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I (10 valores)

a) (6 valores)

Tendo em conta o que estudou sobre o sistema matrimonial português….


Enquadramento legal e constitucional…
da situação descrita
incluindo a decisão do tribunal eclesiástico de Coimbra

- O casamento católico é uma das modalidades de casamento admitidas pelo


Direito português (artigo 1587.º CC); o casamento católico é um instituto
autónomo em relação ao casamento civil, em virtude da Concordata celebrada
entre Portugal e a Santa Sé (atualmente, a Concordata de 2004) [por isso
também designado como casamento concordatário]. É regulado,
simultaneamente, pelo Direito canónico e pelo Direito estadual, não sendo uma
mera «forma de celebração», pelo que o sistema matrimonial português, na
perspetiva dos cidadãos portugueses batizados catolicamente é um sistema do
casamento civil facultativo, na segunda modalidade.
- O Direito canónico só admite duas causas de dissolução do casamento: a morte
e a dispensa do casamento rato e não consumado; as pessoas casadas
catolicamente podem exercer a faculdade de requerer o divórcio, embora tenham
o grave dever moral de não o fazer (artigo 36º\2 CRP e artigo 15º da
Concordata); se o fizerem, como foi o caso de Edgar e Rute, o divórcio apenas
tem efeitos civis, não produzindo efeitos canónicos. Edgar e Rute continuam,
portanto, casados à luz do Direito canónico.
- Em Portugal, por força da Concordata, a competência para apreciar as causas
de nulidade do casamento católico está reservada aos tribunais eclesiásticos, que
apreciam a questão segundo as disposições do Direito canónico (artigo 1625º
CC), assim se compreendendo que, em 2014, o tribunal eclesiástico de Coimbra
tenha declarado a nulidade do casamento celebrado entre Rute e Edgar.
- Muito embora, alguns autores tenham sustentado a inconstitucionalidade do
art. 1625.º, na interpretação que permite a competência dos tribunais
eclesiásticos e a aplicação do Direito canónico, em face da norma do n.º2 do art.
36º CRP, a maioria da doutrina é favorável à tese da conformidade com a CRP,
fazendo uma interpretação restritiva da expressão «requisitos» de forma a
permitir que os «requisitos» do consentimento matrimonial sejam apreciados
pelos tribunais eclesiásticos nos termos da Concordata (e do art. 1625.º).
- No caso concreto, o fundamento para a nulidade diz respeito à capacidade para
consentir (capacidade consensual – cânone 1095);
- Declarada a nulidade, a eficácia da decisão do tribunal eclesiástico depende do
seu reconhecimento pelo Tribunal da Relação competente (artigo 16º da
Concordata de 2004 e artigo 1626º CC) e do respetivo registo no registo civil.

Parecer do Ministério Público no sentido de não ser confirmada a decisão


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– o argumento utilizado não corresponde à realidade: na verdade, os efeitos de
decorrem da dissolução do casamento por divórcio e os efeitos que decorrem da
declaração de nulidade são diferentes. O divórcio tem efeitos ex nunc sobre o
vínculo matrimonial (artigo 1789.º n.º1). Pelo contrário, a sentença de declara a
nulidade opera retroativamente sobre o vínculo matrimonial (ex tunc). Sendo
assim, como considerou o tribunal, existem «razões decorrentes do respetivo
enquadramento jurídico que justificam o interesse de Edgar no pedido de revisão
e confirmação da decisão relativa à nulidade do casamento católico».
Alguns dos efeitos jurídicos que podem justificar o interesse de Edgar no
pedido de confirmação da decisão relativa à nulidade
o Destruição retroativa de alguns efeitos patrimoniais do casamento, por
exemplo:

 Eventual dívida contraída na constância do matrimónio por Rute


e que, nos termos do artigo 1691.º, seria da responsabilidade de
ambos os cônjuges;
 Um bem adquirido por Edgar que, por força do regime de bens do
casamento, tenha ingressado no património comum do casal (por
exemplo, nos termos do artigo 1724.º a), se o regime de bens do
casamento fosse o supletivo);
 Não aplicação das normas relativas às ilegitimidades conjugais
que tornariam anulável um negócio jurídico celebrado por Edgar
na constância do casamento (artigo 1687.º)
o regresso ao estado civil de solteiro (e não de divorciado, como resultaria
da dissolução por divórcio) – fazer corresponder o estado matrimonial ao
estado civil. [as decisões dos tribunais eclesiásticos respeitantes à
nulidade do casamento católico, depois de revistas e confirmadas, são
averbadas aos respectivos assentos (artigo 7º CRC)
o Aceitou-se, também, a resposta de que a declaração de nulidade
permitiria a Edgar a celebração, no futuro, de um novo casamento
católico (muito embora, em rigor, não necessitasse do averbamento no
registo civil para celebrar o casamento canónico);
o Pode ocorrer, no entanto, que alguns efeitos produzidos pelo casamento
católico até ao averbamento da sentença de nulidade proferida pelos
tribunais eclesiásticos se mantenham – instituto do casamento putativo
(artigos 1647º e 1648º). A produção de efeitos putativos depende da boa
fé de, pelo menos, um dos cônjuges.
o De qualquer forma, “do casamento putativo não poderão surgir efeitos
novos, mesmo quando dependentes apenas da sua existência passada, ao
passo que os “divorciados” são considerados, para efeitos futuros, como
tendo sido “cônjuges no passado” (estado de divorciado). Assim, por
exemplo, a invalidade do casamento entre Rute e Edgar impede que, no
futuro, um deles possa pedir alimentos ao outro com fundamento no

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artigo 2009º a) CC, uma vez que, em rigor, não serão propriamente ex-
cônjuges.

b) (4 valores)

enquadramento da ação proposta

indicação da forma como se estabeleceu a paternidade e os fundamentos da ação

apreciação do argumento invocado por Rute do ponto de vista legal e constitucional

- O sistema do estabelecimento da filiação do CC transforma a realidade biológica (os


factos biológicos da maternidade e da paternidade) em realidade jurídica

- quanto ao estabelecimento da maternidade – artigo 1796º\1. Regime regra: artigo


1803º e seguintes: declaração de nascimento, com menção do nome da mãe no assento
de nascimento (registo civil)

- quanto ao estabelecimento da paternidade- artigo 1796º\2, sendo a mulher mencionada


como mãe no assento de nascimento casada, no momento da conceção e do nascimento
da criança, a paternidade ficou estabelecida por presunção (presunção pater is est …),
nos termos do artigo 1826º; fundamento da presunção de paternidade do marido da mãe
(a probabilidade qualificada….);

- muito embora a criança tenha sido concebida após o fim da coabitação entre os
cônjuges (art. 1798.º), não funcionou a causa de cessação prevista no artigo 1829º, uma
vez que não se verifica nenhuma das hipóteses das alíneas do n.º2 desse artigo.

- Desde a Reforma de 77, o estabelecimento da filiação passou a basear-se no princípio


da verdade biológica, que aponta para que os vínculos jurídicos traduzam os vínculos
biológicos, no pressuposto de que tal corresponde ao interesse privado e ao interesse
público, e, mais concretamente, ao “interesse superior da criança”; assim, se a
paternidade presumida não tiver correspondência com a verdade biológica, é possível
impugnar a presunção pater is est…, através de uma ação judicial – artigo 1838º e
seguintes; o presumido pai (marido da mãe) tem legitimidade para impugnar a
paternidade presumida devendo demonstrar que, de acordo com as circunstâncias, a sua
paternidade é manifestamente improvável – artigo 1839º\1 e 2; o artigo 1842º, a)
estabelece o prazo dentro do qual o marido poderá exercer o seu direito de impugnar a
paternidade presumida: 3 anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias
de que possa concluir-se a sua não paternidade.

- Em Portugal, tem sido discutida a (in)constitucionalidade dos prazos de caducidade,


sobretudo a propósito do direito de intentar ações de investigação da paternidade por
parte do próprio filho; no entanto, os argumentos que têm sido apresentados nessa
discussão têm sido invocados, também, a propósito da caducidade do direito de
impugnar.

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 Argumentos utilizados a favor da “imprescritibilidade” dos prazos: O direito
fundamental à identidade pessoal- artigo 26º CRP – do qual decorre um direito à
historicidade pessoal, o direito a conhecer as suas origens. Por outro lado, se
ficar vedada a possibilidade de impugnar um vínculo que não tem
correspondência com a verdade biológica (continuando a paternidade do marido
a constar do registo), torna-se impossível promover a subsequente investigação
da paternidade. Outro argumento utilizado é o direito a constituir família (artigo
36º \1 CRP)
Argumentos a favor da existência de prazos de caducidade: segurança e certeza
jurídicas. Estes argumentos têm perdido relevância em face do grau de certeza
fornecido pela prova pericial (artigo 1801º CC).
O Tribunal Constitucional já considerou que o direito ao estabelecimento do
vínculo da filiação não é um direito absoluto, devendo ser harmonizado com
outros valores em conflito, incumbindo ao legislador a escolha das suas formas
de concretização, dentro das que se apresentem como respeitadoras da
Constituição se afigure mais adequada ao seu programa legislativo. Daí que,
admitindo-se a consagração de prazos de caducidade neste domínio, apenas se
considerou ser exigível ao legislador ordinário que esses prazos, pelas suas
características, não impossibilitem ou dificultem excessivamente o exercício
maduro e ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica (ver
Xavier, Rita Lobo, Estabelecimento da filiação – 2018). Apesar da decisão do
Tribunal Constitucional, a doutrina e a jurisprudência permanecem divididas,
continuando a surgir decisões judiciais que consideram a inconstitucionalidade
dos prazos fixados para a ação de investigação (proposta pelo filho).
- No caso concreto, a questão coloca-se em relação ao exercício do direito de o
marido da mãe impugnar a paternidade presumida. Muito embora os argumentos
invocados a favor e contra a existência de prazos possam ser adaptados para a
acção de impugnação da paternidade presumida, parece que, no caso em
concreto, há uma diferença substancial que justifica a ponderação de outros
interesses. De facto, o direito à identidade pessoal (artigo 26º CRP) é um direito
fundamental do próprio filho. No caso em concreto, quem pretende exercer o
direito a impugnar a paternidade presumida é o pai que consta do registo (o
marido da mãe), não parecendo ser possível, portanto, usar os argumentos
fundados no exercício do seu direito fundamental à identidade pessoal.
- A existência do prazo do artigo 1842º poderá, também, justificar-se pela
necessidade de proteção da família constituída (artigo 67º CRP); pode discutir-se
o momento a partir do qual começa a contar o prazo do artigo 1842.º a).

II (10 valores)

a) (5 valores)
enquadramento da modalidade de divórcio em causa
enquadramento do pedido de compensação por danos não patrimoniais

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apreciação do pedido de compensação por danos não patrimoniais à luz do
estudo feito sobre as características das relações jurídicas familiares e qual
deverá ser a decisão do Tribunal
- Divórcio: uma das formas de dissolução do casamento civil (a outra é a morte) (cfr.
arts. 1773.º, ss. CC e art. 36.º, 2 CRP). Características: o direito de requerer/pedir o
divórcio enquanto direito potestativo extintivo da relação matrimonial, de carácter
pessoal (pode ser exercido por qualquer dos cônjuges [cfr. art. 1785.º, 1 CC] ou por
ambos conjuntamente [cfr. art. 1775.º CC], dependendo do caso), intransmissível
(excepção nos termos do art. 1785.º, 3 CC) e irrenunciável, que deve ser exercido
perante uma autoridade pública. Divórcio enquanto facto obrigatoriamente sujeito a
registo, averbado aos assentos de nascimento e casamento (cfr. arts. 1.º, 1, q), 69.º, 1,
a), 70.º, 1, b) e 78.º CRCivil).
– Modalidades de divórcio: neste caso, divórcio sem o consentimento de um dos
cônjuges como uma das modalidades de divórcio (cfr. arts. 1773.º, 1 e 3 e 1779.º, ss. e
arts. 931.º, s. CPC): judicial, um dos cônjuges (autor) contra o outro (réu), contencioso,
com causa (cfr. arts. 1774.º e 1779.º CC e arts. 931.º e s. CPC). Divórcio-ruptura ou,
melhor, divórcio-constatação da ruptura definitiva do casamento (causas objetivas, no
sentido de independentes de culpa, embora não se exclua, em algumas causas, a
subjetividade [gravidade e essencialidade] dos factos invocados como fundamento de
divórcio, particularmente no texto das alíneas b) e d) do art. 1781.º CC). Elenco taxativo
de causas de divórcio, previstas no art. 1781.º CC.
–Apesar de os dados fornecidos no enunciado apontarem no sentido de se verificar uma
ausência de comunhão de vida entre os cônjuges, e o intuito, pelo menos por parte de
César, de a não restabelecer (visto ter abandonado o lar conjugal e, posteriormente, ter
passado a “viver junto” com outra mulher, “como se fossem marido e mulher”), não se
encontrava, contudo, preenchido, à data da propositura da ação, o pressuposto temporal
da separação de facto (um ano consecutivo – cuja contagem apenas se inicia quando
preenchidos, cumulativamente, os seus requisitos objetivo e subjetivo para que esta
fosse fundamento da ação de divórcio (cfr. arts. 1781.º, a) e 1782.º CC) [referência a
possível relevância para o decurso do prazo de separação de facto na pendência da ação
de divórcio, decretado em 2011, ser tido em consideração pelo Tribunal, como é
defendido por alguns autores; hipótese que, contudo, se rejeita, atento o espírito do
sistema de divórcio, a lógica de funcionamento do processo civil e até o disposto no art.
931.º, 1 CPC] [Nota: a separação de facto pode, nos sobreditos termos, ser causa
(objetiva) de divórcio sem consentimento, mas não determina, em si mesma, nem uma
modificação, nem, muito menos, uma dissolução, do vínculo matrimonial]. Tão pouco
parece verificar-se algum dos fundamentos previstos nas als. b) e c) do art. 1781.º CC.

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Não obstante a cláusula geral, integrada por diversos conceitos indeterminados, o
fundamento de divórcio previsto na al. d) do art. 1781.º CC tem uma natureza residual
em relação aos restantes, o que significa que esta causa não pode ser usada para
contornar a falta de preenchimento dos requisitos ou pressupostos dos fundamentos
previstos nas alíneas anteriores. Todavia, poder-se-ia considerar a invocação de outros
factos (como a existência de uma relação extraconjugal entre César e outra mulher,
enquanto casado, facto que, acompanhado do abandono do domicílio conjugal – da
ausência de comunhão –, mostrar-se-ia reforçado enquanto facto indiciador ou
determinante de uma ruptura definitiva do casamento), que, independentemente de
considerações acerca da culpa (a causa é objetiva), pudessem relevar como causa de
divórcio, nos termos da al. d) do art. 1781.º CC, desde que preenchidos os seus demais
pressupostos, como a gravidade e a essencialidade (objetiva e subjetiva) desses factos,
(para) a ruptura definitiva do casamento e o nexo de causalidade entre esses factos e a
ruptura definitiva. O ónus de alegação e prova (cfr. art. 342.º, 1 CC) dos factos
constitutivos do invocado direito ao divórcio caberá ao seu requerente: César. Com esta
fundamentação, César tem também legitimidade para propor esta ação de divórcio, nos
termos da primeira parte do n.º 1 do art. 1785.º CC.
– Efeitos do divórcio. Dissolução ex nunc do casamento e consequente cessação das
relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges (cfr. arts. 1788.º e 1688.º e 1789.º,
todos do CC). Extinguindo-se com o divórcio a relação familiar matrimonial, perdura,
porém, uma relação de natureza parafamiliar entre os ex-cônjuges. Aplicação ao caso,
nomeadamente quanto à data de produção dos efeitos (relativamente às relações
pessoais e às relações patrimoniais entre os cônjuges) do divórcio, nos termos dos n. os 1
e 2 do art. 1789.º CC.
- O pedido de Benedita diz respeito à reparação dos danos sofridos pelo cônjuge
lesado, e que tenham sido causados pelo outro cônjuge, que pode, ou não, ser pedida,
em consequência do divórcio;
A esta questão refere-se a norma do art. 1792.º CC, com a redação introduzida em 2008,
nos termos do qual a questão parece ser de enquadrar, em termos gerais, da seguinte
forma: 1) os danos sofridos com o próprio divórcio não são, em regra, suscetíveis de
reparação. O pedido de divórcio, mesmo que contencioso, traduz o exercício legítimo
de um direito (potestativo), a dissolução em si do casamento por divórcio não
configurará, em princípio, um ato ilícito, praticado pelo cônjuge requerente, que possa
ser “sancionado” com a obrigação de compensação de eventuais “danos”, ou melhor,
sofrimentos, não patrimoniais de que o outro cônjuge (em verdadeiro “estado de
sujeição”) possa, efetivamente, sofrer, em virtude do divórcio. [Apenas no caso de o
divórcio ter sido decretado com base num pedido fundamentado na alteração das

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faculdades mentais do outro cônjuge (cfr. art. 1781.º, b) CC), o que não acontece na
presente situação, é que o cônjuge requerente deve reparar os danos não patrimoniais (e
apenas estes) causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento, se isso for
pedido por este (pelo cônjuge réu), na própria ação de divórcio (pois este pedido deve
ser deduzido na própria ação de divórcio), nos termos do art. 1792.º, 2 CC (situação,
excecional, de responsabilidade por factos lícitos)]. 2) De acordo com o art. 1792.º, 1
CC “[o] cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo
outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns”.
Estarão aqui em causa danos sofridos durante o casamento e não propriamente danos
sofridos por efeito do divórcio (ainda que esses danos possam ter sido até o móbil do
divórcio). Tendo em conta que a epígrafe do artigo simplesmente refere “[r]eparação
de danos” e o texto da norma “reparação dos danos causados ..., nos termos gerais da
responsabilidade civil” –, é de considerar como indemnizáveis todos os danos sofridos,
patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo cônjuge lesado. Em virtude da especial
relação familiar que o matrimónio constitui, parecem aflorar aqui particularmente os
danos não patrimoniais (cfr. art. 496.º CC); a lei remete para o instituto da
responsabilidade civil, e para os pressupostos da obrigação de indemnizar no caso da
(arts. 483.º, a saber, facto voluntário do agente, ilicitude, culpa, dano e nexo de
causalidade entre o acto e o dano. Sendo que a prova dos factos constitutivos destes
pressupostos caberá, grosso modo, àquele que invoca o direito a ver reparados os danos
alegadamente por si sofridos em consequência daquele acto (cfr. art. 342.º, 1 CC); o
pedido deverá ser deduzido “nos tribunais comuns”, num processo autónomo
relativamente ao da ação de divórcio, (o que implica que este pedido não possa ser
deduzido na própria ação de divórcio).
– Alguns autores, como GUILHERME DE OLIVEIRA, entendem que o propósito da norma
remete, precisamente, para as regras gerais da responsabilidade civil aquiliana ou
extracontratual por factos ilícitos (regulada nos arts. 483.º CC), pelo que somente
constituiriam ilícitos relevantes, neste âmbito, violações de direitos absolutos (oponíveis
erga omnes), mormente de direitos de personalidade ou de direitos fundamentais (cfr.
arts. 70.º, ss. CC), excluindo do domínio da responsabilidade por danos as violações de
direitos e deveres conjugais (que, nascidos no seio contratual, que é o casamento,
assumem um carácter marcadamente relacional, afirmando-se como direitos relativos,
para estes autores, oponíveis meramente inter partes). Porém, outros autores, como
RITA LOBO XAVIER, defendem que, apesar dos propósitos da alteração legislativa de
2008, a norma em causa permite afirmar a responsabilidade do cônjuge quando, pela
violação (grave) de deveres conjugais a que, em virtude do casamento, se encontrava

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(voluntariamente1) adstrito, tiver causado danos ao seu (ainda) consorte. Caso assim não
fosse, o ilícito conjugal culposo quase não teria consequências, o que se traduziria numa
quase absoluta inexistência de garantia dos direitos familiares pessoais. Com efeito,
sendo o casamento também um contrato, os deveres conjugais pessoais (cfr. art. 1672.º
CC) assumem uma natureza jurídica, pelo que da sua violação (pelo menos de alguns
deles) poderão resultar consequências para o seu infrator (reforçando-se, desta forma, a
efetividade jurídica, rectius, a garantia, destes direitos). Nesta perspetiva, o cônjuge
que, culposamente, viola deveres assumidos para com o outro cônjuge na constância do
matrimónio poderá ter que responder pelos danos que cause ao outro cônjuge, em
resultado dessa violação.
[A consideração da responsabilidade pela ofensa a direitos conjugais assentará não já na
lógica da responsabilidade civil extracontratual, mas sim nos termos da
responsabilidade contratual, ínsitos nos arts. 798.º, ss. CC. Sendo de particular relevo
neste domínio o estabelecimento de uma presunção iuris tantum de culpa, prevista no
art. 799.º, 1 CC, o que poderá facilitar a posição do cônjuge lesado (quanto à prova da
culpa, apenas, porque em relação aos demais pressupostos caberá a si a alegação e
prova), porquanto a presunção inverte o ónus da prova (cfr. arts. 344.º e 350.º, 1 CC),
onerando aquele contra quem a presunção se encontra estabelecida a fazer a prova do
contrário, se a quiser ilidir (cfr. art. 350.º, 2 e 342.º CC). Apesar de o legislador ter
pretendido afastar considerações acerca da culpa no divórcio, o que é certo é que,
havendo uma ação deste género, a questão da culpa será sempre discutida. Atendendo
ainda ao facto de a ação ressarcitória ter que ser intentada e processo autónomo, esta
querela doutrinal poderá conduzir a uma outra consequência de regime a respeito do
prazo prescricional de ação para exercício do direito de indemnização. Com efeito, o
direito de indemnização na responsabilidade extracontratual prescreve no prazo de três
anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do seu direito (ou, se o ilícito
for também de natureza criminal e o prazo deste for mais longo, este último prazo), de
acordo com o disposto no art. 498.º, 1 e 3 CC; já se se considerar o ilícito no plano
contratual, pela violação dos direitos e deveres conjugais, o prazo prescricional
aplicável parecerá ser o prazo ordinário de vinte anos (cfr. art. 309.º CC)].
–Benedita formula um pedido de compensação por danos não patrimoniais com dois
fundamentos: por um lado, a violação, por parte de César, de deveres conjugais de
fidelidade e de respeito, e, por outro lado, assente na simples dissolução do casamento
por divórcio. Para consubstanciar o seu pedido, Benedita alega ainda (com vista à

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Pese embora a natureza imperativa destes direitos (cfr. art. 1699.º, b) CC), os cônjuges, quando,
voluntariamente, casam sabem que se vinculam (pelo menos enquanto aquele plano contratual-familiar
durar) a certos deveres entre si, que devem, pontualmente, cumprir (cfr. art. 406.º, 1 CC).

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demonstração dos danos) que “a dissolução do seu casamento por divórcio desfez um
sonho de sempre de que o seu casamento duraria para toda a vida, sofrendo dor e
desconsideração social com isso e padecendo de perturbações psiquiátricas”.
– Em face do que ficou exposto, carece de fundamento legal o pedido de reparação dos
danos patrimoniais alegadamente sofridos por Benedita em virtude da dissolução do
casamento por divórcio, nomeadamente em relação à dor, ao sofrimento psíquico, às
perturbações psiquiátricas e desconsideração social, invocados por Benedita, em
consequência direta da simples dissolução do casamento por divórcio. Tal pretensão
indemnizatória só poderia ser satisfeita nos termos do n.º 2 do art. 1792.º, se o divórcio
tivesse tido como causa a alteração das faculdades mentais de Benedita, o que não
sucedeu.
– Todavia, como vimos, a atual redação do preceituado no n.º 1 do art. 1792.º CC não
exclui a possibilidade de o cônjuge que se sentir lesado nos seus direitos pedir, após o
decretamento do divórcio, a reparação dos danos que tenha sofrido em virtude dessa
lesão.
– Para a posição doutrinal que defende que apenas a violação de direitos absolutos de
personalidade relevaria para fundar o pedido compensatório, as alegações de Benedita
não parecem poder lograr sucesso – não é invocado uma ofensa ilícita contra bens de
personalidade seus, nem, pelos dados fornecidos no enunciado parece ter havido essa
ofensa (pese embora a tutela geral da personalidade, consagrada no art. 70.º CC, proteja
qualquer individuo contra alguma ofensa ilícita à sua personalidade física ou moral).
Mas, segundo a melhor doutrina, a violação dos direitos e deveres conjugais, como os
de fidelidade e respeito, invocados por Benedita, poderia consubstanciar, preenchidos
os pressupostos da responsabilidade civil (contratual), nos termos supra aludidos, esse
pedido de compensação por danos não patrimoniais, desde que estes, pela sua gravidade
(objetiva e subjetiva), merecessem tutela do direito (cfr. art. 496.º, 1 CC).
– Caracterização do conteúdo dos deveres de fidelidade (implica uma dedicação
exclusiva dos cônjuges entre si, de conteúdo essencialmente negativo, mas também de
natureza positiva: impondo uma abstenção de comportamentos sexuais ou de índole
afetiva ou sexual com terceiros; a sua violação pode resultar de uma infidelidade moral
ou de uma infidelidade material ou adultério, como aconteceu no caso) e do especial
dever conjugal de respeito (âmbito genérico e residual, uma vez que as violação de
outros deveres também traduzem uma violação deste dever; só ganha expressão
autónoma quando haja uma conduta ofensiva do outro cônjuge que não consubstancie,
simultaneamente, violação de outro dever conjugal; este dever constitui, no fundo, um
reflexo da consideração e do apreço que cada um dos cônjuges deve manifestar pelo
outro. Em última analise, traduz o dever de respeito, reforçado por referência a todas as

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demais pessoas, pelos direitos de personalidade do outro. E possui uma vertente
positiva – prática de atos respeitosos para com o cônjuge e a família – e uma vertente
negativa – abstenção de comportamentos indignos, indecorosos, humilhantes,
desrespeitosos dos direitos de personalidade do outro cônjuge e da sua família –, esta
provavelmente violada pelo comportamento abandono da casa de morada da família e
da ulterior relação adulterina). Concretização da sua violação no caso concreto. Repare-
se que a existência de uma separação de facto não modifica nem extingue os deveres
conjugais, não servindo, por isso, de atenuante ao seu incumprimento.
[Este pedido, necessariamente, judicial, formulado pelo cônjuge lesado contra o cônjuge
lesante, deve ser intentado nos tribunais comuns e processado separadamente do
processo de divórcio, em ação judicial autónoma (e, à partida, posterior), como, de
resto, parece ter acontecido no caso vertente].
[Acontece, porém, que, não obstante alegar violação dos deveres de fidelidade e de
respeito, Benedita apenas alega, para consubstanciar o seu pedido de reparação dos
danos não patrimoniais, que “a dissolução do seu casamento por divórcio desfez um
sonho de sempre de que o seu casamento duraria para toda a vida, sofrendo dor e
desconsideração social com isso e padecendo de perturbações psiquiátricas”. Estas
invocações parecem, em concreto, assentar mais na dissolução em si mesma do vínculo
matrimonial e no sofrimento psíquico (os danos) que isso lhe causou, do que nos
comportamentos violadores de deveres conjugais praticados por César ainda na
constância do matrimónio. Por essa razão, deveria improceder o pedido apresentado por
Benedita, uma vez não conseguir, com isto, demonstrar que os danos por si sofridos
decorreram da violação dos deveres conjugais. Ao invés, deveria ter alegado que esse
sofrimento e desconsideração social vividos resultaram das condutas de César, da
humilhação social que a fez passar por ter abandonado o lar conjugal e mantido uma
relação extraconjugal com outra mulher enquanto estava casado. Com efeito, apesar da
característica de tendencial perpetuidade do casamento e da relação matrimonial, a
afirmação do divórcio como direito potestativo extintivo, assente em causas objetivas, e
a consagração, excecional, da reparação de danos não patrimoniais pela dissolução do
casamento por alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, parece ter como
implicação que este tipo de danos que Benedita alega não possam ser compensados,
neste caso].
[Uma última nota quanto ao prazo prescricional. Adotando a posição que segue as
regras da responsabilidade extracontratual, tendo em conta que, à data da propositura da
ação teriam decorrido mais de quatro anos sobre a data de divórcio e mais de sete anos
sobre os factos ilícitos, o direito de ação já se encontraria prescrito. Por seu turno,
seguindo a posição que aponta pela via da responsabilidade contratual, o direito de ação

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ainda não havia precludido (a menos que houvesse abuso de direito [cfr. art. 334.º CC]
por parte de Benedita, que conduzisse a uma eventual preclusão do direito)].

b) (5 valores)
Enquadramento da questão
Apreciação de todos os aspetos da decisão do Tribunal, apreciação do pedido
formulado pelo Banco
- No caso em apreço, temos uma relação creditícia entre o Banco AXN, S.A. (enquanto
locador financeiro) e César (enquanto locatário financeiro) fundada num contrato de
locação financeira referente a um automóvel. Este contrato foi celebrado apenas por César,
em Janeiro de 2009, enquanto se encontrava casado com Benedita, mas já depois de ter
abandonado a casa de morada da família e pouco antes de passar a viver com outra mulher
“como se fossem marido e mulher” e pedir o divórcio.
- A responsabilidade pelas dívidas dos cônjuges é matéria que integra o estatuto
patrimonial imperativo de base, sendo, por isso, comum a todos os casamentos, em
princípio independente do concreto regime de bens, e imperativo, porque não pode ser
alterado por vontade das partes em convenção antenupcial (cfr. 1699.º, 1, b) CC).
– Não havendo informação no caso sobre celebração de convenção antenupcial entre os
cônjuges (cfr. arts. 1698.º, ss. CC), nem se vislumbrando razões para aplicação do regime
imperativo da separação de bens (cfr. art. 1720.º CC), dever-se-ia entender vigorar neste
casamento o regime de bens supletivo legal da comunhão de adquiridos, nos termos do art.
1717.º e dos arts. 1721.º, ss. CC. Breve caracterização do regime, nomeadamente quanto à
composição das massas patrimoniais.
– 1690.º Regra geral em matéria de contração de dívidas por cônjuges: qualquer dos
cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem necessidade do consentimento do
outro cônjuge (cfr. art. 1990.º, 1 CC).
- 1692.º, a) Sendo também que a regra geral, de Direito das Obrigações, em matéria de
responsabilidade por dívidas é a de que será responsável pela dívida aquele que a contraiu
(não vigora, pois, em geral, uma responsabilidade por dívidas de terceiros). Nesse sentido,
estabelece o art. 1692.º, a) CC que as dívidas contraídas por cada um dos cônjuges sem o
consentimento do outro, ressalvados os casos expressamente indicados no n.º 1 do art.
1691.º CC – onde se estabelece a comunicabilidade de certas dívidas ao outro cônjuge (que
não as contraiu ou não deu o seu consentimento) –, são da exclusiva responsabilidade do
cônjuge que as contraiu, respondendo por elas os seus bens próprios e, subsidiariamente, a
sua meação nos bens comuns (cfr. art. 1696.º, 1 CC), sem prejuízo de eventuais
compensações, nos termos do art. 1697.º, 2 CC. Relevância da data da contracção da dívida
para determinação da responsabilidade dos cônjuges, nos termos dos arts. 1690.º, 2, 1691.º,
1 e 2, 1692.º e 1789.º CC.
- 1691.º, c) – 1695.º Apesar de qualquer dos cônjuges poder, legitimamente, contrair
dívidas sem o consentimento do outro, em certos casos, devidamente identificados no art.
1691.º CC, pode o cônjuge que não contraiu a dívida nem nela consentiu ser chamado a
responder também por essa dívida, comunicando-se-lhe esta. Neste caso, sendo a dívida da
responsabilidade de ambos os cônjuges, respondem os bens comuns do casal, e, na sua falta
ou insuficiência, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges, ou de forma
conjunta, no regime de separação de bens (cfr. art. 1695.º CC), sem prejuízo de eventuais
compensações (cfr. art. 1697.º, 1 CC).

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- Atendendo aos factos enunciados, Benedita não interveio no ato de contração da dívida
nem consentiu nela. A celebração de um contrato com vista à aquisição de um automóvel,
pela natureza do ato e pelos custos que envolve, também não parece poder ser enquadrado
como uma dívida contraída para “acorrer aos encargos normais da vida familiar” (cfr. art.
1691.º, 1, c) CC), mesmo tratando-se de uma locação financeira. Com efeito, estes
encargos serão apreciados segundo um critério de normalidade e de acordo com o padrão
de vida familiar: tratar-se-á de despesas, geralmente periódicas, mas de pequeno valor, a
avaliar em função do padrão de vida do casal (o que a “aquisição” de um automóvel,
mesmo em regime de locação financeira, não parece representar. Poderá ser um encargo da
vida familiar, mas não se poderá dizer, em geral, que constitui um encargo normal da vida
familiar, embora seja comum nos tempos atuais). Assim, serão encargos normais da vida
familiar, e.g., despesas com o fornecimento da água ou da eletricidade, com a aquisição de
vestuário, calçado, com a renda do imóvel onde está fixada a casa de morada da família,
com a saúde, etc.
– De acordo com o art. 1691.º, 1, c) CC, são da responsabilidade de ambos os cônjuges
“[a]s dívidas contraídas na constância do matrimónio, pelo cônjuge administrador, em
proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração”. A aplicação
deste preceito depende, assim, da verificação, cumulativa, de vários pressupostos: a) ser a
dívida contraída na constância do matrimónio; b) pelo cônjuge administrador e c) nos
limites dos seus poderes de administração; e d) contraída em proveito comum do casal.
[Para saber se uma dívida contraída por um dos cônjuges é comunicável ao outro é,
antes de mais, preciso que o credor logre demonstrar em juízo que o devedor estava
casado ao tempo da contração da dívida (cfr. art. 1691.º, 1, c) e 1690.º, 2 CC). Prova
relativamente fácil de fazer, atenta a publicidade que o registo civil confere ao
casamento, enquanto facto obrigatoriamente sujeito a registo (cfr. arts. 1651.º, 1652.º,
1669.º e 1670.º CC e arts. 1.º, 1, d), 2.º e 180.º, ss. CRCivil), mas que deve ser feita pelo
interessado, bastando, para tanto, a junção aos autos do processo em causa de certidão
do assento de casamento (cfr. arts. 180.º, ss. CRCivil) ou de certidão do assento de
nascimento, ao qual é averbado o casamento (cfr. art. 69.º, 1, a) CRCivil), nos termos
dos arts. 3.º, 4.º e 211.º, ss. CRCivil (uma vez que o Tribunal apenas conhece do pedido
e dos factos carreados para os autos pelas partes [sendo limitados os seus poderes de
averiguação e conhecimento oficioso]). Com a certidão do assento de casamento pode
fazer-se também prova do regime de bens aplicável àquele casamento (cfr. art. 181.º, e)
CRCivil). Há, por assim dizer, uma inatendibilidade e ininvocabilidade dos factos
sujeitos a registo e não provados por essa via. A necessidade desta prova é, contudo,
discutida na jurisprudência, atentos os ónus de alegação das partes e eventual prova por
confissão dos réus.
Feita esta prova, haverá que averiguar se essa dívida está associada a um determinado
bem. Em seguida, haverá que indagar quem é o proprietário desse bem (no fundo, em
que massa patrimonial esse bem se integra), o que implica ter em consideração o regime
de bens do casamento. Por fim, teremos que saber quem é o administrador desse bem,

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nos termos dos arts. 1678.º e 1679.º CC, a fim de aferir da sua legitimidade para
contrair essa dívida; haverá ainda que verificar se o cônjuge administrador ao contrair
aquela dívida agiu dentro dos “limites dos seus poderes de administração”. Estes
poderes são bastante amplos. Ainda assim conhecem limites, desde logo, aqueles que
são impostos pela necessidade de pedir o consentimento ao outro cônjuge para a prática
de certos actos, sob pena de ilegitimidade; é também necessário que se demonstrem
factos que permitam ao juiz concluir pela verificação de que a dívida foi contraída em
proveito comum do casal. Com efeito, nos termos do n.º 3 do art. 1691.º CC, que o
proveito comum do casal não se presume (salvo nos casos especialmente previstos na
lei, que não ocorria nesta circunstância), pelo que terão que sempre ser demonstrados
factos que permitam concluir acerca do tal proveito comum. O proveito comum do
casal significa, grosso modo, que aquela dívida terá de ter sido contraída para beneficiar
o casal, benefício esse que tanto pode ter sido de ordem material ou económica como
imaterial ou intelectual. Nesse sentido, o proveito comum do casal não se afere pelo
resultado, mas sim pelo fim visado pelo cônjuge devedor que contrai a dívida, mesmo
que o fim visado não chegue a ser alcançado (por exemplo, por se ter revelado um mau
investimento e ter acarretado prejuízos). Esse benefício deve, por isso, ser
objetivamente (e não subjetivamente) avaliado, segundo um juízo de prognose, ou seja,
deve tratar-se de um benefício provável, de acordo com as regras da experiência, aos
olhos do “ser humano-médio”, no momento em que se contrai aquela dívida. Não basta,
pois, uma intenção subjetiva do agente: exige-se uma intenção objetiva de proveito
comum. Entende-se, assim, que o proveito comum do casal tem que resultar
diretamente do ato do qual resulte a dívida. Para aferir se a dívida foi contraída em
proveito comum do casal poderá ser também importante averiguar o regime de bens do
casamento; o ónus de alegação e prova de todos estes pressupostos necessários para
afirmação do proveito comum do casal (até porque este não se presume), e assim
conseguir comunicar a dívida ao outro cônjuge, incumbe ao interessado nessa
comunicação, que, na maior parte dos casos, será o credor (cfr. art. 342.º, 1 CC)].
– O Banco, credor, limitou-se a alegar o casamento, o proveito comum do casal e o
ingresso desse bem no património comum do casal, sem, contudo, lograr demonstrar
qualquer destas alegações, pretendendo assim obter a comunicabilidade da dívida e a
responsabilidade solidária de Benedita. Como vimos, a alegação e prova dos factos
constitutivos do direito invocado, nos termos supra descritos, cabia ao credor, que não
logrou fazer. Nesse sentido, o Tribunal julgou o pedido improcedente, condenando
apenas César no pagamento da dívida por si exclusivamente contraída, por aplicação
das regras gerais de Direito das Obrigações e, no limite, por aplicação do disposto nos

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arts. 1690.º, 1 e 2, 1692.º, a) e 1696.º CC. E fê-lo com base em alguns argumentos,
afirmando que o Banco:
i. Não demonstrou o casamento entre Benedita e César: pressuposto,
como vimos, absolutamente fundamental para haver responsabilidade
por dívidas conjugais (que acabam por ser uma espécie de dívidas de
terceiros, em que este regime de responsabilidade atua como uma
garantia patrimonial, qualitativa e quantitativa, de satisfação do
crédito). Prova que nem era difícil de fazer, atenta a publicidade do
registo;
ii. Não indicou o regime de bens vigente: prova que também se faria
facilmente com recurso ao registo e à certidão de casamento. Sabemos,
pelos dados do enunciado, que César e Benedita estavam casados e, na
falta de convenção, deveria ser aplicável a este casamento o regime
supletivo legal de bens da comunhão de adquiridos. Porém, não tendo o
Tribunal conhecimento desses factos, tornar-se-ia, neste ponto, mais
difícil aferir do preenchimento dos requisitos de aplicação do art.
1691.º, 1, c) CC, designadamente quanto à titularidade do bem, quanto
ao seu administrador e quanto aos respetivos poderes de administração.
Admitindo, no entanto, que se tratava do regime de comunhão de
adquiridos, sendo este contrato celebrado na constância do matrimónio,
a aquisição, necessariamente onerosa, que viesse a ser feita do bem
entretanto locado faria com que este ingressasse, à partida, no
património comum dos cônjuges, por força do disposto nos arts. 1724.º,
b) e 1725.º CC.
iii. Não alegou factos invocando o fim em vista com a contração da
dívida: como vimos, não se presumindo o proveito comum do casal,
não basta ao interessado invocar o proveito comum do casal, teria-se-
iam que alegar e provar factos consubstanciadores desse proveito, i.e.,
que demonstrassem, objetivamente, que a dívida foi contraída com
vista ao benefício do casal. Prova sem dúvida difícil de realizar por um
terceiro, mas absolutamente indispensável para que um cônjuge que
não contraiu uma dívida nem nela consentiu possa responder, sem ser
manifestamente surpreendido, por uma dívida contraída apenas pelo
seu consorte. Repare-se que o facto de a dívida ter sido contraída numa
altura em que os cônjuges já não coabitavam e que assim
permaneceram, de o cônjuge devedor ter, pouco tempo após a
contração da dívida, passado a viver junto com outra mulher “como se

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fossem marido e mulher” e de ulteriormente ter pedido o divórcio sem o
consentimento de Benedita dificultaria sobremaneira a prova do
proveito comum do casal, mas não era, por si só, suficiente para
considerar, liminarmente, que não haveria proveito comum do casal,
sem perscrutar os demais pressupostos de aplicação da norma;
iv. Não ficou evidenciado por que razão o bem seria de ambos: o
conceito de bem ou património comum é também um conceito jurídico.
Não tendo ficado provado nos autos do processo ordinário em causa
que César e Benedita eram casados, nem qual era o regime de bens no
qual se encontravam casados, o Tribunal não poderia, aplicando o
direito aos factos, determinando a natureza própria ou comum desse
bem. O que dificultava, por seu turno, a qualificação desta dívida como
tendo sido contraída em proveito comum do casal.
– Um ponto ainda para referir também a relevância da aplicação ao caso do disposto no
art. 1789.º CC. Admitindo que a ação judicial foi intentada após trânsito em julgado da
sentença que decretou o divórcio, haveria que olhar para a data a partir da qual o
divórcio produziria os seus efeitos. No plano patrimonial, no domínio das relações entre
cônjuges, os efeitos do divórcio retrotraem-se à data da propositura da respetiva ação.
Tendo, no entanto, a dívida sido contraída antes de tal data (cfr. art. 1690.º, 2), não se
mostrava afetada por este preceito, o que faria com que ela tivesse sido contraída na
constância do matrimónio, como exige o art. 1691.º, 1, c) CC. Procurando obviar a esta
solução, houve alguns estudantes que convocaram a aplicação do n.º 2 do art. 1789.º
CC, porquanto a dívida teria sido contraída já durante a separação de facto dos
cônjuges. Ocorre que nada no enunciado nos demonstra que tal retroação de efeitos
tenha sido requerida pelos cônjuges na ação de divórcio (autónoma desta). Além de que,
e de forma mais relevante para o caso, esta norma apenas se aplica às relações
patrimoniais entre os cônjuges. Acontece que esta dívida envolve a intervenção de um
terceiro – o Banco, credor –, pelo que, não obstante esses factos, os efeitos patrimoniais
do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença (cfr.
art. 1789.º, 3 CC). Ora, como a dívida foi contraída na constância do casamento, a
separação de facto seria inoponível ao Banco. A solução teria que seguir outro caminho.
– Por várias das razões supra aludidas, também se não mostravam preenchidos os
pressupostos de aplicação do art. 1694.º CC.
– Afigura-se, por isso, correta a decisão do Tribunal, fazendo responder pela dívida a
pessoa que a contraiu.

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