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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE

F A C U LD A D E DE DIR EITO – CURS O DE DIREIT O


Direito Penal

Sobre a aplicação e comprovação das penas de morte e de prisão perpétua


em Beccaria

Na sociedade moderna, a discussão sobre a aplicação de qual deveria ser a pena


adequada para determinados crimes volta e meia aparece no debate público,
principalmente quando se trata de crimes de homicídio que promovem uma comoção
nacional, a exemplo do caso Isabella Nardoni, de 2008, em que o pai da menina e sua
esposa – o sr. Alexandre Nardoni e a sra. Ana Carolina Jatobá – mataram a criança
atirando a pela janela. Apesar da truculência de casos como esse, a pena de morte não é
a punição adequada, pelo menos na visão do italiano Cesare Beccaria, que tece, a partir
da perspectiva contratualista, um argumento contra a pena de morte. Ele alega que, dado
o contrato social, em que cada indivíduo racional cedeu uma parte de sua liberdade
individual para o soberano administrar a sociedade, nenhum desses indivíduos cederam
tamanha liberdade de modo que o soberano pudesse retirar a vida de qualquer um deles,
independentemente dos crimes que praticaram, pois isso seria irracional. No entanto,
Beccaria defende, ainda na perspectiva do Contrato, que a prisão perpétua – chamada
por ele de “escravidão perpétua” – deve existir, porque, além de punir o homicídio
proporcionalmente ao dano, está em perfeita consonância com o Contrato Social.

Para discorrer sobre pena de morte e prisão perpétua, o autor coloca em


evidência a questão dos suplícios, que eram torturas públicas seguidas de execução a um
criminoso, supostamente para se fazer justiça, mas que, na verdade, serviam mesmo
para demonstrar o poder que o Estado absolutista detinha na época. Tanto que a
Revolução Francesa começou com a queda da Bastilha, que representava, segundo
afirma o historiador francês Guy Chaussinand-nogaret, em A queda da Bastilha: o
começo da Revolução Francesa, o poder punitivo absoluto do Estado. Assim, derrubar a
Bastilha significava derrubar o poder do Rei, que à época cometia abusos com as lettres
de cachets.

Dado o suplício, afirmava o contratualista italiano que, apesar do espetáculo e da


demonstração de poder seguida de tortura e morte, ele não previne a ocorrência de
crimes futuros, algo que só é possível com a certeza de punição. E é neste ponto que os

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argumentos contra a pena de morte começam, pois, segundo o autor, a pena capital
causa apenas um temor momentâneo a aqueles que testemunham o suplício, de forma
que se sentem como se estivessem assistindo a um filme de drama, o que cria nos
espectadores uma sensação temporária de afastamento do “espírito do crime”.

Fora que a pena de morte se encontra em conflito com a própria lei que a
autoriza: além da crueldade da medida, poderiam as leis, que punem o homicídio,
autorizar aquilo que elas próprias buscam afastar? Se Konrad Hesse está certo quando
diz, em A Força Normativa da Constituição, que a Constituição, não obstante tenha
força normativa própria, não deve se afastar da realidade objetiva para cumprir sua
pretensão de eficácia, então, o mesmo raciocínio deve ser aplicado para as leis, haja
vista que elas buscam sua legitimidade na Constituição. Logo, infere-se que a lei que
autoriza a pena de morte enfraquece a força normativa do próprio ordenamento jurídico
ao qual ela pertence.

A partir do proposto por Beccaria, haver-se-ia de se argumentar que a pena


capital seria admitida se fosse aplicada de forma proporcional ao dano causado – isto é,
para punir o homicídio. Contudo, nota-se que, embora seja proporcional a este crime,
dada a aplicação do “olho por olho, dente por dente”, ela não seria razoável, uma vez
que, conforme fora exposto a partir das teses do autor, a pena de morte enfraquece a
força normativa do ordenamento jurídico, contraria o fundamento do contrato social e
não cria a certeza de punição, e principalmente não repara o dano, isto é, não desfaz o
homicídio praticado contra a vítima.

Entretanto, no segundo caso, o da prisão perpétua, tem se um exemplo reiterado


e contínuo de punição, além de que a escravidão eterna reduz o homem a um estado de
miserabilidade absoluta, ao contrário da pena de morte, que para dar um exemplo
temporário e curto, necessita que novos crimes aconteçam. Com efeito, é possível fazer
uma comparação com o direito à vida da Constituição brasileira: a doutrina entende que
ele não se resume ao direito de estar vivo meramente, mas também faz parte dele as
garantias que o Estado deve prestar para que essa vida seja plena, que se manifestam na

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figura dos direitos individuais, dentre eles a liberdade, direitos sociais, direitos civis,
direitos culturais, direitos ambientais e outros.

Assim, uma vez aplicada, a prisão perpétua acaba com a maioria desses direitos,
colocando o indivíduo no estado de vitupério, uma situação que está entre a vida plena e
a morte eterna, que muitas vezes pode ser considera um benefício ao indivíduo
praticante de homicídio que tinha pretensões de se suicidar, por exemplo. Outrossim, a
prisão perpétua forma uma gradação para o afastamento do espírito do crime, porque
causa o temor corriqueiro e diário de punição sem necessitar que novos crimes ocorram,
visto que os condenados estão sempre em prisões para servirem de exemplo, o que gera
na sociedade a certeza da ausência de impunidade, que é o que vai garantir que novos
crimes não aconteçam na visão de Beccaria.

Mas, para além da mera aplicação de penas, seja a capital, seja a prisão perpétua,
faz se necessário entender os mecanismos que propiciariam a efetivação delas, a saber,
o processo e as provas. O autor divide as provas em perfeitas, que são aquelas que
demonstram clara e independentemente umas das outras ser o acusado culpado, e
imperfeitas, aquelas que, isoladas, não são capazes de provar que o acusado é culpado,
levantando-se dúvidas acerca de sua culpabilidade. Basta uma única prova perfeita para
condenar o acusado; mas, se o juiz quiser condenar com base em provas imperfeitas,
precisará de um número significativo delas.

Já sobre o processo, o autor defende que, para os crimes mais graves, como o
homicídio, a prescrição deve ser mais rápida do que para os crimes menos graves, como
o roubo, pois entendia que quanto mais grave a acusação de um crime, menos é
provável que ele tenha ocorrido. Porém, Beccaria deixa claro que tal regra deve ser
aplicada observando a legislação vigente em cada país, bem como a cultura e as
circunstâncias de cada sociedade.

Portanto, dificilmente tais princípios seriam aplicados à sociedade moderna, haja


vista a complexidade de tais sociedades em relação às do século XVIII. Além de que,
nas sociedades modernas, o uso corriqueiro de provas imperfeitas em grande número
para a tentativa de condenação de acusados não é novidade, mas, se os princípios

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originários de Beccaria fossem aplicados na atualidade, seria impossível a elaboração de


tais provas, já que as diligências que as produzem – como perícias, exames, análises de
imagens – podem demorar muito tempo.

Um caso atual que pode ilustrar essa problemática da prescrição e das provas foi
o processo “O povo contra O.J. Simpson”, que ocorreu na Califórnia, em 1994. No
caso, o ex-jogador de futebol O.J. Simpson foi acusado de matar a ex-namorada Nicole
Simpson e o seu amigo Ronald Goldman, amante de Nicole. No desenrolar do litígio, a
acusação apresentou diversas provas imperfeitas que ligavam O.J. ao homicídio do
casal, e, mesmo assim, ele foi absolvido na esfera penal pelo júri. No entanto, em 1997,
ele foi condenado em um processo civil pelas mortes, tendo apenas que pagar uma
indenização à família de Ron Goldman.

Para piorar, em 2007, O.J. escreveu e publicou o livro If I Did It (E se eu o


tivesse feito?), em que conta em detalhes como teria feito para matar Nicole e Ronald,
com uma narrativa que, embora seja hipotética, bate com muito do que a promotoria o
havia acusado na década de 90. O livro foi considerado um deboche à justiça americana
pela descrição fiel à narrativa apresentada pela acusação de um homicídio o qual O.J.,
aproveitando-se da vedação ao bis in idem, praticamente confessa anos após ter sido
absolvido.

A lição que esses princípios gerais aplicados ao caso O.J. ensina é que, se já é
difícil condenar um acusado de homicídio com um prazo prescricional longo e uma
considerável quantidade de provas imperfeitas, porém contundentes, se o prazo
prescricional corresse mais rápido para esses tipos de delito, seria impossível até mesmo
a produção das provas imperfeitas que levaram à sua condenação no processo civil.

Portanto, fica evidente que, de fato, Beccaria acertou quando disse que esse
princípio da prescrição mais curta para crimes mais horrendos deve ser cuidadosamente
analisado. Ademais, chama a atenção que, neste caso, ficou evidenciado que o direito
civil reparou algo que o direito penal não conseguiu reparar, provando que nem sempre
o direito penal repara aquilo que as outras instituições falharam.

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Por fim, resta saber se, apesar da aplicação da pena, é permissível que ela seja
mitigada por algum decreto de graça, do soberano, ou de clemência, do legislador.
Entretanto, na visão de Beccaria, nem um, nem outro devem ser admitidos, porque, os
decretos de graça são sobretudo decretos de impunidade, dado que o soberano, ao
assiná-los, passa por cima do Código Penal e alimenta a esperança dos criminosos
ficarem impune, indo em direção contrária à certeza da impunidade e à criação de leis
justas, que, na visão do autor, materializam-se no imperativo categórico kantiano, como
sendo “leis as quais todos proporiam e desejariam observar quando o interesse
particular se cala ou se identifica com o interesse público”.

Bibliografia

BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo:
Martin Claret, 2006.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Mendes.


São Paulo, Saraiva, [s.d.].

CHAUSSINAND, Guy. A queda da Bastilha: o começo da Revolução Francesa.


Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989.

SIMPSON, O.J. E se eu o tivesse feito? Tradução de Hércules Pereira. Lisboa, Glaciar,


[s.d.].

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