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Revista de Psicologia

Manifestações psicológicas de familiares


com pacientes em morte encefálica
Revista
de Psicologia Psychological manifestations of brain death patient´s relatives.
Juliana Carneiro Torres 1 Ana Maria Vieira Lage 2

Resumo
Este estudo originou-se a partir de uma monografia aprovada para graduação de curso de psicologia. Apresenta como objetivo
compreender as manifestações psicológicas de familiares com paciente em Morte Encefálica (ME), identificando as possíveis
intervenções psicológicas nas diferentes fases vivenciadas: notícia do quadro clínico, verificação de ME, diagnóstico de ME e processo
de doação de órgãos. Trata-se de uma revisão bibliográfica de artigos científicos referentes aos últimos dez anos, utilizando como
referencial teórico, para análise das manifestações psicológicas, literatura acerca do Luto e da Abordagem Sistêmica Familiar,
além de legislação referente ao tema. Nos resultados, foram identificados que os familiares apresentam vivências peculiares que
podem repercutir no processo de luto, como a preocupação com o prognóstico do paciente na internação, a incompreensão da
possibilidade e do diagnóstico da ME, podendo apresentar uma experiência de perda ambígua e dificuldade de vivência de reações
de luto na abordagem para doação de órgãos, devido o tempo restrito para decisão. Dessa forma, conclui-se que é imprescindível o
acompanhamento psicológico aos familiares do paciente em Morte Encefálica durante todo o processo.

Palavras-chave: Morte Encefálica, Manifestações Psicológicas, Luto, Doação de órgãos.

Abstract
This study originated from a monograph approved for undergraduate psychology course. Features aimed at understanding
the psychological manifestations of Brain Death (BD) patient´s relatives, identifying the possible psychological interventions
at different stages experienced: news of the clinical, check BD, diagnosis of brain death, process of organ donation. This is a
literature review based scientific papers in the last ten years, using as a theoretical framework for analysis of psychological
manifestations, literature about Grief and Family Systems Approach, and legislation on the topic. In the results, was identified
that family members have unique experiences that can affect the grieving process, as concern about patient outcomes in
hospital, misunderstandings and the possibility of a diagnosis of BD may present an experience of ambiguous loss, and difficulty
experiencing grief reactions in the approach to organ donation, due to the restricted time decision. Thus, it is concluded
that it is essential to psychological counseling to family members of the patient in Brain Death during the whole process.

Keywords: Brain Death, Psychological manifestations, Mourning, Organ donation

Recebido em 14 de setembro de 2012


Aprovado em 10 de maio de 2013
Publicado em 15 de julho de 2013.

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1. INTRODUÇÃO fálico e corresponde à morte do indivíduo.


O paciente em ME pode manter, por certo
período de tempo e exclusivamente devido
Durante a história do homem, o con-
ao suporte tecnológico, suas funções cardí-
ceito de morte foi modificando, a partir do
acas e respiratórias, porém é um estado ir-
contexto histórico e cultural. De acordo
reversível, em que a assistolia ocorrerá em
com Morin (1970), o sono é a primeira apa-
todos os casos (Lamb, 2001).
rência empírica de morte.
O Tronco encefálico (TE), na sua
O trabalho em questão retrata a Mor-
parte superior, contém Sistema Ativador
te Encefálica (ME), a morte, em que os bati-
Reticular Ascendente (SARA), centro res-
mentos cardíacos e a respiração estão pre-
ponsável pela geração da capacidade de
sentes, por algum período de tempo, exclu-
consciência. A parte inferior do tronco en-
sivamente devido ao suporte tecnológico, e
cefálico, por sua vez, possui mecanismos
que, durante a evolução de seu conceito e
que controlam o centro respiratório. Le-
critérios, foi comparada também ao sono.
sões nas áreas críticas da porção superior
Os familiares de pacientes em Mor- do tronco encefálico implicam em perda
te Encefálica podem apresentar algumas irreversível da capacidade de gerar a cons-
vivências peculiares que podem repercutir ciência, já lesões em áreas críticas da por-
no processo de luto. Diante disso, alguns ção inferior do TE estão associados com
questionamentos são válidos: como é para a a permanente cessação da capacidade de
família estar diante de uma morte, na qual o respirar.
corpo está quente, o coração batendo e res-
pirando? Qual o significado da ME para a De acordo com Lamb (2001), o con-
família? Será que ela compreende que o pa- ceito de morte como “perda irreversível
ciente morreu? Diante de uma morte tão atí- das funções do organismo como um todo”
pica como esta, como é para a família, logo (p.57), exige a perda das características da
em seguida à notícia da ME, iniciar a toma- vida integrada: a capacidade de respirar
da de decisão sobre a doação de órgãos? espontaneamente e a capacidade de gerar
O trabalho em questão apresenta consciência.
como objetivo geral compreender as ma- O critério para este conceito de mor-
nifestações psicológicas de familiares com te é a cessação irreversível da função do en-
pacientes em Morte Encefálica em cada fase céfalo como um todo integrado. O encéfalo
vivenciada: 1) notícia do quadro clínico; 2) é o sistema crítico do organismo como um
verificação de Morte Encefálica; 3) diagnós- todo, e o tronco encefálico, por sua vez, é o
tico de ME; 4) abordagem para doação de sistema crítico do encéfalo. Entende-se por
órgãos. Como objetivos específicos: identifi- sistema crítico aquilo que cuja perda acar-
car e analisar as reações de perda e de luto reta na morte do organismo como um todo.
de familiares em cada fase e compreender (Lamb, 2001).
as vivências peculiares, que podem reper- Os mecanismos básicos que podem
cutir no processo de luto, identificando as levar à Morte Encefálica são lesões intra-
possíveis intervenções psicológicas nesses cranianas supratentorial e infratentorial
momentos. e parada cardíaca com duração suficiente
para acarretar hipóxia grave. Esses meca-
nismos ocasionam um aumento da pressão
O conceito de Morte Encefálica
intracraniana, de forma que a circulação
A Morte Encefálica consiste na per- cerebral é bloqueada (Sardinha & Dantas
da irreversível das funções do Tronco Ence- Filho, 2002).

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É importante definir e caracterizar a morte do coração ou dos pulmões;


Coma e Morte Cerebral, a fim de evitar con- a cessação das funções cardiorrespi-
fusões, como apontado por Lamb (2001), ratórias é a causa, não um estado,
no uso de terminologias inapropriadas uti- de morte (Lamb, 2001, p. 86).
lizadas como similares à Morte Encefálica. A perda de batimentos cardíacos e
O estado de coma caracteriza-se por de circulação por 15 a 20 minutos pode
uma alteração no estado da consciência e ser letal, pois é suficiente para que certas
da capacidade de despertar. O paciente co- áreas críticas do encéfalo morram. A Morte
Encefálica, dessa forma, segue inevitavel-
matoso não apresenta abertura ocular, não
mente à cessação permanente do coração e
fala e não possui atividade motora, reage
dos pulmões.
apenas por reflexo. Normalmente, está as-
sociado à lesão ou disfunção no Sistema
Ativador Reticular Ascendente ou lesão bi-
lateral (Leal, Vieira & Cisne in Guimarães, Os critérios de Morte Encefálica
Orlando & Falcão, 2008). No Brasil, os critérios para o diagnós-
A evolução do paciente em coma pode tico de Morte Encefálica foram inicialmen-
ser em direção à recuperação mais comple- te oficializados na Resolução No. 1.480 do
ta da consciência, mas também pode ser Conselho Federal de Medicina, em 1997. Os
em direção ao Estado Vegetativo, ao Estado critérios podem ser assim condensados: a)
a morte encefálica deverá ser consequência
Minimamente Consciente ou ainda à Morte
do processo irreversível e de causa conhe-
Encefálica.
cida; b) a morte encefálica será caracteriza-
A Morte Cerebral (cerebral death), da através da realização de exames clínicos
para Koren (1978) citado por Lamb (2001), (exames neurológicos) e complementares
corresponde à destruição irreversível de durante intervalos de tempo variáveis, de
ambos os hemisférios cerebrais, inclusi- acordo com determinadas faixas etárias; c)
ve cérebro, córtex e estruturas profundas. os elementos do exame neurológico a serem
Curbelo e Dias, ambos tradutores de David observados para a constatação da Morte En-
Lamb para América Latina, consideram que cefálica são coma aperceptivo, pupilas fixas
o termo correto, nesse caso, deve ser “ne- e arreativas, ausência de reflexo córneo-pal-
crose do cérebro, toda vez que a morte não pebral, ausência de reflexos óculocefálicos,
ausência de respostas às provas calóricas,
é compulsória quando acontece a necrose
ausência de reflexo de tosse e apnéia; d) Os
das estruturas antes mencionadas, que é
exames complementares a serem observa-
o caso dos estados vegetativos persistentes dos deverão demonstrar, de forma inequívo-
(EVP)” (Lamb, 2001, p. 30). ca, ausência de atividade elétrica cerebral,
Mostra-se necessário elucidar o con- ausência de atividade metabólica cerebral
ceito de morte como ME em contraposição e ausência de perfusão sanguínea cerebral
ao conceito tradicional de morte, a morte (Brasil, 1997a).
sistêmica. A morte sistêmica é a morte de-
finida pela cessação irreversível da função
cardiorrespiratória.
Para Lamb (2001), parada cardior- 2. MÉTODO
respiratória é um mecanismo causador da
Morte Encefálica, pois
Este trabalho trata-se de uma revi-
é a falência do coração e/ou pulmões são bibliográfica sobre o tema: manifesta-
que evita que o oxigênio alcance o en- ções psicológicas de familiares com pacien-
céfalo, de forma que a morte não é tes em Morte Encefálica.

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O objeto de estudo deste trabalho foi o Foram utilizados como referencial


levantamento de produção científica existen- teórico a literatura acerca do Luto (Klüber-
te sobre a temática em periódicos indexados. Ross, 1997; Morin, 1970; Parkes, 1998;
A análise das manifestações psicológicas Worden, 1998) e acerca da Abordagem Sis-
identificadas foi realizada a partir do referen- têmica Familiar (Walsh & Mcgoldrick, 1998)
cial teórico acerca do Luto e da Abordagem para análise das manifestações psicológi-
Sistêmica Familiar. Um resgate da legislação cas identificadas na pesquisa bibliográfica.
sobre o tema também foi utilizado.
Foi realizado um resgate da legislação
A busca de artigos ocorreu no perío- (CFM n°. 1.480/97; Decreto n°. 2.268/97)
do de setembro de 2011 a março de 2012, referente à morte encefálica, com a finali-
através da base de dados Scielo Brasil e dade de complementar as informações re-
Pepsic. A pesquisa foi realizada pela com- lativas ao tema.
binação de termos morte encefálica e famí-
lia. O termo morte encefálica foi utilizado
também de forma isolada, com o objetivo
de ampliar a busca, já que o número de re- 3. MANIFESTAÇÕES PSICOLÓGICAS DE
ferências encontradas com a combinação FAMILIARES COM PACIENTE EM MORTE
dos termos foi restrito. ENCEFÁLICA
Foram selecionados artigos científi-
cos que contribuíram para o alcance dos
objetivos propostos neste trabalho. Deu-se A partir dos estudos teóricos da lite-
preferência por publicações mais atuais, ratura pesquisada (Bousso, 2008; Cinque
referentes aos últimos dez anos (2002 a & Bianchi, 2010; Dell Agnollo, Belentani,
2012), entretanto publicações mais antigas Zurita, Coimbra & Marcon, 2009; Knihs,
também foram utilizadas, conforme sua re- Roza & Schirmer, 2010; Quintana & Ar-
levância foi percebida como significativa. pini, 2009; Rech & Rodrigues Filho, 2007;
Sadala, 2001; Santos & Massarollo, 2005)
O material pesquisado foi inicialmente
selecionado, através da leitura dos resumos percebeu-se que os familiares com pacien-
dos artigos, considerando os critérios de in- tes em Morte Encefálica apresentam algu-
clusão. Posteriormente, foi realizada a bus- mas vivências peculiares.
ca dos artigos completos. No Scielo, através Neste trabalho, essas vivências es-
da utilização do unitermo Morte Encefálica tão divididas em fases: 1) notícia do quadro
foram encontrados 21 artigos científicos. No clínico, que irá evoluir para morte encefá-
Pepsic, através da combinação dos termos lica; 2) verificação de ME, com o início dos
Morte Encefálica e Família foram encontra- exames do Termo de Declaração de Morte
dos 08 artigos científicos. Após a leitura dos Encefálica; 3) diagnóstico de ME e 4) poste-
artigos, 10 fizeram parte da amostra, por rior abordagem para doação de órgãos. Em
atenderem aos critérios de seleção. cada uma dessas fases, é possível identifi-
car as possíveis manifestações psicológicas
Destes, 02 foram localizados no
dos familiares, assim como as intervenções
Pepsic (Lisbôa & Crepaldi, 2003; Quinta-
psicológicas.
na & Arpini, 2009), 08 foram encontrados
no Scielo (Bousso, 2008; Cinque & Bian- As manifestações psicológicas refe-
chi, 2010; Dell Agnollo, Belentani, Zurita, rem-se às reações de perda, às vivências
Coimbra & Marcon, 2009; Knihs, Roza & peculiares, que podem repercutir no pro-
Schirmer, 2010; Rech & Rodrigues Filho, cesso de luto e às possíveis fantasias apre-
2007; Sadala, 2001; Santos & Massarollo, sentadas durante o processo de ter um pa-
2005; Silva, Silva & Ramos, 2010). ciente em Morte Encefálica.

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3.1 - Notícia do quadro clínico as informações acerca do quadro clínico


são importantes para o enfrentamento e a
A experiência da família inicia-se com
adaptação da perda.
a “vivência do impacto da tragédia” (Bous-
so, 2008, p. 49), caracterizada pelo anún- A perda da sensação de controle pode
cio do motivo de internação do paciente. ser uma experiência extremamente
Nesse momento, a família fica preocupada debilitante para a família, levando
com o prognóstico e com a possibilidade de a um comportamento frenético ou
morte. De forma que o conhecimento das imobilizado. Neste período de incer-
informações do que causou o agravamento teza intensa, as famílias precisam
do quadro clínico contribuem para que a desesperadamente restabelecer a
família encontre recursos para enfrentar a crença (mesmo ilusória) de que têm
situação. algum controle da situação. Ajudá-
Informações claras acerca do qua- las a priorizar tarefas e tomar ações
dro clínico que poderá evoluir para a ME diretas, tais como reunir informa-
são, portanto, imprescindíveis para asse- ções sobre a doença e recursos da
gurar uma melhor preparação da família comunidade, é especialmente útil
nas fases posteriores. Pois, de acordo com para auxiliá-las a restabelecerem
o Bousso (2008), ao apresentar o processo sua sensação de domínio. (Rolland,
de decisão familiar na doação de órgãos de 1998 in Walsh & Mcgoldrick, 1998,
um filho: p. 172).

O desconhecimento dos detalhes Dessa forma, nessa fase inicial, o psi-


dos momentos que antecederam a cólogo pode auxiliar os familiares a reunir
tragédia ou do que causou o agra- informações da evolução do quadro clínico,
vamento do quadro clínico faz com ajudando-os a elaborá-las. Entretanto, de-
que a família se perceba sem re- ve-se respeitar a forma como cada familiar
cursos para entender o que levou lida com a situação, pois como apresenta
a criança a esta situação e passa a Bousso (2008):
viver a experiência tendo um vazio
na história da tragédia (p. 49). quando a família considera que é
mais seguro não saber de nada, ela
O conhecimento de informações do opta por permanecer com a incer-
quadro clínico, assim, pode facilitar a acei- teza, negando a realidade. Por ou-
tação do diagnóstico de ME e a tomada de tro lado, quando avalia a incerteza
decisão sobre a doação de órgãos, pois, “a como algo insuportável na experi-
família fica chocada ao receber a informa- ência, ela utiliza-se de estratégias a
ção do diagnóstico de ME quando não há fim de reduzi-la. (p.52).
esclarecimento prévio do quadro clínico.”
(Knihs col., 2010, p. 1321). E, para Bousso Algumas famílias, assim, ao tomar
(2008), a compreensão das mudanças clí- conhecimento sobre a notícia do quadro
nicas “ é a condição que determina a dis- clínico, podem apresentar uma negação
posição da família em considerar, ou não, a inicial. De acordo com Klüber-Ross (1997),
doação de órgãos.” (p. 49). a negação é uma defesa temporária que
Diante do adoecimento de um ente logo é substituída por uma aceitação par-
querido, a família pode se deparar com in- cial. Com o tempo, a família pode se recu-
certezas relacionadas, muitas vezes, à falta perar, mobilizando outros recursos menos
de controle da situação. Nesse momento, radicais.

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3.2 – Verificação de Morte Encefálica certo período de tempo, porém, logo em se-
guida, pode apresentar a necessidade de
Após a notícia da evolução do quadro
acreditar em uma recuperação.
clínico, a família vivencia a fase de verifica-
ção de ME que corresponde ao início dos Klüber-Ross (1997) expõe que a úni-
exames clínicos do Termo de Declaração ca reação que persiste durante todos os es-
de Morte Encefálica, que são fundamentais tágios é a esperança. Trata-se, nesse mo-
para a constatação da ME. mento, da esperança de que a morte não se
concretize, o que pode dificultar a família a
O médico deve comunicar à família
se preparar para a perda.
que os exames clínicos para a Morte Ence-
fálica serão iniciados, conforme art. 16 do A compreensão da possibilidade
Decreto 2.268/97. de ME pode facilitar as vivências das famí-
lias nas fases seguintes. (Cinque & Bian-
Nesse momento, os familiares depa-
chi, 2010; Knhis col., 2010; Santos & Mas-
ram-se com a possibilidade de Morte En-
sarollo, 2005).
cefálica do paciente. De acordo com Dell
Agnollo col. (2009), a família, geralmente, No que se refere à vivência da família
é exposta a essa possibilidade de forma na abordagem para doação de órgãos, San-
súbita e sem entender o que estão viven- tos e Massarollo (2005) afirmam: “A pos-
ciando. sibilidade de acompanhar os exames para
tal diagnóstico gera segurança de que a ex-
Muitas vezes, a não compreensão da
tração dos órgãos somente ocorre após a
possibilidade de Morte Encefálica relacio-
confirmação da morte.” (p. 386).
na-se ao desconhecimento sobre o que le-
vou ao agravamento do quadro, por isso a Além disso, a comunicação sobre o
importância de a família reunir informações início dos exames clínicos poderá permitir
acerca da evolução da condição clínica. aos familiares uma preparação para o diag-
nóstico de Morte Encefálica e, portanto,
Além disso, Knihs col. (2010), ao
para a morte do indivíduo. Tal como apre-
apresentarem estratégias de cuidado à fa-
sentam Santos e Massarollo (2005):
mília no momento da perda, da morte ence-
fálica e da doação de órgãos, expõem: A família fica chocada ao receber a
informação do diagnóstico de morte
No momento em que ocorrer a aber- encefálica quando não há esclareci-
tura do protocolo de ME, a família mento prévio sobre a possibilidade
deve ser informada imediatamente. de ocorrência dessa situação, já a
O profissional deve procurar sa- família que é informada sobre o iní-
ber o que ela sabe sobre ME e após cio dos exames para confirmação do
informá-la, deverá colocar-se à dis- diagnóstico tem a possibilidade de
posição para dúvidas que ela ainda preparar-se para a morte do pacien-
possa ter. (p. 1322). te. (p. 385).

Assim, o médico deve comunicar à Assim, nesse período prévio ao


diagnóstico de ME e, consequentemente, à
família sobre a possibilidade de ME, ofere-
notícia de morte do indivíduo, os familiares
cendo informações sobre o significado da
podem realizar um luto antecipatório. Esse
Morte Encefálica, de forma a facilitar com-
termo corresponde ao luto que ocorre antes
preensão do termo pela família desde já. da perda efetiva, pois algumas mortes ocor-
No entanto, a família, nessa fase, rem com aviso prévio. Durante o período da
compreendendo o significado da ME, pode antecipação da morte, as tarefas do luto po-
considerar a possibilidade de morte, por dem ser iniciadas. (Worden, 1998).

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Existem evidências de que “pessoas Os autores Lisbôa e Crepaldi (2003)


que tiveram aviso prévio de morte estavam apresentam algumas possibilidades de in-
melhores 13 meses depois que as pessoas tervenção psicológica em familiares de pa-
que não receberam o aviso prévio” (Parkes, cientes com prognóstico reservado.
1975 citado por Worden, 1998, p. 129),
O psicólogo pode favorecer os fami-
nesse sentido, o luto antecipatório apre-
liares a falar sobre morte e sobre o processo
senta um caráter saudável para o processo
de despedida, auxiliando-os na expressão
de luto.
de sentimentos com o devido apoio emo-
No momento antecedente à consta- cional. Além disso, a orientação psicológica
tação da ME, o profissional de psicologia aos familiares para os rituais são funda-
pode proporcionar a possibilidade de a fa- mentais, mas deve-se respeitar a vontade,
mília realizar rituais de despedida no con- os limites e a forma pessoal como cada fa-
texto hospitalar. De acordo com Lisbôa e miliar lida com a situação.
Crepaldi (2003), o ritual de despedida per-
Assim, o profissional de psicologia
mite:
pode possibilitar a realização de rituais de
aproximar a família da pessoa que despedida pelos familiares de pacientes em
está morrendo, resolver crises de Morte Encefálica na fase correspondente
vida, melhorar o funcionamen- à verificação de ME, pois “pode ajudar as
to emocional da família, dissolver famílias na elaboração do luto” (Lisbôa &
sentimentos de culpa e remorso, Crepaldi, 2003, p. 107), na medida em que
e prestar uma última homenagem proporciona a possibilidade de preparação
ao familiar que está morrendo. (p. dos familiares para a morte do paciente.
104).
No entanto, os rituais realizados
As despedidas dos familiares em re- pelos familiares do paciente em ME pode
lação ao paciente que está morrendo po- apresentar algumas limitações, tais como o
dem ocorrer pela comunicação verbal, atra- tempo restrito para a realização, decorrente
vés de pedidos de perdão e agradecimentos, dos exames clínicos para o diagnóstico de
ou pela comunicação não-verbal através ME, sobretudo nos casos de potencial doa-
de gestos e atitudes. Outras formas são as dor. Além disso, os benefícios são restritos
orações e o acompanhamento do paciente aos familiares, pois não há reciprocidade
pelos familiares até o momento de sua mor- na comunicação interpessoal, uma vez que
te (Lisbôa & Crepaldi, 2003). o paciente está supostamente em ME.
Os autores mencionam pré-requisi- Essas limitações e os pré-requisitos
tos para a realização de rituais de despe- devem ser considerados pelo psicólogo na
dida: os familiares devem ter a consciên- disponibilização da possibilidade de reali-
cia da possibilidade de morte do paciente, zação de rituais de despedida pelos fami-
assim como sua aceitação, além disso, é liares do paciente em verificação de Morte
importante que eles estejam vivenciando o Encefálica.
luto antecipatório.
É importante a avaliação pelo psicó-
logo ainda de questões: quem são os fami- 3.3 – Diagnóstico de Morte Encefálica
liares com maior vínculo com o paciente, os Após a conclusão dos exames clíni-
que possuem alguma relação de dependên- cos realizados no paciente e confirmada a
cia ou de ambivalência, quem tem questões ME, a equipe de saúde deverá comunicar
mal resolvidas, o que gostariam de dizer ou aos responsáveis legais do paciente e noti-
fazer algo ainda pelo paciente. ficar à Central de Notificação, Captação e

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Distribuição de Órgãos para Transplante, tados compararam a Morte Encefálica com


conforme Art 9º. da Lei nº. 1.480, que dis- o coma. Para os entrevistados, o que dife-
põe sobre a caracterização da Morte Ence- rencia a ME do coma é a irreversibilidade:
fálica. no coma, há reversão do quadro, já na ME
isso é impossível, porém, a irreversibilida-
Pesquisas apontam que os familia-
de da ME era atribuída ao quadro clínico
res, ao serem comunicados sobre o diag-
do paciente, ou seja, à impossibilidade de
nóstico de Morte Encefálica do paciente,
o paciente voltar a recuperar a consciência,
apresentam dificuldade de compreensão da
mas não em relação à morte.
ME, o que está relacionada ao significado
prévio da ME pelos familiares e a comuni- Dessa forma, percebe-se que a não
cação inadequada por parte da equipe de compreensão do significado da Morte Ence-
saúde (Bousso, 2008; Cinque & Bianchi, fálica pode advir do conceito tradicional de
2010; Dell Agnollo col., 2009; Knihs col., morte, a parada cardiorrespiratória (Quin-
2010; Sadala, 2001; Santos & Massarollo, tana & Arpini, 2009; Santos & Massarollo,
2005). 2005).
Quintana e Arpini (2009), na pesqui- Como apresenta Dell Agnollo col.
sa realizada sobre as representações da do- (2009), “é inquestionável que os familiares
ação de órgãos, apresentaram os significa- estejam diante de uma morte diferente, ou
dos de Morte Encefálica da população leiga seja, uma morte em que o coração continua
que não passou pela experiência de ter sido batendo e os pulmões continuam inflados e
solicitada a doar órgãos de um familiar fa- esvaziados em ritmo cadenciado” (p. 377).
lecido. No grupo estudado dessa pesquisa,
Percebe-se que a aparência externa
de forma consensual, a morte foi identifi-
do paciente em ME pode acarretar pensa-
cada pela morte clínica, ou seja, a parada
mentos conflitantes, pois “a condição do
cardiorrespiratória. corpo (quente e com o coração batendo),
O grupo pesquisado ainda concebeu mantido artificialmente na UTI, contrasta-
a Morte Encefálica como a morte do cére- se com a idéia do que seja um cadáver. Na
bro, que acarretaria numa “zona limítrofe fantasia dos familiares, de alguma forma, o
entre a vida e a morte” (Quintana & Arpi- doente está ‘vivo’” (Sadala, 2001, p. 146).
ni, 2009, p.97). De acordo com essa con- Worden (1998) retrata a percepção
cepção, o paciente em ME está condenado dos familiares diante da deteriorização do
a morrer, ou seja, o paciente vai evoluir a corpo de alguém que está morrendo de
óbito. A justificativa para o significado da uma doença progressiva. O autor ressalta
ME dos entrevistados é que, já que o cére- que a deteriorização e a declinação de uma
bro comanda todos os órgãos, com a morte pessoa que está morrendo facilitam a cons-
desse órgão, todos os outros irão parar de ciência da morte do outro, assim como a
funcionar. Portanto, a morte ocorrerá com “consciência da morte pessoal” (p. 129).
a parada cardiorrespiratória.
No paciente em ME, entretanto, a
Esse significado da ME correspon- percepção da deteriorização do corpo diante
dente à morte do cérebro também foi iden- da morte não é evidente. Percebe-se, dessa
tificado na pesquisa de Sadala (2001), que forma, uma dificuldade apresentada pela
investigou a perspectiva de 18 familiares de família no reconhecimento da morte.
doadores de órgãos na experiência de con-
Worden (1998) fala que as circuns-
sentimento da doação para transplante.
tâncias da perda determinam a força e a
Ainda na pesquisa realizada por evolução das reações de luto. Existem al-
Quintana e Arpini (2009), alguns entrevis- guns fatores circunstanciais específicos

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que podem favorecer a um luto complicado, situações: oferecer um ambiente calmo e


ou seja, que podem impedir ou dificultar a tranquilo para que os familiares apresen-
conclusão de um luto. Um desses é o que o tem suas percepções sobre a perda e o sen-
autor chama de perda incerta. tido que ela tem para eles; disponibilizar
informações clínicas sobre a perda, além de
A perda incerta ocorre quando o fa-
psicossociais, auxiliando a família na iden-
miliar não sabe se seu ente querido está vivo
tificação de fontes de apoio.
ou morto. O autor apresenta como exemplo
os desaparecidos em guerra. Nesses casos, Como já foi apresentado, a dificul-
as mulheres dos soldados mantêm a crença dade de compreensão da ME está também
de que seus maridos estão vivos e só serão relacionada com a comunicação inadequa-
capazes de resolver o luto com a certeza de da realizada pela equipe de saúde aos fa-
que eles estão mortos. miliares (Bousso, 2008; Cinque & Bianchi,
2010; Dell Agnollo col., 2009; Knihs col.,
Boss in Walsh e McGoldrick (1998)
2010). O uso de terminologias impróprias
retrata a perda ambígua que resulta da
como “o ventilador mantém o paciente vivo”
ambiguidade de fronteiras. A família não
(Dell Agnollo col., 2009, p. 381) dificulta o
sabe quem está dentro e fora do sistema,
entendimento pela família de que a ME cor-
de forma que não consegue se organizar,
responde à morte do indivíduo.
pois o processo de reestruturação do siste-
ma é bloqueado. Para os autores: “nota-se que o pa-
pel esclarecedor e fortalecedor de dúvidas
A perda ambígua pode se apresentar
que deveria ser preenchido pelo profissio-
de duas formas: a primeira ocorre quando
nal médico, por vezes é realizado de forma
os fatos que a cercam são incompletos ou
rápida, como se simplesmente pela fala do
pouco claros, como no caso dos desapare-
termo ME aos familiares já deveriam estar
cidos em guerra; a segunda ocorre quando
os familiares não têm um diagnóstico pre- esclarecidos”. (Dell Agnollo col., 2009, p.
ciso ou que sabem que seu ente vai morrer, 381).
mas não sabem quando, como no caso das Além disso, a indisponibilidade de
doenças crônicas. informação à família, assim como a própria
Na Morte Encefálica, os familiares circunstância da ME, a aparência externa
podem não saber se o paciente está real- do paciente similar a um organismo vivo,
mente morto ou vivo. O aspecto do corpo influenciam na esperança da família de re-
divergente ao de um cadáver e as funções versão do quadro. Tal como apresentada
cardíacas e respiratórias em atividade po- por Cinque e Bianchi (2010):
dem ser fatos ambíguos inerentes à perda. A falta de informação faz com que
Esses fatos ambíguos podem acon- a família tenha esperança na recu-
tecer por um breve período de tempo, até peração do quadro clínico e o fato
ocorrer a parada cardíaca, quando, na do corpo estar quente e do coração
concepção de alguns familiares, o paciente estar batendo, dificulta compreen-
estará realmente morto. No entanto, ape- são da ME, sendo indício de que a
sar do período breve de ambiguidade, é ne- pessoa possa estar viva mesmo com
cessário que a família receba suporte para as comprovações apresentadas (p.
lidar com as circunstâncias ambíguas da 1000).
perda no momento de incerteza.
Cinque e Biachi (2010) pesquisaram
Boss in Walsh e McGoldrick (1998) sobre os estressores vivenciados pelos fa-
apresenta algumas estratégias de interven- miliares no processo de doação de órgãos
ção que podem auxiliar a família nessas e tecidos para transplante. Os estressores

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são: 1) familiares mostraram-se insatisfei- estivesse desligando os aparelhos


tos com o atendimento prestado à família e se autorizar a doação. (Knihs col.,
ao doador (31,25%), 2) receberam a notícia 2010, p. 1321).
da ME de forma intranquila (62,50%), 3) in-
Dessa forma, a indisponibilidade de
formaram o medo e a desconfiança de erro
informações à família sobre a ME pode in-
no diagnóstico da ME e a sensação de assi-
cidir em fantasias nos familiares, como a
nar a morte do familiar (18,75%), 4) confli-
crença de comercialização de órgãos pelos
tos durante a tomada de decisão (31,25 %),
profissionais de saúde, o que repercute na
5) demora na liberação do corpo (37,50%)
relação de confiança tão primordial no pro-
e não conhecer os receptores dos órgãos
cesso vivenciado pela família.
(12,50%).
Entretanto, na pesquisa realizada
A notícia da ME de forma intran-
por Silva, Silva e Ramos (2010) com médi-
quila (62,50 %) corresponde, na pesquisa
cos e enfermeiros que atuavam nas UTI´s
em questão, a uma das fontes de estresse
das instituições hospitalares selecionadas
mais frequente vivenciada pelos familiares
e que possuía como objetivo verificar a fa-
no processo de doação de órgãos e tecidos
miliaridade de intensivistas com relação ao
para transplantes, o que está relacionado à
diagnóstico de Morte Encefálica, foi identifi-
falta de esclarecimentos sobre o estado do
cado um alto grau de desconhecimento dos
paciente ou a dúvidas e incertezas quanto
profissionais entrevistados sobre a avalia-
ao diagnóstico.
ção e a constatação de Morte Encefálica.
A defasagem na comunicação do
Assim, percebe-se que o diagnóstico
diagnóstico de ME à família está associada
de ME precisa ser seguramente entendido
tanto à dificuldade de acesso às informa-
e conhecido pelos profissionais, de forma a
ções, quanto à sua baixa qualidade, produ-
proporcionar uma comunicação adequada,
zindo uma compreensão inadequada ou não
facilitando a compreensão por parte da fa-
compreensão da ME (Knihs col., 2010).
mília e favorecendo, por sua vez, uma rela-
Estudos realizados (Bousso, 2008; ção de confiança entre equipe e familiares.
Knihs col., 2010) apontaram para a des-
Knihs col. (2010) sugerem estraté-
crença dos familiares em relação ao conhe-
gias de cuidados à família no momento da
cimento médico sobre os critérios de Morte
perda, Morte Encefálica e doação de órgãos.
Encefálica. Percebeu-se que tal descrença
No que se refere à comunicação do diag-
parece estar vinculada a medo da comer- nóstico de ME à família, são apresentadas
cialização de órgãos, o que repercute na re- as seguintes estratégias:
cusa das famílias para doação de órgãos.
Por meio da interação junto à famí-
Alguns estudos revelaram a des- lia e em local adequado, a ME deve
crença das famílias em relação à ca- ser comunicada por um médico.
pacidade dos médicos de realizarem Após a comunicação da má notícia,
adequadamente o diagnóstico de a família deve ser acolhida, cuida-
ME. Muitas delas externaram pre- da, ouvida, enfim, deve-se partilhar
ocupação referente à possibilidade esse momento com a família e esta-
de morte “provocada” ou “adiada”, belecer a relação de ajuda. O diag-
com o único intuito de obter órgãos nóstico deve ser dado tendo todos
para transplante. A ME é compre- os exames em mãos, e que o médi-
endida por muitas famílias como a co deve utilizar linguagem simples,
morte do cérebro e não do restante respeitando o conhecimento empí-
do corpo. A família sente como se rico dos familiares. A ME deve ser

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desmitificada (através de auxílio de o tempo é importante para a família “acos-


desenhos, imagens, figuras e exa- tumar-se com a idéia da morte do paciente”
mes) favorecendo, assim, a compre- (Santos & Massarollo, 2005, p. 385) ou “as-
ensão da morte de seu familiar. (p. similar a morte” (Knihs col., 2010, p.1321),
1322). o que indica a necessidade de aceitação da
perda para uma tomada de decisão.
Assim, é importante uma preparação
adequada dos médicos para lidarem com Para Parkes (1996), “o luto é um pro-
os familiares que possuem um paciente em cesso de aperceber-se, de tornar real o fato
Morte Encefálica, comunicando o diagnós- da perda” (p. 199), de forma que esse pro-
tico adequadamente. cesso requer tempo, e uma confrontação
prematura, ou seja, um teste de realidade
forçado em um período inicial pode acarre-
3.4 – Abordagem para doação de órgãos tar sérias reações, como pânico.
Após a comunicação da Morte En- Além disso, ainda de acordo com o
cefálica, inicia-se a abordagem familiar. autor, o trabalho de luto é um processo de
Nesse momento, ocorre a entrevista com a aprendizagem, no qual “ninguém absorve
família do potencial doador para solicitação de uma só vez a realidade de um evento tão
de doação de órgãos. importante como um luto” (Parkes, 1996,
p. 170). Worden (1998) assinala o caráter
Bousso (2008), Knihs col. (2010), temporal para a aceitação da perda:
Santos e Massarollo (2005) discorrem sobre
o tempo restrito do qual a família dispõe Chegar à aceitação da realidade da
para a decisão de doação de órgãos, pois perda leva tempo, já que envolve
geralmente a abordagem ocorre de forma não só a aceitação intelectual mas
precoce, logo após a notícia da ME: também emocional. A pessoa en-
Quando ocorre a entrevista para a lutada pode estar intelectualmente
doação de órgãos, a família encon- consciente da finalidade da perda
tra-se em circunstância de dor, so- muito antes que as emoções permi-
frimento e angústia diante da perda tam total aceitação da informação
de um ente querido. O enfrenta- como verdadeiras. (p. 25).
mento da morte, associado à difi- Para uma tomada de decisão, é im-
culdade em decidir sobre a doação, portante certificar-se de que os familiares
são situações que são impostas à compreendem que o paciente morreu. Rech
família logo após a comunicação do e Rodrigues Filho (2007), ao apresentarem
óbito, tomando dessas pessoas o di- a melhor prática de abordagem à família,
reito de chorar a perda do familiar e ou seja, aquela que, para os autores, irá
agredindo física, emocionalmente e possibilitar maiores taxas de consentimen-
eticamente sua privacidade e seus to para doação, eles sugerem:
direitos (Knihs col., 2010, p. 1321).
Antes de iniciar a entrevista, é ne-
Percebe-se, assim, que, muitas ve-
cessário certificar-se de que todos
zes, a família é desprovida do direito de vi-
os membros da família entendem
venciar as reações de luto diante de uma
que o parente está morto. No início
notícia de perda, para uma tomada de de- da entrevista, é apropriado permitir
cisão sobre a doação de órgãos. que as pessoas falem um pouco so-
No processo de luto da família com bre o seu familiar e sobre o ocorrido
paciente em ME, os autores apresentam que (p.87).

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Quintana e Arpini (2009) entendem diagnóstico de ME, podendo apresentar


que não se pode falar com os familiares so- uma vivência de perda ambígua que, por
bre doação de órgãos, sem fazer menção à sua vez, pode prejudicar o processo de
morte. Aceitar ou não a doação requer vi- luto; na abordagem para doação de ór-
sualizar a possibilidade de morte tanto do gãos, por sua vez, identifica-se uma difi-
paciente quanto a própria. culdade de expressarem suas reações de
luto, devido o tempo restrito para decisão
Assim, mostra-se propício, não ape-
sobre doação de órgãos.
nas na fase de abordagem para doação de
órgãos, mas também nas fases anteriores O psicólogo pode, em cada uma des-
de suspeita e diagnóstico de ME, falar so- sas fases, respectivamente, auxiliar os fa-
bre a morte, assim como sobre o que estão miliares na reunião e na elaboração das
vivenciando, pois facilita a elaboração da informações do quadro clínico, oferecer a
perda e o enfrentamento da situação. possibilidade para a realização de rituais
de despedida e auxiliá-los na expressão so-
No entanto, deve-se respeitar a in-
bre a perda e a doação de órgãos.
dividualidade de cada pessoa, pois, como
apresenta Bousso (2008), que, ao buscar a Assim, através deste estudo, fica evi-
compreensão do processo de decisão fami- dente a importância do acompanhamento
liar na doação de órgãos do filho, ressalta: psicológico aos familiares durante todo o
“poucos pais têm a capacidade de lidar com processo, fornecendo o devido auxílio na
a morte do filho verbalizando precocemen- adaptação e no enfrentamento da perda.
te.” (p. 51). Nesse caso, o autor sugere que
A partir da pesquisa bibliográfica re-
o suporte social à família, auxilia na cons-
alizada, constatou-se uma restrita literatu-
trução de uma nova realidade da morte do
ra que apresentasse intervenções psicoló-
filho.
gicas aos familiares nesse contexto, além
disso, percebeu-se uma referência mais
enfatizada às fases de diagnóstico de ME e
de abordagem para doação de órgãos. Nes-
4. CONCLUSÃO se trabalho, constatou-se a importância do
acompanhamento psicológico aos familia-
res durante todo o processo e a relevância
Percebe-se que os familiares apre- das fases iniciais (notícia do quadro clínico
sentam algumas manifestações psicológi- e de verificação de ME) na preparação para
cas na vivência peculiar de ter um paciente as fases posteriores. Assim, é fundamen-
em Morte Encefálica. tal a fomentação de novos estudos que re-
Inicialmente, na fase referente à tratem leituras psicológicas das vivências
notícia do quadro clínico, observa-se que dos familiares e possibilidades de interven-
os familiares apresentam preocupação ção do psicólogo, assim como estudos que
com o prognóstico e com a possibilidade abordem a vivência dos familiares nas fa-
de morte do paciente, podendo apresentar ses iniciais do processo.
negação do quadro clínico; na fase de veri-
ficação de Morte Encefálica, os familiares
apresentam dificuldade de compreensão
da possibilidade de ME, nesse momento, 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
a esperança de que a ME não se concreti-
ze pode estar presente nos familiares; no
momento do diagnóstico de ME, constata- Brasil (1997a). Conselho Federal de Me-
se que os familiares não compreendem o dicina. Resolução CFM nº. 1.480, de 8

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1
Graduada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Endereço:
Rua Silva Paulet 1083, apto. 301, Aldeota – CE - CEP 60120-
020. – Tel: (85) 3224-5584 / (85) 8901.0784 – E-mail: juc_tor-
res@hotmail.comOrientação: Profa. Dra. Ana Maria Vieira Lage
- Doutora em Psicologia Clínica pela Universite de Paris V (Rene
Descartes), U.P.V – França, é docente na Universidade Federal
do Ceará (UFC)
2
Doutora em Psicologia Clinica pela Universite de Paris V (Rene
Descartes), U.P.V. – França e docente na Universidade Federal
do Ceará (UFC). Endereço: Rua Oswaldo Cruz, 1400, apto. 801,
Aldeota - CE – CEP: 60125-150. – Tel. (85) 9985-8119 – E-mail:
anamvlage@yahoo.com.br

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