO COM OS VALORES AINDA
DEVIDOS PELO ARRENDATÁRIO. APELAÇÃO A QUE SE NEGA
SEGUIMENTO.
2ª Ementa - APELACAO DES. FERNANDO FERNANDY FERNANDES -
Julgamento: 26/08/2008 - DECIMA NONA CAMARA CIVEL
AGRAVO INOMINADO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE.
CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. DEVOLUÇÃO DO
VALOR RESIDUAL GARANTIDO - VGR. COMPENSAÇÃO COM OS
VALORES AINDA DEVIDOS PELO ARRENDATÁRIO. AGRAVO
INOMINADO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
(...)
Com efeito, no caso em exame nada há de ser restituído ao autor agravado a título
de VRG, considerando-se o valor do débito constante nos autos, já que o
arrendatário pagou tão-somente cinco das trinta e seis parcelas do contrato.”

Como dito, é claro que o bem precisa ser devolvido ao arrendante para que o VRG
seja restituível. Veja a Apelação Cível 2008.001.19439, do TJ/RJ:

“Ação de reintegração de posse. Contrato de arrendamento mercantil. Mora.


Veículo roubado.
A perda do bem objeto do arrendamento mercantil, resulta na impossibilidade do
apelado usá-lo e, posteriormente, adquirilo, razão pela qual o contrato se extinguiu
por perda de objeto.” Impossibilidade de recuperação da posse em virtude do
roubo. Perda de objeto quanto à pretensão de reintegração de posse. Devolução do

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

VRG. Descabimento. A devolução do VRG é conseqüência da devolução do bem.


Não tendo sido o arrendante reintegrado na posse do bem, não há que se falar em
devolução de quantias a título de valor residual garantido (VRG).”

Vale mencionar, ainda, que a devolução do VRG é na forma simples, e não em


dobro, porque não há pagamento indevido: o VRG era devido quando foi pago. Veja
julgado do TJ/RJ que assim diz:

“APELAÇÃO CÍVEL. RECONVENÇÃO. LEASING. VRG. RESCISÃO.


CONTRATUAL. RESTITUIÇÃO DOS VALORES. Na esteira da jurisprudência
do STJ e do TJRJ, havendo rescisão do contrato de leasing, obriga-se o arrendante
a restituir de forma simples ao arrendatário, os valores do VRG. Recurso provido.
TJRJ: 14ª Câmara Cível. Apelação Cível nº. 2007.001.18041.Relator: Des.
CHERUBIN SCHWARTZ.”

Isoladamente, Arnoldo Wald diz que o VRG jamais deve ser devolvido ao
arrendatário, mesmo mediante restituição do bem e compensação dos débitos. Assim
entende porque esta devolução, supostamente, violaria a base econômico-financeira do
contrato, o seu equilíbrio, pois todo o cálculo da prestação é feito justamente com base na
manutenção do VRG e na probabilidade de opção de compra ao final. Diz ele, ainda, que se
a devolução for a regra, o contrato será inviável, porque as arrendadoras terão que majorar
muito o valor da parcela paga a título de aluguel, de forma a reduzir o seu risco de prejuízo
no contrato, quando da resolução. É posição isolada, porém.
A devolução pode ser realizada nos próprios autos da ação de reintegração de posse
em que o consumidor seja réu, ou é preciso ajuizar ação própria? A questão é bastante
controvertida. Entendendo que sim, veja a Apelação Cível 2008.001.48502, do TJ/RJ:

“APELAÇÃO CÍVEL. DEVOLUÇÃO DO VALOR RESIDUAL DE GARANTIA


(VRG). É possível a devolução de Valor Residual Garantido (VRG), nos autos da
ação possessória, por ocasião da rescisão do contrato de arrendamento mercantil
na hipótese de inadimplemento, Precedentes do STJ e do TJRJ. 14ª CÂMARA
CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO APELAÇÃO
CÍVEL Nº 48502/08 RELATOR: DESEMBARGADOR JOSÉ CARLOS PAES.”

Defendendo que não é possível esta restituição na ação possessória, veja a Apelação
Cível 2008.001.57155, do mesmo Tribunal:

“APELAÇÃO CÍVEL Nº 2008.001.57155. Agravo interno. Decisão negando


seguimento ao apelo. Ação de reintegração de posse. Leasing. Inadimplemento
confessado. Descabimento de purga de mora, por inexistir lei que a defira em sede
possessória e por não mais existir mora, mas sim inadimplemento absoluto. Não
podendo ser discutida, aqui, qualquer cláusula financeira, por se tratar de uma ação
meramente possessória, é absolutamente protelatório requerimento de produção de
prova pericial contábil. Desprovimento do recurso. Des. SÉRGIO LÚCIO CRUZ -
julgamento: 25/11/2008 – DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL.”

No inteiro teor deste último acórdão, o relator expressamente veda a possibilidade


de ser feita a devolução nos autos da reintegração de posse9.

9
Pelo ensejo, vale ver a súmula 103 do TJ/RJ, que fala da constituição em mora do devedor arrendatário:

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Resolvido o contrato, o arrendatário não deverá pagar as parcelas vincendas se


devolver o bem. Se não restituir o bem, é claro que deve pagar o que resta. Veja a Apelação
Cível 2008.001.64252, do TJ/RJ:

“APELAÇÃO CÍVEL 2008.001.64252. Direito Processual Civil. Aplicação do


artigo 557 do Digesto Processual e do artigo 31, inciso VIII, do Regimento Interno
do Tribunal de Justiça. Leasing. Reintegração de posse. Condenação na sentença
ao pagamento das parcelas vencidas até a retomada do veículo em cumprimento a
liminar deferida. Apelação. Inconformismo. Alegação de que a sentença é extra
petita, devendo o apelado ser condenado ao pagamento das prestações vencidas e
vincendas. Descabimento. Constitui cláusula abusiva a determinação de que
mesmo com a retomada do veículo deva o contratante ser responsabilizado pelo
pagamento das parcelas vincendas. Precedentes. STJ. LEASING - EXECUÇÃO -
NOTA PROMISSÓRIA AVALISTA - INCLUSÃO DAS PARCELAS
VINCENDAS IMPOSSIBILIDADE - PRECEDENTES DO STJ. I - A obrigação
cambial é autônoma mas o valor da nota promissória deve guardar coerência com
os termos do contrato. II - Segundo Jurisprudência consolidada neste STJ,
ocorrendo a resolução do contrato de leasing por inadimplemento do arrendatário e
sendo retomado o bem, não se permite que o arrendador exija o pagamento das
prestações vincendas. III Recurso especial não conhecido. (REsp 236.699/SP, Rel.
Ministro WALDEMAR ZVEITER, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/02/2001,
DJ 02/04/2001 p. 289). Desprovimento do recurso. DES. NAGIB SLAIBI -
Julgamento: 15/01/2009 - SEXTA CÂMARA CÍVEL.”

1.7.1. Cláusula resolutória expressa e purgação da mora

A cláusula resolutória é expressa quando diz textualmente que, havendo


inadimplência do arrendatário, o contrato fica resolvido de pleno direito, sem possibilidade
de purgação da mora pelo arrendatário. Esta cláusula é abusiva, para a maior corrente, pois
é possível purgar a mora, mesmo não existindo previsão legal, pelo que não pode ser
afastada esta possibilidade pela cláusula ipso facto.
Há uma certa controvérsia doutrinária, porém, ante a ausência de previsão legal do
direito a purgar a mora. Quem sustenta este direito defende-o com base na função social do
contrato, e no princípio da conservação dos contratos, mas há quem defenda que a
resolução sem possibilidade de purgação é válida, justamente por carecer de lei outorgando
direito a esta purgação.
É claro que se está falando de purgação da mora das parcelas vencidas, e não das
vincendas. Em prol da purgação da mora, veja o seguinte julgado do TJ/RJ:
“Agravo do artigo 557 §1º do CPC no Agravo de Instrumento no 2007.002.33576
Relator: Desembargador Nagib Slaibi. (...) Decisão que deferiu a liminar e a purga
da mora. Agravo para a supressão da purga da mora sob alegação de ser incabível.
Descabimento. Na alienação fiduciária, que gera um efeito muito mais gravoso ao
inadimplente que é a prisão do depositário infiel há possibilidade de purga da
mora. Princípio da probidade e boa-fé nos contratos. Artigos 422 e 423 do Código
“Súmula 103, TJ/RJ: ARRENDAMENTO MERCANTIL. COMPROVAÇÃO DA
MORA. CARTA COM AVISO DE RECEBIMENTO. CONCESSÃO DE
LIMINAR.
‘Nas ações fundadas em contratos de arrendamento mercantil, basta a carta dirigida
ao devedor, com aviso de recebimento, entregue no endereço constante do
contrato, para comprovar a mora e justificar a concessão de liminar’.”

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Civil. Manutenção dos contratos.Princípio da probidade e boa-fé nos contratos.


Artigos 422 e 423 do Código Civil. Manutenção dos contratos. A par da prioridade
que se confere à manutenção do contrato, até mesmo em caso de onerosidade
excessiva (Código Civil, art. 479), a mora em contratos dessa espécie enseja a
possibilidade de purgação, circunstância que faz convalescer o contrato, só se
admitindo a resolução depois de esgotadas todas as oportunidades de emenda da
mora. Apesar da dívida ser considerada una, o direito positivo consagrou a
purgação mediante pagamento das parcelas vencidas em atenção à função
econômica e social do contrato de crédito e de venda com pagamento parcelado,
sobretudo os que envolvam situações de maior densidade social.”

Inclinando-se neste sentido, veja a posição do STJ, na sua súmula 369:

“Súmula 369, STJ: No contrato de arrendamento mercantil (leasing), ainda que


haja cláusula resolutiva expressa, é necessária a notificação prévia do arrendatário
para constituí-lo em mora.”

Fosse inviável a purgação, a notificação prévia não seria necessária.


Como dito, porém, há corrente que entende descabida a purgação da mora, a não ser
que o contrato expressamente a autorize, como se vê no julgado do TJ/RJ na Apelação
Cível 2008.001.57155, cuja ementa foi há pouco transcrita.
O juiz não pode exigir a planilha de cálculos quando o autor não a apresenta, na
inicial da reintegração de posse, o que é muito comum na praxe, eis que com isso o juiz
pode empreender desde logo uma verificação de eventual cobrança abusiva de encargos – o
que não lhe é permitido fazer, como se vê na súmula 381 do STJ:

“Súmula 381, STJ: Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de


ofício, da abusividade das cláusulas.”

Veja, a respeito, o Agravo de Instrumento 2008.002.18150, do TJ/RJ:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2008.002.18150. RELATOR:


Desembargador MARIO ASSIS GONÇALVES. Agravo de instrumento.
Arrendamento mercantil. Reintegração de posse. Determinação, de ofício, de
juntada de planilha. Impossibilidade. Decisão recorrida que determinou que o
credor apresentasse nova planilha de débito na qual se possa verificar a correção
dos encargos cobrados à luz do contrato assinado em observância das orientações
do STJ (...) Relativamente à determinação de juntada de nova planilha, não
obstante, a princípio, o aspecto de mero despacho há nítido caráter decisório, na
medida em que se rejeitou a planilha apresentada e determinou a juntada de outra
nos termos pelo Juízo indicado, sendo aí cabível o recurso. Tal exigência mostra-se
descabida. Não pode o magistrado, de ofício e em sede de cognição sumária,
determinar a juntada de nova planilha sob o argumento de possibilitar a verificação
dos encargos cobrados e se estes contrariam jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça. O contrato não pode ser examinado sem oitiva da ré, tendo em vista tratar-
se de direito patrimonial e disponível. O valor do débito e as cláusulas contratuais
devem ser discutidos apenas sob o crivo do contraditório e em ação própria, não
sendo correta apreciação sem que ao menos tenha ocorrido a citação.
Jurisprudência pacífica deste Tribunal de Justiça. Recurso parcialmente provido.”

Como se trata de questão patrimonial, deve ser alegada expressamente pelo devedor,
em contestação, não sendo cognoscível de ofício.

Michell Nunes Midlej Maron 76


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

1.7.2. Vícios no bem arrendado

Havendo vício no bem arrendado, a instituição arrendadora pode ser


responsabilizada? Há duas correntes sobre o tema. O STJ considerou que o banco não é
parte legítima para a ação movida pelo arrendatário objetivando o desfazimento do negócio
por conta de vício encontrado no objeto do contrato de leasing, como se vê no REsp.
444.699:

“REsp 444699 / MA DJ 19/11/2007 p. 230 CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO.


DESERÇÃO. LEI LOCAL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. AÇÃO
CONSIGNATÓRIA CUMULADA COM PEDIDO DE RESOLUÇÃO DE
CONTRATO MOVIDA CONTRA O BANCO FINANCIADOR. FUNDAMENTO
ALUSIVO A DEFEITO DE FABRICAÇÃO NO VEÍCULO. ILEGITIMIDADE
PASSIVA.
I. Não compete ao STJ a interpretação de direito local.
II. É o banco réu parte ilegitimidada para a causa, quando o fundamento do pedido
é alheio ao contrato celebrado entre aquele e o autor, porém referente a vício de
fabricação alegadamente encontrado no veículo, portanto advindo da compra e
venda celebrada com a concessionária, envolvendo produto de montadora, e ambas
não integram a lide.
III. Recurso especial não conhecido.”

Entende o STJ que só é legitimado o banco quando a discussão recair sobre aspectos
do contrato, e não sobre o bem, eis que a relação de consumo entre o arrendatário e o
terceiro fornecedor, mesmo que por equiparação (pois quem compra é a arrendadora) a ele
dirige a responsabilização.
Contudo, se se interpretar esta relação à luz da boa-fé objetiva, buscando verificar
os deveres anexos da relação, poder-se-ia exigir um comportamento proativo do banco
quando da aquisição do bem, o que gera sua responsabilidade. Veja: se o banco for adquirir
um bem para si, decerto tomará todas as cautelas necessárias para que este bem esteja em
perfeitas condições; porque não se portará assim quando adquirir bem para o terceiro
arrendatário? É com este fundamento que o TJ/RJ, na Apelação Cível 2008.001.57725,
entendeu que o banco deveria ser considerado parte legítima para a ação movida pelo
arrendatário. Veja:

“Processo: 0134571-61.2004.8.19.0001 (2008.001.57725). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. JOSE GERALDO ANTONIO - Julgamento: 26/11/2008 -
SETIMA CAMARA CIVEL
RELAÇÃO DE CONSUMO - COMPRA E VENDA E ARRENDAMENTO
MERCANTIL - VEÍCULO "SALVADO" SOB SUSPEITA DE ADULTERAÇÃO
DO NÚMERO DO CHASSI RESCISÃO DOS CONTRATOS COM A
DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS PELO CONSUMIDOR -
RESPONSABILIDADE DO VENDEDOR E DA PROPRIETÁRIA FIDUCIÁRIA
DO VEÍCULO DANOS MORAIS CONFIGURADOS - FIXAÇÃO - PRINCÍPIO
DA PROPORCIONABILIDADE E RAZOABILIDADE. O vendedor responde
pelos vícios de qualidade do produto, sendo inquestionável o seu dever de reparar
os prejuízos materiais e morais sofridos pelo consumidor. Cabe à empresa
detentora da propriedade fiduciária certificar-se da licitude e regularidade do
veículo arrendado antes de adquiri-lo, sob pena de rescisão do contrato de leasing,
com a devolução das prestações pagas e reparação dos prejuízos causados ao

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

consumidor. O valor dos danos morais arbitrados em conformidade com o critério


do proporcional/razoável, considerando a extensão e gravidade do fato, não
comporta majoração. Improvimento dos recursos.”

1.8. Aspectos tributários do leasing

O arrendador é considerado devedor solidário para fins de pagamento do IPVA. Veja


o REsp. 744.308:

“TRIBUTÁRIO. IPVA. ARRENDAMENTO MERCANTIL.


RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. ARRENDANTE. 1. O arrendante, por ser
possuidor indireto do bem e conservar a propriedade até o final do contrato de
arredamento mercantil, é responsável solidário para o adimplemento da obrigação
tributária relativa ao IPVA, nos termos do art. 1º, § 7º, da Lei Federal nº 7.431/85.
Precedentes: (REsp 897.205/DF, Rel. Min. Humberto Martins, DJU de DJU de
29.03.07; REsp 868.246/DF; Rel. Min. Francisco Falcão, DJU de 18.12.06). 2.
Recurso especial provido. (REsp 744.308/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA,
SEGUNDA TURMA, julgado em 12.08.2008, DJe 02.09.2008)”

Outrossim, o arrendador não pode ser responsabilizado por multas de trânsito


provocadas pelo uso do bem pelo arrendatário. Veja o Ag.Rg. no REsp. 967.461:

“AgRg no REsp 967461 / SP. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO


ESPECIAL. DJe 06/05/2009. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO
ESPECIAL. PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. EXECUÇÃO FISCAL.
ARRENDAMENTO MERCANTIL DE VEÍCULO. INFRAÇÃO COMETIDA
PELO ARRENDATÁRIO. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DO
ARRENDANTE. OFENSA A RESOLUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Embargos à execução opostos em desfavor da União em que se sustenta a
ilegitimidade de parte, no caso o arrendatário, em virtude de contrato de leasing,
para o pagamento de multas de trânsito.
3. In casu, o acórdão regional confirmou a procedência dos embargos à execução,
sob o fundamento de que: "a arrendadora tem, por força contratual, a propriedade
resolúvel do veículo, o que por si só já demonstra a vinculação da mesma no
adimplemento das obrigações correlatas", revelando-se flagrante a ilegitimidade
passiva ad causam da parte executada.
4. A empresa de leasing é parte ilegítima para figurar no pólo passivo de demanda
que tenha por objeto a cobrança de multa decorrente da utilização indevida do bem
pelo arrendatário (possuidor direto da coisa), não se afigurando razoável exigir da
arrendadora a fiscalização do uso do veículo arrendado (Precedentes do STJ: AgRg
no Ag 909.245/SP, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em
18.03.2008, DJ 07.05.2008; e REsp 787429/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão,
Primeira Turma, julgado em 04.04.2006, DJ 04.05.2006).
5. Caracterizada a sucumbência da recorrida impõe-se a inversão dos ônus
sucumbenciais, nos termos do caput, do art. 20, do CPC.
6. A violação ou negativa de vigência à Resolução, Portaria ou Instrução
Normativa não enseja a utilização da via especial, nos termos do art. 105, III, da
Constituição Federal. Precedentes: AgRg no Ag 505.598/SP, DJ de 01.07.2004;
REsp 612.724/RS, DJ de 30.06.2004.
7. Agravo Regimental desprovido.”

Veja também o REsp. 1.066.087:

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“REsp 1066087 / SP. DJe 10/09/2008 ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL


CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. MULTA
ADMINISTRATIVA POR TRANSPORTE IRREGULAR DE PASSAGEIROS.
VEÍCULO ADQUIRIDO POR MEIO DE CONTRATO DE ARRENDAMENTO
MERCANTIL. ILEGITIMIDADE DA ARRENDADORA PARA FIGURAR NO
PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ART. 20,
§§ 3º E 4º, DO CPC. MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 07/STJ.
1. "A empresa de arrendamento mercantil é, objetivamente, parte ilegítima para
figurar no pólo passivo da demanda causada pelo uso indevido do bem pelo
arrendatário, porquanto o mesmo é o possuidor direto da coisa, descabendo à
empresa arrendatária a fiscalização pela utilização irregular do bem" (AgRg no Ag
909245/SP, Min. José Delgado, 1ª T., DJ de 07.05.2008).
2. Não é cabível, em recurso especial, examinar a justiça do valor fixado a título de
honorários, já que o exame das circunstâncias previstas nas alíneas do § 3º do art.
20 do CPC impõe, necessariamente, incursão à seara fático-probatória dos autos,
atraindo a incidência da Súmula 7/STJ e, por analogia, da Súmula 389/STF.
3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.

O ICMS incide na importação de bens em regime de leasing? A questão reside na


possibilidade de opção de compra: se é possível a compra do bem ao final, o ICMS deve
incidir. No contrato de leasing operacional, pode haver exclusão desta cláusula, e se assim o
for, não incidirá o ICMS. Veja a Ação Rescisória 2006.006.00315, do TJ/RJ:

“Processo: 0019328-04.2006.8.19.0000 (2006.006.00315). 1ª Ementa - ACAO


RESCISORIA. DES. NAMETALA MACHADO JORGE - Julgamento:
11/08/2008 - ORGAO ESPECIAL.
Ação rescisória. Violação de literal disposição de lei. Art. 155, §2º, X, a, da CRFB;
3º, VIII, da LC 87/96; e 557 do CPC. Incidência do ICMS nas operações de
importação de aeronaves sob o sistema de leasing. Improcedência do pedido.
Segundo o entendimento firmado pelo Plenário do STF, não incide ICMS sobre a
importação de aeronaves, equipamentos e peças mediante contrato de
arrendamento mercantil, sem opção de compra. Logo, não se configurou a alegada
aplicação da norma de não incidência do art. 3º, VIII, da LC 87/96 em detrimento
de dispositivo constitucional. Tampouco há falar em afronta ao art. 557 do CPC,
posto que a decisão rescindenda fora prolatada no âmbito da discricionariedade da
Relatora, cujo entendimento, por fim, restou consentâneo ao adotado pelo STF, no
julgamento do RE 461.968-7 SP.”

É claro que se houver simulação, obnubilando um contrato de compra e venda sob a


forma do leasing, o tributo incidirá. Veja o REsp. 959.387, e seus comentários constantes
do informativo 399 do STJ:

“Informativo 399, STJ: ICMS. AERONAVE. IMPORTAÇÃO. LEASING. A


Turma, prosseguindo o julgamento, por maioria, consignou a tese de que, presente
o indício da operação de importação de aeronave sob a simulação de arrendamento
mercantil operacional sem opção de compra, tratando-se, na verdade, de compra e
venda financiada, inexiste direito líquido e certo de não recolhimento do ICMS,
sem ofensa à Súm. n. 293-STJ. Precedentes citados do STF: RE 206.069-1-SP, DJ
15/8/2008; do STJ: REsp 692.945-SP, DJ 11/9/2006. REsp 959.387-RJ, Rel.
originária Min. Denise Arruda, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux, julgado em
18/6/2009.”

“REsp 959387 / RJ DJe 24/08/2009 TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL.


ICMS. IMPORTAÇÃO DE AERONAVE MEDIANTE CONTRATO DE

Michell Nunes Midlej Maron 79


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

ARRENDAMENTO MERCANTIL (LEASING). NOVEL JURISPRUDÊNCIA


DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 155,
INCISO IX, § 2.º, ALÍNEA "A", DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
ARTIGO 3.º, VIII, DA LEI COMPLEMENTAR 87/96.
1. O ICMS incide sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior,
desde que atinente a operação relativa à circulação desse mesmo bem ou
mercadoria, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual
do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, ex vi do disposto no artigo 155, §
2º, IX, "a", da Constituição Federal de 1988, com a redação dada pela Emenda
Constitucional 33/2001 (exegese consagrada pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal nos autos do RE 491.968/SP, Rel. Ministro Eros Grau, julgado em
30.05.2007, DJ 24.08.2007).
2. Deveras, restou assente na Excelsa Corte que o arrendamento mercantil,
contratado pela indústria aeronáutica de grande porte para viabilizar o uso, pelas
companhias de navegação aérea, de aeronaves por ela construídas, não constitui
operação relativa à circulação de mercadoria sujeita à incidência do ICMS, sendo
certo que "o imposto não é sobre a entrada de bem ou mercadoria importada, senão
sobre essas entradas desde que elas sejam atinentes a operações relativas à
circulação desses mesmos bens ou mercadorias".
3. Acerca da aparente dissonância entre o aludido julgado e aquele proferido nos
autos do RE 206.069-1/SP, da relatoria da e. Ministra Ellen Gracie, impende
destacar excerto do voto condutor do acórdão da lavra do e. Ministro Eros Grau:
"E nem se alegue que se aplica ao caso o precedente do RE n.206.069, Relatora a
Ministra Ellen Gracie, no bojo do qual se verificava a circulação mercantil,
pressuposto da incidência do ICMS. Nesse caso, aliás, acompanhei a relatora. Mas
o precedente disse com a importação de equipamento destinado ao ativo fixo de
empresa, situação na qual a opção do arrendatário pela compra do bem ao
arrendador era mesmo necessária, como salientou a eminente relatora. Tanto o
precedente supõe essa compra que a eminente relatora a certo ponto do seu voto
afirma: 'eis porque, em contraponto ao sistema da incidência genérica sobre a
circulação econômica, o imposto será recolhido pelo comprador do bem que seja
contribuinte do ICMS'. Daí também porque não se pode aplicar às prestadoras de
serviços de transporte aéreo, em relação às quais não incide o ICMS, como foi
decidido por esta Corte na ADI 1.600." (RE 461.968/SP).
4. Destarte, é certo que se encontra pacificado, hodiernamente, no Supremo
Tribunal Federal, o entendimento de que a incidência do ICMS, mesmo no caso de
importação, pressupõe operação de circulação de mercadoria (transferência da
titularidade do bem), o que não ocorre nas hipóteses de arrendamento em que há
"mera promessa de transferência pura do domínio desse bem do arrendante para o
arrendatário".
5. Consectariamente, impõe-se a submissão da orientação desta Corte ao julgado
do Pretório Excelso, como técnica de uniformização jurisprudencial, instrumento
oriundo do Sistema da Common Law e que tem como desígnio a consagração da
Isonomia Fiscal no caso sub examine, reiterando a jurisprudência desta Corte que,
com base no artigo 3.º, inciso VIII, da Lei Complementar 87/96, propugna a não
incidência de ICMS sobre operação de leasing em que não se efetivou
transferência da titularidade do bem (circulação de mercadoria), quer o bem
arrendado provenha do exterior, quer não.
6. A Súmula 293/STJ consolidou a orientação jurisprudencial no sentido de que: "A
cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o
contrato de arrendamento mercantil".
7. Outrossim, é cediço na Primeira Seção que:
"TRIBUTÁRIO – ARRENDAMENTO MERCANTIL – LEASING -
DESCARACTERIZAÇÃO DO CONTRATO – ICMS – INCIDÊNCIA NA
IMPORTAÇÃO DE BENS EM REGIME DE LEASING – PRECEDENTES.

Michell Nunes Midlej Maron 80


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

1. A jurisprudência tem entendido que o contrato de leasing deve ser respeitado


como tal, em nome do princípio da liberdade de contratar.
2. Somente quando o leasing estiver contemplado em uma das situações de
repúdio, previstas na Lei 6.099/74 (artigos, 2º, 9º, 11, § 1º, 14 e 23), é que se tem
autorização legal para a descaracterização do arrendamento mercantil e imputação
das conseqüências.
3. O simples fato de haver concentração dos pagamentos nas primeiras prestações
e um resíduo mínimo para pagamento nas demais não desnatura o instituto do
arrendamento mercantil.
4. Posição remansosa desta Corte, em vários precedentes, quanto à não-incidência
de ICMS na importação de bem sob a modalidade de leasing." (REsp 692.945/SP,
Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 23.08.2006, DJ
11.09.2006)”
8. In casu, consoante o Tribunal de origem: "Trata-se a toda de contrato de
arrendamento operacional de aeronave, cuja natureza jurídica é de locação. Logo,
transferência não há da propriedade do bem. Mas ainda que se vislumbre, aí, um
contrato de leasing, seja operacional, seja financeiro, mesmo assim tem razão a
recorrente. É que, em qualquer dessas modalidades, a transferência do domínio
para a arrendatária só ocorre se e quando for feita efetivamente a opção de compra.
(...)
Ocorre que o bem importado pela apelante não fora por ela adquirido; a
importação realizou-se mediante contrato de arrendamento operacional ou de
leasing, que não se confunde com compra e venda a prazo. A incidência desse
tributo, destarte, só poderá ocorrer em caso da venda desse bem à apelante, o que
ainda não aconteceu. Por outro lado, dadas as peculiaridades do arrendamento
operacional, é certo que esse bem pode vir a ser devolvido ao arrendante até
mesmo ao término do contrato; assim, não se mostra razoável admitir-se que possa
ser consumido, tampouco incorporado ao patrimônio do arrendatário desde logo."
9. Entrementes, o Juízo Singular assinalou que: "Conclui parte da doutrina que,
não existindo a tríplice opção ao final do contrato, não se estará falando de um
contrato de leasing. Desse modo, também é nítido que o contrato vastamente
utilizado no financiamento de certos bens móveis no Brasil não é leasing, na
medida em que a compra do bem está decidida desde o momento da celebração do
contrato. Conforme entendimento do próprio Tribunal de Justiça, deve ser
considerado praticamente impossível, pelo menos à primeira vista, que um contrato
no valor do presente, ou seja, de 4.000.000,00 dólares norte-americanos, para
pagamento em 120 prestações iguais de U$ 46.000,00, se intitule 'leasing' ou
arrendamento operacional e não de compra e venda financiada."
10. Desta sorte, tendo em vista a existência de indício de que a operação de
importação de aeronave ocorreu mediante simulacro de arrendamento mercantil
operacional sem opção de compra (na verdade, cuidar-se-ia de compra e venda
financiada), não se vislumbra o direito líquido e certo do impetrante, pressuposto
da concessão da segurança pleiteada, razão pela qual deve ser restabelecido o
entendimento exarado na sentença, o que não consubstancia contrariedade à
Súmula 293/STJ ou à jurisprudência da Primeira Seção.
11. Recurso especial provido.”

Como se vê nas citações da ementa acima, o STF tem o mesmo entendimento. Veja
o Ag.R. no RE 194.255:

“RE 194255 AgR / SP - SÃO PAULO. AG.REG. NO RECURSO


EXTRAORDINÁRIO. Relator(a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 24/06/2008.
Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: 15-08-2008.
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
ICMS. NÃO-INCIDÊNCIA. ENTRADA DE MERCADORIA IMPORTADA DO

Michell Nunes Midlej Maron 81


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

EXTERIOR. ARTIGO 155, II, DA CB. LEASING DE AERONAVES E/OU


PEÇAS OU EQUIPAMENTOS DE AERONAVES. OPERAÇÃO DE
ARRENDAMENTO MERCANTIL. AUSÊNCIA DE OPÇÃO DE COMPRA. 1.
Importação de aeronaves e/ou peças ou equipamentos que as componham em
regime de leasing sem a posterior transferência ao domínio do arrendatário. 2. A
circulação de mercadoria é pressuposto de incidência do ICMS. O imposto --- diz o
artigo 155, II da Constituição do Brasil --- é sobre "operações relativas à circulação
de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e
intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se
iniciem no exterior". Agravo regimental a que se nega provimento.”

Casos Concretos

Questão 1

PRODUTOS E SISTEMAS PARA HIGIENE Ltda. ajuizou ação de repetição de


indébito em face de SOCIEDADE BRASILCOM ARRENDAMENTO MERCANTIL S/A.
Alegou, em síntese, que as partes firmaram contrato de leasing e que pagou
antecipadamente o valor residual garantido - VRG. Pretende a restituição em dobro do
valor pago (art. 42 do CDC), uma vez que o veículo objeto do contrato foi apreendido em
ação de reintegração de posse. Decida a questão de forma fundamentada.

Resposta à Questão 1

Não há que se falar em restituição em dobro: a devolução é simples, pois o VRG era
perfeitamente devido quando fora pago. A respeito, veja o REsp 439486:

“REsp 439486/MG. 3ª Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Direito comercial e


econômico. Recurso especial. Contrato de arrendamento mercantil (leasing).
Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Valor residual garantido (VRG).
Cobrança antecipada. Repetição em dobro. Descabimento. - Caracterizada a
relação de consumo no contrato de arrendamento mercantil, aplicam-se as
disposições do Código de Defesa do Consumidor. – É permitida a cobrança
antecipada do valor residual garantido (VRG) em contrato de arrendamento
mercantil. Precedente da Corte Especial. - Na hipótese de resolução do contrato de
arrendamento mercantil fundada no inadimplemento da arrendatária, com a
devolução dos bens à arrendante, não cabe a restituição em dobro dos valores
pagos antecipadamente a título de VRG, por não se tratar de cobrança indevida.”

Michell Nunes Midlej Maron 82


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Questão 2

Sociedade de Arrendamento Mercantil arrendou um caminhão a João Martins, com


prestações mensais de R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais). Inadimplida a obrigação, a
arrendante ajuizou ação de reintegração de posse cumulada com a cobrança de prestações
vencidas e vincendas, multa e acréscimos contratuais. O pedido de concessão de liminar
foi deferido. JOÃO MARTINS, na contestação, alegou a abusividade na cobrança de juros
remuneratórios (vinte e cinco por cento ao ano) com violação ao Código de Defesa do
Consumidor, aplicado aos contratos firmados com instituições financeiras. Decida a
questão de forma fundamentada.

Resposta à Questão 2

É possível estabelecer juros remuneratórios superiores a doze por cento ao ano,


como dispõe a súmula 382 do STJ:
“Súmula 382, STJ: A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano,
por si só, não indica abusividade.”

In casu, porém, o montante dos juros é quase o dobro disso, indicando possível
abusividade, se no cotejo com as taxas cobradas normalmente no mercado este patamar for
muito superior. É a média do mercado que indica o que é ou não abusivo: o limite é o da
razoabilidade.
No que toca às parcelas vincendas, estas só podem ser cobradas quando o bem não
for restituído.
Veja, sobre o caso, o Ag.Rg no REsp. 434.437:

“AgRg no REsp 434.437 / RS. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO


ESPECIAL. DJ 22/08/2005 p. 276. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
ESPECIAL - LEASING - COISA JULGADA - TEMA NOVO - COBRANÇA
ANTECIPADA DO VRG - SÚMULA 293/STJ - CAPITALIZAÇÃO ANUAL -
POSSIBILIDADE - UTILIZAÇÃO DA "TR" COMO INDEXADOR
MONETÁRIO - ADMISSIBILIDADE, DESDE QUE PACTUADA – JUROS
REMUNERATÓRIOS - LEI DE USURA - INAPLICABILIDADE -
AUTORIZAÇÃO DO CMN - DESNECESSIDADE - APLICAÇÃO DO CDC -
ABUSIVIDADE DAS TAXAS PACTUADAS - AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - COMPENSAÇÃO -
SÚMULA 306/STJ - DESPROVIMENTO.
1 - No que se refere à preliminar de coisa julgada, constata-se que se trata de tema
novo, trazido somente agora, em sede de agravo regimental, pela agravante, de
forma que a questão não fora discutida no acórdão estadual, nem na decisão ora
impugnada, sendo vedado à parte inovar no agravo interno. Ademais, é cediço que,
na via do recurso especial, mesmo as matérias de ordem pública, para serem
examinadas, necessitam estar prequestionadas, não podendo serem apreciadas de
ofício. Precedentes.
2 - No que tange à descaracterização do contrato de leasing em compra e venda à
prestação, a Corte Especial deste Tribunal Superior posicionou-se no sentido de
que o arrendamento mercantil não perde sua identidade com a cobrança antecipada
do VRG (Valor Residual Garantido), porquanto ainda persistem as opções de

Michell Nunes Midlej Maron 83


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

prorrogação do contrato e de devolução do bem, a par da compra do mesmo


(Súmula 293/STJ).
3 - No que concerne à capitalização anual dos juros, esta Corte Superior de Justiça
possui entendimento cristalizado na vertente de que o anatocismo em períodos
anuais é admissível em casos como ora se cuida.
4 - No que pertine à utilização da "TR" como índice de correção monetária, a eg.
Segunda Seção deste Tribunal Superior prega que a Taxa Referencial, desde que
pactuada, pode ser utilizada como fator de atualização monetária da dívida.
5 - No tocante aos juros remuneratórios, esta Corte Superior de Justiça firmou-se
no sentido de que, com a edição da Lei 4.595/64, não se aplicam as limitações
fixadas pelo Decreto 22.626/33, de 12% ao ano, aos contratos celebrados com
instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional (Súmula 596 do STF),
salvo nas hipóteses de legislação específica.
6 - A exigência de comprovação da autorização do Conselho Monetário Nacional,
para que a taxa de juros possa ser cobrada em percentuais acima de 12% ao ano, só
se aplica às cédulas de crédito rural, comercial e industrial (créditos incentivados),
as quais são regidas por legislação própria, inocorrentes no caso sub judice.
7 - É certo que o CDC se aplica aos contratos firmados com instituições financeiras
(Súmula 297/STJ), todavia, a eg. Segunda Seção desta Corte de Uniformização,
quando do julgamento dos REsps 407.097/RS e 420.111/RS, orientou-se na
vertente de que a abusividade dos juros remuneratórios é verificada caso a caso,
examinando-se os diversos componentes do custo final do dinheiro emprestado, de
forma que compete às instâncias ordinárias demonstrar cabalmente o lucro
exorbitante auferido pelo ente financeiro, não servindo para tanto apenas o
argumento de estabilidade econômica do período.
8 - No que diz respeito à compensação da verba de patrocínio, a Corte Especial
deste Tribunal Superior já pacificou o entendimento de que "Os honorários
advocatícios devem ser compensados quando houver sucumbência recíproca,
assegurado o direito autônomo do advogado à execução do saldo sem excluir a
legitimidade da própria parte" (Súmula 306/STJ).
9 - Agravo Regimental desprovido.”

Vale mencionar, apenas, algumas exceções legais permissivas de capitalização de


juros: nas cédulas de crédito comercial, industrial e rural, ou outros contratos com previsão
legal, desde que expressamente convencionados quanto a taxas, períodos de capitalização e
termos iniciais, na forma do Decreto-Lei 167/67, artigo 5º; na capitalização anual para
contratos de conta corrente, na forma do artigo 4º do Decreto 22.626/33 - Lei de Usura; e
na capitalização anual para juros remuneratórios em mútuos, na forma do artigo 591 do CC.

Questão 3

Os diretores da KS INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE PRODUTOS DE


INFORMÁTICA S/A. foram informados que a sociedade estava passando por dois
problemas simultaneamente. O primeiro, e mais grave, era a escassez de recursos para o
pagamento de dívidas de curtíssimo prazo, uma vez que os valores disponíveis em caixa e
em conta-corrente não eram suficientes para o pagamento de dívidas com alguns
fornecedores, que já ameaçaram entrar com pedido de falência em caso de inadimplência.
O outro problema é a necessidade, também premente, da aquisição ou locação de uma
máquina moderna de impressão, na medida em que a atual foi definitivamente perdida em
um pequeno incêndio. Considerando a existência de bens de alto valor e liquidez dentro do
imobilizado da sociedade, mas indispensáveis para a atividade, e a absoluta falta de
capital de giro, responda:

Michell Nunes Midlej Maron 84


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

a) É possível a utilização do contrato de arrendamento mercantil para a obtenção


de capital de giro para a sociedade em questão? Em caso positivo, qual
modalidade e quais os benefícios?
b) Em relação à máquina de impressão, considerando que tais equipamentos,
embora caros, ficam rapidamente obsoletos, sem olvidar da necessidade de uma
manutenção muito especializada, seria aconselhável o arrendamento? Em caso
positivo, qual modalidade e quais os benefícios?
c) Ao final de todo o contrato, quais as opções que o arrendador deve oferecer ao
arrendatário?
d) Em caso de inadimplemento, além da cobrança, qual a medida que pode ser
intentada pelo credor? Quais as verbas que são devidas?Respostas fundamentadas.

Resposta à Questão 3

a) Sim, por meio do lease-back ou de retorno. A vantagem é que por meio do seu
próprio ativo imobilizado a sociedade conseguiria obter capital de giro com
taxas mais baixas, haja vista o baixo risco de inadimplemento dos contratos de
leasing, diante da garantia dada ao credor. O bem dado em garantia fica na posse
do devedor, com a expectativa de voltar ao seu ativo no final do contrato diante
da possibilidade de recompra.
b) Sim, por meio da modalidade de leasing operacional. Durante a vigência do
contrato a arrendadora é obrigada a prestar serviço de manutenção em relação ao
bem objeto do negócio, sem olvidar que todos os pagamentos são lançados
como despesas e o total das parcelas jamais poderá ultrapassar setenta e cinco
por cento do valor de mercado do bem, com possibilidade de renovação do
contrato com substituição da máquina por um modelo mais moderno. Veja o
artigo 7º, VII, da Resolução 2.309/96:

“Art. 7. Os contratos de arrendamento mercantil devem ser formalizados por


instrumento público ou particular, contendo, no mínimo, as especificações abaixo
relacionadas:
(...)
V - as condições para o exercício por parte da arrendatária do direito de optar pela
renovação do contrato, pela devolução dos bens ou pela aquisição dos bens
arrendados;
(...)”

c) Arrendamento mercantil é o contrato celebrado entre uma pessoa jurídica,


denominada arrendadora, e uma outra pessoa, física ou jurídica, denominada
arrendatária, através do qual a arrendadora adquire bens móveis ou imóveis
segundo a especificação da arrendatária, transferindo para esta a posse direta
desse bem e ficando com a credora a posse indireta do bem, mediante o
pagamento de parcelas a título de aluguel, sendo certo que ao final do contrato a
devedora terá sempre as seguintes opções: 1) Extinguir o contrato devolvendo o
bem; 2) Renovar o contrato em condições previamente pactuadas; 3) Comprar o
bem pelo preço residual. Veja o já transcrito artigo 1º, parágrafo único, da Lei
6.099/74, e abaixo o artigo 5º, “c”, desta mesma Lei:

Michell Nunes Midlej Maron 85


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“Art 5º Os contratos de arrendamento mercantil conterão as seguintes disposições:


(...)
c) opção de compra ou renovação de contrato, como faculdade do arrendatário;
(...)”

d) Ação de reintegração de posse, com a prévia notificação do devedor. Deve ser


comprovada a notificação com a juntada do aviso de recebimento, sob pena de
extinção do processo sem o julgamento do mérito. Vejamos:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. CONTRATO


DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. IRREGULARIDADE DA
NOTIFICAÇÃO - AR NÃO JUNTADO AOS AUTOS. CARÊNCIA DE AÇÃO.
EXTINÇÃO DA AÇÃO. A ausência do AR nos autos não confere certeza de que a
notificação da arrendatária tenha chegado ao seu destino, razão pela qual impõe-se
a extinção da ação, com fundamento no art. 267, inc. IV, do CPC. Apelação
desprovida. (Apelação Cível Nº 70018795740 da 13ª C.Cível do TJ/RS).”

Tema VIII

CONTRATO DE FACTORING. Definição. Características. Partes: faturizador e faturizado. A cessão dos


créditos ao factor. Obrigações acessórias.

Notas de Aula10

1. Contrato de factoring

A razão, a função econômica do contrato de factoring é permitir o acesso ao crédito


para o pequeno empresário, considerando as taxas de juros que são cobradas pelas
instituições financeiras. A falta de crédito é uma das causas da alta taxa de mortalidade das
pequenas empresas. Enquanto no Brasil o volume de crédito em relação ao Pib é de apenas
trinta e dois por cento, no Chile esse percentual é quase o que o dobro, chegando a
cinquenta e sete por cento, segundo o estudo elaborado pela Austin Rating com cento e
setenta e três países, com dados recolhidos do FMI, Banco Mundial e Bancos Centrais. A
operação de factoring contribui de forma relevante para o desenvolvimento
socioeconômico do País, sendo responsável por 2,6 % do Pib.
O factoring se presta a socorrer estes pequenos empresários, que recebem títulos
vencíveis em momento futuro, ou seja, têm créditos a receber, mas precisam do valor que
estes representam agora, de forma imediata. Pagando um deságio ao faturizador,
conseguem ter este dinheiro à sua disposição, desafogando seu caixa.
O conceito de factoring vem na Lei 9.249/95 (que trata do IRPJ), no artigo 15, § 1º,
III, “d”, que substituiu o artigo 28, § 1º, “c”, item 4, da Lei 8.981/95:
10
Aula ministrada pelo professor Juan Luiz Souza Vazquez, em 28/5/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“Art. 15. A base de cálculo do imposto, em cada mês, será determinada mediante a
aplicação do percentual de oito por cento sobre a receita bruta auferida
mensalmente, observado o disposto nos arts. 30 a 35 da Lei nº 8.981, de 20 de
janeiro de 1995. (Vide Lei nº 11.119, de 205)
§ 1º Nas seguintes atividades, o percentual de que trata este artigo será de:
(...)
III - trinta e dois por cento, para as atividades de: (Vide Medida Provisória nº 232,
de 2004)
(...)
d) prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia,
mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a
pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a
prazo ou de prestação de serviços (factoring).
(...)”

A tendência comum é pensar que o factoring se resume à compra de direitos


creditórios, resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços, como
consta da parte final do dispositivo supra. Contudo, há muitas outras atribuições que
definem-se como factoring, como se vê no teor do tipo.
A base normativa do factoring, porém, é quase toda infralegal. São diplomas
relevantes: a Instrução Normativa 16/86 do DNRC, que dispensa a aprovação prévia do
Banco Central para o arquivamento de atos constitutivos de empresas de fomento
mercantil; a Circular 1.359/88, do Banco Central do Brasil, que revogou a Circular BC
703/82, que reconhece ser o fomento mercantil – factoring – atividade comercial mista
atípica que consiste na prestação de serviços conjugada com a aquisição de direitos
creditórios ou créditos mercantis; a Resolução 2.144/95, do Conselho Monetário Nacional,
que reconhece definitivamente a tipicidade jurídica própria e delimita nitidamente a área de
atuação da sociedade de fomento mercantil que não pode ser confundida com a das
instituições financeiras, autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil que têm por
objeto a coleta, intermediação e aplicação de recursos de terceiros no mercado; e a Circular
2.715/96, do Banco Central do Brasil, que permite às instituições financeiras a realização
de operações de crédito com empresas de fomento mercantil.
A vantagem do factoring para o faturizador, também chamado sociedade de
fomento mercantil, é clara: ganha no deságio do que paga pelo crédito a si conferido – paga
“x menos dez por cento” por um título que vale “x”. as vantagens para o empreendedor, por
seu lado, são múltiplas: obtém verdadeira parceria com o faturizador, de quem recebe
aconselhamento em suas decisões importantes e estratégicas, além das atividades rotineiras;
tem menor envolvimento e preocupação com as atividades corriqueiras de pagar, receber e
prover recursos, liberando-o para tarefas que considera importantes para melhor gestão
empresarial (concepção de novos produtos e mercados, maior produção e redução dos
custos operacionais, etc.); consegue melhor fluxo de caixa, pagando à vista o que ele vende
a prazo e propiciando a expansão segura das vendas (transforma vendas a prazo em vendas
à vista); consegue condições excepcionais de barganha com seus fornecedores; tem seu
crédito ampliado; há a virtual eliminação de seu endividamento; consegue aplicar cem por
cento de dedicação à sua empresa, permitindo aprimorar produção e venda e melhorar a
competitividade no seu ramo de negócio; e consegue racionalizar todos os seus custos. Tal é
a densidade social deste contrato.

Michell Nunes Midlej Maron 87


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

O risco do negócio transfere-se ao faturizador: é ele quem passa a correr o risco de


não receber o valor devido pelo emitente do título a ele passado pelo faturizado. É por isso
que se justifica o deságio, pois é o pagamento pelo serviço do faturizador, que é justamente
assumir este risco.
O faturizador não tem ação de regresso contra o faturizado, em caso de
inadimplemento do título pelo emitente. Não houvesse este risco, o deságio poderia ser
considerado usura, a depender dos valores deduzidos (se superarem doze por cento ao ano).
É claro que o faturizador terá ação contra o faturizado quando se tratar de inexistência da
obrigação, e não inadimplemento: a responsabilidade do faturizado é pro soluto, e não pro
solvendo, pois a transmissão do título ao faturizador se configura um endosso sem garantia.
Há uma releitura hodierna (capitaneada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros,
do STJ), porém, questionando a assertiva de que a assunção do risco pelo faturizador seja
um elemento ínsito ao negócio de faturização. Primeiro, porque não há esta previsão legal;
segundo, porque o endosso sem garantia deve ser expressamente redigido no título, pois do
contrário é um endosso comum, e, como tal, impõe ao endossante a responsabilidade pro
solvendo. Neste sentido, o deságio não se justificaria pela assunção do risco – porque o
deságio não seria juros, a rigor –, e sim pela simples prestação de serviço de faturização: o
deságio é o preço do serviço, livremente pactuado pelas partes. Sendo assim, o faturizado é
responsável solidário com o emitente pelo pagamento do título.
Vale deixar claro que esta corrente moderna, ainda que coerente, é bem minoritária.
Veja que já conta com representação jurisprudencial, no REsp. 820.672, de relatoria
justamente do autor da tese, Ministro Gomes de Barros:

“CHEQUE - ENDOSSO - FACTORING - RESPONSABILIDADE DA


ENDOSSANTE-FATURIZADA PELO PAGAMENTO. - Salvo estipulação em
contrário expressa na cártula, a endossante-faturizada garante o pagamento do
cheque a endossatária-faturizadora (Lei do Cheque, Art. 21). (REsp 820.672/DF,
Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA,
julgado em 06.03.2008, DJe 01.04.2008).”

Se o título for endossado “não à ordem”, terá efeitos de cessão de crédito, quando
então, indiscutivelmente, o cedente não é responsável solidário se não assumir
expressamente esta responsabilidade.
Seguindo-se a corrente majoritária, a assunção de risco pelo faturizador é elemento
necessário do contrato, sob pena de descaracterizá-lo. Sendo assim, as sociedades de
faturização, sabedoras de que o risco é seu, tentam minorar tal perigo de padecer
inadimplência, exigindo uma confissão de dívida do faturizado, ou mesmo uma nota
promissória em branco, que, em caso de inadimplemento do título endossado, serão
cobrados do faturizado. A jurisprudência refuta esta possibilidade, como se vê na Apelação
Cível 2008.001.13662, do TJ/RJ:
“APELAÇÃO CIVEL. INSTRUMENTO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA QUE,
NA VERDADE, OBJETIVA ASSEGURAR O DIREITO DE REGRESSO.
TENTATIVA DE TRANSMUTAR A NATUREZA DO CONTRATO DE
FACTORING. Torna-se incabível, em razão da própria natureza do contrato de
factoring, a ação que objetive o regresso do faturizador em face dos faturizados, eis
que faz parte do risco do empreendimento. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO
DESPROVIDO. APELACAO CIVEL 2008.001.13662. JDS. DES. FABIO
DUTRA - Julgamento: 22/07/2008 - PRIMEIRA CAMARA CIVEL.”

Michell Nunes Midlej Maron 88


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Como dito, responde o faturizado de forma pro solvendo apenas por vícios na
origem do título ou quando der causa ao não recebimento. Neste sentido, veja a Apelação
Cível 2006.001.42814, do TJ/RJ:

“APELAÇÃO CÍVEL 2006.001.42814. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE


COBRANÇA. FACTORING. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA CEDENTE
DOS TÍTULOS ANTE A SUA REVELIA. PROVIMENTO AO RECURSO. I –
No entendimento do colendo Superior Tribunal de Justiça, se a empresa cedente
dos títulos em decorrência de contrato de factoring deu causa a que não pudessem
ser recebidos, fica responsável pelo pagamento. Na hipótese, a revelia da Ré,
confessando a matéria de fato impediu, inclusive, a análise de seu comportamento
em relação aos títulos entregues;II - Provimento ao recurso. (TJERJ. Décima
Terceira Câmara Cível., rel. Des. Ademir Pimentel, j. 14.2.07.)”

1.1. Classificação

O contrato de fomento mercantil pode ser classificado como bilateral, pois há dois
pólos, duas partes convergentes para o mesmo fim; por isso, é também consensual, com
obrigações e direitos recíprocos; comutativo, mediante remuneração; oneroso, por um
serviço ou uma venda de forma continuada; e é personalíssimo, ou intuitu personae.
Entretanto, segue-se um contrato comercial atípico, como a melhor doutrina prefere. Apesar
da atipicidade, o contrato de factoring tem objeto próprio e características que o identificam
como tal.
Tais elementos são encontrados em um contrato de factoring: aquisição de créditos
ou prestação de serviço descriminado; riscos para o faturizador de receber os valores
cedidos pelo faturizado-cliente; cláusula expressa de não regresso contra o cedente dos
créditos; liberdade de escolha por parte do faturizador das faturas ou títulos devido ao risco
existente; a cobrança de comissão ou taxa de remuneração.

1.2. Modalidades

Há duas modalidades de factoring: o conventional factoring, faturização


convencional, ou tradicional; e o maturity factoring, faturização maturada, ou no
vencimento.
O conventional factoring trata-se da modalidade de faturização em que o faturizador
garante o pagamento das faturas do faturizado antes do vencimento, antecipando-lhe seus
respectivos valores. Nesta espécie de faturização, três elementos são marcantes: os serviços
de administração de crédito; o seguro; e o financiamento.
Já o maturity factoring diz respeito à modalidade de faturização em que o
faturizador paga o valor das faturas ao faturizado apenas na data do seu vencimento, sem
qualquer antecipação de valores. Aqui estão presentes apenas dois elementos: os serviços
de administração de crédito e o seguro, estando ausente o elemento financiamento. O que
predomina é a administração e a seleção de riscos, neste caso.

1.3. Factoring vs. contrato de desconto bancário

Michell Nunes Midlej Maron 89


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Arnaldo Rizzardo, em sua obra “Factoring”, terceira edição, editora RT, página 58,
assim diz:

“O contrato de factoring e o de desconto procuram satisfazer a necessidade de


crédito que possui o titular dos títulos. Nas duas figuras transfere-se, ou cede-se, o
título cambial ou cambiariforme, recebendo, em troca, o valor monetário constante
do título. O princípio é o mesmo para os dois institutos: a cessão do título e o
recebimento do valor nele constante, diminuída a taxa de juros entre a data da
transação e a do vencimento. Mas, a grande e fundamental diferença reside na
inexistência do direito de regresso no factoring, enquanto consagra esta faculdade
o desconto bancário.”

Veja um quadro comparativo:

Factoring Desconto bancário

O direito de regresso somente existe O direito de regresso é possível.


na hipótese de inexistência do
crédito.

Há limitação quanto aos juros Não há limitação (apenas a


razoabilidade de mercado)

1.4. Tipo societário do faturizador

Não é necessário qualquer tipo societário específico para ser faturizador, tampouco
registro ou autorização do Bacen ou qualquer órgão. Contudo, é necessário que haja o
registro da sociedade no CRA, como se vê no REsp. 874.186 e no REsp. 1.013.310:

“REsp 874186 / RS. DJe 21/10/2008. PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO -


REGISTRO PROFISSIONAL – CONSELHO REGIONAL DE
ADMINISTRAÇÃO - EMPRESA DE FACTORING – EXIGÊNCIA
RECONHECIDA - PRETENDIDA REFORMA - ALEGAÇÃO DE QUE NÃO
RESTOU OBSERVADA MATÉRIA FÁTICA - INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 5
E 7 DO STJ - PRECEDENTES - RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.
1. Para refutar os fundamentos da Corte de origem se faz mister interpretar o
estatuto social da empresa, cujo óbice encontra-se hospedado nas Súmulas ns. 5 e 7
do STJ.
2. Registre-se, por oportuno, que a acerca do tema a 2ª Turma já consignou que "as
empresas que desempenham atividades relacionadas ao factoring não estão
dispensadas da obrigatoriedade de registro no Conselho Regional de
Administração, porquanto comercializam títulos de crédito, utilizando-se de
conhecimentos técnicos específicos na área da administração mercadológica e de
gerenciamento, bem como de técnicas administrativas aplicadas ao ramo financeiro
e comercial" (REsp 497.882/SC, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda
Turma, julgado em 03.05.2007, DJ 24.05.2007 p. 342).
3. Recurso especial não conhecido.”

“REsp 1013310 / RJ. DJe 24/03/2009. ADMINISTRATIVO. CONSELHO


REGIONAL DE ADMINISTRAÇÃO. FACTORING. ATIVIDADE SUJEITA A
REGISTRO.
1. A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que as
empresas que têm como objeto a exploração do factoring estão sujeitas à inscrição
no respectivo Conselho Regional de Administração.

Michell Nunes Midlej Maron 90


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

2. Recurso Especial provido.”

A sociedade de fomento mercantil não integra o sistema financeiro, e por isso é


sujeita ao limite legal de juros. Nada impede, porém, que instituições financeiras operem
faturização, quando então estarão livres do limite legal dos juros, atentas apenas à
razoabilidade. Veja o REsp. 623.691:

“REsp 623691 / RS. DJ 28/11/2005 p. 296. AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL


E AÇÃO INDENIZATÓRIA. CONTRATO DE FINANCIAMENTO COM
CESSÃO DE CRÉDITO A EMPRESA DE FACTORING VINCULADA A
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. INCIDÊNCIA DA LEI DE USURA. JUROS
MORATÓRIOS. DANO MORAL. PROTESTO INDEVIDO. QUANTUM
INDENIZATÓRIO EXCESSIVO. REDUÇÃO.
"Tratando-se de empresa que opera no ramo de factoring, não integrante do
Sistema Financeiro Nacional, a taxa de juros deve obedecer à limitação prevista no
art. 1º do Decreto nº 22.626, de 7.4.1933" (REsp n. 330.845/RS, relatado pelo
eminente Ministro Barros Monteiro, DJ de 15/09/2003). O fato de a empresa de
factoring ser vinculada a instituição financeira tampouco altera tal disciplina.
Os juros moratórios podem ser convencionados no limite previsto no Decreto n.
22.626/33, consoante jurisprudência pacificada nesta Corte.
"O valor da indenização por dano moral não pode escapar ao controle do Superior
Tribunal de Justiça" (REsp n. 53.321/RJ, Min. Nilson Naves). Redução da
condenação a patamares razoáveis, considerando as peculiaridades da espécie.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.”

1.5. Responsabilidade por protesto indevido dos títulos envolvidos no factoring

A sociedade de factoring que agiu de boa-fé não responde pelo protesto indevido,
ainda que decorrente de uma operação envolvendo duplicata “fria”. Neste sentido, veja a
Apelação Cível 2008.001.01110, do TJ/RJ:

“Processo: 0009869-35.2003.8.19.0209 (2008.001.01110). 1ª Ementa –


APELACAO. JDS. DES. ANTONIO ILOIZIO BARROS BASTOS - Julgamento:
01/04/2008 - DECIMA SEGUNDA CAMARA CIVEL.
DUPLICATA FRIA. PROTESTO. DANO MORAL CONFIGURADO. EMPRESA
DE FACTORING. DISTRIBUIÇÃO DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. 1. Ação
de danos morais por indevido protesto de duplicata, emitida fraudulentamente.
Abalo à imagem da pessoa jurídica, sacada, que pode ser indenizado a título de
dano moral (Súmula 227 do STJ). Valor da indenização fixado corretamente, em
R$ 19.000,00 (dezenove mil reais). 2. Não responde pela falsa duplicata a empresa
de factoring, que agiu de boa fé ao comprar o título, pois mantinha contrato há
vários anos com a sacadora e acreditava tratar-se de título bom. Protesto que era
necessário por parte da empresa de factoring, sob pena do direito de regresso. 3.
Não se configura o cerceamento de defesa quando a parte não responde ao
despacho de especificação de provas. 4. Sucumbência. Fixado na sentença valor
menor que o pedido para os danos morais, ainda assim a Autora é vencedora, pois
o quantum constante da inicial é meramente estimativo: Súmula 105 deste Tribunal
de Justiça.”

Veja que é questionável esta posição, porque o faturizador, com um pouco de


cautela, pode evitar a circulação da duplicata fria: basta que exija o comprovante de entrega
de mercadoria ou de prestação de serviço. Se nem isso fizer, estará contribuindo para o

Michell Nunes Midlej Maron 91


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

protesto indevido, devendo por ele responder. Porém, a questão é restrita apenas à análise
da presença da boa-fé, como no caso supra.
A faturizadora responderá pelo protesto indevido, contudo, quando for negligente na
análise do título sem aceite decorrente de uma operação envolvendo duplicata fria. Veja a
Apelação Cível 2008.001.35020, do TJ/RJ:
“Processo: 0011183-78.2005.8.19.0004 (2008.001.35020). 1ª Ementa –
APELACAO. DES. CHERUBIN HELCIAS SCHWARTZ - Julgamento:
16/09/2008 - DECIMA SEGUNDA CAMARA CIVEL.
APELAÇÃO CÍVEL. DUPLICATA MERCANTIL. PROTESTO E
NEGATIVAÇÃO INDEVIDA. ENDOSSO. FACTORING.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA. TEORIA DO RISCO DO
EMPREENDIMENTO. DANO MORAL. OCORRÊNCIA. A empresa faturizadora
que recebe o título por endosso sem garantia, que é negligente na análise do título
sem aceite, deve responder pelo protesto indevido. A quantia a ser arbitrada a título
de dano moral deve ser compatível com a reprovabilidade da conduta, a extensão
do dano, a capacidade econômica do causador do dano e as condições do ofendido.
Apelo provido.”

1.6. Exceção à autonomia da cártula

A autonomia do título admite ser excepcionada, principalmente quando houver


ciência do terceiro sobre a origem deste. Afasta-se a boa-fé. Neste sentido, veja o REsp.
612.423:

“REsp 612423 / DF. DJ 26/06/2006 p. 132. Processual Civil. Comercial. Recurso


especial. Execução. Cheques pós-datados. Repasse à empresa de factoring.
Negócio subjacente. Discussão. Possibilidade, em hipóteses excepcionais.
- A emissão de cheque pós-datado, popularmente conhecido como cheque pré-
datado, não o desnatura como título de crédito, e traz como única conseqüência a
ampliação do prazo de apresentação.
- Da autonomia e da independência emana a regra de que o cheque não se vincula
ao negócio jurídico que lhe deu origem, pois o possuidor de boa-fé não pode ser
restringido em virtude das relações entre anteriores possuidores e o emitente.
- Comprovada, todavia, a ciência, pelo terceiro adquirente, sobre a mácula no
negócio jurídico que deu origem à emissão do cheque, as exceções pessoais do
devedor passam a ser oponíveis ao portador, ainda que se trate de empresa de
factoring.
- Nessa hipótese, os prejuízos decorrentes da impossibilidade de cobrança do
crédito, pela faturizadora, do emitente do cheque, devem ser discutidos em ação
própria, a ser proposta em face do faturizado.
Recurso especial não conhecido.”

Não é admissível o oferecimento de exceção de pré-executividade para discutir a


autonomia do título, ainda que seja decorrente de contrato de factoring. Veja o Agravo de
Instrumento 2008.002.12149, do TJ/RJ:

“Processo: 0008721-58.2008.8.19.0000 (2008.002.12149). 1ª Ementa - AGRAVO


DE INSTRUMENTO. DES. AZEVEDO PINTO - Julgamento: 16/07/2008 -
DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL.

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Agravo. Exceção de pré-executividade oferecida pelo ora recorrente por entender


que a nota promissória que instrui a execução não possui autonomia, haja vista que
a obrigação cambiária não é desligada da obrigação subjacente, que deu causa à
emissão do título de crédito (contrato de factoring). Decisão que rejeitou a exceção
justificando que tal alegação depende de dilação probatória. Recurso do executado.
Desprovimento. Para que se possa avaliar a autonomia, a literalidade e a abstração
do título de crédito é necessária a dilação probatória, que, no caso, realiza-se em
sede de embargos à execução, por outro lado, o recorrente não trouxe à baila cópia
do contrato de factoring. Observe-se que a presente decisão não importa em pré-
julgamento da questão a ser analisada pelo juízo monocrático.”

Veja também caso excepcional noticiado no informativo 167 do STJ:

“CHEQUE. AUTONOMIA. PRÁTICA ILÍCITA.


A autonomia do cheque não é absoluta, de tal modo que se admite,
excepcionalmente, a discussão da relação jurídica adjacente, como no caso. O
título em questão, repassado à empresa de factoring, ora recorrente, surgiu de
venda de computadores mediante cheques pré-datados após maciça propaganda da
empresa vendedora, que não entregou as mercadorias, estando desaparecidos os
responsáveis. Isso caracteriza prática comercial ilícita e criminosa, que, sem
dúvida, esvazia a cártula. REsp 434.433-MG, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior,
julgado em 25/3/2003.”
Casos Concretos

Questão 1

PERSUASÃO ESCRITÓRIO DE COBRANÇA Ltda. é uma grande sociedade


empresária que presta serviço de cobrança para diversos outros empresários. Seus
administradores, após consulta a rede de clientes, vê uma ótima oportunidade para
ampliar os ganhos se a sociedade em questão modificar o seu objeto social para se
transformar numa FACTOR. Com esse objetivo os administradores lhe procuram para uma
consultoria, apresentando uma série de dúvidas. Responda as seguintes indagações de
forma fundamentada:
a) Há necessidade de modificação do tipo de sociedade de Ltda. para S/A.?
b) Há necessidade de autorização do BACEN ou cadastramento em algum outro
órgão antes da modificação do objeto social?
c) Quais as diferenças entre uma sociedade que presta serviço de cobrança e uma
de faturização?
d) Quais são os elementos que caracterizam a atividade de faturização?
e) Na elaboração dos contratos entre a sociedade e seus clientes, que cláusulas são
essenciais para evitar a descaracterização do negócio?
Respostas fundamentadas.

Resposta à Questão 1

a) Não, não há qualquer necessidade de modificação do tipo societário,


diferentemente da sociedade que pretende promover leasing.
b) Não: a faturização não demanda qualquer inscrição suplementar ou
autorização de qualquer órgão de controle. Exige-se, somente, o registro no
CRA.

Michell Nunes Midlej Maron 93


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

c) A sociedade de cobrança é uma prestadora de serviço como outra


qualquer e, normalmente, só trabalham com crédito já inadimplido e, assim, só
recebem quando têm êxito na cobrança. Já as sociedades de factoring prestam
uma gama muito maior de serviços aos seus clientes, pois se destinam à
prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia,
mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a
pagar e a receber, compras de direitos creditórios resultantes de vendas
mercantis a prazo ou de prestação de serviços. Em suma, o objeto da
faturizadora é mais amplo.
d) Prestação de serviço de administração de crédito, compra de recebíveis
com assunção do risco do inadimplemento e, eventualmente, adiantamento
desses pagamentos.
e) Cláusula de exclusividade, ou totalidade, perante o faturizador – o
faturizado não pode contratar com concorrentes; e cláusula de assunção do risco
pelo factoring quanto aos créditos transferidos, salvo vício de origem.

Questão 2

Em contrato de faturização, pactuou-se que o faturizado se obrigava pagar os


títulos de crédito endossados ao faturizador, acrescidos de juros bancários, se o devedor
não adimplisse. O faturizado não paga, alegando que se trata de cessão de crédito. Analise
a questão sob todos os aspectos.

Resposta à Questão 2

A transferência é feita por endosso, mas o entendimento é de que este endosso é sem
garantia, respondendo o faturizado apenas por vícios na origem do título ou quando der
causa ao não recebimento – sua responsabilidade é pro soluto, em regra. Como não é o
caso, o faturizado não pode ser demandado.
Veja o REsp. 330.014:

R”1Esp 330014 / SP. DJ 26/08/2002 p. 212. Falência. Nota promissória. Relações


decorrentes do contrato de faturização. Precedente da Corte.
1. Se a empresa cedente dos títulos, em decorrência de contrato de factoring, deu
causa a que os mesmos não pudessem ser recebidos, fica responsável pelo
pagamento.
2. Afirmando o Acórdão recorrido que os títulos estavam viciados na origem e que
a nota promissória foi emitida de acordo com o contrato celebrado entre as partes,
afastando a hipótese de ter sido preenchida em branco, nada impede que possa
servir para instruir pedido de falência.
3. Recurso especial não conhecido.”

Questão 3

Em contrato de fomento mercantil, Info Indústria e Comércio de Produtos


Eletrônicos transferiu duplicata, emitida contra Cia Digitel à Sociedade Crédito Fácil
Fomento Mercantil Ltda. Ocorre que a duplicata era simulada, dando causa ao não-
recebimento do crédito. A faturizadora requereu a falência de INFO INDÚSTRIA

Michell Nunes Midlej Maron 94


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COMÉRCIO DE PRODUTOS ELETRÔNICOS Ltda., juntando uma nota promissória


emitida pela endossante em garantia ao contrato de factoring, a fim de instruir o pedido.
Em contestação, o devedor sustentou contrariedade que, por se tratar de uma operação de
factoring, a autora deve arcar com os créditos não pagos pelo sacado. Aduz que o
processo falimentar não pode ser utilizado para promover execução privada, e, ainda, a
ausência dos fundamentos e condições necessárias para o ajuizamento de requerimento de
falência. Decida a questão de forma fundamentada.

Resposta à Questão 3

A nota promissória não pode ser exigida: é um abuso de direito porque o faturizador
está, com isto, desonerando-se da assunção do risco que é inerente ao contrato de
faturização. Repare que, no caso, o faturizador teria regresso contra o faturizado, sequer
precisando do expediente irregular da exigência da nota promissória, porque o vício na
origem do título faz o faturizado responsável, eis que é pro soluto sua responsabilidade.
Pela corrente clássica, portanto, a nota promissória seria inexigível. Todavia, há
corrente moderna, capitaneada por Humberto Gomes de Barros, que entende que esta nota
promissória será lícita, pois a transferência de risco não é imanente ao contrato de
faturização. Veja o REsp. 419.718:
“REsp 419718 / SP. DJ 22/05/2006 p. 191. FALÊNCIA. NOTA PROMISSÓRIA.
RELAÇÕES DECORRENTES DO CONTRATO DE DESCONTO DE TÍTULOS.
FACTORING.
- Nota promissória emitida para o resgate de duplicatas frias objeto de factoring.
Tal promissória é título hábil para instruir pedido de falência.
- É lícita a recompra de títulos "frios" transferidos em operação de factoring.”

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Tema IX

CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO. Sistema de cartão de crédito. Natureza jurídica. Características.


Direitos e obrigações das partes. Incidência da Lei Nº 8.078/90.

Notas de Aula11

1. Contrato de cartão de crédito

O primeiro aspecto a ser relevado é que não há uma normatização específica do


contrato de cartão de crédito, que é atípico e inominado. Há, sim, a aplicabilidade de
diversos grupos normativos, como as normas consumeristas e as normas referentes a
contratos de adesão, eis que assim o são pactuadas estas relações.
O crédito, em si, consiste naquela confiança em que haverá o pagamento futuro de
determinado valor em troca de uma prestação realizada desde logo pelo credor. No cartão
de crédito, peculiarmente, o comprador não pagará ao fornecedor do produto ou serviço:
pagará à instituição financeira emissora do cartão de crédito.
Assim, o fornecedor do produto ou serviço receberá o pagamento à vista, feito pela
instituição operadora do cartão, a qual se tornará a credora do titular do cartão por aquele
crédito concedido. Esta é, então, uma nota diferencial fundamental deste contrato: o titular
passa a ser devedor de pessoa diversa daquela que lhe forneceu produto ou serviço.
O primeiro cartão surgiu nos Estados Unidos, na década de 1950 (Dinners),
justamente para operacionalizar relações em restaurantes, expandindo-se depois para outros
segmentos. Este também foi o primeiro cartão a chegar ao Brasil, em meados de 1960.
A estrutura do contrato de cartão de crédito é bastante complexa. Há quatro pessoas
neste sistema, em quatro relações jurídicas diversas, sendo a estrutura encabeçada pela
entidade emissora do cartão. As partes são: o emissor do cartão; o usuário, titular do cartão;
11
Aula ministrada pelo professor José Eduardo Cavalcanti de Albuquerque, em 27/11/2009.

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

a “bandeira” do cartão; e o fornecedor do produto ou serviço adquirido com o uso do


cartão. A dinâmica forma um quadrilátero, em que cada um dos elementos está em um dos
vértices. Vejamos, então, como se travam estas relações entre estes quatro elementos da
cadeia.
A primeira relação se passa entre o banco emissor e o titular do cartão. Antigamente,
o emissor do cartão, a administradora de cartões, não era considerada instituição financeira.
Hoje, o é, sem mais questionamentos, mas o histórico da discussão é relevante. Quando não
era considerada instituição financeira, a administradora de cartões não poderia cobrar juros
livres, alheados à limitação da Lei de Usura – posição esta que sempre foi a do Bacen, que
não demandava sequer registro destas em seus quadros, justamente por não serem sujeitas à
sua regulação.
O STJ, porém, enfrentando a questão, pacificou entendimento de que as
administradoras de cartão são, sim, instituições financeiras, como se vê no enunciado 283
de sua súmula:

“Súmula 283, STJ: As empresas administradoras de cartão de crédito são


instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por elas cobrados não
sofrem as limitações da Lei de Usura.”
A todo ver, este entendimento do STJ contraria a própria Lei 4.595/64, que define
no artigo 17 o que é instituição financeira:

“Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em


vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade
principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros
próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor
de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às
instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades
referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.”

Destarte, para caracterizar uma entidade financeira, a pessoa jurídica deve ter em
seu objeto social as três operações ali mencionadas: a captação de recursos de terceiros
atuação típica dos bancos comerciais, que assim procedem quando captam recursos por
meio de cédulas de depósito bancários, recibos de depósito bancário, poupanças,
investimentos de toda sorte, ou mesmo contas correntes de pessoas físicas ou jurídicas; a
intermediação dos recursos, entre partes diversas; e a aplicação dos recursos captados – os
empréstimos concedidos pelo banco a tomadores.
Se a instituição não realiza estas três operações, não se enquadra na definição de
entidade financeira. Destarte, a administradora de cartões estaria alheada deste conceito,
porque ela não faz, em momento algum, captação de recursos de terceiros. Tampouco faz
intermediação e aplicação de recursos, que sequer captou. A atividade da administradora é
uma prestação de serviços, autorizando as pessoas vinculadas àquele cartão a fazer
aquisições junto à rede de fornecedores credenciados, para isso concedendo um empréstimo
que pagará a compra à vista, concedendo prazo para receber de volta o crédito dado.
Antes do reconhecimento (estranho) pelo STJ de que se tratam de instituições
financeiras, as administradoras, que estavam adstritas à Lei de Usura, faziam uso do
seguinte expediente, quando do inadimplemento do valor a si devido pelo titular, para a
finalidade de cobrar juros mais altos do que doze por cento ao ano: impunham no contrato a

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

famigerada cláusula mandato, que consistia numa autorização para que a administradora
buscasse empréstimo no mercado financeiro para quitar o valor inadimplido pelo titular, o
que geraria a necessidade de pagar ao mercado os juros que este cobra, estes sim superiores
ao da Lei de Usura, porque concedidos por instituições financeiras que não se subsumiam
ao regime deste diploma.
Muito se discutia sobre a validade desta cláusula, e o TJ/RJ posicionava-se
majoritariamente em favor da sua validade. Entendia a Corte que não se tratava de cláusula
potestativa pura, mas sim de uma cláusula que poderia ter aplicação afastada pelo próprio
consumidor, titular do cartão, a quem era dado simplesmente não usar o cartão, ou adimplir
o cartão da forma que lhe conviesse, ou seja, ele mesmo buscar no mercado o empréstimo
necessário para pagamento da conta.
De qualquer forma, hoje o STJ tem seu posicionamento pacificado na súmula acima
transcrita. Com isso, porém, não acabaram as discussões, pois logo surgiu um
questionamento: se as administradoras são instituições financeiras, porque não são
registradas no Bacen, se todas as pessoas jurídicas deste nicho devem sê-lo? Por isso,
gerou-se tese de que seriam, todas, entidades irregulares, o que tem grave repercussão no
que pertine aos crimes contra o sistema financeiro nacional, especialmente notado no artigo
16 da Lei 7.492/86:
“Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida
mediante declaração (Vetado) falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição
de valores mobiliários ou de câmbio:
Pena - Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

Com isto, os bancos criaram subsidiárias que se prestavam unicamente à


administração dos cartões de sua respectiva clientela, ou seja, a administradora é regular
porque é uma subsidiária do banco (a Itaucard, por exemplo, subsidiária do Itaú). As
administradoras independentes foram todas adquiridas ou incorporadas por bancos,
deixando de existir, no atual sistema, as administradoras autônomas.
Definido quem é o emissor do cartão, hoje, voltemos à descrição das relações
jurídicas pelas quais se estrutura o cartão. A primeira, cronologicamente, se dá entre o
banco emissor e a “bandeira”. O banco emissor, antes de ofertar o cartão ao titular, contrata
uma bandeira (Visa, Credicard, Mastercard, etc.), pessoa jurídica sediada no Brasil ou no
exterior que mantém com o emissor um contrato de cessão de uso da marca e da rede
credenciada de estabelecimentos empresariais fornecedores. Este é seu principal produto: a
marca e a base de credenciados. A bandeira, além do credenciamento de estabelecimentos,
presta ao emissor os serviços de transmissão de dados e de liquidação financeira da
operação, que é a própria utilização do cartão de crédito no pagamento junto ao fornecedor
do produto ou serviço.
A segunda relação jurídica é esta que se passa entre a bandeira e os
estabelecimentos empresariais fornecedores de produtos ou serviços – o credenciamento. A
bandeira organiza sua base de credenciados, remetendo ao banco emissor uma listagem
com informações mensais de faturamento dos seus credenciados, da qual consta a relação
de operações realizadas, a fim de que sejam os estabelecimentos pagos pelas vendas feitas –
momento em que o banco passa a ser o credor efetivo do titular do cartão. Os
estabelecimentos pagam ao banco emissor um preço por este serviço, a garantia de que
serão pagos independentemente de o cliente pagar ou não a fatura do cartão, preço que gira

Michell Nunes Midlej Maron 98


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

entre três e cinco por cento da venda. Trata-se, portanto, de uma cessão onerosa dos
créditos daquele estabelecimento ao banco emissor.
Outra relação da estrutura é a que empreendem o banco emissor e o titular do
cartão. O contrato é de prestação de serviços, em que o banco emissor se compromete junto
ao titular a garantir o uso deste cartão para pagamento de despesas no mercado,
computando-as em uma fatura a ser paga adiante no tempo – é o crédito propriamente dito.
O titular paga uma tarifa anual de adesão ao sistema, e também pela renovação do contrato.
Quarta relação jurídica se estabelece entre o estabelecimento credenciado e o titular
do cartão, relação esta que é de compra e venda ou obtenção de serviços, com a só
diferença de que não há desembolso imediato de recursos pecuniários para tanto – eis que
quem pagará é o banco emissor. O estabelecimento comercial não poderá, porém, cobrar a
dívida do titular do cartão, porque, como dito, o contrato entre estabelecimento e banco
emissor implica em cláusula de cessão onerosa dos créditos, e por isso a titularidade
daquela cobrança, daquele crédito de que o titular do cartão é devedor, passa ao banco. O
estabelecimento recebe a promessa, pelo banco emissor, de que todos seus créditos surtidos
de compras com o cartão serão adquiridos ao fim do período contratual, que geralmente é
de um mês. Quem é credor do titular, portanto, é o banco emissor, não como mandatário do
estabelecimento, mas em nome próprio – adquiriu aquele crédito, como dito.
O banco emissor, portanto, não pode deixar de pagar ao estabelecimento a venda
realizada, porque é sua obrigação contratual assumir aquele crédito como seu. Pode,
todavia, negar-se à aquisição de créditos que porventura sejam frutos de fraudes, atos
ilícitos em geral, quando a venda indevida for imputável ao estabelecimento – como
quando há falha na identificação do titular, que era um estelionatário, por exemplo.
As anomalias atinentes ao objeto da compra e venda ou prestação do serviço –
vícios redibitórios, falhas do produto ou fatos do serviço – são resolvidas apenas entre o
consumidor e o estabelecimento. Como dito, há um contrato normal de fornecimento
consumerista entre estes dois elementos.
Veja que quem corre o maior risco de toda a intermediação é o banco emissor: é ele
quem, na maior parte das vezes, vê-se prejudicado pelo inadimplemento do consumidor. É
o crédito que ele adquiriu que será inadimplido, quando assim o for. Por isso é que,
supostamente, se justificam as elevadas taxas de juros do mercado, por conta do alto risco
assumido pelo banco emissor.
É claro que, diante da regulamentação da seara consumerista, todos os membros da
cadeia – estabelecimento credenciado, bandeira e banco emissor – podem ser colocados no
pólo passivo de uma ação reparatória referente a qualquer defeito nas prestações. Mesmo
que a bandeira, por exemplo, se alegasse ilegítima em uma ação indenizatória por vício do
produto adquirido, o STJ tem entendido que há solidariedade entre todos os membros da
cadeia de fornecimento, a qualquer título. Quanto à bandeira, por exemplo, a justificativa
seria a má eleição de um de seus credenciados, que forneceu produto defeituoso, dando azo
à ação.

1.1. Anatocismo

Muito já se discutiu a cobrança de juros pelas instituições financeiras, tendo sido a


principal discussão a abusividade das taxas de juros cobradas no mercado. Hoje, se entende,

Michell Nunes Midlej Maron 99


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

quase de forma uníssona, que os juros de mercado não são abusivos, pois há prévia
divulgação da taxa, e ninguém é forçado a se utilizar do cartão como meio de pagamento.
Quanto à questão do anatocismo, porém, a discussão ainda persiste, mesmo que
tenha sido reeditada em 2001 a MP 2.170, que autoriza, no artigo 5°, tal prática de juros
sobre juros:

“Art. 5º Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema


Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade
inferior a um ano.
Parágrafo único. Sempre que necessário ou quando solicitado pelo devedor, a
apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo devedor, será feita pelo
credor por meio de planilha de cálculo que evidencie de modo claro, preciso e de
fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e
despesas contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela
correspondente a multas e demais penalidades contratuais.”

Sendo previsto expressamente em lei, o anatocismo é constitucional, não sendo


aplicada a súmula 121 do STF:

“Súmula 121, STF: É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente


convencionada.”
O STJ, mesmo diante da MP 2.170/01, aplicava a súmula 121 do STF, entendendo
vedado o anatocismo. O TJ/RJ, nos Embargos Infringentes 2003.005.0074, acolheu o
incidente de inconstitucionalidade sobre esta questão, gerando o processo 2003.017.0010,
em que se declarou efetivamente a inconstitucionalidade deste artigo 5° da MP 2.170/01.
Veja:

“Processo: 0002324-90.2002.8.19.0000 (2003.005.0074). 1ª Ementa -


EMBARGOS INFRINGENTES. DES. CARLOS EDUARDO PASSOS -
Julgamento: 20/05/2003 - DECIMA OITAVA CAMARA CIVEL.
EMBARGOS INFRINGENTES. INSTITUICAO FINANCEIRA.
CAPITALIZACAO DE JUROS. ANATOCISMO. ARGUICAO DE
INCONSTITUCIONALIDADE.
ANATOCISMO. Dispositivo que consta de Medida Provisória, o qual autoriza as
instituições financeiras à prática de juros capitalizados. Inconstitucionalidade, por
contrastar com os princípios da proporcionalidade e de defesa do consumidor pelo
Estado na forma da lei, constituindo este último um dos princípios cardeais da
ordem econômica. Acolhimento do incidente para remeter o exame da questão
prejudicial ao Egrégio Órgão Especial.”

“Processo: 0020388-17.2003.8.19.0000 (2003.017.00010) 1ª Ementa -


ARGUICAO DE INCONSTITUCIONALIDADE. DES. J. C. MURTA RIBEIRO -
Julgamento: 17/05/2004 - ORGAO ESPECIAL.
ARGUICAO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ANATOCISMO. REMESSA
AO ORGAO ESPECIAL. ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
INCIDENTER TANTUM DO ARTIGO 5º E § ÚNICO DA MEDIDA
PROVISÓRIA Nº 2.170-36 DE 23 DE AGOSTO DE 2001 QUE VEM À
PERMITIR O ANATOCISMO - NORMA INCOMPATÍVEL COM OS ARTIGOS
5º XXXII E 170 E INCISO V DA CONSTITUIÇAO -DA REPÚBLICA -
FLAGRANTE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE QUE SE TEM COMO
PROCEDENTE. É patente a inconstitucionalidade do artigo 5º e seu parágrafo
único da Medida Provisória nº 2.170-36/2001, por ofensa ao inciso XX.XII do

Michell Nunes Midlej Maron 100


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

artigo 5º da Constituição da República que assim estabelece: O Estado promoverá,


na forma da lei, a defesa do consumidor . Ora, se apresenta como prática nefasta a
capitalização de juros pelos Bancos, isto porque, ao invés de promover a defesa do
consumidor, patrocina de forma inadmissível e injustificável unicamente os
interesses das instituições financeiras. Por outro lado, o dispositivo, objeto da
presente Argüição, verdadeiramente não é proporcional, mas, excessivo e
injustificável, e por isso mesmo, inconstitucional, na forma do artigo 5º § 2º da
Constituição da República. De se destacar que a norma alvejada autoriza o credor a
cobrar juros não apenas do valor principal, mas também sobre o que não
emprestou, obtendo, portanto, receita sem trabalho, sem contraprestação,
agredindo brutalmente o artigo 170 da nossa Lei Magna que assim estabelece: A
ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: V defesa do consumidor (grifei).
Ademais, de se reconhecer não só a in constitucional idade material, mas, também,
a formal, na medida em que, segundo o artigo 192 § 3º da Constituição da
República, a norma combatida está reservada a lei complementar, sendo, por
conseguinte, insuscetível de ser disciplinada pela via da medida provisória. Por tais
considerações, julga-se procedente a presente Argüição para acolher a
inconstitucionalidade do artigo 5º e seu parágrafo único da Medida Provisória nº
2.170-36/2001.”

Algumas câmaras do TJ/RJ, e o próprio STJ, continuaram aplicando a MP, a


despeito da decisão do Órgão Especial ser bastante coerente. De fato, a nível federal tem
sido aplicada a MP 2.170/01, com algumas divergências no próprio STJ, dividindo bem a
questão. Veja, a respeito, o Ag.Rg. no REsp. 917.570:

“AgRg no REsp 917570 / RS. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO


ESPECIAL. DJ 28/05/2007 p. 370.
CIVIL E PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL. CONTRATO DE CARTÃO
DE CRÉDITO. CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS. VEDAÇÃO. SÚMULA N. 121-
STF.
I. Nos contratos de cartão de crédito, ainda que expressamente pactuada, é vedada
a capitalização dos juros, somente admitida nos casos previstos em lei. Incidência
do art. 4º do Decreto n. 22.626/33 e da Súmula n. 121-STF.
II. Agravo improvido.”

O STJ tem aplicado a súmula 121 do STF, além do Decreto 22.626/33. Veja o artigo
4° da Lei de Usura, apontado pela decisão supra:

“Art. 4º. E proibido contar juros dos juros: esta proibição não compreende a
acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.”

Recentemente, porém, o debate ganhou um novo fôlego, pois há diversos acórdãos


reconhecendo a inexistência de anatocismo nos contratos de cartão de crédito, ao seguinte
argumento: quando o titular do cartão deixa de pagar o saldo integral de que é devedor,
pagando apenas o valor mínimo que consta da fatura de débitos, ele está, em verdade,
pagando os juros, por simples regra de imputação do pagamento, conforme o artigo 354 do
CC:

“Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros
vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar
a quitação por conta do capital.”

Michell Nunes Midlej Maron 101


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

O valor restante em aberto seria, então, o principal sem os juros, que foram pagos
quando o devedor pagou o mínimo. Assim sendo, a cobrança do mês seguinte poderia
sofrer acréscimo regular dos juros, que estariam incidindo apenas sobre o principal: como o
pagamento mínimo realizado no mês anterior quitou os juros, pela regra de imputação, os
novos juros estariam incidindo apenas sobre o principal, e não sobre um montante
composto pelo principal somado a juros prévios.
Realmente, nesta dinâmica, não há anatocismo, mas é claro que, não havendo
sequer o pagamento mínimo pelo titular do cartão, este volta a estar presente, ressuscitando
a discussão sobre se é permitido ou não.
Sobre o tema, veja a Apelação Cível 2007.001.26266, do TJ/RJ:

“Processo: 0005522-69.2001.8.19.0001 (2007.001.26266). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. CARLOS C. LAVIGNE DE LEMOS - Julgamento:
10/10/2007 - SETIMA CAMARA CIVEL.
CARTÃO DE CRÉDITO. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ALEGAÇÃO
DE COBRANÇA DE JUROS ILEGAIS E ANATOCISMO C/C INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS. AS ADMINISTRADORAS EQUIPARAM-SE ÀS
INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS, ESTANDO AUTORIZADAS PELO
CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL A COBRAR JUROS DE MERCADO.
SÚMULAS 283 DO STJ E 596 DO STF. DESDE A ADIN Nº 4, JULGADA PELO
STF, A JURISPRUDÊNCIA ASSENTOU QUE O ART. 192, § 3º DA CF NÃO
TINHA EFICÁCIA PLENA, POIS DEPENDIA DE LEI COMPLEMENTAR. O
DISPOSITIVO, QUE NUNCA FOI REGULAMENTADO, JÁ FOI REVOGADO
PELA EC 40/2003. O ANATOCISMO, REPUDIADO PELO VERBETE Nº 121
DA SÚMULA DO STF E PELO ARTIGO 4º DO DEC. 22.626/33, PERMANECE
VEDADO. TODAVIA, O PAGAMENTO PARCELADO DA FATURA, DE
ACORDO COM A REGRA DOS ARTIGOS 993 DO CÓDIGO CIVIL/1916 E 354
DO CÓDIGO ATUAL, IMPUTAR-SE-Á PRIMEIRO NOS JUROS VENCIDOS,
E SOMENTE APÓS NO CAPITAL. NÃO CONFIGURADA A
CAPITALIZAÇÃO DE JUROS EM TAIS CIRCUNSTÂNCIAS. DANO MORAL
NÃO CARACTERIZADO. SENTENÇA CORRETA. RECURSO IMPROVIDO.”

1.2. Ocorrências anômalas

O envio de cartão ao consumidor, sem solicitação por parte deste, não lhe pode
gerar ônus, a não ser que aceite e use o cartão. Há casos correntes em que não só há o envio
não solicitado, como há o extravio do plástico antes mesmo de chegar ao consumidor, e,
com o uso impago, há a inscrição indevida do nome do destinatário em cadastros
desabonadores do crédito, sendo que jamais houve sequer o recebimento do cartão. Nestes
casos, o dano moral é patente.
Havendo o furto do cartão, comunicado ao banco emissor, qualquer débito realizado
indevidamente não pode ser posto à conta do titular furtado – a incumbência de impedir o
débito, desde a comunicação, é do emissor. Se não há apronta comunicação do furto pelo
cliente, há uma certa discussão, porque mesmo que a incumbência de conferir a assinatura
do cliente no ato da compra seja do fornecedor, a falta da comunicação pesa um pouco
contra o titular furtado. Vale dizer que a prova de que não houve comunicação não pode ser
imposta ao consumidor, pois seria uma prova diabólica: havendo indício de que comunicou,
o ônus fica invertido, cabendo ao banco provar que não houve esta comunicação.

Michell Nunes Midlej Maron 102


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

É de se ressaltar que o mero envio do cartão não solicitado não gera, por si só, o
dano moral. É preciso que tenha havido uma perturbação qualquer que suplante o
corriqueiro aborrecimento. A questão é casuística.
A oferta de seguro sobre o cartão de crédito, que é praticamente imposta sobre o
titular, consiste em uma verdadeira venda casada. É uma imposição contratual indevida,
permitindo o desfazimento da cláusula.

Casos Concretos

Questão 1

GERALDO MARTINS ajuizou em face de CREDITUS S/A. - ADMINISTRADORA


DE CARTÕES DE CRÉDITO ação declaratória de nulidade de cláusula contratual
cumulada com revisional de obrigação creditícia e repetição de indébito, com pedido de
antecipação de tutela e condenação da ré à devolução em dobro do que pagou
indevidamente. O autor alega que firmou com a ré contrato de adesão, com imposição
unilateral de cláusulas, dentre essas as de cobrança de faturas com aplicação de juros
extorsivos e capitalizados, o que contraria a legislação vigente, uma vez que a ré não tem
natureza jurídica de instituição financeira. Em contestação, a ré sustentou a lisura dos
juros praticados, pugnando pela improcedência do pedido. Decida a questão.

Resposta à Questão 1

O entendimento mais moderno é o de que, havendo o pagamento mínimo, não há


capitalização de juros, eis que este pagamento é imputado aos juros, na forma do artigo 354
do CC. Por isso, a nova incidência, no mês seguinte, recairá apenas sobre o principal – não
havendo anatocismo, portanto.
Sobre o tema, reveja a Apelação Cível 2007.001.26266, do TJ/RJ, há pouco
transcrita. Veja também a Apelação Cível 2003.001.00566, do mesmo Tribunal, que
entende aplicável a MP 2.170/01, alheando os cartões do limite de doze por cento, portanto:

“Processo: 0047611-73.2002.8.19.0001 (2003.001.00566). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. SERGIO CAVALIERI FILHO - Julgamento: 09/04/2003 -
SEGUNDA CAMARA CIVEL.
CARTAO DE CREDITO. MANDATO. VALIDADE. ANATOCISMO. NAO
CARACTERIZACAO.

Michell Nunes Midlej Maron 103


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

CARTÃO DE CRÉDITO. Cláusula Mandato. Validade. Taxas de Juros. Limitação


Constitucional. Inaplicabilidade. Anatocismo. Impossibilidade. O titular do cartão
pode, se o preferir, obter financiamento por conta própria para o pagamento
integral da fatura e, se aceita as condições contratuais de adesão ou não, o
acontecimento futuro não sujeita a eficácia do negócio jurídico ao exclusivo
arbítrio da Administradora. A cláusula mandato não contém condição potestativa
pura porque seus efeitos, ao sujeitarem-se à manifestação do titular do cartão,
também não se subordinam ao exclusivo arbítrio da Administradora. Isto porque, a
cada vez em que financia o seu débito, por ausência de meios próprios para flazê-
lo, o filiado elege a administradora como sua mandatária para obter os meios
necessários à realização da sua vontade. Inaplicabilidade do art. 51, VIII do CDC.
Art.192, § 3º da Constituição Federal. O limite de 12% é inaplicável às
administradoras de cartões de crédito da Turma do STF, Relator Min. Celso de
Melo, RE 163.069-8 RS, 06/12/93). Súmula nº 596. Sendo de consumo a relação
entre as partes, forçosa a devolução em dobro do que indevidamente pagou o
apelante. Provimento parcial do recurso.”

Veja também o REsp. 450.902, em que se aplica a súmula 596 quando há cláusula
mandato:

“REsp 450902 / RS. DJ 29/09/2003 p. 242.


Contrato de cartão de crédito. Precedente da Segunda Seção. Juros. Dissídio.
1. Assentou a Segunda Seção, vencido o relator, que as administradoras de cartão
de crédito são consideradas instituições financeiras, aplicando quanto aos juros a
Súmula nº 596 do Supremo Tribunal Federal, válida a cláusula que as autoriza a
buscar o financiamento necessário no mercado.
2. O Código de Defesa do Consumidor incide nos contratos da espécie (REsp nº
71.578/RS, Relator o Senhor Ministro Nilson Naves, DJ de 03/2/97).
3. No que concerne à cláusula mandato, o especial não apontou qualquer
dispositivo que teria sido violado, limitando-se a reproduzir paradigmas do próprio
Tribunal de origem, o que não tem força a teor da Súmula nº 13 da Corte.
4. Recurso especial conhecido e provido.”

Questão 2

Nos contratos de cartão de crédito celebrados entre Bellevue Administradora de


Cartões de Crédito Ltda. e seus clientes há cláusula de mandato cuja validade está sendo
contestada em ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público, sob a alegação de
abusividade, por impor terceiro na contratação de produtos em nome do cliente e omitir ao
cliente a taxa de juros. A defesa da administradora Bellevue sustenta estar obrigada a
buscar recursos no mercado para financiar as compras não pagas pelo cliente, quando
este resolve optar pelo pagamento rotativo ou parcelado; que a taxa de juros é informada
antecipadamente na fatura do cartão. Como não é instituição financeira, a administradora
deve arcar com o custo de captação do capital e repassá-lo aos clientes, acrescido de
outros encargos. A cláusula de mandato é apenas um expediente para possibilitar a
contratação de crédito em favor do usuário e não é aplicada quando este liquida seus
débitos no vencimento. Procede a defesa da ré? Justifique.

Resposta à Questão 2

Michell Nunes Midlej Maron 104


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

A cláusula mandato não ofende o ordenamento jurídico. O TJ/RJ conta até mesmo
com entendimento sumulado, como se vê em seu enunciado 77:

“Súmula 77, TJ/RJ: CARTÃO DE CRÉDITO. CLÁUSULA-MANDATO


VALIDADE.
‘A cláusula-mandato inserida nos contratos de emissão de cartão de crédito é
válida e não viola o dever de informar do fornecedor’.”

Veja também as Apelações Cíveis 2004.001.10210 e 2004.001.13307, do TJ/RJ,


ambas reputando válida a cláusula mandato:

“Processo: 0045816-95.2003.8.19.0001 (2004.001.10210). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. SERGIO CAVALIERI FILHO - Julgamento: 02/06/2004 -
SEGUNDA CAMARA CIVEL.
CARTAO DE CREDITO. CLAUSULA CONTRATUAL. JUROS
INAPLICABILIDADE. ANATOCISMO.
CARTÃO DE CRÉDITO. Cláusula Mandato. Validade.Taxas de Juros. Limitação.
Inaplicabilidade. Anatocismo. O titular do cartão pode, se o preferir, obter
financiamento por conta própria para o pagamento integral da fatura e, se aceita as
condições contratuais de adesão ou não, o acontecimento futuro não sujeita a
eficácia do negócio jurídico ao exclusivo arbítrio da Administradora. A cláusula
mandato não contém condição potestativa pura porque seus efeitos, ao sujeitarem-
se à manifestação do titular do cartão, também não se subordinam ao exclusivo
arbítrio da Administradora. Isto porque, a cada vez em que financia o seu débito,
por ausência de meios próprios para fazê-lo, o filiado elege a administradora como
sua mandatária para obter os meios necessários à realização da sua vontade.
Inaplicabilidade do art. 51, VIII do CDC. Sendo válida a cláusula mandato, pode a
administradora de cartão de crédito repassar para o consumidor os juros
capitalizados que se viu obrigada a pagar à financeira, os quais serão anuais, na
forma do art. 4º do Decreto 22.626/33, ou mensais, após a vigência da MP nº
2.170-6, de 24.08.01, que permanece eficaz por força da Emenda Constitucional nº
32 de setembro de 2001. Desprovimento do recurso.”

“Processo: 0070623-24.1999.8.19.0001 (2004.001.13307). 1ª Ementa -


APELACAO DES. CARLOS FERRARI - Julgamento: 29/06/2004 - QUINTA
CAMARA CIVEL.
CARTAO DE CREDITO. REVISAO DE CONTRATO. CLAUSULA-
MANDATO. VALIDADE. PROVIMENTO PARCIAL.
AÇÃO ORDINÁRIA - Cartão de crédito - Ação objetivando a revisão de cláusulas
contratuais e repetição do indébito - Sentença de procedência parcial Apelação A
administradora de cartão de crédito não integra o sistema financeiro e, por
conseguinte, não está autorizada a financiar diretamente os débitos de seus filiados
Mas se opta o usuário pelo financiamento, em seu nome busca a administradora
recursos no mercado Financeiro, submetendo-se às respectivas taxas de juros,
repassadas àquele Não contendo a cláusula mandato condição potestativa pura, não
é ela nula Não há que falar em abusividade se, por força de exigência contratual,
está a administradora obrigada a informar, em cada fatura mensal, os encargos
máximos a que estarão sujeitos os financiamentos no período imediatamente
seguinte Destarte, ao admitir o usuário o financiamento do saldo devedor, ele
assim procede com prévio conhecimento do montante dos encargos.
Induvidosamente, age ele de má-fé quando, utilizando-se do cartão de forma
descontrolada, a ponto de comprometer o seu orçamento, vem depois refugiar-se à
sombra do inadimplemento, recusando honrar a obrigação livremente assumida,
obviamente confiando em entendimento jurisprudencial que outra coisa não faz

Michell Nunes Midlej Maron 105


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

senão abonar a sua má-fé Não havendo lei especial que disponha em contrário, a
cobrança de juros sobre juros é ilegal, pois que afronta o artigo 4º do Decreto
22.626/33 e a Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal, subsistente mesmo após o
advento da Súmula 596 Provimento parcial.”

Vale dizer, porém, que com o fim das administradoras autônomas, na prática não há
mais qualquer utilidade na cláusula mandato, porque a própria administradora hoje é
instituição financeira, ela mesmo financiando o saldo devedor a juros de mercado –
dispensada a busca pelo crédito em nome do titular, portanto.

Questão 3

Felipe Fauno propôs ação de prestação de contas em face de Golden Customer -


Administradora de Cartões de Crédito S/A. alegando que os extratos mensais enviados
pela ré eram insuficientes para o esclarecimento das operações realizadas e dos encargos
cobrados. A contestação da ré baseou-se no fato de as faturas enviadas ao autor
apresentarem todos os lançamentos efetuados e previstos, sendo as taxas de juros
publicadas através dos jornais. Pergunta-se: independentemente do recebimento das
faturas mensais, pode o titular do cartão acionar judicialmente a administradora de cartão
de crédito, objetivando receber a prestação de contas dos encargos que lhe são cobrados?
Justifique.

Resposta à Questão 3

A prestação de contas é deveras devida, tendo a jurisprudência assim se posicionado


originalmente. Quando a súmula 283 do STJ veio à tona, porém, reconhecendo a
administradora de cartões como instituição financeira, a relação de mandato perdeu lugar,
porque a própria administradora concede o financiamento, dispensando-se a busca destes
valores no mercado – e, consequentemente, dispensando-se a própria cláusula mandato.
Na dinâmica, em tese, em que exista cláusula mandato, todavia, a prestação de
contas é, sim, devida, e pode ser prestada até mesmo por meio da fatura ou extratos.

Michell Nunes Midlej Maron 106


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Tema X

CONTRATO DE FRANQUIA EMPRESARIAL. Disciplina legal. Natureza jurídica. A circular de oferta de


franquia. Direitos e obrigações das partes. Contratos acessórios.

Notas de Aula12

1. Contrato de franquia empresarial

Este contrato, de origem estadunidense, foi desenvolvido após a Segunda Grande


Guerra, com a finalidade de absorver o trabalho e capital daqueles soldados que, retornando
da guerra, recebiam pecúlio governamental, e precisavam trabalhar. Com o
empreendedorismo em mente, as franquias tiveram lugar para absorver estes indivíduos
que, desejosos em iniciar um negócio próprio, não possuíam know how para tanto.
No Brasil, a franquia teve início em meados da década de 1970, e, após um certo
arrefecimento pós inserção, volta com força na atual conjuntura.
A Lei 8.955/94 é o diploma legal que regulamenta o tema, e tem um desenho
interessante, porque se baseia no modelo legal norte-americano. A lei se preocupa
fundamentalmente com as informações que devem ser passadas pelo franqueador aos
franqueados, ou potenciais franqueados, a fim de que estes possam analisar as exatas
condições do mercado e do negócio em que estão adentrando. Esta preocupação com a
informação está refletida no artigo 3° da Lei mencionada, que cria o documento chamado
circular de oferta de franquia. Veja:

“Art. 3º Sempre que o franqueador tiver interesse na implantação de sistema de


franquia empresarial, deverá fornecer ao interessado em tornar-se franqueado uma
circular de oferta de franquia, por escrito e em linguagem clara e acessível,
contendo obrigatoriamente as seguintes informações:

12
Aula ministrada pelo professor José Eduardo Cavalcanti de Albuquerque, em 27/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 107


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

I - histórico resumido, forma societária e nome completo ou razão social do


franqueador e de todas as empresas a que esteja diretamente ligado, bem como os
respectivos nomes de fantasia e endereços;
II - balanços e demonstrações financeiras da empresa franqueadora relativos aos
dois últimos exercícios;
III - indicação precisa de todas as pendências judiciais em que estejam envolvidos
o franqueador, as empresas controladoras e titulares de marcas, patentes e direitos
autorais relativos à operação, e seus subfranqueadores, questionando
especificamente o sistema da franquia ou que possam diretamente vir a
impossibilitar o funcionamento da franquia;
IV - descrição detalhada da franquia, descrição geral do negócio e das atividades
que serão desempenhadas pelo franqueado;
V - perfil do franqueado ideal no que se refere a experiência anterior, nível de
escolaridade e outras características que deve ter, obrigatória ou preferencialmente;
VI - requisitos quanto ao envolvimento direto do franqueado na operação e na
administração do negócio;
VII - especificações quanto ao:
a) total estimado do investimento inicial necessário à aquisição, implantação e
entrada em operação da franquia;
b) valor da taxa inicial de filiação ou taxa de franquia e de caução; e
c) valor estimado das instalações, equipamentos e do estoque inicial e suas
condições de pagamento;
VIII - informações claras quanto a taxas periódicas e outros valores a serem pagos
pelo franqueado ao franqueador ou a terceiros por este indicados, detalhando as
respectivas bases de cálculo e o que as mesmas remuneram ou o fim a que se
destinam, indicando, especificamente, o seguinte:
a) remuneração periódica pelo uso do sistema, da marca ou em troca dos serviços
efetivamente prestados pelo franqueador ao franqueado (royalties);
b) aluguel de equipamentos ou ponto comercial;
c) taxa de publicidade ou semelhante;
d) seguro mínimo; e
e) outros valores devidos ao franqueador ou a terceiros que a ele sejam ligados;
IX - relação completa de todos os franqueados, subfranqueados e subfranqueadores
da rede, bem como dos que se desligaram nos últimos doze meses, com nome,
endereço e telefone;
X - em relação ao território, deve ser especificado o seguinte:
a) se é garantida ao franqueado exclusividade ou preferência sobre determinado
território de atuação e, caso positivo, em que condições o faz; e
b) possibilidade de o franqueado realizar vendas ou prestar serviços fora de seu
território ou realizar exportações;
XI - informações claras e detalhadas quanto à obrigação do franqueado de adquirir
quaisquer bens, serviços ou insumos necessários à implantação, operação ou
administração de sua franquia, apenas de fornecedores indicados e aprovados pelo
franqueador, oferecendo ao franqueado relação completa desses fornecedores;
XII - indicação do que é efetivamente oferecido ao franqueado pelo franqueador,
no que se refere a:
a) supervisão de rede;
b) serviços de orientação e outros prestados ao franqueado;
c) treinamento do franqueado, especificando duração, conteúdo e custos;
d) treinamento dos funcionários do franqueado;
e) manuais de franquia;
f) auxílio na análise e escolha do ponto onde será instalada a franquia; e
g) layout e padrões arquitetônicos nas instalações do franqueado;
XIII - situação perante o Instituto Nacional de Propriedade Industrial - (INPI) das
marcas ou patentes cujo uso estará sendo autorizado pelo franqueador;

Michell Nunes Midlej Maron 108


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

XIV - situação do franqueado, após a expiração do contrato de franquia, em


relação a:
a) know how ou segredo de indústria a que venha a ter acesso em função da
franquia; e
b) implantação de atividade concorrente da atividade do franqueador;
XV - modelo do contrato-padrão e, se for o caso, também do pré-contrato-padrão
de franquia adotado pelo franqueador, com texto completo, inclusive dos
respectivos anexos e prazo de validade.”

Este documento é uma verdadeira proposta, em que o franqueador é o proponente, e


os interessados os oblatos. No direito norte-americano, esta circular se chama basic
disclosure document.
A franquia, segundo a lei, é um sistema em que o franqueador cede ao franqueado o
direito de uso de uma marca, e do prestígio e ciência por trás de tal marca. Qualquer pessoa
pode ser franqueador ou franqueado, não havendo requisitos formais diversos dos de
qualquer empresa, como o registro da pessoa jurídica e da marca. Os requisitos especiais
são contratuais, como se vê no artigo supra, e não referentes à constituição das sociedades,
franqueadora ou franqueada. O artigo 2° da Lei 8.955/94 define a base do contrato de
franquia:
“Art. 2º Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao
franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de
distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente,
também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio
ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante
remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo
empregatício.”

Muito mais do que um contrato de cessão de uso da marca, porém, a franquia gera
uma verdadeira parceria de múltiplos propósitos. Além de ceder o direito de uso da marca,
o franqueador se compromete também a pactuar três contratos acessórios a esta cessão: o de
marketing, o de engineering, e o de management. Destarte, é correto dizer que só se
identifica uma franquia típica quando há cessão da marca, marketing, engineering e
management.
O marketing envolve a divulgação dos produtos e serviços, a pesquisa de mercado,
as técnicas promocionais, e tudo o mais que com isto se relacione. Para custeio destas ações
de marketing, os franqueados, toda a rede, pagam mensalmente um percentual que varia de
dois a três por cento do faturamento, formando o fundo de marketing, bojo de onde será
retirado o valor para pagar as medidas publicitárias. Com isso, a divulgação fica mais fácil
e acessível.
O engineering consiste na estruturação física do estabelecimento, partindo do
principal aspecto, que é a escolha do ponto, até a melhor distribuição do mobiliário dentro
do estabelecimento. O franqueador é quem instrui o franqueado acerca da viabilidade do
ponto escolhido, a relação entre o preço do aluguel e a expectativa de clientela. A
ambientação do estabelecimento, a estruturação física do maquinário, tudo isto faz parte do
engineering. Para a estruturação do estabelecimento, o franqueador pode realizar ele
mesmo as obras necessárias, ou indicar fornecedores de produtos e serviços habilitados
para tanto.
Por fim, o management é o grupo de técnicas de gestão, de administração do
negócio. O franqueador, experiente no ramo em que atua, passa todas as técnicas de

Michell Nunes Midlej Maron 109


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

gerenciamento do negócio, com técnicas de contabilidade, gestão de pessoas, etc. De fato,


aspecto do management que é fundamental é o que diz respeito ao treinamento do
franqueado e de seus funcionários, o que é de suma importância para o desempenho do
negócio. Há, inclusive, a possibilidade de se disponibilizar um interventor para assessorar o
dia-a-dia das lojas, até que as engrenagens estejam suficientemente azeitadas para o bom
desempenho do negócio.
Note que estas prestações acessórias são todas favoráveis a ambos os contratantes,
franqueado e franqueador: o primeiro se vale delas para aumentar a chance de sucesso do
negócio; o segundo, para proteger a boa reputação da marca.
O artigo 2°, supra, na parte final, elide qualquer possibilidade de vínculo
empregatício entre franqueado e franqueador. A relação é estritamente empresarial,
contratual.
Como a própria exigência da circular de oferta de franquia revela, o disclosure é
fundamental: a transparência é a alma da franquia. Esta circular é imposta, e o seu
descumprimento gera sanções. A própria análise do artigo 3° da Lei 8.955/94 demonstra o
nível de detalhamento que se exige em tais informações.
A falsidade nas informações prestadas na circular, ou seu defeito, gera a
aplicabilidade do artigo 4°, parágrafo único, e artigo 7° do diploma em comento:
“Art. 4º A circular oferta de franquia deverá ser entregue ao candidato a
franqueado no mínimo 10 (dez) dias antes da assinatura do contrato ou pré-
contrato de franquia ou ainda do pagamento de qualquer tipo de taxa pelo
franqueado ao franqueador ou a empresa ou pessoa ligada a este.
Parágrafo único. Na hipótese do não cumprimento do disposto no caput deste
artigo, o franqueado poderá argüir a anulabilidade do contrato e exigir devolução
de todas as quantias que já houver pago ao franqueador ou a terceiros por ele
indicados, a título de taxa de filiação e royalties, devidamente corrigidas, pela
variação da remuneração básica dos depósitos de poupança mais perdas e danos.”

“Art. 7º A sanção prevista no parágrafo único do art. 4º desta lei aplica-se, também,
ao franqueador que veicular informações falsas na sua circular de oferta de
franquia, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.”

Pode-se, inclusive, cogitar da prática de estelionato, quando houver falseio nas


informações prestadas na circular: são ardis dedicados à obtenção de vantagens daqueles
franqueados ludibriados.
Se a franqueadora for microempresa, sabe-se que ela tem dispensado o
levantamento de balanços. Porém, para que possa ser franqueadora, ainda que seja
microempresa, terá que tomar tais balanços, ou descumprirá uma das informações de
presença obrigatória na circular.
Um requisito interessante é aquele que trata da necessidade ou não de envolvimento
direto do franqueado na gerência do negócio (inciso VI do artigo 3°, supra): pode o
franqueador impor limites mínimos de presença pessoal do franqueado no negócio, ou não
impor limite algum, sendo permitido ao franqueado admitir administrador para o
expediente diário.
Vedação de presença certa nos contratos de franquia é a impossibilidade de
concorrência desleal: não pode um franqueado de determinado ramo ser simultaneamente
franqueado de outra sociedade concorrente, do mesmo ramo, ou mesmo ter um negócio
próprio no mesmo ramo, em qualquer lugar do Brasil. É desleal esta conduta, porque o

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

franqueado estaria se valendo de todo o know how apreendido, com o fim de estabelecer
negócio apartado daquele que lhe forneceu tal ciência negocial.
Na circular, precisam ser previstos todos os custos iniciais imagináveis do negócio,
como se vê no artigo 3°, VII, da Lei 8.955/94. Ali se vê a previsão da taxa de franquia, que
é um pagamento inicial único por período de franquia, pago no início ou na renovação,
apenas pela adesão ao sistema do franqueador. No inciso VIII do mesmo dispositivo, vem a
previsão das taxas periódicas, dentre as quais se destacam os royalties, variantes entre três e
cinco por cento do faturamento, verba paga a título de uso da marca.
Veja que na franquia os interesses econômicos são convergentes: franqueador e
franqueado saem ganhando quando o negócio vai bem, porque a maior parte da
remuneração do franqueador vem de percentuais sobre o faturamento – quanto maior este,
maior o lucro e a remuneração.
O inciso VIII, “d”, ainda fala em um seguro a ser contratado pelo franqueado, que
não se refere apenas aos bens da estrutura do negócio, mas também ao seguro de
responsabilidade civil perante consumidores: franqueado e franqueador são responsáveis
solidários por quaisquer danos causados aos consumidores, na forma do CDC. Sobre a
responsabilidade civil do franqueador e franqueado, veja o seguinte julgado do TJ/RJ,
bastante relevante:
“0005173-68.2005.8.19.0052 (2007.001.27994) - APELACAO - 1ª Ementa DES.
CAMILO RIBEIRO RULIERE - Julgamento: 03/10/2007 - DECIMA SETIMA
CAMARA CIVEL.
FRANQUIA
DESCUMPRIMENTO DAS OBRIGACOES ASSUMIDAS PELO
FRANQUEADO. EFEITOS EM RELACAO A TERCEIROS.
RESPONSABILIDADE DO FRANQUEADOR. OBRIGACAO DE INDENIZAR
Responsabilidade civil. Indenizatória. Danos morais e materiais. Curso de Inglês -
Franchising. Descumprimento das obrigações assumidas pelo franqueado, e
fechamento precipitado de curso de inglês em Município do interior.
Responsabilidade do franqueador. Lei n. 8.955/1994 e artigo 25, parágrafo 1. do
Código de Defesa do Consumidor. O franqueador é o fornecedor aparente e deve
zelar pela manutenção do nome e obrigações assumidas pelo franqueado, com
terceiros, que raramente têm ciência de se tratar de contrato de franquia, mas
imaginam que estão contratando, efetivamente, com o titular de uso da marca.
Valor dos danos morais que não observou os critérios da razoabilidade e da
proporcionalidade. Provimento parcial da apelação.”

A informação obrigatória do inciso IX do artigo em tela permite que o potencial


franqueado tenha acesso a todos os que participam da rede de franquias, e, ainda mais
importante, àqueles que participaram e porventura se desligaram. Assim, é possível ao
franqueado obter informações de quem teve sucesso, mas também de quem se frustrou no
negócio.
A questão da delimitação territorial da franquia é fundamental, e vem prevista no
inciso X do artigo em comento. Dali se depreende que há duas formas de exclusividade
possíveis: pode o franqueador conceder a exclusividade reforçada, em que o contrato
delimita uma área sobre a qual o franqueado terá o monopólio; ou o direito de primeira
recusa, ou preferência. Havendo este direito de primeira recusa, o franqueador não garante
exclusividade territorial reforçada, mas garante ao franqueado que, em eventual proposta de
abertura de nova franquia naquela área predefinida, que seja ofertada a sua contratação
primeiramente àquele franqueado ali instalado, e, somente este não querendo assumi-la,

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

passar-se à oferta externa. Pode ser, também, que não haja exclusividade alguma, o que
pode se demonstrar um perigo para o franqueado.
O inciso XI tem relação com o esforço de padronização da franquia: ali se prevê que
os bens e matérias-primas devem ser adquiridos de fornecedores aprovados pelo
franqueador.
O inciso XII trata praticamente de todo o know how a ser passado pelo franqueador
ao franqueado. Ali estão previstas as mais relevantes referências aos contratos auxiliares de
management e engineering.
O inciso XIV deste dispositivo trata de uma questão fundamental: as cláusulas
relativas à extinção do contrato de franquia. Em regra, os contratos de franquia impõem a
devolução de todo o material referente ao know how e segredo de indústria ao franqueador,
e a quarentena em relação à abertura de concorrência, pelo ex-franqueado, contra a rede de
franquia que integrava. A intensidade das restrições varia de acordo com o contrato, sendo
temporal ou territorial, ou ambas: não poderá abrir negócio similar em determinado raio, e
por determinado tempo, após a expiração do contrato de franquia. Esta cláusula de restrição
de não concorrência, diga-se, é muito forte nos contratos de franquia.
O artigo 4° da Lei 8.955/94, acima transcrito, determina que a circular deve ser
ofertada em prazo mínimo de dez dias ao potencial franqueado, a fim de que ele possa
instruir-se sobre tudo que lhe é oferecido, sobre todos os detalhes do negócio. Denomina-se
este período de prazo de reflexão, após o qual pode haver a incondicionada desistência de
firmar o negócio.
Veja um julgado relevante, do TJ/RJ, referente à lealdade na relação entre
franqueador e franqueado:

“0010705-71.2004.8.19.0209 (2007.001.47396) - APELACAO - 1ª Ementa DES.


CRISTINA TEREZA GAULIA - Julgamento: 26/09/2007 - SEGUNDA CAMARA
CIVEL.
FRANQUIA. DESISTENCIA PELO FRANQUEADOR. QUEBRA DA BOA FE
OBJETIVA. PERDA DE UMA CHANCE. LUCROS CESSANTES.
Apelação Cível. Contrato de franquia. Desistência pelo franqueador após
formalização do pacto e pagamento inicial pelo franqueado. Devolução dos
valores. Responsabilidade civil. Boa-fé objetiva. Perda da chance. Lucros
cessantes. Apelante que se insurge contra a sentença que julgou improcedente os
pedidos de indenização por lucros cessantes e danos morais. Valores gastos nas
tratativas pelo apelante que foram integralmente ressarcidos pela apelada após a
desistência. Danos decorrentes da impossibilidade do apelante explorar a franquia
almejada, por rescisão unilateral da franqueadora. Quebra da boa-fé objetiva
configurada na hipótese, por ter a apelada rescindido a avença ao fundamento de
onerosidade operacional, passando a explorar ela própria o empreendimento
comercial no mesmo ponto em que pretendiam fazê-lo os apelantes. Inteligência do
art. 422, CC/02. Necessária adequação da nova teoria da perda da chance à já
arraigada teoria geral da responsabilidade civil, em especial, quanto aos lucros
cessantes. Perda da chance que projeta a perda de uma oportunidade de se obter
vantagem ou evitar-se um mal, ambos futuros, mas com repercussão presente.
Lucros cessantes que se voltam para a um fato passado, qual seja: a atividade
lucrativa cessada, que servirá de base para aquilo que o lesado deixou de ganhar.
Perda da chance que é espécie do gênero lucro cessante e sob esta ótica é de ser
contemplada. Ressarcimento que reintegra o apelante por sua frustração em ver o
negócio que idealizara explorado pela própria franqueadora, em frontal quebra à
confiança e à boa-fé; pela perda da expectativa do bom negócio, possibilidade que
já se incorporara ao seu patrimônio jurídico e, portanto, deve ser ressarcida. Dano

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

moral inexistente. Mero inadimplemento pós-contratual. Indenização fixada com


base em cláusula penal do próprio contrato. Recurso a que se dá parcial
provimento.”

A relação entre franqueado e franqueador não é de consumo, é paritária. Por isso,


além de todos os reflexos desta configuração, admite-se inclusive o foro de eleição, como
se vê na ementa do julgado abaixo, do TJ/RJ:

“0032373-75.2006.8.19.0000 (2006.002.20072) - AGRAVO DE INSTRUMENTO


- 1ª Ementa DES. BENEDICTO ABICAIR - Julgamento: 01/11/2006 - DECIMA
PRIMEIRA CAMARA CIVEL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONTRATO DE FRANQUIA.
COMPETÊNCIA. FORO DE ELEIÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO.
DESCABIMENTO. 1. Ação de rescisão de contrato de franquia. 2. Decisão que
acolheu a exceção declinou da competência para o foro da cidade de São Paulo. 3.
não se configura como relação de consumo o vínculo jurídico entre franqueado e
franqueador. 4. Não incidência do disposto no art. 93 do CDC. Agravo a que se
nega seguimento com fulcro no art. 557, caput do CPC.”

Casos Concretos

Questão 1

Um produto eletrônico é adquirido por Josué num estabelecimento franqueado em


que o empresário é apenas vendedor sob licenciamento de marca de produto. Esse produto
apresenta defeito de fabricação que o torna impróprio ao uso a que se destina. Pergunta-
se: É possível Josué responsabilizar solidariamente o franqueador e o franqueado pelos
danos sofridos, considerando-se que o primeiro fabricou e distribuiu o produto e o
segundo vendeu? Explique e embase juridicamente a resposta.

Resposta à Questão 1

A responsabilidade é solidária, decorrendo dos artigos 2º, 25, § 1°, e 34 deste codex:

“Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto
ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.”

“Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere


ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.
§ 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão
solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.
§ 2° Sendo o dano causado por componente ou peça incorporada ao produto ou
serviço, são responsáveis solidários seu fabricante, construtor ou importador e o
que realizou a incorporação.”

“Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos


atos de seus prepostos ou representantes autônomos.”

A respeito, veja o Agravo de Instrumento 2001.002.00094, do TJ/RJ:

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

“Processo: 0008875-23.2001.8.19.0000 (2001.002.00094). 1ª Ementa - AGRAVO


DE INSTRUMENTO. DES. JOSE BAHADIAN - Julgamento: 05/03/2002 -
DECIMA SEXTA CAMARA CIVEL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL DE
LABORATORIO. FRANQUIA. DIREITO DO CONSUMIDOR.
DENUNCIACAO DA LIDE. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO NAO PROVIDO.
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RITO ORDINÁRIO. RELAÇÃO DE
CONSUMO. ARGÜIÇÃO DE ILEGITIMIDADE PASSIVA. DENUNCIAÇÃO
DA LIDE. RESPONSABILIDADE DO FRANQUEADO. CHAMAMENTO AO
PROCESSO. SOLIDARIEDADE ENTRE EMPRESA FRANQUEADORA E
FRANQUEADO PREVISTA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
INEXISTÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO ATIVO NECESSÁRIO. RECURSO A
QUE SE NEGA PROVIMENTO.”

Questão 2

REMÉDIO BARATO Ltda. ajuizou uma ação de cobrança cumulada com perdas e
danos em face de FARMAVIDA COMÉRCIO Ltda., alegando que a ré, apesar de já não
pertencer ao rol de seus franqueados, continuava utilizando a sua marca. Ressalte-se que a
rescisão contratual entre o franqueador e a franqueada se deu em razão do não-
pagamento da "taxa" de franquia por parte da franqueada. Solucione a questão,
fundamentando-a.

Resposta à Questão 2

No contrato de franquia comercial, havendo o inadimplemento das obrigações, o


rompimento do contrato é factível, e por isso tem razão o franqueador. Cessada a relação, a
continuação do uso da marca é indevida, e por isso merece o cessionário ser indenizado.

Questão 3

MARINA ROUPAS Ltda., na qualidade de uma das franqueadas de SULFABRIL


COMÉRCIO E INDÚSTRIA S/A. há dois anos, inconformada com o baixo padrão de
qualidade dos produtos, com o atendimento oferecido pelas demais franqueadas e com a
completa ausência de fiscalização por parte do franqueador nos últimos doze meses,
ingressa com ação de rescisão contratual em face da franqueadora pugnando pela
restituição da taxa de adesão e pelo pagamento da multa contratual prevista para o caso
de rompimento do contrato por culpa de uma das partes. Em contestação, a franqueadora
alegou que a fiscalização das franqueadas é um direito seu e não uma obrigação. Ademais,
o baixo padrão de qualidade invocado diz respeito às demais franqueadas e, portanto, não
pode ser considerado justa causa para o rompimento do contrato celebrado com a autora,
que não faz parte daquelas relações jurídicas, por absoluta ausência de interesse de agir.
Entendendo como provados os fatos narrados, resolva a questão.

Resposta à Questão 3

O pedido deve ser julgado procedente, porque entre as obrigações legais do


franqueador está a de supervisionar toda a rede de franqueados, a fim de manter a

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

homogeneidade e o nível de aceitação da marca. Fiscalizar não é um direito: é uma


obrigação do franqueador.

Tema XI

CONTRATO DE LOCAÇÃO EMPRESARIAL. Particularidades. Disciplina legal. Ação renovatória.


Condições. Legitimidade. Prazos. Dispensa de renovação. Procedimento na ação.

Notas de Aula13

1. Contrato de locação empresarial

A ação renovatória é o grande ponto de discussão neste tema, justamente por seu
escopo ser o de proteger um elemento fundamental da relação de empresa: o ponto. Veja
que, de início, cumpre dizer que o termo “locação empresarial” é insuficiente para
descrever a relação em questão, porque não só na locação empresarial se dá o direito de
renovação compulsória do contrato: basta que seja locação não-residencial.
O direito potestativo à renovação compulsória não está limitado à locação
empresarial, sendo aplicável a todas as locações não-residenciais. Como exemplo de
locação não-residencial que ao mesmo tempo é também não-empresarial, temos qualquer
locação imobiliária empreendida por sociedades simples, não empresárias – como um
escritório de advocacia, por exemplo.
E veja que existem até mesmo locações dedicadas à moradia que não são
residenciais: como exemplo, a locação feita pela pessoa jurídica para a moradia de um dos
sócios, gerente ou empregado, o que interessa diretamente à atividade de empresa. Assim,
enquadra-se, no direito à renovação compulsória, a locação com fim empresarial, mas
também aquela celebrada por sociedades simples, destinadas à atividade industrial, e
também na hipótese em que o locatário é uma pessoa jurídica, e o imóvel é destinado à
moradia de membro da sociedade ou de empregados.

1.1. Requisitos para a renovação compulsória

13
Aula ministrada pelo professor Fábio de Oliveira Azevedo, em 3/12/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 115


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Os requisitos para fazer jus à renovação compulsória estão no artigo 51 da Lei


8.245/91, Lei de Locações. Veja:

“Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a
renovação do contrato, por igual prazo, desde que, cumulativamente:
I - o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado;
II - o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos
contratos escritos seja de cinco anos;
III - o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo
mínimo e ininterrupto de três anos.
1º O direito assegurado neste artigo poderá ser exercido pelos cessionários ou
sucessores da locação; no caso de sublocação total do imóvel, o direito a renovação
somente poderá ser exercido pelo sublocatário.
2º Quando o contrato autorizar que o locatário utilize o imóvel para as atividades
de sociedade de que faça parte e que a esta passe a pertencer o fundo de comércio,
o direito a renovação poderá ser exercido pelo locatário ou pela sociedade.
3º Dissolvida a sociedade comercial por morte de um dos sócios, o sócio
sobrevivente fica sub - rogado no direito a renovação, desde que continue no
mesmo ramo.
4º O direito a renovação do contrato estende-se às locações celebradas por
indústrias e sociedades civis com fim lucrativo, regularmente constituídas, desde
que ocorrentes os pressupostos previstos neste artigo.
5º Do direito a renovação decai aquele que não propuser a ação no interregno de
um ano, no máximo, até seis meses, no mínimo, anteriores à data da finalização do
prazo do contrato em vigor.”

Este dispositivo oferece muitas controvérsias e peculiaridades, a começar pelo


caput, que usa o termo “comércio”: o entendimento é que este termo deve ser lido em
cotejo com o próprio § 4° deste mesmo artigo, extensivo do conceito, ampliando o
cabimento segundo a finalidade da locação.
Segunda controvérsia diz respeito ao profissional liberal: terá ele direito à
renovatória? A resposta dependerá da necessidade ou não da proteção ao ponto. Capanema
sempre criticou este dispositivo, o § 4°, reputando que a extensão ao profissional liberal
não deveria ser devida em qualquer caso, porque a locação feita ao profissional liberal leva
em conta que este tem captação pessoal de seus clientes, desvinculada do imóvel alugado,
ou seja, o profissional, ou a sociedade de profissionais liberais, colhe seus clientes não por
conta do ponto, mas sim por conta da sua pessoa – sendo desnecessária a proteção de seu
ponto, portanto.
Hoje, porém, esta não é mais a realidade dos fatos. As relações com profissionais
liberais são cada vez mais impessoais, ou seja, a clientela é cada vez mais captada em
função da localização do lugar de ofício do profissional, e não em razão da pessoa deste.
Destarte, a proteção ao ponto do profissional liberal é cada vez mais importante, devendo o
intérprete fazer uma leitura evolutiva do instituto, a fim de comportar extensão da proteção
– ou seja, o direito à renovatória – ao profissional liberal. Esta posição é minoritária, mas
Capanema, alterando seu entendimento, pende a esta releitura do conceito, estendendo a
proteção quando o ponto for fundamental à captação de clientela.
Pode-se dizer, de fato, que ainda há hoje ambas as dinâmicas: há profissionais
liberais que colhem seus clientes independentemente do ponto – como médicos ou
advogados de renome –, e há aqueles que captam sua clientela mormente pelo local de sua
prática. Para estes, a proteção do ponto é fundamental; para aqueles, não.

Michell Nunes Midlej Maron 116


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Em suma, é ainda majoritário na doutrina o entendimento restritivo da renovação


compulsória da Lei 8.245/91, retirando de seu alcance a relação de locação firmada por
profissional liberal, porque a sua captação de clientes tem cunho pessoal, desvinculado do
ponto, justificando a desnecessidade de proteção deste ponto – resguardando-se a leitura
evolutiva do instituto, ante a impessoalidade crescente destas relações dos profissionais
liberais com sua clientela.
Outro aspecto a ser esmiuçado na redação do caput deste artigo 51 é o alcance da
expressão “por igual prazo”, referindo-se ao contrato. O que se entende é que o prazo a ser
renovado é, no mínimo, de cinco anos. Entenda: é requisito objetivo para constatar direito à
renovação compulsória o preenchimento de cinco anos de locação, como diz o inciso II do
artigo supra, sendo estes cinco anos compostos por um único contrato com este prazo, ou
pela soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos. Se se fizesse uma interpretação
literal do caput, a renovação do contrato, por igual prazo, referir-se-ia ao último contrato, o
que, na hipótese de soma dos contratos que completaram cinco anos, remeteria a renovação
ao prazo do último – que se fosse de um ano, por exemplo, determinaria renovação
compulsória por apenas mais um ano.
É claro que esta interpretação literal não é a mais correta. A lei estabeleceu que a
protetividade do ponto se refere a um período de cinco anos, e, por certo, se a soma de
todos os contratos preenche cinco anos, é este o prazo de renovação garantido pelo
legislador. Assim deve ser lida a expressão “por igual período”.
O prazo mínimo para a renovação compulsória é de cinco anos, inclusive, para
evitar o tumulto processual que seria causado pelo ajuizamento de sucessivas ações
renovatórias, caso renovado pelo período do último contrato, pois a renovatória tem que ser
proposta ao menos antes de seis meses antes do término da locação. Se o último contrato
for de um ano, por exemplo, e este for o prazo renovado, a cada seis meses será necessário
o ajuizamento de uma nova renovatória.
Locações mistas – em que o locatário reside em parte do imóvel, e desenvolve
empresa em outra parte – podem se valer da renovação compulsória? É dominante o
entendimento de que deve ser identificada a finalidade principal da locação, sendo a
interpretação teleológica sempre voltada à proteção do ponto. Se a locação é fundamental
para consolidar o ponto, ou seja, o caráter de empresa predomina sobre o residencial, a
renovatória é possível.
Vejamos, então,m cada requisito pontualmente, ressaltando, desde logo, que são
todos cumulativos.

1.1.1. Forma escrita e prazo determinado

O inciso I do artigo 51, supra, diz que a renovatória só tem lugar quando o contrato
a renovar tiver sido celebrado por escrito e com prazo determinado. Isto significa que, em
caso de pactuação ou prorrogação por prazo indeterminado, o direito de renovação
compulsória simplesmente inexiste.
Em todas as locações previstas na lei – residencial, não-residencial e por temporada
–, findando-se o prazo pactuado originalmente, sem que novo contrato seja produzido, ou
sem que a renovação compulsória tenha tido lugar (quer porque não era cabível, quer
porque o locatário não a pleiteou habilmente), o contrato passa a viger por prazo
indeterminado, e não se extingue, como se poderia pensar.

Michell Nunes Midlej Maron 117


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Conduzindo-se por prazo indeterminado, não há mais possibilidade de renovação


compulsória, mesmo que os requisitos fossem, outrora, preenchidos. Consequentemente,
cabe, a qualquer tempo, a denúncia potestativa do contrato pelo locador.

1.1.2. Prazo ininterrupto de cinco anos

O prazo que enseja a renovação compulsória, como dito, deve ser de cinco anos, na
forma do inciso II do artigo supra: haverá renovação por mais cinco anos, sucessivamente.
Quando o contrato já for pactuado, inicialmente, por cinco anos, não há maiores problemas
na verificação deste requisito; problema surge é quando há a soma dos prazos de diversos
contratos entre as partes, especialmente ante a exigência de curso ininterrupto dos cinco
anos.
Vejamos um exemplo: locatário pactua com locador contrato de três anos; ao seu
final, ocorre um intervalo de seis meses, até a feitura de novo contrato de três anos.
Pergunta-se: há direito à renovação compulsória, neste caso?
Trata-se do instituto do acessio temporis: a soma dos contratos ininterruptos deve
preencher os cinco anos que a lei impõe como requisito, mas isto não pode ensejar a fraude
ao escopo da lei. Se, no caso, o intervalo é claramente dedicado à frustração do direito à
renovação, a soma dos prazos deve desconsiderar tal intervalo, ou seja, há, sim direito à
renovação por preenchimento do prazo, no exemplo dado. Aplica-se, aqui, o artigo 45 da
Lei de Locações:

“Art. 45. São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem
a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação
prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou
que imponham obrigações pecuniárias para tanto.”

Destarte, pequenos intervalos entre os contratos de locação sucessivos não


descaracterizam o acessio temporis, e, portanto, o prazo é contado de forma ininterrupta,
autorizando a renovação compulsória.
Com base neste mesmo raciocínio, Capanema defende até mesmo que os contratos
pactuados por quatro anos e seis meses, por exemplo – ou um pouco mais, ou ainda um
pouco menos –, dariam direito à renovação compulsória, porque estaria refletida a mesma
intenção do locador em frustrar o direito à renovação, prejudicando o escopo protetivo do
ponto que a lei pretendeu criar. Objetivamente, o requisito de cinco anos não estaria
preenchido, mas a legítima expectativa de proteção da atividade de empresa precisa de
proteção contra estes atentados ardilosos, avaliados subjetivamente. É uma leitura moderna,
e ainda minoritária, mas bastante evoluída e atenta à constitucionalização do direito.

1.1.3. Exploração do ponto

O inciso III do artigo em questão determina que só faz jus à renovação compulsória
o locatário que esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e
ininterrupto de três anos.
Também quanto a este requisito se aplica o entendimento de que pequenos
intervalos na exploração do bem não descaracterizam a continuidade que é imposta como
requisito. Fosse tão rígida a leitura, qualquer cessação temporária das atividades ensejaria a

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

perda do direito à renovação compulsória, o que não é o escopo da lei. Por exemplo, não
poderia o locatário sequer fechar as portas para reformar o imóvel, sob pena de perder o
direito.
É preciso verificar, portanto, apenas se a mesma atividade foi desenvolvida no
imóvel, pelo tempo mínimo de três anos, porque é o prazo que o legislador encontrou como
necessário ao estabelecimento de um ponto reconhecível pelo mercado, e por isso
merecedor de proteção.
Veja um exemplo peculiar: suponha que haja um contrato de locação de cinco anos
para o desenvolvimento de comércio de calçados. No curso do contrato, no segundo ano, o
locatário pretende alterar seu negócio para um restaurante, sendo autorizado pelo locador.
Caberá, perfeitamente, a renovação compulsória, porque ao fim dos cinco anos haverá
preenchimento de três anos em uma mesma atividade, formado o ponto do restaurante.

1.2. Locação em shopping centers

O estudo dos shopping centers será alvo de tema próprio, mas cabe aqui adiantar
algumas peculiaridades referentes às locações.
Durante muito tempo, discutiu-se se a relação entre o empreendedor do shopping e
o lojista era ou não uma relação locatícia. Diversas foram as teorias, da que reputava esta
relação como sui generis à que identificava-a como locação, passando até mesmo pelo
entendimento de que se tratava de uma espécie de sociedade. Capanema entende que, a
partir da edição da Lei 8.245/91, a discussão recebeu uma pá de cal legislativa: é uma
locação, na forma do artigo 54:

“Art. 54. Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center ,


prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação
respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei.
1º O empreendedor não poderá cobrar do locatário em shopping center :
a) as despesas referidas nas alíneas a , b e d do parágrafo único do art. 22; e
b) as despesas com obras ou substituições de equipamentos, que impliquem
modificar o projeto ou o memorial descritivo da data do habite - se e obras de
paisagismo nas partes de uso comum.
2º As despesas cobradas do locatário devem ser previstas em orçamento, salvo
casos de urgência ou força maior, devidamente demonstradas, podendo o locatário,
a cada sessenta dias, por si ou entidade de classe exigir a comprovação das
mesmas.”

Superada esta discussão, portanto, subsiste ainda a questão se a locação é a única


relação, ou se há uma coligação de outros contratos neste negócio complexo – o que será
abordado no tema próprio.
Posto que está que é uma locação, há que se enfrentar suas peculiaridades,
especialmente em relação à renovação compulsória. O artigo 52 da Lei de Locações trata
das defesas do locador contra a renovação compulsória, e exsurge desde logo a primeira
peculiaridade: algumas das defesas ali previstas não são oponíveis em contratos de locação
em shopping centers.

“Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se:

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

I - por determinação do Poder Público, tiver que realizar no imóvel obras que
importarem na sua radical transformação; ou para fazer modificações de tal
natureza que aumente o valor do negócio ou da propriedade;
II - o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de
comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o
locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente.
1º Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo
ramo do locatário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com
as instalações e pertences.
2º Nas locações de espaço em shopping centers, o locador não poderá recusar a
renovação do contrato com fundamento no inciso II deste artigo.
3º O locatário terá direito a indenização para ressarcimento dos prejuízos e dos
lucros cessantes que tiver que arcar com mudança, perda do lugar e desvalorização
do fundo de comércio, se a renovação não ocorrer em razão de proposta de
terceiro, em melhores condições, ou se o locador, no prazo de três meses da
entrega do imóvel, não der o destino alegado ou não iniciar as obras determinadas
pelo Poder Público ou que declarou pretender realizar.”
Preenchidas as condições para o direito à renovação, o locador de loja em shopping
center simplesmente não pode alegar aquelas defesas ali mencionadas. Vale adiantar que se
o shopping não for tecnicamente um shopping, e sim um centro comercial (o que ocorre nos
chamados shoppings vendidos, conforme se verá), a relação de locação segue a regra geral,
sem estas peculiaridades.
Em breve síntese, veja que a regra, portanto, é que o direito à renovação
compulsória não é absoluto, porque há as exceções legais previstas no artigo 52, supra, que
permite ao locador recusar a renovação, mesmo preenchidos os requisitos. A retomada para
uso próprio, constante do inciso II do artigo supra, por exemplo, é uma hipótese cabível de
recusa ao direito de renovação preenchido. Na locação celebrada entre lojista e
empreendedor de shopping center, portanto, a renovação é absoluta, eis que não se aplica o
artigo 52 em comento – é expressamente vedada esta aplicação, como diz o § 2° do
dispositivo em questão. Segundo Sylvio Capanema, este dispositivo só é aplicável ao
chamado shopping center típico, o locado, não se aplicando ao shopping vendido.

1.3. Retomada para uso próprio

O inciso II do artigo 52 da Lei 8.245/91, há pouco transcrito, permite que haja a


retomada do imóvel para uso próprio pelo locador, mesmo que haja o preenchimento dos
requisitos da renovação compulsória.
Esta dinâmica precisa ser operada com cuidado, eis que a retomada pode significar,
na casuística, um enriquecimento sem causa do locador – o que é contrário ao escopo da lei.
O restante do dispositivo deve ser observado, pois nos parágrafos deste artigo 52 estão as
condições que tornam justa esta retomada.
Na retomada para uso próprio pelo locador, deve ser observado o princípio da
sinceridade, ou seja, basta a afirmação do locador, na contestação, de que não desenvolverá
a mesma atividade no local, para assim ser considerada a situação. Havendo
descumprimento, haverá responsabilidade civil por perdas e danos do locatário, mas jamais
será concedida a reocupação, pois esta não é prevista em nosso ordenamento
(diferentemente de Portugal, em que o locatário retornará à posse do imóvel, caso o locador
descumpra esta condição para a retomada).

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Casos Concretos

Questão 1

Na locação de uma loja para expansão dos negócios de uma sociedade empresária
foi incluída, observando o prazo quinquenal, a locação de um apartamento anexo, do
mesmo locador, para moradia do gerente do estabelecimento, além de eventual uso de um
de seus cômodos para depósito de mercadorias. O dito apartamento é incluído na ação
renovatória aforada no prazo legal. O locador contesta o pedido de inclusão por entender
incabível a utilização do instituto para imóveis de uso residencial. Procede a defesa?
Justificar.

Resposta à Questão 1

A renovatória é cabível, porque a locação feita para a pessoa jurídica, com a


finalidade de promover a condução da atividade de empresa, faz necessária a proteção do
ponto.
O artigo 55 da Lei 8.245/91 estende a proteção da renovatória à locação feita por
pessoa jurídica, e destinada à moradia de empregado. Além disso, as locações mistas
também autorizam a renovação compulsória, quando for preponderante a finalidade não-
residencial, como acontece no caso proposto.

“Art. 55. Considera - se locação não residencial quando o locatário for pessoa
jurídica e o imóvel, destinar - se ao uso de seus titulares, diretores, sócios,
gerentes, executivos ou empregados.”

Destarte, quer pela previsão legal acima, quer porque a locação é mista com
preponderância do fim empresarial, a renovação compulsória se impõe.

Questão 2

Mônica Lopez ajuizou ação renovatória de contrato de locação comercial, que tem
por objeto certo imóvel situado em Ipanema. Como causa de pedir, entre outros

Michell Nunes Midlej Maron 121


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

fundamentos, a locatária alegou a soma de prazos de contratos de locação, para efeitos do


art. 51, II da Lei nº 8245/91. Em sua contestação, a locadora entendeu incabível o pedido
e a aplicação da "accessio temporis" porque o contrato escrito foi celebrado pelo prazo de
54 meses. Ademais, somente a pessoa jurídica, que não é locatária, teria legitimidade para
pleitear a renovação da locação, eis que ela seria a titular do estabelecimento e do ponto,
jamais os sócios. Cronologicamente, o que se verifica são as seguintes situações: a) em
01/10/2001 Robert Guimarães e a locadora celebraram o contrato de locação do imóvel
objeto da ação;b) em 10/09/2002, Robert Guimarães passa a fazer parte do quadro social
de uma pessoa jurídica e esta passa a usar o imóvel locado como ponto empresarial;c) em
30/09/2002 aquela locação (entre Robert e a locadora) é desconstituída;d) em 01/10/2002,
Rosilene, uma das sócias da pessoa jurídica, celebra nova locação com prazo de 54
meses;e) em 01/10/2004 a locação é então transferida para a sócia Mônica;f) em
01/11/2004, os demais sócios se retiram da sociedade empresária, permanecendo as sócias
Mônica e Tais. Expostos os fatos, decida com a devida fundamentação.
Resposta à Questão 2

Embora celebrado um contrato com prazo de quatro anos e meio, houve a


ininterrupta continuidade da atividade, que era desenvolvida pela pessoa jurídica que a
autora integrava, muito embora a locação tenha sido celebrada por outra sócia. Fica,
portanto, caracterizada a fraude na tentativa de descaracterização da acessio temporis,
permitindo a renovação compulsória, in casu.
A respeito, veja a Apelação Cível 2008.001.28721, do TJ/RJ:

“Processo: 0121224-87.2006.8.19.0001 (2008.001.22721). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. JOSE CARLOS VARANDA - Julgamento: 08/10/2008 -
DECIMA CAMARA CIVEL.
Ação Renovatória de Contrato de Locação Comercial. Preenchimento dos
requisitos legais. Procedência da pretensão decretada sob o fundamento de que
teria ocorrido fraude quanto ao prazo. Configuração, todavia, pela análise
documental, da "accessio temporis". sentença que se prestigia por sua conclusão.
Improvimento do 1º recurso. Provimento do 2º recurso.”

Questão 3

Ourizona 360 Graus Promoções S/A. intentou ação de despejo por denúncia vazia
proposta em face de Elouard Ayorano, com base em contrato particular de Licença
Especial de Uso de Stand, através do qual ajustaram a locação do stand 109 no Shopping
Center Velouté pelo período de 720 dias, prorrogado até a data de 08/12/2007, quando o
locatário recebeu notificação para desocupação voluntária. O locatário em sua
contestação resistiu à pretensão, impugnando a existência de locação, já que a ocupação
do stand deriva de contrato de exploração de licença de posse do imóvel, o que torna
inaplicável a Lei nº 8.245/91. Portanto, nessa linha de raciocínio, a ocupação do imóvel se
dá em virtude de uma licença e, por isso, não seria locatário, mas licenciado ou
autorizado. Em réplica, o autor aduz que o contrato, apesar de ostentar o nome de Licença
Especial de Uso de Stand, tem conteúdo inequívoco de contrato de locação. A cláusula 2ª
do ajuste define o objeto como "a locação de uma área correspondente ao stand 109...".
Em outras cláusulas há previsão de substituição de fiadores ou formulação de novas
exigências. O texto restante define regras, fixa responsabilidades, estabelece prazos, valor

Michell Nunes Midlej Maron 122


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

mensal a ser pago e encargos contratuais. Pergunta-se: A pretensão do autor está ou não
albergada pela Lei de Locações? Como decidiria a questão?

Resposta à Questão 3

O contrato em questão nada mais é do que uma simples locação, apesar do nomen
fantasioso criado pelo locador, pois estão presentes os pressupostos essenciais genéricos e
específicos deste tipo de contrato, dentre os quais o bem objeto da locação, em
contrapartida ao preço que representa a remuneração ao contratante proprietário. Aplica-se,
portanto, sem dúvida, a Lei de Locações, sendo possível o despejo, devendo ser procedente
se comprovados os requisitos da denúncia vazia.

Tema XII

SHOPPING CENTERS. Aspectos jurídicos do shopping center. Conceito. Estrutura do negócio jurídico.
Personagens. Aplicação da Lei Nº 8.245/91. Res Sperata. Aluguel mínimo, décimo terceiro aluguel,
publicidade, cobrança de estacionamento e questões afins.

Notas de Aula14

1. Shopping center

Por conceito, o shopping center é um complexo criado, planejado, construído e


administrado de maneira a criar uma estrutura atrativa de público, potenciais consumidores
de cada uma das lojas de tal complexo.
O primeiro aspecto relevante sobre os shopping centers é a sua configuração
imobiliária, do ponto de vista jurídico. Isto porque há várias configurações possíveis, e
veremos uma a uma.
A primeira configuração imobiliária de um shopping center é a típica, aquela em
que todo o conglomerado é pertencente a uma só pessoa, normalmente jurídica. Sendo este
o caso, o proprietário do shopping é o titular de qualquer relação jurídica que o envolva.
Por exemplo, na locação das lojas, será ele sempre o locador, sendo ele o autor em uma
ação de despejo, ou o réu em uma ação indenizatória por furto de bens no interior das
dependências, ou também réu de uma ação renovatória de locação de uma das lojas, etc.
Segunda configuração, também muito comum, é aquela em que há um condomínio
geral voluntário: duas ou mais pessoas, naturais ou jurídicas, são donas de todo o
empreendimento, do terreno, da estrutura e das áreas comuns, e das lojas.
Terceira configuração possível é aquela em que se forma um condomínio edilício:
há unidades autônomas, ou seja, há lojas que pertencem a pessoas diferentes, e há áreas
comuns pertencentes a todos os condôminos, em condomínio.
Pode, ainda, haver a mescla de mais de uma configuração: nada impede que, de um
universo de dez lojas, por exemplo, haja três que pertençam cada uma a uma pessoa, e as
outras sete pertençam a um grupo de três pessoas, ou seja, há um condomínio edilício,

14
Aula ministrada pelo professor Fábio de Oliveira Azevedo, em 3/12/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 123


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

sendo que em parte dele se configurou um condomínio geral voluntário (as sete lojas são
condominiais de seus três proprietários)15.
Havendo condomínio geral voluntário, há solidariedade legal, na forma do artigo 2º
da Lei de Locações, ativa e passiva:

“Art. 2º Havendo mais de um locador ou mais de um locatário, entende - se que


são solidários se o contrário não se estipulou.
Parágrafo único. Os ocupantes de habitações coletivas multifamiliares presumem -
se locatários ou sublocatários.”

Por haver esta solidariedade ativa, qualquer dos credores, sozinho, pode ajuizar uma
ação de cobrança, por todo o montante devido, o que implicará apenas em rateio interno
entre os condôminos, quando recebida a sentença favorável e o bem material, o pagamento.
Da mesma forma, se todos os credores, condôminos, quiserem ajuizar uma ação de
despejo, ou uma revisional de aluguéis, por exemplo, não há problema: todos comporão o
pólo ativo. Haverá um imbróglio é quando algum dos condôminos credores não quiser agir
em despejo ou revisão: a revisão das cláusulas contratuais ou sua extinção pressupõe
resultado que alcançará a todos; se um deles não quer litigar, a sentença não o alcançará.
Por isso, a solução processual conhecida é citar-se o condômino que não quer litigar para
compor o pólo passivo, a fim de que a sentença o alcance, não subvertendo, assim, a
eficácia subjetiva da coisa julgada.

1.1. Sobrefundo empresarial, ou duplicidade de fundos empresariais

O shopping center, ao contrário do entendimento leigo, não cobra luvas. O que há,
no shopping, são dois fundos empresariais diferentes, um sobrefundo. Fundo empresarial é
um complexo de bens materiais e imateriais que habilita e materializa a atividade
empresarial (marcas, patentes, equipamentos, aviamento, etc.). No shopping, cada lojista
tem seu próprio fundo empresarial, mas existe também um fundo empresarial maior, que
pertence ao próprio shopping como um todo.
Tome-se um exemplo: a Mc’Donalds que funciona dentro do shopping Rio Sul tem
todo o seu fundo empresarial, composto por sua marca, sua imagem, seu público próprio,
seus bens móveis, etc; o shopping Rio Sul, em si, também tem seu próprio fundo
empresarial, consistindo na sua própria marca, seus equipamentos, ar condicionado,
segurança, iluminação, estacionamento, etc.
O que se passa, quando há a instalação de uma loja em um shopping, é um
pagamento inicial pelo lojista ao shopping justamente pelo direito de uso deste fundo de
empresa, o sobrefundo do shopping – e não o pagamento de luvas, que, no ordinário, é a
“compra” do ponto em locações empresariais comuns (o que é perfeitamente legal, só
15
Os litígios envolvendo relações pertinentes ao shopping, em regra, são imobiliários, de responsabilidade
civil, ou por alguma violação contratual. Tem sido comum a alegação, em iniciais de lojistas contra o
respectivo locador, de que o fracasso de sua empreitada se deve à má condução do estabelecimento em geral,
algo como um descaso pelo sucesso do lojista. Ora, esta alegação tem sido rejeitada, porque o shopping tem a
particularidade do aluguel variável, que é aquele em que o lojista paga um valor mínimo ou um percentual de
seu faturamento, o que for maior. Se o faturamento majorará o aluguel, é claro que o locador tem todo
interesse no sucesso do locatário. É claro que, se se identificar alguma atuação ou omissão desidiosa
determinante para o fracasso do locatário, esta tese poderá ser acolhida, mas não basta dizer que o fracasso
deve-se apenas ao desinteresse geral que o shopping desperta nos clientes, como tem sido feito.

Michell Nunes Midlej Maron 124


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

sendo vedada a cobrança de luvas na renovação, mas não na aquisição). E o nomen deste
pagamento inicial é res sperata.
Pode haver caso em que a locação cumule pagamento de luvas, se há ponto
formado, e também da res sperata, sem que se configure qualquer abuso, porque as causas
de uma e outra não se confundem. A res sperata é uma remuneração ao locador pela
utilização do fundo empresarial do shopping, e não apenas do ponto, razão pela qual é mais
ampla, e de escopo diverso, do que as luvas – que são a remuneração pelo ponto que se
adquire, somente.
O próprio nome do contrato em que se paga a res sperata é bastante revelador de
seu escopo: chama-se cessão de uso do fundo empresarial, revelando com clareza seu
objeto. O contrato é perfeitamente comutativo, e não aleatório: de um lado, há a obrigação
de pagar o preço; de outro, a obrigação de colocar o fundo empresarial à disposição do
lojista, obrigação de meio que consiste em planejar, organizar e manutenir o bom
andamento deste sobrefundo, a fim de que a estrutura seja atrativa ao público. E veja que a
obrigação do shopping é de meio: ele tem que envidar esforços para captar o público,
mantendo um bom fundo empresarial (uma boa marca, um bom nome, uma boa segurança e
limpeza, etc.), mas se o público mesmo assim não vier, sua obrigação não restou
descumprida – o sobrefundo foi mantido e posto à disposição do lojista, tendo cumprido a
prestação.
Pelo ensejo, vale explicar o motivo do nome deste instituto ser res sperata. Res
sperata significa “coisa esperada”. Este pagamento, originalmente, se destinava a financiar
a própria instalação do sobrefundo, a sua criação, a construção das áreas comuns, do
ambiente, da marca do shopping, etc. Daí o nome: tudo isto era uma “coisa esperada”
daquele futuro locatário que paga em face do shopping que estava se instaurando. O futuro
locatário remunerava, desde já, o fundo empresarial cujo uso lhe será entregue no futuro.
Por isso, a locação contraída em um shopping já a pleno vapor, em pleno
funcionamento, não é mais causa de uma “coisa esperada”, tecnicamente: a coisa já é posta,
o sobrefundo já existe e está à disposição de quem vier a se tornar lojista naquele espaço.

1.2. Elementos característicos da locação em shopping center

O primeiro é a já abordada res sperata. Há, também, o décimo terceiro aluguel


anual, que é legítimo, autorizado pelo único dispositivo legal dedicado a shopping centers,
o artigo 54 da Lei 8.245/91, já transcrito, mas que precisa ser revisto:

“Art. 54. Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center,


prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação
respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei.
1º O empreendedor não poderá cobrar do locatário em shopping center:
a) as despesas referidas nas alíneas a , b e d do parágrafo único do art. 22; e
b) as despesas com obras ou substituições de equipamentos, que impliquem
modificar o projeto ou o memorial descritivo da data do habite - se e obras de
paisagismo nas partes de uso comum.
2º As despesas cobradas do locatário devem ser previstas em orçamento, salvo
casos de urgência ou força maior, devidamente demonstradas, podendo o locatário,
a cada sessenta dias, por si ou entidade de classe exigir a comprovação das
mesmas.”

Michell Nunes Midlej Maron 125


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Prevalece com vigor a autonomia privada, nos contratos de shopping center, e por
isso a previsão contratual, quase regra, de que há o décimo terceiro aluguel, é válida. A
jurisprudência entende que é possível esta cobrança porque é equilibrada a relação em um
período notoriamente de maior faturamento para os lojistas, com as compras de fim de ano.

1.3. Aluguel variável

No shopping, é permitida a cobrança de um aluguel mínimo, ou a de um valor


alternativo, consistente em percentual do faturamento. Aquilo que for mais alto será o valor
pago naquele mês – por isso é variável. Veja um exemplo: o aluguel mensal mínimo de uma
loja é de dez mil reais, ou cinco por cento do faturamento do mês, o que for maior; se a loja
faturar um milhão de reais, seu aluguel, neste mês, custará cinquenta mil reais.

1.4. Natureza jurídica

A natureza jurídica da relação entre o empreendedor do shopping e o lojista é


controvertida. Para a primeira corrente, de Caio Mário, há uma locação com cláusulas
atípicas – como a cláusula de aluguel variável, há pouco descrita.
Para a segunda corrente, de Capanema, a natureza é locatícia simples, na forma do
artigo 54 da Lei de Locações. Para ele, a lei pôs fim à discussão sobre esta natureza.
Para João Basílio, autor específico sobre o tema, em terceira corrente, trata-se de um
contrato coligado. Para ele, há três negócios jurídicos contratuais compondo o contrato
maior, quais sejam: a locação propriamente dita; um contrato de prestação de serviços com
a administradora do shopping; e um contrato de associação de lojistas (a qual tem até
mesmo legitimidade ad causam para exigir prestação de contas da administradora), ato-
regra inserto no bojo do contrato coligado.

Michell Nunes Midlej Maron 126


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Casos Concretos

Questão 1

FREE SHOPPING , através do seu administrador, está cobrando do locatário do


espaço de uso comercial - FLAN FLUN Comida Tawainesa Ltda. - as despesas com
indenizações trabalhistas de empregados do FREE SHOPPING. O locatário reclamou
contra a cobrança dessas despesas, porque a dispensa dos empregados ocorreu em janeiro
de 2004, antes da vigência do contrato de locação. O administrador do SHOPPING
informou que o contrato prevê claramente o rateio de todas as despesas entre os locatários
do espaço de uso comercial, sem exceção. Assim, os novos locatários respondem pelos
pagamentos que ocorram a partir da vigência da locação, e o pagamento das indenizações
deve ser feito por ordem da Justiça do Trabalho. Decida a questão de forma
fundamentada.

Resposta à Questão 1

A despedida do empregado prévia à contratação do réu do contrato de locação da


loja é vedada. O artigo 54 da Lei de Locações proíbe algumas despesas do locatário, dentre
as quais está a verba resilitória pela dispensa de empregado do shopping, quando a dispensa
ocorreu antes da celebração do contrato. Veja o artigo 54, § 1°, “a”, que deve ser
combinado com o artigo 22, X e parágrafo único, “d”, da mesma Lei 8.245/91:

“Art. 54. Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center,


prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação
respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei.
1º O empreendedor não poderá cobrar do locatário em shopping center:
a) as despesas referidas nas alíneas a , b e d do parágrafo único do art. 22; e
(...)”

“Art. 22. O locador é obrigado a:


(...)
X - pagar as despesas extraordinárias de condomínio.

Michell Nunes Midlej Maron 127


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Parágrafo único. Por despesas extraordinárias de condomínio se entendem aquelas


que não se refiram aos gastos rotineiros de manutenção do edifício, especialmente:
(...)
d) indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados,
ocorridas em data anterior ao início da locação;
(...)”

Questão 2

Hélvian teve seu veículo marca Guénon furtado no estacionamento do Shopping


Center de Caleta, no Serro. O referido estacionamento tem as seguintes características:a-
inexistência de controle de entrada e saída de veículos, cujo acesso é indiscriminado;b-
inexistência de cobrança de qualquer valor, podendo o usuário estacionar livremente no
local que lhe aprouver;c- inexistência de promessa de segurança ou incolumidade dos
veículos. Neste caso, haveria responsabilidade do Shopping Center de Caleta pelo furto do
veículo de Hélvian? Resposta fundamentada.
Resposta à Questão 2

O shopping é responsável. Há relação de consumo, pois há, na disponibilização do


estacionamento para clientes, mesmo que aparentemente gratuito, uma remuneração
indireta: o estacionamento é forte elemento de captação de clientela, que despenderá
recursos no interior do shopping. A matéria é sumulada, no verbete 130 do STJ:

“Súmula 130, STJ: A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano
ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento.”

Há relação de consumo, porque embora gratuito o serviço, ele gera remuneração


indireta para o shopping, já que este serviço incrementa bastante o fundo empresarial do
STJ.
Uma outra argumentação, que culminaria no mesmo resultado, seria a aplicação
plana do princípio da boa-fé objetiva: ao estacionar o veículo em um espaço destinado ao
estacionamento, mesmo sem controle, é gerada uma legítima expectativa de segurança,
razão pela qual, se frustrada esta expectativa, há necessidade de reparação.

Questão 3

Determinado empreendedor de shopping center ajuizou ação de execução em face


de um de seus lojistas por inadimplemento do pagamento de res sperata. O executado opôs
embargos à execução alegando exceção do contrato não cumprido, fato ensejador da
inexigibilidade do débito em razão do descumprimento de contrato de reserva de área
comercial para instalação de lojas-âncora, a que se obrigara o exequente. Decida a
questão de forma fundamentada.

Resposta à Questão 3

O descumprimento da obrigação contratual de instalar loja âncora autoriza a não


realização da prestação pelo locatário, relativa à res sperata, eis que presentes os requisitos

Michell Nunes Midlej Maron 128


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

de configuração do artigo 476 do CC – a exceção do contrato não cumprido, exceptio non


adimpleti contractus.

“Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a
sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.”

Pelo ensejo, vale mencionar aqui uma séria discussão que ganha corpo hoje nas
Cortes Superiores, sobre os efeitos do reconhecimento da exceptio non adimpleti
contractus. O STJ tem entendido que quando ocorre esta situação, o que se dá é o
surgimento de inexigibilidade da prestação da parte previamente alvejada pela
inadimplência, ou seja, ela fica dispensada de pagar sua prestação até o momento em que a
outra parte pague a sua própria. Haveria uma espécie de suspensão da eficácia do contrato.
De outro lado, há quem defenda que o reconhecimento desta exceção gera extinção do
contrato – o que parece ser a conclusão induzida pelo CC. Contudo, a primeira posição é
mais salutar, eis que homenageia o princípio da conservação dos negócios jurídicos.

Tema XIII

CONTRATOS BANCÁRIOS. Características. Operações bancárias. A intervenção do Estado nos negócios


bancários. A incidência do Código do Consumidor nas operações bancárias.

Notas de Aula16

1. Sistema financeiro nacional

A atuação dos bancos está inserida dentro do sistema financeiro nacional, e há hoje
duas normas principais para classificar e disciplinar as instituições financeiras: a Lei
4.595/64, especialmente seu artigo 17; e a Lei Complementar 105/01, que trata de regras de
sigilo financeiro. Veja o artigo 17 do primeiro diploma:

“Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em


vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade
principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros
próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor
de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às
instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades
referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.”

Os bancos se inserem nesta previsão supra, e também sob o alcance da LC 105/01.


A diferença de tratamento destes diplomas é referente às operadoras de cartões de crédito,
que não eram previstas no diploma ordinário, e agora o são na lei complementar. Por esta
ausência de normas regentes das administradoras de cartões, antes da LC, muita discussão
surgiu sobre a questão da limitação ou não dos juros pela Lei de Usura: como não eram
tidas por instituições financeiras, estavam atreladas ao limite legal de doze por cento ao
ano, diferentemente dos bancos.

16
Aula ministrada pelo professor Bruno Vaz de Carvalho, em 26/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 129


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Uma forma que as operadoras de cartões tinham para burlar a limitação dos juros,
antes da LC 105/01 considerá-las como instituições financeiras, abrindo o limite de juros tal
qual é aberto aos bancos, era a inclusão, em seus contratos com os consumidores titulares
de cartões, da famigerada cláusula mandato. Consistia, esta cláusula, na entrega de poderes
à administradora para buscar no mercado empréstimos em nome do titular do cartão, a fim
de financiar o pagamento do valor devido por este à administradora. Ao assim proceder,
buscando o financiamento do cliente no mercado, estes valores seriam colhidos junto a
instituições financeiras, a juros livres.
Com a qualificação de instituição financeira dada às operadoras, esta dinâmica se
alterou: com a liberação dos juros legais da Lei de Usura, as operadoras não mais
necessitam da associação aos bancos, podendo, elas mesmas, financiar os débitos de seus
clientes.
Além de bancos e operadoras de cartões, as cooperativas de crédito também são
instituições financeiras. Daqui por diante, porém, vamos ater-nos ao estudo dos bancos
comerciais, alvo deste tema. Há bancos atuantes em diversos segmentos do mercado
financeiro, não necessariamente sendo-lhes permitida a atuação em todos os nichos,
simultaneamente. Há bancos de emissão, bancos de investimento, bancos de
desenvolvimento, e os bancos comerciais ou de depósito, que serão aqui focados.
Há algumas instituições de relevo na sistemática financeira nacional. A primeira é o
Conselho Monetário Nacional, órgão da administração pública sem personalidade jurídica
própria, integrado pelo ministro da justiça, pelo ministro do planejamento, pelo presidente
do Banco Central do Brasil, e conta com corpo técnico na área financeira. A principal
função deste conselho é traçar a política monetária nacional, tendo dentre suas atribuições a
fixação de um teto para os juros que as instituições financeiras podem cobrar (o que não foi
feito até hoje). Vale ressaltar que é esta atribuição normativa, ainda não exercida, o
principal argumento de que dispõem as instituições financeiras para não estarem adstritas
ao limite legal da Lei de Usura ou do próprio Código Civil: estão adstritas aos juros
impostos pelo Conselho, e como este jamais estabeleceu o teto, simplesmente não há limite
normativo aos juros de instituições financeiras.
É fato que o Conselho emite uma série de resoluções ditando as normas gerais do
sistema, tais como as regras de transparência nas relações bancárias, em atenção ao direito
consumerista. Contudo, a mais relevante das normas, que seria o patamar máximo de juros,
jamais foi editada.
Há também, no sistema, o já citado Bacen, banco de emissão que tem como
principal atribuição a exclusividade na emissão da moeda nacional, de curso forçado. O
Bacen é uma autarquia federal (com personalidade própria, portanto).
Atuantes no mercado, desempenhando-o, há instituições financeiras públicas e
privadas, que diferem apenas quanto à composição de seu capital e quadros funcionais,
além de que as instituições públicas representam uma intervenção estatal no domínio
econômico. A Caixa Econômica Federal – as caixas econômicas em geral – são instituições
que atuam em todo o mercado, apesar de terem como fundamento de interesse público o
fomento à poupança popular. A CEF é uma empresa pública federal, com personalidade
jurídica de direito privado, o que a impede de ter qualquer benefício que a favoreça perante
as demais instituições financeiras privadas, para não desequilibrar o mercado.

Michell Nunes Midlej Maron 130


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Este é o desenho, bem resumido, do sistema financeiro nacional, que conta com
uma complexa rede de entidades, umas regulando e outras celebrando os contratos
bancários, que serão abordados doravante.

2. Contratos bancários

O Código Comercial, no artigo 119, e o Regulamento 737, previam as operações


que aqui são tidas por contratos bancários com a nomenclatura operações bancárias, ou
operações de bancos. Veja:

“Art. 119 - São considerados banqueiros os comerciantes que têm por profissão
habitual do seu comércio as operações chamadas de Banco.”

O foco era na pessoa, como se vê, e não na natureza do negócio em si. O CC


derrogou o Código Comercial, nessa parte, e revogou o Regulamento 737, dando a sua
própria leitura das operações bancárias. Segundo a nova ordem jurídica, mais do que por
quem as realizam, as operações bancárias são identificadas pela sua natureza de
intermediação: há, de um lado, alguém que possui capital, e de outro alguém que dele
precisa – e as instituições financeiras fazem o elo entre um e outro. A operação bancária se
presta a remunerar quem dispõe de capital por ter disponibilizado este capital a quem dele
precisava, e que paga a remuneração – colhendo, a instituição, parte desta remuneração
para si, a título de pagamento pela intermediação. Grosso modo, esta é a operação bancária
remunerada.
Há operações que não se destinam a remunerar aquele que entrega o capital ao
banco, mas apenas custodiar tal capital – uma conta-corrente comum, por exemplo.. Para
este serviço de custódia, o banco também recebe a devida remuneração.
Além destas funções de intermediação de créditos e custódia, as instituições
financeiras desempenham uma infinidade de outras operações com escopos diversos. E a
maior parte delas se materializa por meio de contratos.
Os contratos bancários, a princípio, não têm regulamentação própria. Ao contrário,
são quase todos atípicos, inominados, criados sob o prisma constitucional da livre
iniciativa, fundado no artigo 1°, IV, e 170 da CRFB, e sob o prisma infraconstitucional, no
princípio da autonomia da vontade, da liberdade de contratar, que era expresso no CC de
1916, e hoje é implícito no artigo 421 do CC. Veja os dispositivos mencionados:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos


Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
(...)”

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na


livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;

Michell Nunes Midlej Maron 131


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
42, de 19.12.2003)
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as
leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade
econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos
previstos em lei.”

“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato.”

A autonomia contratual conta com dois vieses, o subjetivo e o objetivo. No que diz
respeito aos contratos bancários, a liberdade de escolha, viés subjetivo, a princípio, não é
deferida ao banco, na medida em que uma das características das operações bancárias, além
do seu conteúdo peculiarmente econômico, é o fato de serem operações em massa: o banco
não pode, como fornecedor de produtos e serviços que é, se recusar a contratar com o
consumidor que preencha as condições para tanto, os requisitos objetivos para tal
contratação.
O viés objetivo da liberdade c]de contratar diz respeito ao conteúdo do contrato: há
autonomia para estabelecer o quê se quer contratar, e, a não ser no que diz respeito a
determinadas normas de ordem pública, sobre as quais não é dado às partes transigir, a
disciplina contratual é supletiva, servindo-se para omissões de cláusulas expressas por parte
dos contratantes. Nos contratos bancários, a liberdade de conteúdo é bastante relativa,
havendo apenas algumas vedações que serão abordadas pontualmente. Se, do ponto de vista
subjetivo, a liberdade dos bancos é limitada – têm que contratar com quem preenche os
requisitos –, do ponto de vista objetivo, a liberdade é bastante ampla.
Liberdade objetiva de contratar não é tão ampla assim do outro ponto de vista
pactual: os consumidores não têm tal intensidade de liberdade na definição do quê contratar
com os bancos. Os contratos são, praticamente todos, de adesão. Vale explicar, porém, que
esta é uma característica saudável das operações massificadas, sem a qual seria impossível
o alcance de mercado que os bancos proporcionam. Sem esta padronização, o acesso aos
produtos e serviços bancários seria absurdamente reduzido, pois a puntuação de cada
contrato tornaria as relações entre banco e clientes demasiadamente morosa e burocrática.
Contudo, o contrato de adesão carrega um ônus a quem o elabora, como se sabe:
havendo dubiedades, a interpretação é em prol do aderente, em detrimento do aderido –
nada que impeça a relação de ser saudável, porém. Estes contratos, como são referentes a
relações de consumo, guardam também toda a protetividade desta seara, além da tendência
ao aderente. Por exemplo, as cláusulas restritivas de direitos do consumidor, aderente,
precisam vir em destaque.

2.1. Contrato de financiamento

Michell Nunes Midlej Maron 132


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

A grande maioria dos contratos bancários não tem tipificação legal. São atípicos e
inominados. Assim o são os contratos de desconto, de conta-corrente, de cofre bancário, de
cartão de crédito, etc. Os financiamentos, outrossim, são típicos e nominados, contando
com regulamentação bastante detalhada: são contratos de mútuo feneratício especiais,
extraordinários. Segundo o CC, o mútuo celebrado com instituição financeira tem a
presunção de juros devidos, como se vê no artigo 591 do CC:

“Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros,


os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art.
406, permitida a capitalização anual.”

A diferença do mútuo ordinário para o mútuo de financiamentos é a afetação dada


ao valor entregue ao mutuário: enquanto no mutuo comum o valor receberá a destinação
que bem entender o mutuário, no financiamento a destinação do valor é vinculada, como a
compra de um imóvel, ou de infraestrutura empresarial, etc.
Veja que o banco pactua também mútuos feneratícios ordinários, como o crédito
direto ao consumidor – CDC –, em que não há vinculação alguma do uso do dinheiro pelo
mutuário. Os financiamentos é que são especiais, justamente por esta afetação do dinheiro a
algum destino preordenado.
Firmado o financiamento, o mutuário adquire uma carta de crédito com destinação
específica, que é a aquisição daquele bem ou serviço predeterminado na contratação, e só
para isso pode ser usado o valor financiado. Se se tratar de um imóvel, por exemplo, o
financiamento impede inclusive que seja inscrita cláusula de retrovenda no contrato
imobiliário, justamente para evitar uma burla a esta vinculação, que poderia ser feita deste
modo, com a aquisição do imóvel e posterior liberação do valor ao mutuário pela
retrovenda à vendedora do imóvel.
Por ser vinculado, o financiamento tem condições muito mais favoráveis do que os
mútuos ordinários, juros bem reduzidos. O financiamento agrícola, pro exemplo, é
interessante até mesmo para aqueles produtores rurais que dispõem de capital próprio,
porque é mais vantajoso a estes investir tal capital, e colher o financiamento, porque os
juros pagos serão menores do que os recebidos pelo investimento do dinheiro próprio.

2.2. Contrato de desconto

O contrato de desconto consiste na entrega ao banco, por um cliente, de um título de


crédito de que seja credora, tomando adiantado um determinado valor percentual daquele
título por vencer. O credor do título ainda por ser recebível o passa ao banco, e o banco
paga ao credor um valor descontado de sua margem de lucro, calculada na taxa de desconto
interbancário, variando de acordo com o tempo que o título ainda está por vencer, tempo
que representa os juros às avessas, por assim dizer, em que o banco adiantou o valor do
título ao cliente.
Normalmente, a transferência do título ao banco se dá por meio de endosso-
mandato. Endosso-mandato é aquele que só entrega a posse do título ao endossatário-
mandatário, para que este possa cobrar o título em nome do endossante. O endossatário-
mandatário não é titular do direito, é mero procurador do endossante-mandante para a
cobrança do crédito por este titularizado. Assim, não recebido o crédito, o banco não terá
prejuízo: quem se viu inadimplido foi o endossante-mandante. O banco poderá cobrar deste

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endossante o valor que lhe foi adiantado, mais os juros consubstanciados no desconto, se
não receber o título por inadimplemento do devedor cambiário.

2.3. Intervenção estatal nos contratos bancários

A alta relevância social das negociações bancárias desperta a necessidade de que o


Estado intervenha nestas relações, intervenção que pode se dar de forma direta, como
atuam o Conselho Monetário Nacional e o Bacen, ou indireta, por meio de normas de
ordem pública reguladoras do sistema.
A atuação direta, reguladora, impõe, por exemplo, que os recursos depositados em
cadernetas de poupança não possam ser empregados pelos bancos em negócios outros que
não sejam os financiamentos do sistema habitacional.
A emissão de determinados títulos de crédito, também, é necessariamente lastreada
pelos recebíveis que o banco possua, outra limitação direta pelo Estado à contratação
bancária. A Lei 10.931/04 é um outro exemplo da ingerência estatal sobre as negociações
bancárias. Esta lei, que dentre outras providências dispõe sobre o patrimônio de afetação de
incorporações imobiliárias, letra de crédito imobiliário, cédula de crédito imobiliário e
cédula de crédito bancário, estabelece que o banco pode emitir títulos de crédito que, em
conjunto ou separadamente, atinjam o patamar de recebíveis que o banco tenha consigo, ou
seja, impõe um limitador objetivo ao valor do crédito emitido em títulos pelo banco –
impedindo a alavancagem, procedimento em que um crédito garante diversos outros, ou
seja, sem lastro suficiente para toda a cadeia.
Outro exemplo de intervenção direta é o chamado depósito compulsório, que é a
necessária colocação de percentuais determinados dos créditos bancários em depósito junto
ao Bacen, a fim de garantir a estabilidade do sistema financeiro.
A vedação à imobilização patrimonial dos bancos é também um reflexo do
intervencionismo estatal: não pode, o banco, ter mais de cinco por cento de seu patrimônio
em imóveis, para ter a necessária liquidez de que o sistema financeiro precisa.
A intervenção indireta nos negócios bancários se dá por meio das normas de ordem
pública que conformam o sistema financeiro. A liberdade de contratar encontra barreira, por
exemplo, na igualdade substancial: havendo uma parte sempre abstratamente mais
vulnerável – o consumidor –, o Estado cria normas implícitas a todos os contratos bancários
que têm por finalidade trazer um pouco mais de paridade na relação. O mais claro exemplo
de normas deste quilate é o CDC.
Pelo ensejo, vale abordar aqui a severa discussão outrora travada sobre a
aplicabilidade ou não do CDC às relações bancárias. Comecemos pela conclusão, já
adiantada: o CDC é perfeitamente aplicável às instituições financeiras em suas relações.
Não obstante a previsão expressa do § 2° do artigo 3° do CDC, os bancos resistiram muito
a esta aplicação. Veja o dispositivo:

“Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional


ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade
de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação,
exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,
salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”

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O argumento dos bancos para afastar esta aplicação era o de que a atividade
bancária responderia a um microssistema normativo específico, o da Lei 4.595/64, não se
submetendo à regência do CDC. Diziam os bancos que se o seu objeto negocial era
justamente a intermediação do capital, nunca poderia ser considerado, ele próprio,
fornecedor, porque ninguém se apresenta conformado ao conceito de destinatário final de
seu produto, o dinheiro.
É claro que a tese bancária não encontrou amparo. A ADI que os bancos ajuizaram
contra este § 2°, supra, foi julgada improcedente, reconhecendo a constitucionalidade da
norma. Mas veja que a decisão do STF não significa que o CDC se aplique plena e
irrestritamente aos contratos bancários: se aplica, sem dúvida, quanto às proteções
consumeristas, como a necessidade de transparência, vedação de cláusulas abusivas,
inversão do ônus da prova, mas a matéria que é regulada expressamente pelo Bacen e pelo
Conselho Monetário Nacional – como a fixação de juros – continua afeta a estes entes do
sistema, bem como as demais normas do microssistema financeiro, como a própria Lei
4.595/64.
Os contratos do Sistema Financeiro de Habitação, por exemplo, não sofrem
incidência do CDC: a matéria é tão detalhadamente regulada que não se aplica em nada o
codex consumerista. Há, neste caso, um microssistema próprio bem definido para a relação,
e já é protetivo dos mutuários, em certa monta.
A correlação entre os microssistemas, de fato, é algo que vem sendo defendido por
autores modernos, o chamado de diálogo das fontes. Os sistemas não são excludentes, em
regra, salvo exceções como esta do SFH. São, na verdade, interpenetráveis, devendo ser
aplicado aquilo de cada um que revelar o direito, sem colidir com a regulamentação
expressa porventura dedicada em um ou outro sistema.

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Casos Concretos

Questão 1

A) O mútuo comum se sujeita ao limite de juros? Em caso afirmativo, qual?


B) E o mútuo bancário?
C) Admite-se a aplicação do CDC às instituições financeiras?
D) É cabível a cobrança de comissão de permanência após o vencimento do
contrato?
Respostas fundamentadas.

Resposta à Questão 1

A) Há duas normas que disciplinam a limitação dos juros no ordenamento jurídico,


o Decreto 22.626/33, Lei da Usura, que fixa em doze por cento ao ano o limite
máximo dos juros convencionais. A segunda é o artigo 406 do CC, que remete
ao artigo 161, § 1°, do CTN, resultando em teto que, hoje, é também de doze por
cento ao ano, em regra. Veja os dispositivos:

“Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem
taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados
segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos
devidos à Fazenda Nacional.”

“Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de


mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das
penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas
nesta Lei ou em lei tributária.
§ 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa
de um por cento ao mês.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica na pendência de consulta formulada pelo
devedor dentro do prazo legal para pagamento do crédito.”

Michell Nunes Midlej Maron 136


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O artigo 406 não revogou a Lei de Usura, porque este artigo só tratou do
juros moratórios, e não necessariamente o mútuo terá juros apenas de mora, mas
sim compensatórios, remuneratórios.
Embora este limitador dos juros tenham até mesmo entendimento
sumulado no TJ/RJ, como se vê na súmula 95 deste Tribunal, O STJ tem
admitido a aplicação da taxa Selic aos contratos de mútuo, com a ressalva de
que, aplicando-se esta taxa, não se pode cumular com a correção monetária, que
já vem nela embutida. Veja a súmula mencionada:

“Súmula 95, TJ/RJ: JUROS MORATÓRIOS. ART. 406. NOVO CÓDIGO CIVIL.
CRITÉRIO DE INCIDÊNCIA. CRITÉRIO DE FIXAÇÃO.
‘Os juros, de que trata o art. 406, do Código Civil de 2002, incidem desde sua
vigência, e são aqueles estabelecidos pelo art. 161, parágrafo 1º, do Código
Tributário Nacional’.”

Veja também a súmula 296 do STJ:

“Súmula 296, STJ: Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de


permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado
estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado.”

Outra questão relevante quanto à limitação dos juros diz respeito ao


anatocismo, a capitalização dos juros. Esta prática é vedada no ordenamento,
pois é um fator de enriquecimento imotivado do mutuante.

B) No mútuo bancário, a limitação dos juros existe, mas é diferente do mútuo


comum. A Lei de Usura excepciona as instituições financeiras expressamente,
não sendo limitados os juros aos doze por cento que ali se prevê. Por isso, o STJ
entende que o limite é aquele que será traçado pelo Conselho Monetário
Nacional, na forma do artigo 4°, IX, da Lei 4.595/64:

“Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes


estabelecidas pelo Presidente da República: (Redação dada pela Lei nº
6.045, de 15/05/74) (Vetado)
(...)
IX - Limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos comissões e
qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou
financeiros, inclusive os prestados pelo Banco Central da República do Brasil,
assegurando taxas favorecidas aos financiamentos que se destinem a promover:
- recuperação e fertilização do solo;
- reflorestamento;
- combate a epizootias e pragas, nas atividades rurais;
- eletrificação rural;
- mecanização;
- irrigação;
- investimento indispensáveis às atividades agropecuárias;
(...)”

Quanto à capitalização de juros, é permitida para as instituições financeiras,


na forma do artigo 5° da vigente MP 2.170/2000. Nos contratos posteriores a 2000,

Michell Nunes Midlej Maron 137


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

é permitida a capitalização mensal, o anatocismo mensal contratual em mútuos


bancários; antes de 2000, só era possível a capitalização anual, admitida até mesmo
pelo CC, no artigo 591, já transcrito. Veja o dispositivo da MP:

“Art. 5º Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema


Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade
inferior a um ano.
Parágrafo único. Sempre que necessário ou quando solicitado pelo devedor, a
apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo devedor, será feita pelo
credor por meio de planilha de cálculo que evidencie de modo claro, preciso e de
fácil entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e
despesas contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela
correspondente a multas e demais penalidades contratuais.”

C) Sim, com ressalva às atividades puramente financeiras. Debalde esforços


tremendos dos bancos, o STF pacificou a questão, na ADI 2.591:

“ADI 2591 / DF - DISTRITO FEDERAL. AÇÃO DIRETA DE


INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO.
Relator(a) p/ Acórdão: Min. EROS GRAU. Julgamento: 07/06/2006. Órgão
Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ 29-09-2006
EMENTA: CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 5o, XXXII, DA
CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO
DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, EXCLUÍDAS DE SUA
ABRANGÊNCIA A DEFINIÇÃO DO CUSTO DAS OPERAÇÕES ATIVAS E A
REMUNERAÇÃO DAS OPERAÇÕES PASSIVAS PRATICADAS NA
EXPLORAÇÃO DA INTERMEDIAÇÃO DE DINHEIRO NA ECONOMIA
[ART. 3º, § 2º, DO CDC]. MOEDA E TAXA DE JUROS. DEVER-PODER DO
BANCO CENTRAL DO BRASIL. SUJEIÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. 1. As
instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas
veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. "Consumidor", para os
efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que
utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O
preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser
interpretado em coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das
operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por
instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia
estejam excluídas da sua abrangência. 4. Ao Conselho Monetário Nacional
incumbe a fixação, desde a perspectiva macroeconômica, da taxa base de juros
praticável no mercado financeiro. 5. O Banco Central do Brasil está vinculado pelo
dever-poder de fiscalizar as instituições financeiras, em especial na estipulação
contratual das taxas de juros por elas praticadas no desempenho da intermediação
de dinheiro na economia. 6. Ação direta julgada improcedente, afastando-se a
exegese que submete às normas do Código de Defesa do Consumidor [Lei n.
8.078/90] a definição do custo das operações ativas e da remuneração das
operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da
intermediação de dinheiro na economia, sem prejuízo do controle, pelo Banco
Central do Brasil, e do controle e revisão, pelo Poder Judiciário, nos termos do
disposto no Código Civil, em cada caso, de eventual abusividade, onerosidade
excessiva ou outras distorções na composição contratual da taxa de juros. ART.
192, DA CB/88. NORMA-OBJETIVO. EXIGÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR
EXCLUSIVAMENTE PARA A REGULAMENTAÇÃO DO SISTEMA
FINANCEIRO. 7. O preceito veiculado pelo art. 192 da Constituição do Brasil
consubstancia norma-objetivo que estabelece os fins a serem perseguidos pelo

Michell Nunes Midlej Maron 138


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

sistema financeiro nacional, a promoção do desenvolvimento equilibrado do País e


a realização dos interesses da coletividade. 8. A exigência de lei complementar
veiculada pelo art. 192 da Constituição abrange exclusivamente a regulamentação
da estrutura do sistema financeiro. CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL.
ART. 4º, VIII, DA LEI N. 4.595/64. CAPACIDADE NORMATIVA ATINENTE À
CONSTITUIÇÃO, FUNCIONAMENTO E FISCALIZAÇÃO DAS
INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ILEGALIDADE DE RESOLUÇÕES QUE
EXCEDEM ESSA MATÉRIA. 9. O Conselho Monetário Nacional é titular de
capacidade normativa --- a chamada capacidade normativa de conjuntura --- no
exercício da qual lhe incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o
funcionamento das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades
no plano do sistema financeiro. 10. Tudo o quanto exceda esse desempenho não
pode ser objeto de regulação por ato normativo produzido pelo Conselho
Monetário Nacional. 11. A produção de atos normativos pelo Conselho Monetário
Nacional, quando não respeitem ao funcionamento das instituições financeiras, é
abusiva, consubstanciando afronta à legalidade.”

“ADI 2591 ED / DF - DISTRITO FEDERAL. EMB.DECL.NA AÇÃO DIRETA


DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. EROS GRAU.
Julgamento: 14/12/2006. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação. DJ 13-04-
2007.
Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. LEGITIMIDADE RECURSAL
LIMITADA ÀS PARTES. NÃO CABIMENTO DE RECURSO INTERPOSTO
POR AMICI CURIAE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO OPOSTOS PELO
PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA CONHECIDOS. ALEGAÇÃO DE
CONTRADIÇÃO. ALTERAÇÃO DA EMENTA DO JULGADO. RESTRIÇÃO.
EMBARGOS PROVIDOS. 1. Embargos de declaração opostos pelo Procurador
Geral da República, pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor -
BRASILCON e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC. As
duas últimas são instituições que ingressaram no feito na qualidade de amici
curiae. 2. Entidades que participam na qualidade de amicus curiae dos processos
objetivos de controle de constitucionalidade, não possuem legitimidade para
recorrer, ainda que aportem aos autos informações relevantes ou dados técnicos.
Decisões monocráticas no mesmo sentido. 3. Não conhecimento dos embargos de
declaração interpostos pelo BRASILCON e pelo IDEC. 4. Embargos opostos pelo
Procurador Geral da República. Contradição entre a parte dispositiva da ementa e
os votos proferidos, o voto condutor e os demais que compõem o acórdão. 5.
Embargos de declaração providos para reduzir o teor da ementa referente ao
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.591, que passa a ter o
seguinte conteúdo, dela excluídos enunciados em relação aos quais não há
consenso: ART. 3º, § 2º, DO CDC. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
ART. 5o, XXXII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇÕES
FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA
IMPROCEDENTE. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela
incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2.
"Consumidor", para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa
física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira
e de crédito. 3. Ação direta julgada improcedente.”

D) A comissão de permanência, a grosso modo, é o custo que os bancos cobram por


administrar contratos inadimplentes. É possível sua cobrança, desde que esteja
prevista no contrato e que não seja cumulada com nenhum outro encargo, como
juros ou correção monetária.

Michell Nunes Midlej Maron 139


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Sobre o tema, veja o Ag.Rg. no Ag. 709.703, e os REsp. 493.315 e 437.198:

“AgRg no Ag 709703 / RS. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE


INSTRUMENTO. DJ 19/12/2005 p. 405.
Bancário e processo civil. Agravo no agravo de instrumento. Recurso especial.
Contrato de mútuo bancário. Juros remuneratórios. Mora. Caracterização.
Capitalização dos juros. Comissão de permanência. Inscrição do nome do devedor
em cadastros de inadimplentes.
- Nos termos da jurisprudência do STJ, não se aplica a limitação da taxa de juros
remuneratórios em 12% ao ano aos contratos de abertura de crédito e empréstimo.
- O mero ajuizamento de ação para discutir a legalidade de cláusulas contratuais
não tem o condão de descaracterizar a mora.
- Admite-se a capitalização mensal dos juros nos contratos bancários celebrados
após à vigência da Medida Provisória nº 1.963-17/2000 (reeditada sob o nº
2.170/36).
- É admitida a incidência da comissão de permanência após o vencimento da
dívida, desde que não cumulada com juros remuneratórios, juros moratórios,
correção monetária e/ou multa contratual. Precedentes.
- A simples discussão judicial do débito não impede a inclusão do nome do
devedor em cadastros de inadimplentes.
Agravo no agravo de instrumento não provido.”

“REsp 493315 / RS. DJ 08/09/2003 p. 340. COMERCIAL E PROCESSUAL


CIVIL. CONTRATOS BANCÁRIOS. ACÓRDÃO. EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO. EFEITO INFRINGENTE. NULIDADE NÃO VERIFICADA.
EMBARGOS DECLARATÓRIOS. MULTA PROCRASTINATÓRIA.
APLICAÇÃO CORRETA PELO TRIBUNAL ESTADUAL. REVISÃO DE
CONTRATO. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO CDC. JUROS. LIMITAÇÃO
(12% AA). LEI DE USURA (DECRETO N. 22.626/33). NÃO INCIDÊNCIA.
APLICAÇÃO DA LEI N. 4.595/64. DISCIPLINAMENTO LEGISLATIVO
POSTERIOR. SÚMULA N. 596 - STF. INEXISTÊNCIA DE ONEROSIDADE
EXCESSIVA. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. INCIDÊNCIA. PERÍODO DA
INADIMPLÊNCIA. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CABIMENTO.
I. Não viola o art. 535 do CPC o acórdão que enfrenta a controvérsia, porém com
resultado desfavorável à pretensão do recorrente.
II. Correta a aplicação da multa prevista no art. 538, parágrafo único, do CPC, se
os embargos de declaração opostos perante o Tribunal a quo foram utilizados
indevidamente, provocando injustificada procrastinação da marcha processual,
retardando, em detrimento do interesse público, a finalização do litígio.
III. Aplicam-se às instituições financeiras as disposições do Código de Defesa do
Consumidor, no que pertine à possibilidade de revisão dos contratos, conforme
cada situação específica.
IV. Não se aplica a limitação de juros de 12% ao ano prevista na Lei de Usura aos
contratos de abertura de crédito bancário, nem se considera excessivamente
onerosa a taxa média do mercado, devendo a abusividade ser comprovada em cada
hipótese.
V. Segundo o entendimento pacificado na E. 2ª Seção (REsp n. 271.214/RS, Rel. p.
acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, por maioria, julgado em
12.03.2003), os juros remuneratórios serão devidos até o advento da mora, quando
poderão ser substituídos pela comissão de permanência, calculada pela variação da
taxa média do mercado, segundo as normas do Banco Central, limitada aos valores
dos encargos do período de vigência do contrato.
VI. Admite-se a repetição do indébito de valores pagos em virtude de cláusulas
ilegais, em razão do princípio que veda o enriquecimento injustificado do credor.
VII. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, parcialmente provido.”

Michell Nunes Midlej Maron 140


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“REsp 437198 / RS. DJ 25/08/2003 p. 297. Recurso especial. Leasing. Omissão


inexistente. Multa dos declaratórios. Valor Residual Garantido. Cobrança
antecipada. Súmula nº 263/STJ. Ação de reintegração de posse. Código de Defesa
do Consumidor. Limitação da taxa de juros. Taxa Referencial (TR). Comissão de
permanência.
1. Ausente qualquer omissão no Acórdão recorrido, que tratou, apenas, das
questões trazidas na apelação.
2. Não cabe a imposição de multa quando os declaratórios são opostos com o
nítido propósito de prequestionamento.
3. A jurisprudência da Corte foi assentada no sentido de que a cobrança antecipada
do Valor Residual Garantido (VRG) não desqualifica o contrato de leasing para
compra e venda (EREsp nº 213.828/RS, Corte Especial, Relator para Acórdão o
Senhor Ministro Edson Vidigal, julgado em 07/5/03). Cabível, assim, a ação de
reintegração de posse.
4. O Código de Defesa do Consumidor tem aplicação aos contratos de
arrendamento mercantil.
5. Em relação aos juros, a jurisprudência da 2ª Seção está consolidada no sentido
de que a respectiva taxa, em casos como o presente, não está limitada em 12% ao
ano.
6. Na linha de precedentes desta Corte, a Taxa Referencial (TR), quando pactuada,
pode ser utilizada na correção monetária do débito.
7. A comissão de permanência, por si só, é legal, não cumulada com a correção
monetária (Súmula nº 30/STJ), nem com os juros remuneratórios, devendo aplicar-
se a variação da taxa média do mercado, segundo a espécie de operação, apurada
pelo Banco Central do Brasil (REsp nº 271.214/RS, 2ª Seção, julgado em 12/3/03),
limitada à taxa contratada.
8. Segundo orientação adotada pela 2ª Seção, no julgamento do EREsp nº
163.884/RS, em 23/5/01, a cobrança de encargos ilegais pelo credor descaracteriza
a mora do devedor. O ato do credor causa a inadimplência.
9. Recurso especial conhecido e provido, em parte.”

Questão 2

VIVIANE LEOCÁDIO firmou contrato de mútuo bancário com BANCO


DINHEIRO FÁCIL S/A. Inconformada com cobrança de juros extorsivos, ajuiza ação
revisional de cláusulas contratuais sustentando que o inadimplemento se deve aos juros
abusivos. Além disso, para sua surpresa, foi informada do aponte de seu nome nos
registros do SERASA e SPC, razão pela qual cumulou a demanda com indenização por
danos morais. Decida a questão de forma fundamentada, indicando a legislação
pertinente.

Resposta à Questão 2

A inscrição nos cadastros desabonadores, por si só, é uma atitude lícita, só sendo
causadora de dano quando, por qualquer motivo, for considerada indevida. Veja a súmula
90 do TJ/RJ:

“Súmula 90, TJ/RJ: APONTE DO NOME COMO DEVEDOR INADIMPLENTE.


EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO
‘A inscrição de consumidor inadimplente em cadastro restritivo de crédito
configura exercício regular de direito’.”

Michell Nunes Midlej Maron 141


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

O STJ tem entendido que o mero ajuizamento de uma ação, portanto, não é
suficiente para impor a retirada do autor dos cadastros protetivos do mercado, sendo
necessária a prova de que é indevida a inscrição – prova perfunctória quando se tratar de
análise antecipatória da tutela – e, ainda, do depósito de parte incontroversa do valor de que
o autor é devedor, se somente se insurge contra parte da dívida, como no caso, em que
apenas questiona a parte referente à abusividade dos juros.
Destarte, não basta a mera distribuição da ação, sendo necessária a verossimilhança
de que é indevido, e o depósito de eventual parcela incontroversa – para a liminar –, e a
certeza de que é indevida, para o provimento final. Sendo realmente indevida, a
indenização será o caminho, pelos eventuais danos materiais e morais.

Questão 3

JORGE ajuizou ação revisional de contrato bancário, já quitado, por entender


abusivos os juros cobrados pela instituição financeira. Defendendo-se, esta alegou que a
quitação é fato impeditivo da ação revisional. Procede o argumento da ré?

Resposta à Questão 3

O fato de haver quitação, ou mesmo a novação do contrato, não impede jamais a


discussão do contrato originário. Este é o entendimento sumulado pelo STJ, como se vê no
enunciado 286 desta Corte:

“Súmula 286, STJ: A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida


não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos
anteriores.”

A instituição, portanto, está claramente equivocada.

Michell Nunes Midlej Maron 142


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

Tema XIV

CONTRATO DE CONTA CORRENTE BANCÁRIA. Contrato de utilização de cofre de segurança.

Notas de Aula17

1. Contrato de conta corrente bancária

Este contrato encerra uma multiplicidade de obrigações e prestações. Há, em regra,


um depósito, mas pode haver, por exemplo, contratantes que jamais efetuem depósitos,
apenas usando a conta para recebimento de valores pagos por terceiros – é a conta-salário.
O depósito, quando presente, se trata de um depósito impróprio, ou irregular,
seguindo as regras do contrato de mútuo, porque se trata de um bem fungível – o dinheiro –
bem a que o banco se obriga entregar quando solicitado pelo depositante, ou passar a
terceiros à sua ordem, como quando paga um cheque pro ele emitido, ou cumpre um débito
automático realizado por cartão magnético.
Há também uma série de prestações de serviços envolvidas no contrato de conta
corrente, além de ser um pressuposto à emissão de cheques: embora não seja requisito
intrínseco do cheque a existência da conta ou a provisão de fundos, sem a conta não há
como emiti-lo, eis que se trata de um título de forma vinculada, produzido pela instituição
financeira. Como exemplo de serviços, pode haver contas em que a instituição está
autorizada a proceder não só a investimentos, como a resgates automáticos de valores
investidos, sempre que o saldo encontrado na contas não for suficiente para adimplir um
título emitido pelo correntista, a ser pago pelo banco, ou para cobrir um crédito devido ao
próprio banco.
A conta corrente é contrato atípico. Pode ser simples, quando tem um só titular,
contratante do banco; ou conjunta, quando se divide em solidária e não solidária. Sendo
solidária, há uma solidariedade obrigacional no pólo ativo, ou seja, o banco passa a ser
devedor de ambos os correntistas, podendo pagar a qualquer um deles a prestação bancária
que for exigida (a restituição dos valores depositados, em regra – o saque). Na conta

17
Aula ministrada pelo professor Bruno Vaz de Carvalho, em 26/11/2009.

Michell Nunes Midlej Maron 143


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

corrente conjunta solidária, pagando a qualquer um dos co-correntistas, o banco se desonera


perante ambos – cada um dos correntistas respondendo perante o outro por qualquer
desacerto na relação interna, sem gerar responsabilidade ao banco, que pagou bem ao pagar
a um deles.
A conta conjunta não solidária demanda que o banco cumpra a prestação perante
ambos os contratantes, ambos os co-correntistas em conjunto, a fim de desobrigar-se. No
saque de valores, por exemplo, somente pagando a ambos o banco estará pagando bem.
A emissão de cheques, na conta conjunta solidária, só vincula o emitente, não
alcançando, sua responsabilidade perante terceiros, o co-correntista solidário. Havendo a
emissão sem provisão de fundos, por exemplo, o tomador do cheque sem fundos só terá
ação contra o emitente, não podendo se voltar contra o co-correntista inocente. Se o banco
cobrir o cheque que fora emitido sem fundos, aí a questão é diferente: o banco é credor de
ambos os co-correntistas, porque a relação solidária é contratualmente estabelecida também
no sentido recíproco passivo. Assim como o banco é devedor de um pólo solidário, quando
é credor – como no caso do uso do crédito do cheque especial –, é credor de um pólo
passivo igualmente solidário. Como esta solidariedade é contratual, subsiste perante o
banco, mesmo que não exista perante terceiros, que só podem cobrar o cheque daquele co-
correntista que o emitiu.

1.1. Cheque especial

A ação do banco pelo uso do cheque especial, do crédito por ele concedido – o
famigerado limite bancário para saque ou cobertura de cheques – é uma problemática
severa nesta relação. Até algum tempo atrás, a abertura de uma conta corrente com limite
de crédito pré-autorizado era realizada com a pactuação do contrato e, simultaneamente, a
subscrição de uma nota promissória em branco em favor do banco (o que, relembre-se, é
perfeitamentye válido, pois pode o credor de boa-fé preencher os campos brancos do
título). Inadimplido o contrato, ou seja, usado o limite e não pago, este valor devido seria
lançado na nota promissória, e então executado este título executivo extrajudicial.
Ocorre que esta dinâmica gerava uma série de problemas, a começar pela forma de
cálculo do valor devido pelo correntista, ante a difícil definição da natureza do contrato. Se
fosse classificado como mútuo, contrato real, a mera disponibilização dos valores ao uso já
seria suficiente para gerar encargos, como os juros remuneratórios. É claro que esta
dinâmica não ocorre no cheque especial: a mera disponibilização do valor não gera dever
de restituir este com os juros, pois é necessário que o correntista efetivamente se valha do
limite disposto para sobre ele incidirem juros – não se utilizando dos valores, não há dever
de restituí-los, muito menos com juros acrescidos.
Por isso, o que se entende é que não há, de fato, a entrega dos valores pelo banco
pela mera disponibilização destes na conta. Até que o correntista efetivamente se utilize do
limite, quando então ocorre a real tradição dos valores, não há quaisquer encargos devidos.
Assim, o entendimento que tem prevalecido, sobre este aspecto do contrato de conta
corrente, é que se trata de um contrato de mútuo sob condição suspensiva: o contrato de
mútuo está firmado, mas só tem eficácia quando há a utilização do valor disponibilizado em
conta pelo correntista.
Firmado o contrato e emitida a nota promissória, se o correntista o tornasse eficaz,
ou seja, usasse o limite, e não o pagasse, o banco preencheria no título de crédito o valor

Michell Nunes Midlej Maron 144


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

devido – principal somado aos juros do período –, e apresentaria este para execução. Ocorre
que o STJ, posto diante de irresignações diversas dos correntistas assim executados, passou
a entender que a nota assim emitida não tinha liquidez suficiente para a execução, pois
careceriam da autonomia necessária em relação ao contrato de conta corrente, e este
documento que lhe serviria de causa é altamente ilíquido. Veja a súmulas 258 do STJ:

“Súmula 258, STJ: A nota promissória vinculada a contrato de abertura de crédito


não goza de autonomia em razão da iliquidez do título que a originou.”

A falta de abstração desta nota promissória atrelada ao contrato, que jamais


circularia, e a sua falta de autonomia em relação ao contrato bancário permitia a discussão
de tudo que fosse pertinente à relação contratual bancária, ou seja, as oposições entre credor
e devedor seriam inúmeras, especialmente em relação aos juros – daí a iliquidez.
Com esta posição do STJ, passou a ser necessário o ajuizamento de ações
monitórias pelos bancos, a fim de atribuir a necessária exequibilidade do crédito exposto na
nota promissória, impondo-lhe liquidez. O contrato, a nota promissória e uma planilha de
evolução do débito sustentariam a monitória.
Hoje, porém, a situação dos bancos credores ficou mais confortável, encontrando na
Lei 10.931/04 um instrumento valioso: a cédula de crédito bancário. Este título de crédito
inovativo, nominal e endossável em preto, emitido no lugar daquela nota promissória, tem
liquidez e exigibilidade imposta pela própria lei, quando apresentado em conjunto com o
extrato da conta corrente ou planilha de cálculos: juntos, a cédula de crédito bancário e os
extratos da conta corrente ou planilhas demonstrativos do débito, formam um título
executivo extrajudicial perfeito. Veja o artigo 28 da Lei 10.931/04:

“Art. 28. A Cédula de Crédito Bancário é título executivo extrajudicial e representa


dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível, seja pela soma nela indicada, seja pelo
saldo devedor demonstrado em planilha de cálculo, ou nos extratos da conta
corrente, elaborados conforme previsto no § 2o.
§ 1° Na Cédula de Crédito Bancário poderão ser pactuados:
I - os juros sobre a dívida, capitalizados ou não, os critérios de sua incidência e, se
for o caso, a periodicidade de sua capitalização, bem como as despesas e os demais
encargos decorrentes da obrigação;
II - os critérios de atualização monetária ou de variação cambial como permitido
em lei;
III - os casos de ocorrência de mora e de incidência das multas e penalidades
contratuais, bem como as hipóteses de vencimento antecipado da dívida;
IV - os critérios de apuração e de ressarcimento, pelo emitente ou por terceiro
garantidor, das despesas de cobrança da dívida e dos honorários advocatícios,
judiciais ou extrajudiciais, sendo que os honorários advocatícios extrajudiciais não
poderão superar o limite de dez por cento do valor total devido;
V - quando for o caso, a modalidade de garantia da dívida, sua extensão e as
hipóteses de substituição de tal garantia;
VI - as obrigações a serem cumpridas pelo credor;
VII - a obrigação do credor de emitir extratos da conta corrente ou planilhas de
cálculo da dívida, ou de seu saldo devedor, de acordo com os critérios
estabelecidos na própria Cédula de Crédito Bancário, observado o disposto no §
2°; e
VIII - outras condições de concessão do crédito, suas garantias ou liquidação,
obrigações adicionais do emitente ou do terceiro garantidor da obrigação, desde
que não contrariem as disposições desta Lei.

Michell Nunes Midlej Maron 145


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

§ 2° Sempre que necessário, a apuração do valor exato da obrigação, ou de seu


saldo devedor, representado pela Cédula de Crédito Bancário, será feita pelo
credor, por meio de planilha de cálculo e, quando for o caso, de extrato emitido
pela instituição financeira, em favor da qual a Cédula de Crédito Bancário foi
originalmente emitida, documentos esses que integrarão a Cédula, observado que:
I - os cálculos realizados deverão evidenciar de modo claro, preciso e de fácil
entendimento e compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas
contratuais devidos, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela de
atualização monetária ou cambial, a parcela correspondente a multas e demais
penalidades contratuais, as despesas de cobrança e de honorários advocatícios
devidos até a data do cálculo e, por fim, o valor total da dívida; e
II - a Cédula de Crédito Bancário representativa de dívida oriunda de contrato de
abertura de crédito bancário em conta corrente será emitida pelo valor total do
crédito posto à disposição do emitente, competindo ao credor, nos termos deste
parágrafo, discriminar nos extratos da conta corrente ou nas planilhas de cálculo,
que serão anexados à Cédula, as parcelas utilizadas do crédito aberto, os aumentos
do limite do crédito inicialmente concedido, as eventuais amortizações da dívida e
a incidência dos encargos nos vários períodos de utilização do crédito aberto.
§ 3° O credor que, em ação judicial, cobrar o valor do crédito exeqüendo em
desacordo com o expresso na Cédula de Crédito Bancário, fica obrigado a pagar ao
devedor o dobro do cobrado a maior, que poderá ser compensado na própria ação,
sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos.”

1.2. Prestação de contas

O contrato de conta corrente cria o direito, para o correntista, de exigir prestação de


contas por parte do banco. Esta prestação de contas é feita, em regra, pela emissão de
extratos bancários continentes de toda a movimentação financeira realizada.
Negada a prestação de contas, o titular da conta corrente tem ação em face do
banco, justamente com este escopo de obter tal prestação. A conta corrente bancária não é
uma conta remunerada, em regra, não gerando direito de crédito ao correntista. Não se
confunde com uma conta poupança ou com um investimento de qualquer sorte. Por isso, há
quem entenda que a conta corrente bancária contém em si um mandato, permitindo ao
banco gerir os bens do cliente em nome deste – e daí a necessidade de prestação de contas,
obrigação de todo mandatário, como regra.
Como os extratos estão sempre disponíveis ao cliente, considera-se que a prestação
de contas é regular, e de fato não gera muitos problemas esta obrigação, sempre bem
cumprida pelo banco. A ação judicial de prestação de contas só ocorre, na praxe, em casos
em que há encerramento da conta, tornando-se inacessível o extrato, pelo cliente.

2. Contrato de utilização de cofre de segurança

Este contrato bancário é também atípico, como a maioria dos contratos desta seara.
Há uma forte discussão doutrinária sobre sua natureza jurídica, pois seu objeto é o direito
de guardar documentos, valores, bens de toda sorte, no cofre localizado dentro da
instituição financeira: a prestação oferecida pela instituição financeira é a disponibilização
do espaço físico, pelo que os bancos classificam este contrato como uma espécie de
locação.
Qualificando-se como locação, ao locador só se impõe a obrigação de garantir o uso
do bem, do local. Não haveria o dever de assegurar a integridade dos bens ali guardados,

Michell Nunes Midlej Maron 146


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

porque este dever de segurança não é próprio da locação. Ocorre que esta é, provavelmente,
o principal objetivo de quem busca contratar o uso de um cofre bancário: garantir a
segurança sobre aquilo que ali colocar, além do interesse em manter o sigilo sobre o
conteúdo do cofre.
O uso do cofre também não se trata de um contrato de depósito, pois a posse do
conteúdo jamais é transferida à instituição financeira. Afinal, quem tem a chave e o acesso
aos bens é o contratante, e somente ele, justamente pelo interesse no sigilo sobre o
conteúdo ali colocado. Não há como ter posse se sequer se sabe o que é a res.
A doutrina maior, e a jurisprudência, têm classificado este contrato como uma
locação com prestação de serviço de segurança, ou seja, objeto misto, em que se impõem
como obrigações do banco a tolerância do uso do local, do cofre, e a segurança de seu
conteúdo. Por isso, e sendo uma relação inserida na esteira do direito consumerista, o banco
responde objetivamente pelos bens ali postos pelo cliente, em responsabilidade objetiva
típica, a qual comporta apenas as excludentes de nexo e dano clássicas – fortuito externo e
fato da vítima.
Vale ressaltar que o contrato de uso de cofre não se confunde com o contrato de
penhor, ou o mútuo com garantia pignoratícia. Os bens dados em garantia ficam
depositados junto ao banco mutuante, a fim de servir ao adimplemento do contrato, caso o
mutuário não pague o empréstimo. A diferença fundamental, além do próprio objeto do
contrato, é que em caso de perecimento do bem posto em penhor, a indenização material (e
também moral) tem parâmetros sólidos, eis que o bem entra na guarda do banco com a
prévia avaliação de seu valor, a fim de se estabelecer a potencialidade garantidora daquele
bem sobre o mútuo. No uso do cofre, como se garante o sigilo sobre o conteúdo, em caso
de perecimento (furto ou roubo, por exemplo) o banco não sabe o que havia no interior do
cofre, prejudicando a fixação da indenização.
Esta questão da indenização pela perda do bem é, de fato, a mais problemática neste
tipo de contrato. Os contratos deste tipo, em regra, contêm ínsitos uma declaração do
contratante de que os bens que ali coloca não excedem a um determinado valor, o que tende
a solucionar parte dos problemas, porque até aquele valor a indenização é possível,
reservando-se a instituição o direito de não indenizar acima do valor declarado – cláusula
que, a todo ver, é perfeitamente legítima, porque se o valor superar um determinado
patamar, o banco condiciona a aceitação do uso do cofre à pactuação de um seguro contra o
perecimento, por parte do cliente. Assim, declarado um valor máximo de indenizabilidade,
se o cliente alegar que o bem perdido superava tal montante, é porque declarou valor falso,
não agindo com lealdade contratual. Por isso a cláusula é legítima: é uma norma de
proteção contratual perfeitamente razoável, eis que a instituição não conhece os bens
colocados no cofre.
A prova do conteúdo é fundamental, e seu ônus incumbe ao contratante, eis que só
ele pode ter a ciência de que bens depositou no cofre. Inverter o ônus da prova é criar prova
maligna, de impossível produção pelo banco. Não é porque o contratante fez a declaração
de que os bens não superam o teto indenizável que subscreveu no pacto que aquele teto é,
automaticamente, o valor da indenização. Na verdade, o que se estabelece com esta
cláusula não é um montante descritivo do valor dos bens, que será o quantum automático da
indenização em caso de perecimento; o que se estipula é um teto indenizável, mas a
indenização concreta ainda depende de prova, pelo depositante, do valor dos bens que ali

Michell Nunes Midlej Maron 147


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

colocou. É simples: a cláusula delimita o máximo que será indenizável pelo banco, mas
ainda é preciso prova de que aquele bem tinha o exato valor que se reclama.
Vale ressaltar que a jurisprudência, por vezes, desconsidera esta cláusula limitadora
da indenização, o que não é uma posição que revela muita justiça, ante a quebra de uma
cláusula que não se mostra abusiva, como se viu.

Casos Concretos

Questão 1

PERPÉTUA CÁSSIA colocou no seu cofre de segurança, situado numa agência do


BANCO ESPERTEZA S/A., a importância de oitocentos mil reais, uma jóia e setenta mil
euros. Decorridos treze dias, verificou o desaparecimento da jóia. O cofre não tinha sinais
de arrombamento. O restante do conteúdo estava intacto. No contrato celebrado com
BANCO ESPERTEZA S/A. consta cláusula limitadora de responsabilidade no valor de
cinquenta mil reais. A avaliação da jóia, feita por perito particular de PERPÉTUA
CÁSSIA, indicou cento e vinte mil reais. Pergunta-se:
a) Qual a natureza do contrato celebrado entre Perpétua Cássia e o BANCO
ESPERTEZA S/A.?
b) Há culpa presumida do BANCO ESPERTEZA S/A. pelo desaparecimento da
jóia? Justifique.
c) A indenização deverá observar o limite de cinquenta mil reais, consoante o
disposto na cláusula, e também considerando-se o desconhecimento pelo BANCO
ESPERTEZA S/A. do conteúdo do cofre? Por quê?
Respostas justificadas.

Resposta à Questão 1

a) Trata-se, para a maioria, de contrato atípico, de contrato misto de locação com


prestação de serviços de segurança, e com alguns aspectos de depósito, havendo
quem defenda ser contrato de locação puro, e também quem entenda ser
contrato de depósito puro.
b) A colocação da cláusula penal faz pender para a presunção de culpa, mas a
verdade é que, sendo relação de consumo, sequer se precisa discutir culpa: a
responsabilidade é objetiva.

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EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

c) A limitação, a princípio, é legítima, mas se há prova de que o bem tinha valor


superior, a indenização deve ser equivalente a este valor real.

A respeito, veja o REsp. 333.211, que não leva em consideração o teto indenizatório
fixado no contrato:

“REsp 333211 / RJ DJ 18/03/2002 p. 260 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.


ROUBO DE COFRE ALUGADO. RESPONSABILIDADE DO BANCO
DEPOSITÁRIO. DANOS MATERIAL E MORAL. REEXAME DE PROVA.
IMPOSSIBILIDADE.
- Os bancos depositários são, em tese, responsáveis pelo ressarcimento dos danos
materiais e morais causados em decorrência do furto ou roubo dos bens colocados
sob sua custódia em cofres de segurança alugados aos seus clientes,
independentemente da prévia discriminação dos objetos guardados nos mesmos.
- A comprovação do efetivo depósito dos bens alegadamente roubados, bem como
da ocorrência de dano moral ao lesado deverão, em todas as hipóteses específicas,
ser objeto de apreciação nas instâncias ordinárias, em conformidade com as
peculiaridades fáticas de cada caso.
- Danos material e moral tidos por comprovados pelo Tribunal de origem. "A
pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial" (Súmula nº
7/STJ).
- Recurso não conhecido.”

Questão 2

MARIA JOSÉ celebrou contrato de utilização de cofre com o BANCO SOUZA S/A,
depositando suas jóias de família. Em 18 de agosto de 2003 ocorreu um roubo nas
dependências da instituição financeira. A depositante ajuizou ação de responsabilidade
civil em face do banco depositante, com fulcro nos arts 927, parágrafo único do Código
Civil e art. 14 do CDC, sustentando a responsabilidade objetiva do banco, tendente a
ressarci-la em valor correspondente ao valor das jóias. Procede o pedido da autora?
Resposta justificada.

Resposta à Questão 2

Sendo relação de consumo, como o é, o banco é objetivamente responsável, e


somente poderá elidir sua responsabilidade se comprovar fortuito externo ou fato da vítima.
Havendo prova do dano e do nexo, o banco responderá.

Questão 3

Decretada a liquidação extrajudicial do BANCO FINASA S/A, qual a repercussão


em relação aos contratos de conta corrente bancários?

Resposta à Questão 3

Todos os contratos serão suspensos, e os credores, correntistas, não receberão os


valores depositados imediatamente. Será preciso aguardar o processo de arrecadação,

Michell Nunes Midlej Maron 149


EMERJ – CP IV Direito Empresarial IV

traçado na Lei 6.024/74, que versa sobre a liquidação das instituições financeiras, sendo
seus créditos preferenciais.

Michell Nunes Midlej Maron 150

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