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CAPÍTULO 6.

2 - METABOLISMO DE CARBOIDRATOS PARTE 2: Gliconeogênese e regulação


hormonal. Metabolismo do glicogênio e suas desordens (Texto para fins exclusivamente
didáticos).

1 GLICONEOGÊNESE

A glicose, além de consistir na fonte primária de energia do metabolismo, é a principal


ou até mesmo a única fonte de energia para alguns tecidos, a exemplo do cérebro, eritrócitos,
medula renal, testículos, tecidos embrionários, dentre outros. Quando a disponibilidade de
glicose no sangue reduz, o fígado libera esse monossacarídeo na corrente sanguínea a partir do
glicogênio. No entanto, em situações de jejum prolongado ou exercícios vigorosos, o estoque de
glicogênio pode não ser suficiente para suprir as necessidades energéticas dos referidos tecidos.
Para se ter uma ideia, o glicogênio hepático é suficiente apenas para fornecer glicose para o
sangue por aproximadamente metade de um dia, em situações de jejum. Assim, o organismo se
vê obrigado a sintetizar glicose a partir de compostos não glicídicos, fenômeno esse conhecido
como gliconeogênese.

A gliconeogênese é uma via metabólica que ocorre em micro-organismos, fungos,


vegetais e em todos os animais. Nos seres humanos, tem como sítio o citosol e as mitocôndrias
das células hepáticas e, em menor proporção, acontece também nos rins e no intestino delgado.
A glicose poderá ser sintetizada a partir de piruvato, lactato, glicerol ou aminoácidos.

Embora a gliconeogênese não seja uma via idêntica à glicólise correndo em direção
oposta, sete das dez reações da glicólise são compartilhadas pelas duas vias, uma vez que são
reversíveis. Porém, visto que três reações da via glicolítica são irreversíveis, por serem muito
exergônicas (ou seja, a reação inversa é muito endergônica e, por isso, impossível de ocorrer em
condições celulares), a gliconeogênese é obrigada a tomar outra estratégia para a síntese de
glicose. É o que retrata a figura abaixo. As reações reversíveis, portanto, serão as mesmas para
ambas as vias, mas aquelas catalisadas pela hexocinase, PFK-1 e piruvato cinase são diferentes,
pois são irrerversíveis na via glicolítica.
Gliconeogênese a partir de piruvato

A reação da glicólise que converte o fosfoenolpiruvato em piruvato é uma reação


irreversível, obrigando a gliconeogênese a criar outra estratégia para produzir fosfoenolpiruvato
a partir de piruvato.

A molécula de fosfoenolpiruvato possui um conteúdo energético maior do que a de


piruvato, portanto essa conversão é muito endergônica, de forma que será necessária a
disponibilização de energia para transformar um composto de menor teor energético para um
de maior teor energético. Nesse caso, essa transformação é impossível em condições celulares.

Então, o piruvato, inicialmente, é carboxilado por ação da enzima piruvato carboxilase,


e a energia necessária para tanto é extraída de uma molécula de ATP. O oxaloacetato é um
produto com 4 carbonos, apresentando maior teor energético do que o piruvato, um substrato
de 3 carbonos.
Apesar de o oxaloacetato possuir maior conteúdo energético que o piruvato, ainda mais
energia será necessária para formar o fosfoenolpiruvato. Essa energia é extraída de um GTP em
conjunto com a energia disponibilizada de uma descarboxilação do oxaloacetato. No lugar do
grupo CO2, um grupamento Pi se liga. Essa reação é catalisada pela fosfoenolpiruvato
carboxicinase.

Repare que ambas as reações são irreversíveis. Não seria possível converter o piruvato
diretamente em fosfoenolpiruvato, devido à grande necessidade de energia requisitada para
uma única reação, impossível de se adquirir em condições celulares. Assim, a célula produz
primeiro o oxaloacetato, que guarda maior energia que o piruvato, e a partir dele aproveita a
energia de sua descarboxilação e do GTP para formar o fosfoenolpiruvato, que guarda ainda
mais energia que o oxaloacetato.

O piruvato existente no citosol é capaz de adentrar à matriz mitocondrial, onde é


convertido em oxaloacetato, mas o último não consegue retornar ao citosol para fazer
fosfoenolpiruvato, que dará sequência à gliconeogênese. Na realidade, o oxaloacetato é
convertido em malato com auxílio do NADH + H+. O malato ultrapassa a mitocôndria por ação
de carreadores até citosol, onde é novamente convertido em oxaloacetato com auxílio do NAD+.
Essa reação está descrita na etapa 8 do ciclo do ácido cítrico.

Após a formação do fosfoenolpiruvato, a gliconeogênese segue correndo de forma


oposta à glicólise, devido às reações reversíveis, até frutose 1,6-bifosfato, que não pode ser
convertida em frutose 6-fosfato já que a reação catalisada pela PFK-1 na via glicolítica é
irreversível. Assim, entra em cena a enzima frutose 1,6-bifosfatase (FBPase-1), que desfosforila
a frutose 1,6-bifosfato no carbono 1, originando a frutose 6-fosfato. Essa reação é irreversível.
Esse fosfato não se complexa ao ADP para formar o ATP porque não existem condições
termodinâmicas suficientes para isso.
Uma vez produzida frutose 6-fosfato, a gliconeogênese segue até glicose 6-fosfato, no
entanto a reação catalisada pela hexocinase na via glicolítica é irreversível. Para a formação da
glicose, entra em cena a enzima glicose 6-fosfatase, que, de uma forma muito semelhante à
reação anterior, desfosforila a glicose 6-fosfato para dar origem à glicose, em uma reação
irreversível. Aqui, mais uma vez, a formação de ATP é termodinamicamente desfavorável.

Gliconeogênese a partir de lactato

Vimos que na fermentação láctica, o piruvato é convertido em lactato por ação da


lactato desidrogenase. No entanto, essa reação é reversível. Assim, lactato pode dar origem ao
piruvato diretamente e, a partir do piruvato, a gliconeogênese segue conforme explicado acima.
No ciclo de Cori, já descrito anteriormente, o lactato produzido nos músculos poderá retornar
ao fígado e dar início ali à gliconeogênese.

Gliconeogênese a partir de glicerol

A glicose não pode ser sintetizada a partir de triglicérides nos mamíferos. Entretanto, a
molécula de triglicerídeo é composta por um glicerol ligado a três ácidos graxos. No catabolismo
de lipídeos, esses ácidos graxos são desligados do glicerol para produzirem acetil-CoA, que
iniciará o ciclo do ácido cítrico para produção de energia. O esqueleto de glicerol poderá ser
fosforilado no carbono 3 por ação da glicerol cinase, que retira um grupamento fosforil de um
ATP, formando glicerol 3-fosfato, cuja oxidação por ação do NAD+ originará a di-hidroxiacetona
fosfato, um intermediário da gliconeogênese e da via glicolítica. Se for necessário produzir
energia, a di-hidroxiacetona fosfato segue na glicólise, mas se for imperiosa a formação de
glicose, a di-hidroxiacetona fosfato seguirá na gliconeogênese.

Gliconeogênese a partir de aminoácidos

Alguns aminoácidos podem ser convertidos em glicose, e, por isso, são chamados de
aminoácidos glicogênicos. Os principais aminoácidos convertidos em glicose são alanina e
glutamina, a partir de reações de transaminação, que darão origem ao piruvato ou
intermediários do ciclo do ácido cítrico. No caso do oxaloacetato, este poderá entrar
diretamente na gliconeogênese convertendo-se em piruvato. Os outros intermediários do ciclo
do ácido cítrico, eventualmente, serão convertidos em oxaloacetato (o ciclo de Krebs é um
ciclo!).

A alanina por ação da enzima alanina amino transferase doa seu grupamento amino pra
o α-cetoglutarato. O resultado da reação é piruvato e glutamato. O piruvato poderá seguir
normalmente na gliconeogênese.

Outros aminoácidos que podem dar origem ao piruvato são: cisteína, glicina, serina,
treonina e triptofano. O quadro abaixo relaciona ainda os aminoácidos com os respectivos
intermediários do ciclo do ácido cítrico aos quais dão origem.
2 REGULAÇÃO HORMONAL DA GLICONEOGÊNESE

A glicólise e a gliconeogênese são reguladas reciprocamente, de forma que quando a


glicólise é estimulada, a gliconeogênese é inibida, e vice-versa. Assim como na glicólise, a
gliconeogênese está submetida à regulação pela insulina e por outro hormônio pancreático: o
glucagon. Para compreender esse mecanismo de regulação, é necessário compreender um
pouco mais a respeito das enzimas PFK-1, PFK-2, frutose 1,6-bifosfatase (FBPase-1) e frutose
2,6-bifosfatase (FBPase-2).

Como visto anteriormente, além da PFK-1, existe a PFK-2, que produz frutose 2,6-
bifosfato ao invés de frutose 1,6-bifosfato a partir da frutose 6-fosfato. O excesso da produção
de frutose 2,6-bifosfato indica que a frutose 6-fosfato está sendo direcionada a favor dessa
produção. Por isso, a frutose 2,6-bifosfato estimula a PFK-1 a desviar a frutose 6-fosfato para
produção de frutose 1,6-bifosfato. Nessa situação, em virtude da necessidade do acúmulo de
frutose 1,6-bifosfato para seguir a via glicolítica, a frutose 2,6-bifosfato atua inibindo
alostericamente a FBPase-1, como mostra o esquema abaixo:

A FBPase-2 é uma enzima que converte a frutose 2,6-bifosfato em frutose 6-fosfato, que
poderá seguir na via glicolítica ou na gliconeogênese. Na verdade, PFK-2 e FBPase-2 são duas
atividades opostas de uma mesma enzima. Isto é, essa enzima é bifuncional: ela apresenta
função de PFK-2 e função de FBPase-2. A enzima PFK-2/FBPase-2 quando está fosforilada, isto
é, ligada a um grupo fosforil, a atividade PFK-2 está inibida, e a atividade FBPase-2 está funcional.
Quando a enzima PFK-2/FBPase-2 está desfosforilada, isto é, quando foi retirado um grupo
fosforil, a atividade de PFK-2 está funcional, e a atividade FBPase-2 está inibida.
Essa ação dual da PFK-2/FBPase-2 é regulada por dois hormônios: a insulina e o
glucagon. Quando o nível de glicose sanguínea aumenta, a insulina é secretada pelo pâncreas e
estimula a ação da fosfoproteína fosfatase, enzima que desfosforila a PFK-2/FBPase-2. Por outro
lado, quando o nível de glicose sanguínea diminui, o pâncreas secreta glucagon que, via cascata
bioquímica dependente de AMPc ativa a enzima proteína cinase dependente de AMPc, que
fosforila via ATP a PFK-2/FBPase-2. Assim, a insulina estimula a atividade de PFK-2, e o glucagon
estimula a atividade de FBPase-2. Em outras palavras, a insulina estimula a glicólise e inibe a
gliconeogênese, enquanto o glucagon inibe a glicólise e estimula a gliconeogênese.

Além disso, no fígado, a insulina inibe a gliconeogênese ao exercer inibição sobre a


piruvato carboxilase e fosfoenolpiruvato carboxicinase, que catalisam a conversão de piruvato
em oxaloacetato e de oxalocacetato em fosfoenolpiruvato, respectivamente. Ademais, a
insulina estimula a atividade do complexo piruvato desidrogenase, aumentando a produção de
acetil-CoA a partir de piruvato, reduzindo a disponibilidade deste substrato para a
gliconeogênese.

O glucagon, nos hepatócitos, estimula a gliconeogênese por diferentes mecanismos: a)


aumentando a capacidade da célula hepática captar aminoácidos, os principais substratos
neoglicogênicos; b) ativando a piruvato carboxilase, a fosfoenolpiruvato carboxicinase e a
frutose-1,6-bifosfatase e c) inibindo as enzimas da via glicolítica, fosfofrutocinase e piruvato
cinase. A inibição desta última impede a formação do piruvato a partir do fosfoenolpiruvato
formado na etapa inicial da gliconeogênese.

A estimulação simpática também facilita a captação de aminoácidos pelo fígado,


aumentando a disponibilidade de substratos para a gliconeogênese. O SNA parassimpático
realiza efeitos contrários ao simpático, reduzindo a gliconeogênese e aumentando a secreção
de insulina. No tecido adiposo, a estimulação simpática induz ao catabolismo de lipídeos,
resultando em maior proporção de ácidos graxos livres e glicerol. A partir do glicerol, como visto
anteriormente, é possível realizar gliconeogênese.

Outros Mecanismos de Regulação da Gliconeogênese


O aumento da concentração de acetil-CoA sugere que a glicólise está muito ativa, ou
seja, glicose está sendo consumida para formar piruvato e, a partir deste, acetil-CoA. Como visto
anteriormente, a acetil-CoA exerce efeito inibitório sobre o complexo piruvato desidrogenase,
inibindo a utilização do piruvato oriundo do sentido da glicólise. No entanto, a acetil-CoA
estimula a enzima piruvato carboxilase, que converte o oxaloacetato em piruvato, com o
objetivo de restabelecer a glicose perdida. É o que mostra a figura abaixo:

Outra enzima envolvida em uma reação irreversível da gliconeogênese está sujeita à


regulação alostérica. Trata-se da FBPase-1, que sofre ação do AMP. O excesso de AMP é um
indicativo de que ATP está sendo gasto e, por isso, necessita ser reposto. A inibição da FBPase-
1 por AMP sinaliza que a gliconeogênese deve ser suprimida, o que estimula a via glicolítica a
repor esse gasto de ATP.
3 METABOLISMO DE GLICOGÊNIO E SUAS DESORDENS (FISIOPATOLOGIA, ALTERAÇÕES
BIOQUÍMICAS E ASPECTOS LABORATORIAIS)

Se a glicose disponível não é utilizada como fonte de energia, ela pode ser armazenada
para, oportunamente, produzir-se ATP. Nos vegetais, glicose é armazenada na forma de amido,
enquanto nos animais ela é armazenada na forma de glicogênio.

O glicogênio é um polímero de glicose encontrado nos músculos e no fígado. Nos


músculos, o glicogênio fornece glicose como fonte de energia rápida, necessária, sobretudo,
para a realização de exercícios físicos vigorosos, situação em que a glicose estocada consegue
fornecer energia suficiente por aproximadamente 1h. No fígado, o glicogênio é quebrado em
monômeros de glicose levados para à corrente sanguínea para fornecer energia para os outros
tecidos. O glicogênio hepático é um reservatório suficiente para 12h até 24h, em jejum.

O processo em que a glicose se polimeriza para formar glicogênio é chamado de


glicogênese, enquanto o fenômeno em que o glicogênio é quebrado em monômeros de glicose
é chamado de glicogenólise. Para conhecermos as doenças que afetam o metabolismo do
glicogênio, é imperioso que entendamos ambos os fenômenos.

Glicogenólise

Para compreendermos a glicogenólise, devemos recordar a estrutura química do


glicogênio. Esse polissacarídeo é formado por diversas cadeias com uma extremidade não
redutora (sem OH anomérica) e ligações α1→4 entre os monômeros de glicose, ligadas umas às
outras por ramificações de ligação é α1→6.
Assim, para o glicogênio fornecer glicose, é necessário romper essas ligações químicas
entre os monômeros. A enzima glicogênio fosforilase, insere um grupamento Pi, sem gasto de
ATP, no carbono 1 do monômero situado na extremidade não redutora, formando uma
molécula de glicose 1-fosfato que se desliga da cadeia, conforme desenho a seguir. O glicogênio
restante é um polímero com uma glicose a menos.

O processo vai ocorrendo até que restem quatro monômeros de glicose na cadeia. Três
deles, ressaltados em amarelo, formam apenas ligações α1→4, enquanto um deles está ligado
à ramificação, por ligação α1→6, visualizado em rosa. Nesse momento, a enzima
desramificadora, conhecida formalmente como oligo (α1→6) a (α 1→4) glican-transferase,
retira os três primeiros monômeros de glicose para uma extremidade não redutora que esteja
próxima e, a seguir, exerce uma segunda atividade: a de quebrar a ligação α1→6 entre o
monômero restante e a ramificação, liberando mais uma glicose 1-fosfato livre.

Repare que a glicose 1-fosfato não possui a capacidade nem de romper membranas para
chegar à corrente sanguínea com o intuito de fornecer energia para outros tecidos, e nem a
propriedade de ser oxidada na via glicolítica para fornecer energia para o próprio fígado ou para
o músculo.

Para contornar a situação, a enzima fosfoglicomutase transfere o grupamento fosfato


do carbono 1 para o carbono 6, sintetizando a glicose 6-fosfato, que pode agora seguir dois
caminhos: (1) entrar na via glicolítica e produzir energia para o próprio tecido (muscular ou
hepático) ou (2) no caso do fígado, ser convertida em glicose livre por ação da glicose 6-
fosfatase. Uma vez produzida glicose livre, esse açúcar poderá ser disponibilizado no sangue
para fornecer energia para tecidos diversos.

A glicose 6-fosfatase é uma proteína integral da membrana do retículo endoplasmático


liso. No citosol dos hepatócitos a glicogenólise ocorre até glicose 6-fosfato, que penetra no
retículo endoplasmático por um transportador (T1). A desfosforilação ocorre no lúmen da
organela. O Pi retorna para o citosol por um transportador (T2), enquanto a glicose por um outro
transportador (T3). Do citosol do hepatócito, cai no sangue pelo transporte mediado por GLUT2.
Os outros tecidos, além do fígado, não possui a enzima glicose 6-fosfatase e, por isso, não
fornecem glicose para o sangue.

Glicogênese

Quando a glicemia aumenta, quase todos os tecidos animais, mas principalmente o


fígado, o coração e as fibras musculares esqueléticas aproveitam a disponibilidade de glicose
para polimerizá-la e sintetizar o glicogênio.
O primeiro passo é a reação catalisada pela hexocinase. Como dito anteriormente, no
fígado a isoenzima é a hexocinase IV ou glucocinase, ou ainda glicocinase. As hexocinases I-III
possuem uma afinidade muito elevada para a glicose (Km para a glicose é de cerca de 0,1mM),
sendo que para valores normais de concentração de glucose (4-5mM) a enzima encontra-se
saturada com substrato; isto é, a quantidade de substrato disponível é suficiente para que a
enzima possa funcionar à sua velocidade máxima. Por outro lado, a glicocinase apresenta um
Km muito superior (10mM), o que significa que em condições normais a enzima está longe da
saturação com substrato. Podem estar neste momento a perguntar: "Qual é o interesse desta
situação? Era muito mais vantajoso ter uma enzima a funcionar à sua velocidade máxima!" A
resposta a essa questão é muito simples: A função da glicocinase é de produzir glucose-6-P que
depois será principalmente desviada para a síntese de glicogênio hepático. Ora, só faz sentido
nós sintetizarmos glicogênio quando temos muita disponibilidade de glicose. Portanto, a
glicocinase só vai começar a funcionar a uma velocidade superior se existir um aumento da
disponibilidade do substrato. Por outras palavras, ao contrário do que acontece com as
restantes hexocinases, quanto mais elevada for a concentração de glicose maior a velocidade
de atuação da glicocinase.

Após a síntese de glicose 6-fosfato, a fosfoglicomutase exercerá, agora, o caminho


inverso, convertendo esse substrato em glicose 1-fosfato. Esta será convertida em UDP-glicose
por ação da enzima UDP-glicose-pirofosforilase. Outro substrato da reação é o UTP, ou uridina-
tri-fosfato. O UTP é uma molécula semelhante ao ATP, no entanto, ao invés de apresentar em
sua estrutura uma molécula de adenosina, apresenta uma molécula de uridina ligada a três
grupos fosfato. Para a formação da UDP glicose, a enzima retira um fosfato de cada um dos
substratos da reação, gerando, ainda, o pirofasto (PPi, duas moléculas de fosfato ligadas).

A molécula de UDP-glicose, conforme mostrado no desenho acima, é dotada de uma


maior quantidade de energia que a molécula de glicose 1-fosfato. Na terceira etapa da síntese
do glicogênio, uma glicose é liberada da UDP-glicose por ação da enzima glicogênio sintase. A
energia da quebra dessa ligação é utilizada para acrescentar essa glicose em uma cadeia de
glicogênio.
A enzima glicogênio sintase é capaz de polimerizar a glicose formando ligações α1→4.
As ligações α1→6 das ramificações são formadas pela enzima ramificadora, formalmente
chamada de amilo (1→4) a (1→6) transglicosilase. As ramificações na molécula de glicogênio
são importantes para tornar esse polissacarídeo mais solúvel no líquido biológico, além de
permitir a presença de várias extremidades livres para a inserção ou retirada de glicose.

Repare que a enzima glicogênio sintase é capaz apenas de acrescentar novas moléculas
de glicose a um polímero pré-formado. Essa enzima não consegue iniciar a formação de uma
cadeia de glicogênio. Por isso, entra em cena uma proteína chamada glicogenina, que funciona
como um primer (iniciador da síntese de glicogênio). A primeira molécula de glicose do polímero
é ligada a um resíduo de tirosina da glicogenina. A própria glicogenina catalisa essa reação, por
meio de sua atividade glicosiltransferase. A próxima molécula de glicose é retirada da UDP-
glicose e inserida na cadeia. Essa cadeia é estendida até o oitavo resíduo de glicose. Somente a
partir desse ponto que a glicogênio sintase inicia sua ação de alongar o polímero de glicogênio.
Regulação da Glicogênese e Glicogenólise

A enzima glicogênio fosforilase, que degrada o glicogênio, é regulada por mecanismos


de fosforilação. Essa enzima pode existir em duas isoformas: glicogênio fosforilase a, que está
mais ativa e fosforilada, ou glicogênio fosforilase b, que está menos ativa e desfosforilada.

A fosforilação de glicogênio fosforilase b, gera a glicogênio fosforilase a. Essa inserção


do grupo fosfato é realizada por ação da enzima fosforilase b cinase, que se torna ativa por ação
da adrenalina (músculos) ou glucagon (fígado), que se ligam a receptores de membrana
aumentando a concentração de AMPc, o que ativa a ação da proteína cinase A (PKA). É a PKA
que ativa a fosforilase b cinase, que fosforila a glicogênio fosforilase b, convertendo-a em
glicogênio fosforilase a (mais ativa). Assim, elevação dos níveis de adrenalina estimula a
glicogenólise para a utilização da glicose nos músculos para produção de energia. Quando a
glicemia é baixa, o glucagon estimula a glicogenólise no fígado, para disponibilizar glicose na
corrente sanguínea.

Quando a glicemia retorna a níveis normais ou está alta, a própria glicose penetra nos
hepatócitos e se liga alostericamente à enzima fosforilase a fosfatase (PP1), que, por sua vez,
torna-se ativada e desfosforila a glicogênio fosforilase a, formando a glicogênio fosforilase b,
que é menos ativa. Assim, o aumento da glicemia, inteligentemente, inibe a glicogenólise.

A glicogênio sintase também é regulada por fosforilação e desfosforilação. A glicogênio


sintase ativa (forma a) está desfosforilada, enquanto a glicogênio sintase inativa (forma b) está
fosforilada. A fosforilação da glicogênio sintase a é catalisada por diferentes enzimas cinases,
porém a mais importante é a glicogênio-sintase-cinase-3 (GSK3), que insere três grupos fosfato
na glicogênio sintase a. Para a GSK3 funcionar, é necessária a fosforilação da glicogênio sintase
a por ação prévia de outra enzima, a caseína-cinase-II (CKII). A ação da GSK3 é inibida por ação
da insulina. Assim, a insulina estimula a glicogênese, indiretamente, ao inibir a desativação da
glicogênio sintase.
A enzima PP1, descrita anteriormente, é também responsável pela desfosforilação da
glicogênio sintase b, reativando a glicogênio sintase a. A PP1 é estimulada pela insulina, glicose
e glicose 6-fosfato. Portanto, esses mediadores estimulam a glicogênese. O glucagon e a
adrenalina inibem a ação da PP1, mantendo a glicogênio sintase na forma b, inibindo a
glicogênese. Em outras palavras: insulina estimula a glicogênio sintase, e o glucagon e
adrenalina inibem.

Doenças do Metabolismo do Glicogênio (fisiopatologia, alterações bioquímicas e aspectos


laboratoriais)

Compreender o metabolismo do glicogênio no organismo humano torna-se de suma


importância, pois além da sua relevância no fornecimento energético e no controle da glicemia,
o glicogênio pode estar relacionado com diversos tipos de doenças que comprometem a saúde
do ser humano, especialmente pela deficiência de enzimas de seu metabolismo.

A deficiência de enzimas específicas envolvidas na síntese ou na degradação de


glicogênio pode ocasionar em defeito metabólico no catabolismo ou no anabolismo desse
polissacarídeo. Isso pode resultar em doenças genéticas relacionadas ao armazenamento do
glicogênio que, em sua maioria, apresentam caráter autossômico recessivo. Também
denominadas glicogenoses, essas doenças se diferem no efeito enzimático, no órgão afetado,
na idade em que ocorrerão as primeiras manifestações clínicas da doença e na severidade
desses sintomas. Glicogenose ou “doença de armazenamento de glicogênio” é um termo
genérico empregado para descrever um grupo de distúrbios hereditários, caracterizados pelo
depósito de quantidades anormais de glicogênio nos tecidos ou pela incapacidade de mobilizar
o glicogênio. O quadro abaixo é um resumo dos 13 diferentes tipos de glicogenoses (um do livro
do Harper, outro do Lehninger).
• Tipo 0: caracterizada pela deficiência da glicogênio sintase. Com a síntese de glicogênio
deficitária, o fígado não conseguirá fornecer glicose para o sangue, ocasionando
hipoglicemia que, por sua vez, induz ao aumento do catabolismo de lipídeos para
produção de energia, gerando hipercetonemia. Para confirmação da doença pode-se
fazer biópsia do músculo e do fígado, revelando baixa concentração da enzima hepática
e valores inalterados para a enzima muscular. Em jejum, devido hipoglicemia, paciente
pode apresentar sonolência, atenção dispersa, palidez, movimentos oculares
descoordenados e convulsões.

• Tipo I: causada pela deficiência da glicose-6-fosfatase, responsável pela conversão de


glicose-6-fosfato em glicose e fosfato após a glicogenólise. Essa enfermidade
compromete a glicemia, uma vez que o glicogênio estocado não é metabolizado pelas
células hepáticas e renais, contribuindo para o quadro de hipoglicemia, hepatomegalia,
hiperlipidemia, hiperuricemia, retardo no crescimento e acidose láctica. Testes
enzimáticos e a análise da mutação no gene que codifica essa enzima é uma alternativa
para o diagnóstico da doença. Pode ser do tipo Ia (disfunção no sítio catalítico), Ib
(disfunção do transporte de glicose-6P do retículo endoplasmático), Ic (deficiência no
transportador de Pi do retículo) e Id (disfunção na saída de glicose do retículo).
• Tipo II: doença grave e potencialmente fatal. Há acúmulo de glicogênio nos lisossomos,
principalmente no tecido muscular. Há deficiência da enzima alfa-glicosidase ácida.
Manifesta-se clinicamente como uma doença neuromuscular que apresenta diferentes
taxas de progressão, distinguindo-se de outras doenças neuromusculares por
apresentar características clínicas específicas, como o início precoce de problemas
respiratórios anteriores à fraqueza dos membros. Essa disfunção pode se manifestar sob
duas formas: forma infantil, em crianças nos primeiros meses de vida, que apresentam
fraqueza muscular e cardiomiopatia, podendo ocasionar a morte por insuficiência
cardíaca; e forma tardia, em crianças com idade mais avançada e em adultos, cujo
principal sintoma é insuficiência respiratória seguida de fraqueza muscular.

• Tipo III: ocasionada pela deficiência da enzima desramificadora. Com isso, há acúmulo
de glicogênio no citosol, prejudicando o funcionamento do fígado dos músculos. De
acordo com os sintomas pode ser do tipo IIIa e IIIc, que afetam fígado e causam
miopatias; ou do tipo IIIb e IIId, que afetam somente o fígado. Em todos os tipos
observa-se hepatomegalia logo na infância e hipoglicemia.

• Tipo IV: ocasionada pela deficiência da enzima ramificadora. Provoca o acúmulo,


principalmente no fígado e no músculo, de corpúsculos de poliglicosana (polissacarídeo
com poucos pontos de ramificação), que é alvo no diagnóstico da doença. Mioglobina
na urina também é indicativo da doença. A baixa atividade (5-20%) dessa enzima induz,
na fase infantil e adulta, distúrbios que acometem além do sistema muscular, o sistema
nervoso central e periférico. As manifestações clínicas relacionadas a essa doença são,
principalmente, hipotonia muscular, cirrose, falhas no crescimento, devastação
muscular nas extremidades inferiores, disfunção neuromuscular,
hepatoesplenomegalia e desenvolvimento motor lento. Ocorre morte por insuficiência
cardíaca ou hepática antes dos cinco anos.

• Tipo V: distúrbio causado pela deficiência na enzima miofosforilase, impedindo que o


glicogênio seja direcionado para a hidrólise, o que resulta no seu acúmulo no músculo.
Clinicamente, podemos considerar três estágios evolutivos: a infância e a adolescência,
quando há fadiga muscular excessiva após exercícios físicos; entre os 20 e 40 anos,
quando se iniciam as cãibras e ocorre mioglobinúria depois de atividades físicas; e após
os 40 anos, quando as cãibras e a mioglobinúria tornam-se menos intensas, enquanto
que a fraqueza muscular e as amiotrofias (atrofia dos músculos) ficam evidentes. O
diagnóstico pode ser confirmado pelos baixos níveis de lactato durante um teste de
exercício físico (não está fazendo glicólise seguida da fermentação!), pela deficiência na
atividade enzimática em biópsia muscular e por estudos moleculares que avaliam
variações no gene da enzima miofosforilase.

• Tipo VI: causada por uma mutação no cromossomo 14, traduzindo deficientemente a
enzima glicogênio fosforilase hepática. Essa enzima está presente também em células
musculares e nervosas, porém a sua tradução nesses locais é decorrente de mutações
nos cromossomos 11 e 20, respectivamente. A degradação do glicogênio, portanto, é
deficiente, e ocorre acúmulo no fígado. Ocorre hepatomegalia, hipoglicemia leve,
fraqueza muscular, hemorragia nasal e retardo no crescimento.

• Tipo VII: ocorre por defeito da enzima PFK-1 no fígado e nos eritrócitos. Com isso, há
bloqueio da via glicolítica, ocasionando o acúmulo de glicose e, consequentemente, o
excesso da formação de glicogênio. Os sintomas são heterogêneos, como hemólise,
morte durante a infância e intolerância ao exercício. Os sintomas são muito semelhantes
a do Tipo V, e o diagnóstico diferencial entre elas é feito pela histoquímica da biópsia do
músculo.

• Tipo VIII: caracteriza-se pela ineficiência funcional da enzima fosforilase-cinase b, que


participa do metabolismo do glicogênio, a partir da regulação da enzima glicogênio
fosforilase. A fosforilase-cinase b, conforme visto anteriormente, por ação do glucagon
e da adrenalina, fosforila a glicogênio fosforilase (torna-se glicogênio fosforilase a),
tornando-a mais ativa. Portanto, há redução da glicogenólise. Manifesta-se ainda na
infância geralmente como uma condição benigna, desenvolvendo hepatomegalia,
retardo do crescimento e níveis aumentados de lipídeos e aminotransferase, muitas
vezes com completa resolução dos sintomas na puberdade. Uma minoria dos pacientes
apresenta um fenótipo mais grave, com hipoglicemia de jejum sintomático e histologia
hepática anormal que pode progredir para cirrose.

• Tipo IX: doença recessiva ligada ao cromossomo X e, por isso, mais comum em homens.
Caracterizada pela deficiência da enzima fosforilase-cinase hepática ou muscular, que
participam da glicogenólise. Em relação à enzima hepática, mais comum, os sintomas
são aparecimento precoce de hepatomegalia, atraso de crescimento e,
frequentemente, cetose e hipoglicemia em jejum. Por outro lado, as manifestações
clínicas relacionadas a enzima muscular são intolerância ao exercício, mialgia, cãibras
musculares, mioglobinúria e fraqueza muscular progressiva. Análises da atividade da
enzima possibilitam o diagnóstico laboratorial.

• Tipo X: ocorre devido à deficiência da enzima fosfoglicerato mutase, em que os


principais estudos relacionados evidenciam um acúmulo de glicogênio nos músculos dos
pacientes. Uma característica marcante dessa patologia é a associação comum com
agregados tubulares provenientes do retículo sarcoplasmático, perceptíveis em biopsias
musculares que, apesar de ser uma alteração patológica inespecífica, não está presente
nas outras glicogenoses. Neste caso, os principais sintomas são a intolerância aos
exercícios, cãibras, mioglobinúria e fraqueza.

• Tipo XI: considerada autossômica recessiva, em que apresenta 34 mutações no gene


GLUT2 e que o defeito enzimático subjacente ainda é desconhecido. Os sintomas dessa
patologia são hepatomegalia, acidose tubular renal proximal e retardo de crescimento
acentuado, havendo um acúmulo de glicogênio no fígado e nos rins. Diabetes neonatal
ou cetoacidose diabética em crianças tenras podem ser as primeiras manifestações
clínicas.
• Tipo XII: ocorre por deficiência da atividade da enzima aldolase que ocorre nos músculos
esqueléticos e eritrócitos. Com isso, a via glicolítica fica prejudicada, ocorrendo acúmulo
de glicogênio. Os sintomas característicos da doença são intolerância ao exercício e
fraqueza após doença febril. Ocorre anemia hemolítica. Ocorre elevações da creatina
quinase, aspartato aminotransferase, alanina aminotransferase, lactato desidrogenase
e bilirrubina; diminuição na concentração de hemoglobina e hematócrito.

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