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A possibilidade do recebimento da denúncia que imputa a

prática da lavagem de dinheiro sem a prova da ocorrência do


delito antecedente

DIREITO PENAL

POR: SAMIR BAHLIS DALMAS

Resumo: O crime de lavagem de dinheiro é considerado um crime complexo, uma vez que depende da prática de delito antecedente para sua
con guração. Nesse contexto, estabelece-se a discussão acerca dos requisitos necessários para o recebimento da peça acusatória em tais

delitos, cabendo aferir a necessidade ou não da prova cabal do delito antecedente para o seu recebimento.

Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Delito antecedente. Recebimento da denúncia.

Considerações iniciais

Percebe-se que somente com o advento da Lei 9.613, datada de 03 de março de 1998, passou a lavagem de dinheiro a receber
tratamento penal no sistema jurídico brasileiro. Observa-se que o legislador brasileiro, ao criminalizar a conduta de lavagem de dinheiro,
optou, em um primeiro momento, por estabelecer um rol taxativo de crimes antecedentes no artigo 1º, e incisos, da Lei 9.613/98.[1], sendo

que a partir do advento da Lei 12.683/2012 o mencionado rol foi extinto. Desse modo, somente se consubstancia a tipicidade da lavagem de
dinheiro quando ocorrer a dissimulação ou ocultação de bens, direitos ou valores provenientes de injusto penal antecedente.  

Além disso, a Lei 9613/98 traz em seu bojo inovações no âmbito processual penal, tais como a suposta autonomia entre o crime

antecedente e o delito de lavagem de dinheiro (conforme dispõe o artigo 2º, inciso II, da Lei 9.613/98), e a possibilidade da instauração de
ação penal para apurar a prática da lavagem sem a prova da ocorrência do delito antecedente (artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 9.613/98). Cabe,
portanto, a análise acerca dos requisitos exigidos ao recebimento da denúncia no delito de lavagem.

Pressupostos ao recebimento da denúncia no crime de lavagem

De início, acerca dos requisitos exigidos ao recebimento da peça incoativa no delito de lavagem de dinheiro, faz-se necessária a análise

da redação do que preceitua o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 9.613/98:

Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:

[...]

§ 1o  A denúncia será instruída com indícios su cientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os
fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração

penal antecedente. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) [...]

Da redação supra destacada se extrai que para a formação da opinio delicti do crime de lavagem de dinheiro, além dos requisitos do
artigo 41 do Código de Processo Penal[2], exigem-se os indícios[3] su cientes da existência do crime antecedente.[4]

Assim, tem-se que não há necessidade de uma descrição minuciosa acerca da infração penal prévia, porém é imprescindível uma

descrição ao menos resumida do injusto anterior. Além disso, deve-se ressaltar que a aceitação da prova indiciária do crime antecedente para
o recebimento da exordial deve obedecer a determinados critérios, de acordo com o que preleciona Miguel Angel Montañez Pardo, citado,

por André Luís Callegari:



a) os indícios devem estar plenamente seguros. Assim, não valem as meras conjecturas ou suspeitas, pois não é
possível construir certezas sobre simples probabilidades; b) Concorrência de uma probalidade de indícios. É

necessário que concorram uma pluralidade de indícios, pois um fato único ou isolado impede fundamentar a

convicção judicial com base na prova indiciária; c) Existência de razões dedutivas. Entre os indícios provados e os fatos
que se inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segunda as regras do critério

humano.[5]

Portanto, para o recebimento da denúncia que imputa a prática do crime de lavagem de dinheiro é necessária uma base probatória

mínima acerca da ocorrência do delito antecedente, a qual não demonstrada acarretará na rejeição da peça vestibular. Nesse sentido é a lição

de Luiz Flávio Gomes, veja-se:

Mas a denúncia pelo crime de lavagem, conforme o que preceitua o art.2º, §1º, deve ser instruída com indícios
su cientes do crime antecedente (trá co de droga, de armas, contrabando etc.) É preciso que se examine a “justa
causa” da ação, que se revela em tais indícios. Não havendo justa causa, leia-se, uma base probatória mínima e

razoável, impõe a rejeição da denúncia. Se o delito de “lavagem” de bens é um crime derivado, porque pressupõe a
existência de outro precedente, nada mais lógico que exigir a demonstração (ainda que indiciária) da origem ilícita de

tias bens. Cuida-se do fumus boni juris, na parte relacionada a existência do crime. Observe-se, porém, que não são

quaisquer indícios (vagos, imprecisos, obscuros) que já justi cam o surgimento do processo: a lei exige “indícios
su cientes”, isto é, razoáveis, prováveis.[6]

No sentido de que o recebimento da peça acusatória que imputa a suposta prática do delito de lavagem prescinde da prova da

infração penal prévia, observe-se o seguinte julgado cuja ementa assim se transcreve:

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. "LAVAGEM DE DINHEIRO". ARTIGO 1º, INCISO

V, DA LEI Nº 9.613/98. INÉPCIA DA DENÚNCIA E FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. INOCORRÊNCIA. CERTEZA

QUANTO AO CRIME ANTECEDENTE. DESNECESSIDADE NA FASE DE INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. RECURSO


IMPROVIDO.

- Não é inepta a denúncia que descreve minuciosamente fatos subsumíveis ao disposto no artigo 1º, inciso V, da Lei nº

9.613/98, incluindo a narrativa do crimes antecedentes que se amoldam ao previsto no inciso V, do mesmo artigo.

- Se não há injustiça ou erro manifestos, sendo vedada a incursão vertical na matéria fático-probatória, não há

também que se falar em denúncia abusiva, absurda ou infundada e, nessa linha, também não se mostra injusti cado o
ato de recebimento da peça inaugural da Ação Penal.

- Não é necessária, para a instauração da ação penal ou para o ato de recebimento da denúncia, a certeza quanto aos

crimes antecedentes.

- O Habeas Corpus não se presta à análise de teses defensivas relativas ao mérito da imputação.

- Recurso improvido.[7]

Merece destaque, ainda, excertos do voto do Sr. Ministro Paulo Medina, que assim refere em suas razões:

A categórica certeza quanto ao crime antecedente é totalmente dispensável para o oferecimento da denúncia.

Se na fase de instauração da Ação Penal fosse exigível a inteira demonstração dos fatos atribuídos ao réu ou a própria

certeza que fundamenta sua condenação, raramente seria possível a oferta de denúncia em face das guras que
constituem genericamente a "lavagem de dinheiro". A certeza quanto ao delito antecedente, que integra a própria

a rmação quanto à prática do crime que dele está a depender, é algo que resulta da atividade probatória, ou seja; do

exame e da discussão, em contraditório, dos elementos levados à instrução. É este exatamente o sentido do disposto

na primeira parte do § 1º, do artigo 2º, da mesma Lei:

“Art. 2º - (omissis)

§ 1º - A denúncia será instruída com indícios su cientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos
previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime” (grifei).[8]

Contudo, embora se admita o recebimento da denúncia pela suposta prática de lavagem de dinheiro apenas com indícios su cientes

da ocorrência do crime antecedente, entendemos que o mais adequado seria a prova da infração penal prévia, o que não corresponderia

necessariamente com a existência de uma sentença condenatória, conforme já explanado, mas que permitisse a constatação do fato típico e

ilícito que deu origem à ocultação, dissimulação e integração dos bens, direitos e valores.[9]

Sendo assim, no que tange à condenação pela perpetração do crime de lavagem de dinheiro, ainda com maior razão, dever-se-ia exigir

a prova do crime antecedente, pois somente assim haveria a efetiva con guração da lavagem.

Conclusão

A partir das considerações supraexpendidas, observa-se que o legislador, em matéria processual, trouxe inovações ao estabelecer

novos requisitos ao recebimento da denúncia quando se trata do crime de lavagem de dinheiro (artigo 2º, parágrafo 1º. da Lei 9.613/98),

dispondo no sentido de que a peça acusatória será aceita se presentes indícios su cientes da prática do delito antecedente. Desse modo,

conclui-se pela desnecessidade da prova cabal do delito antecedente ao menos para o recebimento da peça acusatória. Contudo, no que se

refere aos requisitos para a condenação pela prática de lavagem, o legislador pátrio mostrou-se silente.

Referências bibliográ cas

CALLEGARI, André Luis. Problemas pontuais da Lei de lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 8, n. 31,

jul./set. 2000.

MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (Lavagem de ativos provenientes de crime) – anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98.

São Paulo: Malheiros, 1999.

CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de Lavagem de Capitais: comentários à lei 9.613/98. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1998.

Notas:

[1] Após as alterações trazidas pela Lei 12.683/2012 o artigo 1º da Lei 9.613/98 passou a apresentar a seguinte redação: “Art. 1o  Ocultar ou

dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou
indiretamente, de infração penal. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) I - (revogado);  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) II -

(revogado); (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) III - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) IV - (revogado); (Redação

dada pela Lei nº 12.683, de 2012) V - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) VI - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 12.683,

de 2012) VII - (revogado);  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) VIII - (revogado).  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) Pena:

reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) [...]” 

[2] “Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a quali cação do acusado ou

esclarecimentos pelos quais se possa identi cá-lo, a classi cação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”    

[3] O artigo 239 do Código de Processo Penal conceitua indícios da seguinte forma: “Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e

provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”  

[4] MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro, p. 117.

[5] PARDO, Miguel Angel Montañes. La presunción de inocência, 1999, p. 106-109. apud CALLEGARI, André Luís. Problemas pontuais da Lei de
lavagem de dinheiro, p. 192. Ainda sobre os indícios observe-se o escólio de Rodolfo Tigre Maia, o qual aduz que não importaria a quantidade

de indícios mas sim o “peso” destes: “Destarte, na esteira da melhor doutrina sobre o tema, pode-se a ançar que indícios su cientes serão

aqueles que, independentemente de sua quantidade, quando sopesados à luz dos princípios gerais de apreciação da prova em sede

criminal,da experiência jurídica e das especi cidades da modalidade de ilícito a que se vinculam, produzem no julgador o convencimento

racional, explicitado fundamentadamente, de que existe um elevado grau de probabilidade de que determinado crime tenha sido

praticado.Assim, e. g., se o exame microscópico do numerário apreendido revela a presença de resíduos de cloridrato de cocaína nas notas
em poder do acusado, há uma grande probabilidade de quês estas tenham se originado do trá co daquela substância.” MAIA, Rodolfo Tigre.

Lavagem de dinheiro, p. 120.      

[6] CERVINI, Raul; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de Lavagem de Capitais, p. 356.

[7] STJ, RHC 14575/MS, Sexta Turma, Relator: Ministro Paulo Medina, DJ  06/12/2004, p. 364. Disponível em: <http://www.stj.gov.br> Acesso

em: 14 maio 2006.

[8] STJ, RHC 14575/MS, Sexta Turma, Relator: Ministro Paulo Medina, DJ  06/12/2004, p. 364. Disponível em: <http://www.stj.gov.br> Acesso

em: 14 maio 2006.

[9] Nesse mesmo sentido, ver: CALLEGARI, André Luís. Problemas pontuais da Lei de lavagem de dinheiro, p. 192.


Samir Bahlis Dalmas, o autor

Bacharel em Direito pelo UNIRITTER/RS. Procurador Federal. Especialista em Direito Público pela UnB/CEAD.

Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cienti co publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
DALMAS, Samir Bahlis. A possibilidade do recebimento da denúncia que imputa a prática da lavagem de dinheiro sem a prova da ocorrência do delito antecedente Conteudo
Juridico, Brasilia-DF: 24 set 2019. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40603/a-possibilidade-do-recebimento-da-denuncia-que-imputa-a-pratica-da-
lavagem-de-dinheiro-sem-a-prova-da-ocorrencia-do-delito-antecedente. Acesso em: 24 set 2019.

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