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PRIMEIRO BIMESTRE

PAUTA 01
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA – PROFESSOR GIVALDO MATOS
“Cada aula de filosofia procura provocar uma sacudidela nos
jovens, faze-los ‘quebrar a cabeça’, derrubar suas certezas e
provocar suas dúvidas, violar suas virgindades, faze-los perder
irreparavelmente inocências e canduras. Toda aula de filosofia
exerce violência para provocar no outro um movimento. Um
movimento rumo ao... imprevisível”. 1
REVISTA VEJA: Como se ensinava filosofia nas grandes
escolas gregas?
LUC FERRY: “Ao contrário do que ocorre nas nossas, nas
escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de
aprendizado da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no
século IV A.C., Zenão de Cítio, o primeiro estóico, pedia a seus
alunos que pegassem um peixe morto na feira e o amarrassem
em uma coleira para levá-lo para passear como se fosse um
cachorro. Quando passavam, quase todos olhavam e
zombavam. O que pretendiam? Que os alunos não temessem o
que os outros diziam. O sábio não é apenas aquele que vence o
medo do olhar alheio, do que os outros pensam. O sábio não se
importa com as convenções artificiais dessas “boas pessoas”.
Ele desvia o olhar para concentrar-se na natureza, no cosmos.
Vive em harmonia com a ordem natural, com ele próprio e com
o mundo”.2

1 – O que é a Filosofia? Para que serve? Qual a diferença entre Filosofia e


Ciências? Duas perspectivas falsas: conhecimento inacessível e
conhecimento alienante.
Conceito 01 : Atribui-se ao filósofo
Pitágoras de Samos (séc. V a.C.) o uso pela
primeira vez da palavra ‘filosofia’. É um termo
composto de duas raízes gregas: philo +
sophia. Philo, derivada de philia, relaciona-se
à amizade e amor fraterno. O segundo termo
– sophia – quer dizer sabedoria. Então,
etimologicamente, a junção destas duas
palavras vem a significar ‘amizade pela
sabedoria’ ou ‘amor pelo saber’. Pitágoras,
ao ser admirado pela sua sabedoria,
respondeu: “Ninguém pode dizer-se sábio a
não ser Deus. Quanto a mim, sou filósofo (amigo da sabedoria)”.3

1 Langón In Gallo, cornelli, Danelon. In: Anderson de Araújo e Dirk Greimann O Ensino de Filosofia a partir de Situações
Filosóficas. http://www.forumsulfilosofia.org/vsimposio/comunicacoes/COMUNICACOES/32.pdf
2 FERRY, Luc. A Felicidade não Existe. REVISTA VEJA. In: < http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/luc-ferry-%E2%80%9Ca-
felicidade-nao-existe-o-que-existe-e-a-serenidade%E2%80%9D> Acesso em 18/05/2012.

1
Características consoantes ao conceito etimológico:

Importante reconhecermos que a junção destes dois termos (filo + sofia – ou


“amor à sabedoria”) não implica em que a filosofia seja atribuída a toda
pessoa que ama o conhecimento, ou a sabedoria em si. Pitágoras está
dizendo que há um tipo de conhecimento, alcançado através de um método
específico para alcançar este conhecimento, que caracteriza a filosofia.

A Filosofia é a busca da verdade, através de um método que possa ser


aferível racional e/ou empiricamente. Isto pode ser observado através de
duas de suas características:

1) Humildade – Desde o início, a pessoa verdadeiramente sábia parte do


reconhecimento dos limites do seu saber. Assume a posição de que não
possui a certeza absoluta acerca de muitas questões. Uma tendência
contrária, no entanto, é geralmente vista nas instituições e em pessoas que
lidam com o saber: o dogmatismo, a crença de que se possui a verdade
absoluta. Esta é uma atitude que gera grandes empecilhos ao processo do
aprendizado, porque na medida em que se crê tudo saber, não se exercita
mais aquele desejo, ansiedade e anseio pelo conhecimento.
2) Seriedade - Ele não estava mais disposto a aceitar aquelas respostas
inverificáveis, que não tinham nenhuma preocupação com a racionalidade e
com a lógica.
A proposta doravante da filosofia é identificar uma fórmula que
oferecesse compreensão racional dos conhecimentos propostos. Muitos
métodos serão desenvolvidos, ao longo da história da filosofia, distinguindo
escolas filosóficas. Em síntese, podem ser divididas em: idealismo,
empirismo, perspectivismo, criticismo, dialética, estruturalismo e o
ceticismo.
Estas duas atitudes se contrastam com o Fideísmo = uma
predisposição para acreditar na pessoa, grupo ou sistema de crenças que se
elegeu para ser a fonte da verdade.

Conceito de Filosofia 02: A partir da modernidade, verifica-se uma


tendência de afastamento quanto à pretensão de se “encontrar a verdade”,
em virtude de que, com o tempo, mais e mais surgiram teorias sobre a
verdade, sem que uma delas pudesse se estabelecer como única.
A Filosofia passa a ser um instrumental para analisar a lógica dos
discursos que se apresentam como verdadeiros. Cada escola filosófica
oferecerá um método que servirá como parâmetro para analisar as teorias, as
ideias, os discursos.

3 Para ler mais: http://www.hottopos.com/notand2/a_palavra.htm - A Palavra "Filosofia" - Mario Bruno Sproviero.


NOTANDUM - Revista Semestral Internacional de Estudios Académicos- ANO I N. 2 julio-deciembre 1998.

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2 - A Atitude e a Reflexão Filosófica
a) Atitude Filosófica – disposição de analisar todo pensamento que se
oferece como resposta ou imaginário, vindo do exterior ou do interior
mental, em ideias, doutrinas, dogmas, etc.
b) Reflexão Filosófica – disposição de analisar os poderes e limites da
razão. Nasce a Teoria do Conhecimento. Questionamos acerca da
possibilidade da própria razão fabricar imagens, capazes de
enganarem até a si mesma. Será que a razão pode conhecer tudo?
Quais são os limites da razão? Como ela desenvolve o conhecimento?
Ela é confiável, em suas formulações acerca da realidade? Qual a
relação entre ‘razão perfeita’ e ‘esquizofrenia’, doença que incapacita a
própria razão de fugir de suas fantasias?

3 - Conhecimento Objetivo versus Conhecimento Subjetivo


a) Conhecimento objetivo é aquele aparentemente gerado em “contato
direto e seguro” com o objeto de análise.
b) Conhecimento subjetivo é aquele cujo resultado é determinado
muito mais pelo sujeito (subjetividade), do que pelo objeto em análise.
As experiências pessoais, as ideologias, os partidarismos, a religião,
as crenças, a cultura, o equilíbrio cerebral, tudo influencia na
determinação deste conhecimento.
Exemplo: quando se fala sobre perspectivas políticas, religiosas,
éticas/morais, etc., as respostas serão variáveis. Alguns “sentem”, “tem
certeza” que é verdadeira, outros tem “certeza” que não é. O que determina
estas convicções? A subjetividade, o conjunto de influências que o sujeito
sofre. Não é, necessariamente, um contato com o objeto de análise.
A mesma coisa com a cultura e suas variações. Ex.: enquanto alguns
possuem uma visão positiva do Carnaval, outros tem uma visão
extremamente negativa.
Objetividade, portanto, tem a ver com um contato direto com o objeto.
Mas, ressalta-se, mesmo este contato pode sofrer influência, de modo a
alterar nossa percepção do objeto que está no campo de análise. O contexto
de subjetividade do sujeito pode alterar até mesmo sua percepção de um
objeto cujo contato se dá, aparentemente, de forma imediata.
Ex: duas pessoas são chamadas para provar o sabor de um café. Sem
saber que se trata de uma experiência, a um deles se dá um pedaço de bolo
extremamente doce antes, e a outro, uma torta extremamente salgada. Com
isto, o paladar experimenta reações que irão influenciar na percepção do
quão doce ou amargo estará o café a ser servido. Ao que experimentou o
bolo doce antes, dirá que o café estará amargo. Da mesma forma, a condição
mental, emocional, social, cultural, etc., pode alterar até mesmo a percepção
de objetos imediatos, materiais.

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Para pensar: O movimento filosófico surge espontaneamente no ser
humano ou existem pessoas que dificilmente darão liberdade ao impulso
filosófico?
“Observa o helenista Pierre Aubenque, em O Problema do Ser em
Aristóteles, embora o desejo de conhecer seja uma tendência natural dos
humanos, a abertura da Metafísica também afirma que a filosofia, nascida do
espanto, não é um impulso espontâneo, mas nasce de uma pressão sobre
nossa alma, causada por uma aporia, isto é, por uma dificuldade que nos
parece insolúvel”. Chauí, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Pg. 329
Isto significa que, para Aristóteles, uma pessoa que não tem dúvidas
nenhuma não pode sofrer esta pressão na alma, pois nada lhe parece
insolúvel, tudo já está resolvido, claro. Por outro lado, quando existe a
percepção da complexidade da realidade, quando somos confrontados com
os argumentos contrários à nossa perspectiva, quando os analisamos com
honestidade intelectual, instala-se em nós este espanto!

3 - Tipos de conhecimento
O que é conhecimento? Uma resposta simples seria a de que se
trata da apreensão de algum dado da realidade, externa ou interna a nós. É o
resultado da relação entre o observador e o objeto observado. É construído a
partir de nossas experiências com o mundo, com pessoas, com a literatura,
etc. São derivados de pelo menos quatro fontes, a saber: o senso comum, a
religião, a ciência e a filosofia.
3.1 - Senso comum – Também chamado de conhecimento empírico ou
vulgar, porque obtido ao acaso, através de experiências não planejadas. É
construído também a partir da escuta das respostas do meio onde se vive.
Nem sempre é derivado do empirismo, no entanto. Pela difusão e repetição
de um determinado conceito, acaba-se por tomá-lo como verdadeiro.
É aquele obtido no dia a dia, independentemente de estudos ou
critérios de análise. Foi o primeiro nível de contato do homem
com o mundo, acontecendo através de experiências casuais e
de erros e acertos. É um conhecimento superficial, raso; onde o
indivíduo, por exemplo, sabe que nuvens escuras sinaliza tempo
chuvoso, contudo não tem ideia da dinâmica das massas de ar,
da umidade atmosférica ou de qualquer outro princípio da
climatologia.
“Adquire-se independentemente de estudos, pesquisas,
reflexões ou aplicações de métodos” (FACHIN, 2002, p. 9).
“É conseguido na vida cotidiana, fundamentado em experiências
vivenciadas ou transmitidas de pessoa para pessoa, fazendo
parte das antigas tradições [...]”. (FACHIN, 2002).
“Pode também derivar de experiências casuais sem
fundamentações.” (FACHIN, 2002; OLIVEIRA, 1999). “É
considerado um conhecimento prático, pois sua ação se
processa segundo os conhecimentos adquiridos nas ações

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anteriores, sem nenhuma relação científica metódica ou
teórica.” (FACHIN, 2002, p. 10).
http://mariliacoltri.blogspot.com.br/2012/01/tipos-de-
conhecimento-do-empirismo.html
Dizer ainda que "não pressupõe reflexão” é um equívoco. Em geral,
senso comum nasce de saberes acumulados que são testados pela
comunidade. Por essa razão é que as ciências podem coletar informações
ricas com as comunidades indígenas sobre as propriedades medicinais das
plantas, etc.

3.2 - Religioso – Também chamado ‘Conhecimento Teológico’, por estar


relacionado à fé em uma Revelação Divina. Desta forma, não se preocupa
em ser negado ou afirmado pelas ciências. Dependerá muito mais de uma
opção radical do crente de uma determinada tradição religiosa, do que uma
coerência lógica, racional ou científica.
É o conhecimento relacionado ao misticismo, à fé, ao divino, ou
seja, à existência de um deus ou Deus, seja ele o Sol, a Lua,
Jesus, Maomé, Buda, ou qualquer outro que represente uma
autoridade suprema. O Conhecimento Teológico, de forma
geral, encontra seu ápice respondendo aquilo que a ciência não
consegue responder, visto que ele é incontestável, já que se
baseia na certeza da existência de um ser supremo (fé). Em
geral, os conhecimentos ou verdades teológicas estão
registrados em livros sagrados ou em relatos simbólico/míticos
de caráter oral, que não seguem critérios científicos de
verificação e são revelados por seres iluminados como profetas
ou santos, que estão acima de qualquer contestação por
receberem tais ensinamentos diretamente de um Deus.

3.3 - Científico – É o conhecimento obtido a partir da análise das relações de


causa e efeito, em repetidas experiências analisadas pela metodologia
científica. Lida apenas com fatos concretos e objetivos (não lida com
questões que está além da experimentação, como por exemplo, a existência
de Deus, da alma ou da liberdade humana). Diferentemente da religião,
desdobra-se a partir de teorias, que podem ser contrastadas, desafiadas ou
reelaboradas. Requer exatidão, clareza e verificabilidade.
A ciência é uma necessidade do ser humano que se manifesta
desde a infância. É através dela que o homem busca o
constante aperfeiçoamento e a compreensão do mundo que o
rodeia por meio de ações sistemáticas, analíticas e críticas. Ao
contrário do empirismo, que fornece um entendimento
superficial, o conhecimento científico busca a explicação
profunda do fenômeno e suas inter-relações com o meio.
Diferentemente do filosófico, o conhecimento científico procura
delimitar o objeto alvo, buscando o rigor da exatidão, que pode
ser temporária, porém comprovada. Deve ser provado com
clareza e precisão, levando à elaboração de leis universalmente

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válidas para todos os fenômenos da mesma natureza. Ainda
assim, ele está sempre sub judice, podendo ser revisado ou
reformulado a qualquer tempo, desde que se possa provar sua
ineficácia.
“Caracteriza-se pela presença do acolhimento metódico e
sistemático dos fatos da realidade sensível” (FACHIN, 2002, p.
11).
Preocupa-se com a abordagem sistemática dos fenômenos,
tendo em vista termos relacionais que implicam relação causa e
efeito (FACHIN, 2002).
O conhecimento científico possui um método, se prende aos
fatos e se vale da testagem empírica para formular respostas
aos problemas colocados e apoiar suas afirmações (FACHIN,
2002). Seu objetivo é “estudar as causas reais dos fenômenos e
descobrir as leis pelas quais eles regem” (OLIVEIRA, 1999, p.
71).
Procura sempre alcançar a verdade dos fatos independente de
valores ou crenças dos cientistas e resulta de pesquisa
metódica e sistemática da realidade (FACHIN, 2002).
A crítica ao conhecimento científico é operada pela Filosofia das
Ciências. Basicamente, a Filosofia das Ciências questiona: o dogmatismo
científico, sua autossuficiência quanto a fenômenos complexos que requerem
mais que uma disciplina de análise (reducionismo científico), a derivação de
teses quanto ao comportamento humano da relação entre o que a natureza
apresenta e o que supostamente isto significa (diferença entre “o que é” e “o
que deve ser”, tal como demonstrado nas teses do Darwinismo Social), sua
relação com o ser humano enquanto produtor de símbolos e cultura, a
presença de ideologias e de interesses nas pesquisas, etc.

3.4 - Conhecimento Filosófico – Como já trabalhamos acima, a Filosofia é a


análise crítica acerca das afirmações que se faz acerca da realidade (acerca
de qualquer tema humano) e da possibilidade do próprio conhecimento
(estudo de seus princípios e limites, da racionalidade, dos valores; das
formas da consciência, ilusão e preconceito; percepção, linguagem, memória,
inteligência, experiência, reflexão, vontade, comportamento, paixões e
desejos, etc.). Neste sentido, instaura-se como instrumento crítico do Senso
Comum, da Religião (Filosofia da Religião), da Ciência (Filosofia da Ciência)
e da própria Filosofia, vez que esta se desdobrou em diversas escolas de
pensamento (de hermenêutica) ao longo de sua história. Kant irá afirmar que
todas estas análises consistem, na verdade, em investigar “quem ou o que
seja o ser humano”, ou seja, a filosofia é uma grande análise antropológica.

4 - Epistemologia ou Teoria do Conhecimento


Epistemologia ou teoria do conhecimento (do grego ἐπιστήμη
[episteme] - ciência, conhecimento; λόγος [logos] - estudo de) é um ramo da
filosofia que trata dos problemas filosóficos relacionados com a crença e o

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conhecimento. É o estudo científico da ciência (conhecimento), sua natureza
e suas limitações.
A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade
do conhecimento, motivo pelo qual também é conhecida como teoria do
conhecimento. Relaciona-se com a metafísica, a lógica e a filosofia da
ciência, pois, em uma de suas vertentes, avalia a consistência lógica de
teorias e suas credenciais científicas. Este fato torna-a uma das principais
áreas da filosofia (à medida que prescreveria "correções" à ciência).
A sua problemática compreende a questão da possibilidade do conhecimento
- nomeadamente, se é possível ao ser humano alcançar o conhecimento total
e genuíno, dos limites do conhecimento (haveria realmente uma distinção
entre o mundo cognoscível e o mundo incognoscível?) e da origem do
conhecimento (Por quais faculdades atingimos o conhecimento? Haverá
conhecimento certo e seguro em alguma concepção a priori (a princípio)?).
Ante a questão da possibilidade do conhecimento, o sujeito pode tomar
diferentes atitudes:
1. Dogmatismo: atitude filosófica, científica ou religiosa pela qual
acreditamos adquirir conhecimentos seguros e universais. Adota-se o
conhecimento como um dogma, sem a disposição de mudança.
Voltaire analisa este tipo de postura e chega à seguinte
conclusão:
“A pessoa que acredita possuir a verdade absoluta, quando
entra em contato com alguém que tem uma ideia diferente,
adota a seguinte conclusão acerca deste divergente: “Se ele
pensa diferente de mim, é porque não conhece a VERDADE.
Isto pode ser dar porque se trata de
a) uma pessoa incapaz de conhecer a verdade (burra,
idiota);
b) alguém desonesto, que sabe que estou certo, mas não
admite;
c) alguém que não teve a iluminação necessária para
chegar à verdade.

2. Ceticismo e Agnosticismo: atitude filosófica oposta ao dogmatismo,


a qual duvida de que seja possível um conhecimento firme e seguro,
sempre questionando e pondo à prova as ditas verdades. Esta postura
foi defendida por Pirro de Élis.
3. Relativismo / Perspectivismo: atitude filosófica que defende que a
compreensão da verdade depende das perspectivas prévias que uma
pessoa já tem. Defende a ideia de que cada indivíduo ou grupo possui
sua própria verdade, que se dá em função do contexto histórico,
social, cultural, político, econômico do indivíduo ou grupo em questão.
4. Dialética: atitude filosófica vista em Platão e F. Hegel, etc., em que se
defende a tese de que a verdade pode ser apreendida em uma

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contínua dialética. Ela se revela aos poucos, na medida em que as
contradições são superadas por avanços cognoscitivos. Por essa
razão, não dogmatiza as ideais, pois sabe que conhecimentos novos
podem surgir e alterar a compreensão humana sobre a verdade.

A ordem dos discursos: Filosofia, Ciências e Religião


À primeira vista, parece que a filosofia e as ciências partem de um
antagonismo, uma inimizade com a religião. Não é verdade. O que ocorre é
que, antes do período filosófica, a religião era a única intérprete da realidade
(da política, da economia, da cultura, do direito, da moral, da astronomia, das
relações de trabalho, das relações de gênero, etc.). Quando a filosofia e as
ciências surgiram, passaram a questionar alguns problemas humanos que
também eram questionados pela religião. E nestes questionamentos, foram
desenvolvendo respostas próprias, e assentando as áreas do conhecimento.
Os estudos de astronomia, da metereologia, da medicina, do direito, da
política, foram, aos poucos, sendo transferidos da religião para a filosofia e
para as ciências. Nem sempre a religião aplaudiu esta transferência, mas
hoje compreendemos que existe uma divisão de áreas entre filosofia,
ciências e religião. Um exemplo: quando se quer uma resposta sobre a AIDS,
o Câncer, ou sobre uma doença na lavoura, não se procura mais os líderes
religiosos, antes, procura-se especialistas da área.
Assim, precisamos reconhecer que existem ordens de discursos diferentes.
Filosofia em Crise – o debate entre ciência, religião e filosofia:
A Filosofia, como disciplina de análise crítica dos discursos que se
fazem sobre a realidade, entra em colisão, ora outra, com as
interpretações da realidade derivadas das outras fontes de
conhecimento. Faz isto porque tem como tarefa primordial a análise
das ideias.
5 - Qual é a Utilidade da Filosofia?
“Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for
útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos
poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação
do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das
criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a
cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem
conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a
liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a
Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos
são capazes”. Convite à Filosofia
Pode-se dizer que a crítica tem utilidade, quando ela não consegue nos
apontar a VERDADE absoluta?
Para responder a esta questão, outra surge: seria útil nos desvencilharmos
de fantasias e crendices, mesmo que não conseguíssemos encontrar a
verdade sobre o tema em questão? A filosofia defende a ideia de que

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“abandonar a fantasia, quando se reconhece a fantasia, já é um grande
avanço”!
Pode existir filosofia dogmática?
Uma das questões que acompanham a filosofia, quando comparada com
outras formas de conhecimento, é se ela pode se transformar em dogma.
Duas observações são feitas:
1) Ao longo da história da filosofia, observaram-se posicionamentos
filosóficos que fecharam-se em si mesmas.
2) No entanto, a filosofia só se mantém filosofia, se se mantém aberta à
interlocução com outras perspectivas e, assim, aberta a mudanças;
Três tipos de Filósofos, segundo Bacon (Cf. Shattuck, 45):
1. Os que pensam que conhecem a verdade, ou dogmáticos
presunçosos;
2. Os que acreditam que nada pode ser conhecido, ou céticos
desesperados;
3. Os que continuam a fazer perguntas a fim de obter um
conhecimento imperfeito.
Shattuck, Roger. Conhecimento Proibido. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998
Exercícios: Analise o texto e a imagem abaixo, e manifeste sua opinião
sobre seu conteúdo.
A Velha Ignorância
Em 1793, Willian Blake retratou
a tensão que existe entre
tradição e Filosofia, em seu
quadro Aged Ignorance [Velha
Ignorância], em uma das
gravuras que fez em seu livro
de ilustrações The Gates Of
Paradise [Os Portões do
Paraíso]. Na figura, temos a
imagem de uma criança alada
sendo atraída pelo sol, e um
ancião com óculos profissionais
e uma grande tesoura nas
mãos, de costas para a luz. Ele
abre a tesoura e apara as asas
da criança. A imagem retrata a
curiosidade e o desejo de
conhecimento das pessoas que
ainda são jovens ou ávidas
pela sabedoria e, por outro lado, a atitude do ancião, representando a
tradição ou os dogmas estabelecidos que, satisfeita por crer já estar de posse
da verdade, poda a liberdade da criança contemplar a luz do conhecimento.
O quadro retrata perfeitamente a tensão que existe entre tradição,
conhecimento estabelecido e a busca por novas respostas. Por um lado, a

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tradição é o depósito dos conhecimentos úteis adquiridos pela sociedade. Por
outro, ela pode muitas vezes trancar-se em si mesma, impedindo que novas
reflexões possam iluminar a o tempo presente, marcado pela presença de
novas problemáticas.
Perguntas para aprofundar: O que é Filosofia? Qual a importância
da Filosofia? Que características devem se revelar na vida do filósofo,
partindo da definição etimológica da palavra ‘Filosofia’? O que é atitude
filosófica? Disserte sobre os tipos de conhecimento.

PAUTA 02 (ESTA PARTE NÃO IRÁ SER REQUERIDA NA PROVA. ESTÁ


AQUI PARA APROFUNDAR NOSSA COMPREENSÃO)
O Homem como ser simbólico
O que é que se encontra no início? O jardim ou o jardineiro? É
o jardineiro. Havendo um jardineiro, mais cedo ou mais tarde

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um jardim aparecerá. Mas, havendo um jardim sem jardineiro,
mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá. O que é um
jardineiro? Uma pessoa cujo pensamento está cheio de
jardins. O que faz um jardim são os pensamentos do
jardineiro. (Rubem Alves, 1999, p. 24).
Há uma diferença fundamental entre nossa espécie e as
restantes. Nas restantes espécies vivas não há um
projeto. Um canguru, por exemplo, não precisa
empenhar-se em ser adulto. Um canguru alcança a
adultez porque nele a biologia é tudo. Em nossa espécie
a biologia não é tudo. Nós todos podemos, no decurso do
tempo, convertermo-nos em adultos, biologicamente
falando, mas não seremos adultos, no sentido espiritual
do termo, se a esse desenvolvimento biológico, não é
acompanhado de um projeto espiritual. Quando não há
um projeto espiritual, o transcurso do tempo nos
inscreve a duração, mas não a maturidade. Por exemplo,
um bisão fêmea, para ser madura, não precisa
empenhar-se. Simplesmente torna-se, porque é toda
biologia. Mas em nossa espécie, se alguma pessoa não
se empenha em ser mulher, se o é biologicamente, não
chega a ser mulher. Porque a mulher não é um
organismo. Sem o organismo não é nada, mas só o
organismo é muito pouco. Uma mulher é um projeto, um
homem é um projeto. Santiago Kovadloff, filósofo
argentino.

1.1 Semelhanças e diferenças entre homem e animal


Desde as primeiras reflexões acerca do ser humano, buscou-se
pensar o homem em diferenciação com os animais. Este processo se deve a
um espanto natural advindo da evidência de que, em um plano puramente
biológico, os seres humanos são animais.
A estrutura orgânica humana se apresenta em alto grau semelhante à
dos animais. Na estrutura celular, o que se diferencia é o genótipo, ou seja, o
arranjo da disposição de cada uma das bases existentes na molécula do
DNA (adenina, guanina, citosina e timina), responsáveis pelo fenótipo de
cada organismo.
No entanto, as semelhanças para com os animais são minúsculas,
quando contrastadas com as diferenças que os marcam na escala do
comportamento. Desde o domínio e da extensão que faz ao seu corpo, até o
tipo de trabalho que desempenha, a forma com que se relaciona consigo
mesmo, com os outros e com a natureza, a linguagem, a organização
política, a capacidade racional, a liberdade que exerce contra impulsos
físicos, a engenhosidade científica, entre outras incríveis diferenças, o faz
soar como uma espécie de deus, quando comparado com os animais. De
fato, este foi o título que o historiador Yuval Noah Harari deu a uma de suas
últimas obras: Homo Deus – uma breve história do amanhã (Companhia das

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Letras, 2015). Daí a admiração: como explicar a genialidade e especificidade
humana?
Um dos filósofos que estabeleceu as bases modernas para esta
reflexão – a da distinção entre os seres humanos e os animais - foi o filósofo
alemão Ernst Cassirer (1874-1945), de origem judaica, em sua obra
Antropologia Filosófica – introdução a uma filosofia da cultura humana (em
português, pela Editora Mestre Jou, 1972). Cassirer parte de uma
constatação feita pelo biólogo Johannes von UexKüll, para quem a vida “é
uma realidade final e dependente de si mesma”, ou seja, não pode ser
descrita da mesma forma como a física e a química procedem para com seus
objetos, pois possui “tantos padrões e planos diferentes quanto são os
organismos diferentes”.
A partir desta constatação, cada espécie orgânica é vista como única,
com diferenças gigantescas entre si. “No mundo das moscas, só existem
coisas de moscas, no mundo de um ouriço do mar, só encontramos coisas de
ouriços do mar” (Cassirer, 1972, p. 48). Sendo assim, para uma análise
adequada, UexKüll afirma ser necessário analisar a anatomia de cada
organismo. Não existem organismos superiores ou inferiores, antes,
organismos adaptados e coordenados em relação ao seu meio específico.
O caractere a ser observado é descrito por UexKüll como sendo seu
círculo funcional, composto por um sistema receptor da realidade, interligado
a um sistema destinado a responder aos estímulos captados, sistema este
responsável pela adaptação do organismo à realidade que o circunda.
1.2 O símbolo no círculo funcional no homem
Partindo do pressuposto de que o mundo humano não constitui uma
exceção à necessidade de um círculo funcional para adaptar-se, Cassirer
propõe que no caso humano, este círculo foi ampliado quantitativa e
qualitativamente. Nas palavras de Cassirer (p. 49):
O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de
adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de
reação, que se encontram em todas as espécies animais,
encontramos no homem um terceiro elo, que podemos
descrever como sistema simbólico. Esta nova aquisição
transforma toda a vida humana.
Como destacado acerca da dimensão sensitiva humana, as reações
do homem à realidade que o circunda são derivadas de relações complexas,
a ponto de estabelecer uma realidade muito mais densa, profunda,
pluridimensional do que a experimentada pelos animais.
Os animais reagem de forma imediata aos estímulos externos, se
reduzem a uma linguagem emocional. O humano não, ele desenvolveu uma
linguagem proposicional, que utiliza sinais e símbolos designadores da
realidade. Ao contrário do que Rousseau propunha, de que a meditação
racional deprava a natureza humana, o ser humano simplesmente não
consegue agir de outra forma que não através da racionalização da
realidade. Esta é experimentada, pensada, refletida, racionalizada,
comparada, contrastada, medida, antes de produzir uma reação. Por essa

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razão, o estímulo que se dá a ela chega atrasado, quando comparado ao
restante da natureza.
O resultado é que seu universo já não é reduzido apenas ao físico,
antes, é um mundo repleto de símbolos designadores de uma realidade não
natural, em que a linguagem, o mito, a arte e a religião são alguns de seus
elementos, aqueles que costuram a rede simbólica em que está inserida sua
existência. Elementos imaginativos não materiais se cruzam com outros
elementos imateriais e são traduzidos pela inteligência simbólica. Veja: fé +
consciência + divindade + alma + responsabilidade + santidade =
aperfeiçoamento, elevação, propósito da existência. Esta equação é
impossível ser pensada por um animal. Só pode ser pensada pelo homem,
em virtude de sua capacidade de criar e traduzir símbolos.

http://co-intelligence.org/newsletter/SelfConsciousCartoon.html

2.1 O que são os símbolos?


Os símbolos, para Cassirer, são instrumentos conceituais mediadores
entre espírito e matéria, entre a imaginação e a realidade empírica, entre o
presente e o passado, entre o cognoscível e o meramente imaginável. Estão
inseridos, portanto, no universo de significados. Ultrapassa o plano descritivo,
possibilitado pelas ciências empíricas, e alcança o que Kant chama de
“entendimento intuitivo”, uma apreensão do real que a razão é incapaz de
demonstrar (mas que sabe ser o que se intui). Descrição semelhante nos é
dada pela filósofa Marilena Chauí, vejamos:
A ordem simbólica consiste na capacidade humana para
dar às coisas um sentido que está além de sua presença
material, isto é, na capacidade de atribuir significações e
valores às coisas e aos homens, distinguindo entre bem
e mal, verdade e falsidade, beleza e feiúra; determinando

13
se uma coisa ou uma ação é justa ou injusta, legítima ou
ilegítima, possível ou impossível (2005, p. 250).
Esta característica humana foi investigada ainda pelo filósofo Charles
Sanders Peirce, em sua obra Semiótica (São Paulo: Perspectiva, 2000).
Peirce considerava impossível que a mente humana acessasse a realidade
de forma direta e universal. Quando a contemplamos, ela é apreendida já de
uma forma interpretada. Por essa razão, Pierce desenvolve em sua obra uma
catalogação dos tipos de estímulos que são apreendidos pela mente humana
já em sua forma alterada pela significação dada pela cultura.
Avançando nesta compreensão, o filósofo e pedagogo Rubem Alves
(São Paulo: Loyola, 1999) ilustra bem do que se trata o símbolo, vejamos:
O pão, como qualquer pão, e o vinho, como qualquer
vinho, poderiam ser usados numa refeição ou orgia:
materiais profanos, inteiramente: deles não sobre
nenhum odor sagrado. Mas quando as palavras são
pronunciadas: “Este é o meu corpo, este é o meu
sangue...”, os objetos visíveis adquirem uma dimensão
nova (para o crente), passam a ser sinais de realidades
invisíveis. Isso não capacitará os homens a arar o solo,
gerar filhos ou mover máquinas. Os símbolos não
possuem tal tipo de eficácia; eles respondem a outro tipo
de necessidade, tão poderosa quanto o sexo e a fome: a
necessidade de viver num mundo que faça sentido
(Alves, 1999).
O mundo natural não é, necessariamente, convertido à vontade
humana. Não existe para o ser humano. Este é um dos seres que nele
habitam. Mas, diferente dos outros animais, o homem precisa de um mundo
que possa chamar de seu, que dialogue com ele, ou seja, que lhe faça
sentido.
2.2 Função Social dos Símbolos
Compreendendo o ser humano como um ser deficitário (a natureza
não lhe deu todas as coisas de que precisa), visualiza-se a necessidade
deste construir um mundo humanizado. Porque artificial (não natural), este
mundo estará sempre em risco de se perder, de cair na anomia, no caos. Daí
a necessidade de se estabelecer, por meio dos símbolos, uma ordem
regradora. Nos dizeres de Marilena Chauí:
O que é a lei humana? A lei humana é um mandamento
social que organiza toda a vida dos indivíduos e da
comunidade, tanto porque determina o modo de
estabelecimento dos costumes e de sua transmissão de
geração a geração, como porque preside as ações que
criam as instituições sociais (religião, família, formas de
trabalho, guerra e paz, distribuição das tarefas, formas
de poder, etc.). A lei não é uma simples proibição para
certas coisas e obrigação para outras, mas é a afirmação
de que os seres humanos são capazes de criar uma
ordem de existência que não é simplesmente natural

14
(física, biológica). Essa ordem é a ordem simbólica
(Chauí, p. 250).
Esta ordem irá organizar a realidade, por meio de proibições,
interdições e por meio do estabelecimento de valores às ações humanas. A
partir dele, uma coisa pode ser boa ou má, perigosa, sagrada, divina. As
relações humanas podem ser lícitas ou ilícitas. A sexualidade, a virgindade, a
fertilidade, ganham novos sentidos. Assim também, formas novas de se
relacionar com as pessoas, como por exemplo, tratamentos devidos aos
idosos, aos amigos e inimigos, aos governantes, aos mortos, etc. Os
símbolos se originam, portanto, para dar representar e interpretar a realidade,
provendo de sentido as ações humanas.
Esta função de produzir sentido já pode ser captada a partir da
etimologia do termo. A palavra símbolo vem do grego sym-balein, que tem
como tradução “projetar, lançar ordenadamente”. A compreensão do termo
pode ser ainda visualizada a partir do uso feito na Antiguidade, de um vaso
de cerâmica na celebração de alianças. Os contraentes quebravam uma jarra
em duas partes, cada um ficando com uma delas. O pedaço possuído era
chamado de simbolizante, e o pedaço que estava com o outro contraente, era
chamado de simbolizado. Há uma representação do ausente. Desta maneira,
um pedaço remetia ao outro, e trazia à memória o sentido da aliança.
O símbolo aponta para algo, e seu segredo está em que satisfaz ao
homem, antes que possa ser cartesianamente demonstrado. O bem e o mal,
por exemplo: não são realidades que se possa enxergar pelo microscópio,
mas podem ser apreendidas pelas imagens, sensações, experiências
mediadas pelos símbolos.
Termos ou signos como “Deus, religião, sagrado e profano, o bem e o
mal, gênero, identidade, família, pátria, estrangeiro e patrício, estado, direitos
e deveres, moral, justiça, responsabilidade, culpa, arrependimento,
propriedade, propriedade privada, natureza, cultura”, entre incontáveis outros,
são ajustes conceituais que se faz para alcançar um comportamento
desejado na sociedade humana, mas que só perduram se repassados
através de um contínuo processo de inculturação, memorização e afirmação.
A definição que se faz a cada um destes termos é variável no tempo e no
espaço. Não são realidades naturais, portanto. Se esquecidas, devem ser
reinventadas, e muito provavelmente, ganharão novos contornos.
No entanto, é esta realidade que mais lhe influencia, mais lhe
determina. O ser humano, constata Cassirer (1972, p. 50),
Envolveu-se por tal maneira em formas linguísticas, em
imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos religiosos,
que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão pela
interposição desse meio artificial. (...) Vive no meio de
emoções imaginárias, entre esperanças e temores, ilusões e
desilusões, em seus sonhos e fantasias.
Tomemos outro exemplo: a forma com que o estímulo da sexualidade
difere entre os animais e os seres humanos. Uma vez estimulado, o animal
se prepara para o ato da procriação. Não existem óbices a que uma fêmea
que esteja na fertilidade do cio, se una ao macho inseminador. No caso
humano não é assim, a sexualidade já não é experimentada da forma em que

15
a natureza propôs, antes, é cercada por uma rede de sobreposições de
sentido que definem “o momento e a forma adequada, o apropriado e o
inapropriado, o lícito e o ilícito”. Sensibilidades sociais, morais e jurídicas
entram em cena.
Enquanto para os animais, a relação sexual é meramente uma relação
sexual, para os humanos, surge uma série de representações mediadas pela
linguagem: uma prática sexual pode ser “um ato recreativo ou um ato de
amor, uma relação de adultério, uma relação comercial (prostituição), um ato
de libertinagem, uma prática de estupro ou de pedofilia, ou uma relação
homoafetiva”. Estes termos não existem na natureza, foram estabelecidos
pela cultura humana, como sinalizadores de algo que, em algum momento,
se julgou ser, legítimo ou não, adequado ou inadequado para a vivencia
humana.
A definição do ato sexual envolvendo crianças como crime de
pedofilia, por exemplo, se estabeleceu no plano moral e jurídico para
estabelecer uma maior proteção às crianças. Da mesma forma, o conceito de
estupro se estabeleceu a partir da valorização do consentimento sexual das
mulheres, algo que não está presente em todo tempo e lugar na história da
humanidade.
O mesmo pode se dizer do conceito de família, que não está presente
na natureza, e que mesmo na história humana, manifestou contínuas
transformações e atualizações. Família patriarcal; família composta pela
esposa, filhos e concubinas; famílias onde o homem se casa com várias
mulheres; famílias onde filhos poderiam ser vendidos para o pagamento de
dívidas do casal; famílias onde o marido pode violentar a esposa fisicamente,
sem que isto implique em crime de lesão corporal, são exemplos de como o
conceito sofreu mutação ao longo do tempo. O que faz uma família?
Atualmente o Direito define família a partir da afetividade e da igualdade entre
as partes e não mais a partir da consanguinidade ou hierarquia entre seus
membros.
O conceito de família, como visto, não é dado pela natureza, antes, é
definido por ajustes históricos motivados por causas diversas. Em todas as
atualizações, recorreu-se a um sistema conceitual para redefinir a realidade:
o símbolo.
Nesta imersão em um universo simbólico, importa assinalar que a
definição de que seja um animal racional não dá conta da amplitude do
homem. Certo que seja racional, que procure a abstração da realidade, junto
com pressupostos universais que possam explica-la. No entanto, a forma de
se exteriorizar e de se comunicar ultrapassou a linguagem racional. A
linguagem mítica também se estabeleceu como elo comunicativo, e neste
caso, não de conceitos racionais, antes, comunicadores de perspectivas
comuns de um povo. Ao lado desta linguagem, se impôs ainda, no curso da
história, a linguagem emotiva, poética, que expressam não apenas ideias,
mas também emoções e sentimentos.

3.1 Mito, Linguagem e Símbolo

16
Reconhecendo no ser humano a característica de definir ou de
apreender a realidade sob a forma de símbolos, que por sua vez está
relacionado à função da significação, correspondente a aspirações humanas
de sentido, questiona-se qual seja o papel da linguagem. Segundo Chauí,
Graças à linguagem e ao trabalho, os seres humanos
tomam consciência do tempo e das diferenças temporais
(passado, presente e futuro), tomam consciência da
morte e lhe dão um sentido; organizam o espaço,
humanizando-o (isto é, dando sentido ao próximo e ao
distante, ao alto e ao baixo, ao grande e ao pequeno), ao
visível e ao invisível (2005, p. 250).
A linguagem é a faculdade humana que possibilita mil outras. É
compreendida como instrumento mediador entre o ser humano e a realidade
que torna possível a comunicação. No entanto, como resposta as
provocações que a realidade impõe ao espírito humano, ela se diferencia da
forma com que os animais respondem. Estes são sempre imediatistas, agem
por reflexo. Os homens, por sua vez, se comunicam após o
desencadeamento de um conjunto de imagens, de símbolos, de significados.
A linguagem humana, portanto, é a forma do ser humano se externar, se
expressar.
É nesta perspectiva que Cassirer compreende o mito: expressão de
uma forma humana especifica de apreender a realidade. Sua lógica deve ser
pensada não a partir da lógica filosófica, mas da lógica dos símbolos: é a
expressão de uma forma de apreender a realidade. Nas palavras de Cassirer
(1972, p. 243): “A humanidade não poderia começar com o pensamento
abstrato ou com uma linguagem racional. Tinha de passar pela era da
linguagem simbólica do mito e da poesia”.
O mito se estabeleceu, portanto, como uma forma de dizer o real, em
um contexto em que o conjunto de símbolos usados se ajustavam, se
combinavam, possibilitando uma compreensão tão clara (comunicativa)
quanto a que a linguagem racional possibilitará depois.
A dimensão de mistério que envolve o homem, no entanto, não foi
completamente decifrada em linguagem científica ou racional. Talvez nunca
venha a ser, fato que relega a linguagem a ser sempre metafórica, nunca
completamente descritiva. Como demonstrar cientificamente o amor, de
modo a que esta descrição satisfaça completamente ao que se intui como
amor? O símbolo continua sendo um veículo capaz de maior poder de
comunicação, quando se trata de realidades que continuam além do que as
ciências conseguem demonstrar.
1.1 Símbolos, Mito e Religião
É consenso no campo de pesquisa das ciências humanas que a
religião está entre as práticas mais antigas da humanidade. Encontramos
vestígios e sinais de ritos e de crenças nos nossos mais antigos ancestrais.
Vigora, hoje, no entanto, divergência sobre o significado e importância da
religião na atualidade.
Segundo Marilena Chauí, a religião se desenvolveu graças à
consciência humana (p. 252). Reconhecemos muito cedo de que não éramos

17
os causadores ou responsáveis pela regularidade da natureza. Percebemos
que esta natureza, com uma ordem inflexível, é uma realidade exterior e
superior a nós mesmos. É de onde teria nascido a crença na divindade: um
ser ou seres superiores, criadores e organizadores da realidade.
A religião se impõe desde sempre, como instância legítima para
narrar e interpretar. Dela temos as mais antigas narrativas de origem, das
quais também se derivam respostas acerca de quem somos e qual o sentido
de nossa existência. O mito hindu, por exemplo, narra não somente como os
seres humanos foram criados (classificados e hierarquizados em um sistema
de castas), mas também qual a ordem social em que devem permanecer
organizados.
O mecanismo através do qual se propagará será o da expressão de
ritos, de objetos e de espaços simbólicos, organizados através de uma
narrativa (os mitos) que englobam temas caros às necessidades humanas.
Entre outras questões, destacam-se:
Quem somos? Qual o sentido da existência? Como
garantir a ordem? Qual o fundamento da ordem? Porque
obedecer as leis? Quais as consequências da
transgressão à ordem? Quais as garantias e prêmios à
obediência? De que forma o conhecimento sagrado se
revela ao ser humano? O que esperar além desta vida?
De que forma se relacionar com o sagrado?
As respostas dadas a estas questões variaram sempre no tempo e
no espaço, cada cultura desenvolveu uma forma própria de responder. O
valor dado a estas respostas também variou.
1.2 Críticas filosóficas negativas à religião
Das apreciações críticas negativas em relação à religião,
destacamos:
a) Entre os gregos, Epicuro, e entre os latinos, Lucrécio,
compreendem a religião como criação supersticiosa: “os seres
humanos criam deuses que lhes são semelhantes”; b) Para
Espinosa (Séc. XVII), a religião é criada para domar os medos
humanos, a após criada, é utilizada como instrumento político
de dominação; c) Para K. Marx, a religião é um fator de
alienação. Seria uma espécie de ópio, que anestesia as dores
da existência, por meio de promessas de salvação em um
mundo posterior. Por sua vez, constitui-se numa crítica à
dominação, no sentido de não enxergar nas misérias
atravessadas, uma manifestação da realidade em seu plano
ideal (neste sentido, a religião é o suspiro do oprimido); d) Para
Nietzsche, a religião se constitui em um sistema que sacrifica a
autonomia do homem, ao lhe apresentar um sentido existencial
exógeno, autoritário e inquestionável; e) Para Sigmund Freud, a
religião se desenvolveu como um mecanismo psíquico de
defesa contra ameaças que não tinha como administrar. Tendo
a história avançado na provisão de tais mecanismos, ou na
consciência humana na inevitabilidade de alguns tipos de

18
males, deveria o ser humano assumir sua condição e afastar de
si a ilusão religiosa.
Na pauta posterior, voltaremos a investigar sob uma análise crítica a
religião e a linguagem mítica, quando interpretadas de forma literal,
fundamentalista, como se fosse análoga à linguagem científica ou filosófica.

1.3 Críticas filosóficas positivas à religião


Das apreciações críticas positivas em relação à religião, destacamos
duas proposições fundamentais:
a)De I. Kant surgiu a crítica definitiva de tentar provar científica ou
filosoficamente a existência de Deus. Para este filósofo, no
entanto, também não existem provas da não existência do
sagrado, uma vez que sua substância está além do empírico.
Lhe resta, no entanto, a necessidade prática da religião, sem a
qual o ordem moral não gozariam de nenhum sustento: “Sem
a crença em Deus e numa alma livre não haveria humanidade,
mas apenas animalidade natural”, afirma. E ainda: “Sem a
crença na imortalidade da alma, o cumprimento do dever não
seria o sinal de nossa destinação futura numa vida superior”
(Apud Chauí, 2005, p. 268);
b)A segundo proposição fundamental surge de Hegel. Para o
filósofo, a religião é uma linguagem histórica do espírito
humano. Sendo assim, não se contrapõe à filosofia, antes,
representa um dos momentos da história do espírito;
c) A terceira apreciação propositiva da religião se dará com a
fenomenologia. Para esta, a consciência humana possui
formas diversas de apreender a realidade. Há uma dimensão
da realidade que é apreendida sob a forma religiosa de
pensar, e neste sentido, a religião é legítima, no sentido de dar
ao homem a mediação com esta dimensão. Aprofundaremos
isto no próximo tópico.
1.4 Como interpretar o mito?
Tendo em vista que o mito surgiu como uma das primeiras
expressões da capacidade simbólica do ser humano, pode se fazer juízos de
valor acerca dos mitos, tomando-os como falsos ou como verdadeiros? Como
devem ser analisados os mitos?
Esta questão foi pensada de duas formas. Na primeira, o mito é
pensado como uma tentativa irracional de organizar a realidade, que se
utiliza da autoridade do sagrado para se impor. Trata-se de um estágio
involuído da comunicação, como defende o filósofo positivista Augusto
Comte, em sua obra Curso de Filosofia Positiva (1973).
Como já destacado, Friedrich Hegel, em sua obra Introdução à
História da Filosofia, compreende o mito como um instrumento didático
histórico, necessário em virtude de conseguir ativar a dimensão sensitiva

19
humana. Na medida em que o pensamento amadurece, no entanto, dispensa
o mito e se satisfaz com conceitos mais complexos e abstratos.
Na segunda forma, representada por Pierre VERNANT, em sua obra
As Origens do Pensamento Grego, o mito é uma linguagem não positiva, mas
que possui lógica própria. Apesar de não usar a linguagem lógica aristotélica,
o mito é reflexão racional da realidade, sendo sua lógica apreendida a partir
de recursos hermenêuticos distintos dos da lógica aristotélica.
A fenomenologia, por sua vez, compreende a linguagem religiosa
como uma das linguagens da consciência. A oposição entre filosofia e
religião é oposição desnecessária, posto que de dimensões diferentes. Nos
dizeres de Marilena Chauí:
Assim, a consciência pode relacionar-se com o mundo
de maneiras variadas – o senso comum, ciência,
filosofia, artes, religião -, de sorte que não há oposição
nem exclusão entre elas, mas diferença. Isso significa
que a oposição só surgirá quando a consciência, estando
numa atitude, pretender relacionar-se com o mundo
utilizando significações e práticas de uma outra atitude.
Foi isso que engendrou a oposição e o conflito entre
filosofia e religião, pois, sendo atitudes diferentes da
consciência, cada uma delas não pôde usurpar os modos
de conhecer e agir nem as significações da outra (Chauí,
2005, p. 268).
De forma semelhante, Martin Heidegger (Apud Giovanni REALE, P.
40) considera o mito como sendo uma expressão mais autêntica da
realidade. A razão, afirma Heidegger, é capaz de apreender a realidade, mas
incapaz de explica-la positivamente, pois não existe uma relação de
igualdade entre coisa e pensamento (são entes de natureza diversa). Neste
sentido, o mito desempenha um papel muito mais eficaz em transmitir e
desvelar seus objetos (HEIDEGGER, 2015).

PAUTA 03 (DESTA PAUTA EM DIANTE SERÁ SOLICITADA NA PROVA)

20
O Período Pré-Filosófico e a sobreposição da forma literalista de
interpretar o mito
Tendo conceituado a Filosofia, tanto etimologicamente quanto
tecnicamente, conforme entendida na modernidade, resta perguntar: como se
dava a interpretação da realidade, a construção dos imaginários, no período
anterior à Filosofia (meados do Séc. V antes da Era Cristã)?
A resposta a esta questão é dada na análise do que se chama de
Período Mítico.
Observa-se na crítica filosófica, que não era a linguagem
simbólica religiosa ou mítica que esteve debaixo da crítica filosófica. E
tampouco foram os que obtinham do mito orientações sob a forma
simbólica que tiveram problemas com a filosofia.
Vejamos:
1 - Período Mítico – o que foi? O Período Mítico foi o período da história do
pensamento, caracterizado pela primazia da forma mítica de se pensar e
interpretar a realidade. É compreendido desde os primeiros relatos da
humanidade, até o momento em que deixou de ser forma exclusiva. Com o
surgimento da Filosofia e das Ciências, a forma mítica não deixou de existir,
mas passa agora a disputar com estas duas novas formas de interpretação
da realidade, na visão que a humanidade terá do mundo.

2 - Novamente, Mito – o que é?


Afirma SEVERO HRYNIEWICZ, em sua obra Para Filosofar, que o
mito se apresenta como narrativa, fala, história. Relata grandes
acontecimentos dos antepassados, dos deuses e heróis. Pergunta:
Acreditava-se que tais narrativas eram reais, verdadeiras? HRYNIEWICZ,
como os teóricos da mitologia, afirma que sim. Quando é contado, quer ser
acreditado como verdadeiro e aceito como tal. 4
“Nós, que vivemos fora do contexto daquela sociedade onde o
mito é apresentando, consideramos também estas narrativas
como lendas, porque, para nós, apesar de interessantes, não se
referem a fatos reais e em muito se parecem com os contos da
carochinha. Consideramo-las como fruto da imaginação de
pessoas não civilizadas, destituídas de raciocínio lógico. No
entanto, para os membros daquele grupo, os mitos não só são
histórias que relatam fatos reais como também são histórias
sagradas, pois, não se referem a pessoas ou fatos comuns, mas
a entidades ou acontecimentos especiais, responsáveis pela
existência e manutenção das coisas, quer daquelas favoráveis,
quer das desfavoráveis”.5
Importa lembrar que, para a compreensão moderna de mito, a
narrativa não é desprovida de lógica, antes possui uma lógica interna, típica
do mito.

4 Cf. Para Filosofar. Pág. 56.


5 Pg. 57.

21
Seguindo a dissertação da filósofa Marilena Chauí, ‘o mito é uma narrativa
sobre a origem de alguma coisa’. 6 Mais que isso, ‘o mito é um discurso
pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem a narrativa como
verdadeira, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em
público, baseada na autoridade e confiabilidade do narrador’.7 Essa
autoridade nasce do fato de que o que a pronuncia, presenciou os fatos ou a
recebeu de quem as presenciou, ou seja, Deus ou os deuses. Sendo assim,
nos instrui Marilena Chauí, quanto à autoridade religiosa que recebeu o mito,
‘Sua palavra – o mito – é sagrada porque vem de uma revelação divina.
O mito é, pois, incontestável e inquestionável’.8
Sintetizando: O mito é uma narrativa explicativa da realidade, em que se
compreende que fora proferida por uma autoridade (individual ou coletiva)
religiosa que alega ter recebido-a da divindade, processo que chama de
‘revelação divina’. Esta autoridade pode ser uma liderança religiosa, um
Texto Sagrado ou uma Tradição Religiosa específica.
Para discussão:
 Que temas eram explicados pelos mitos na Antiguidade?
 Que temas sofreram transformações, ao longo dos séculos, em sua
interpretação? Que temas continuam sendo explicados da mesma forma,
por determinados grupos?
 As narrativas míticas devem ser consideradas inofensivas, pertinentes
apenas ao foro íntimo, acerca das quais a filosofia não deveria discutir, ou
tais narrativas interferem na existência concreta de pessoas, não apenas
do que a defende, mas também de parcela da sociedade, que pode sofrer
a interferência de suas perspectivas?
 As narrativas judaico-cristãs, inscritas na Bíblia, devem ser consideradas
como míticas ou não?
3 - O mito é sinônimo de algo falso na perspectiva da filosofia?
Na perspectiva filosófica, o mito não é sinônimo de falso ou verdadeiro, antes
a linguagem como se criava as interpretações do mundo na Antiguidade. É
uma narrativa que não é filosófica nem científica, pois estas ainda não
existem na época. Neste sentido, tanto as narrativas judaico-cristãs como as
de qualquer outra Tradição, são pensadas a partir deste termo. Trata-se de
uma terminologia descritiva e não um juízo de valor.

4 - Análise (crítica) de caso: filosofia, política e mito


Abaixo, faremos breve análise entre a relação que os mitos tinham para com
a política e a sociedade na antiguidade. Vejamos:
A religião e os Modelos Políticos na Antiguidade
O mito na Antiguidade tem uma face extremamente política. O
que ocorre é que a religião na Antiguidade era, entre outras
coisas, fonte de legitimação de regimes e práticas sociais e

6 Convite à Filosofia. Pg. 34.


7 Idem. Ibidem.
8 Idem. Pg. 35.

22
políticas. A apreciação da literatura religiosa dos povos
mesopotâmicos revela isto, como é o caso do mito “Enuma
Elish”, que apresenta o rei como o representante de Marduk na
terra, que não poderia ser jamais contrariado, enquanto o ser
humano é retratado como um serviçal de Marduk, que deveria
trabalhar e entregar o fruto de seu trabalho ao rei. A escravidão
ali era justificada religiosamente. Os deuses eram patronos dos
poderosos e a religião associava-se sempre à ostentação do
ouro nos palácios e ao poderio militar do rei.
O mesmo exemplo se dava na tradição religiosa hindu, que
compreendia que os seres humanos foram criados e divididos
em quatro castas diferentes, cada uma com funções e
privilégios distintos. Enquanto a Casta dos Brâmanes era vista
como a responsável pela gerência política da sociedade,
afirmava-se que a Casta dos Sudras tinha como única função o
serviço às outras três castas superiores9. Desta forma, justifica-
se a desigualdade econômica a partir da vontade dos deuses.
As guerras entre reis e povos também eram interpretadas como
guerra entre os deuses. Os deuses, segundo o biblista J.
Severino Croatto, “são um símbolo, altamente operativo, da
força política de um povo. Pode se afirmar então que todos os
deuses estão em luta, como projeção dos conflitos de poder
político-sociais entre grupos ou povos”. 10 E ainda, continua o
biblista, “A luta entre os deuses é uma expressão universal do
conflito de poderes cuja instância natural e mais evidente é a
política”. 11
Observação: Esta é uma das características que diferenciam a
literatura bíblica da literatura religiosa da Mesopotâmia.
Enquanto para os povos antigos, os deuses eram legitimadores
da ordem social, na literatura bíblica Javé, a divindade judaica,
se apresenta como aquele que pretende transformar as
relações humanas, sociais, políticas, econômicas e jurídicas, a
partir de um ideal de justiça e solidariedade. O mundo não era o
que Javé idealizava. Por essa razão, Javé se revela como
divindade libertadora, transformadora da ordem social.

O Modelo das Monarquias no Antigo Oriente


O modelo de governo que a Torá exigia que fosse implantada
em Israel apresentava inúmeros problemas para o exercício do
poder monárquico. Ela previa normas de caráter econômico,
jurídico e político que provocava uma distribuição do poder e
renda entre as diversas camadas sociais, através de uma
organização política onde a participação popular na direção dos
rumos da nação era a regra e não a exceção.

9 CROATTO, J. Severino. Os Deuses da Opressão. In: RICHARD, Pablo. A Luta dos Deuses. Pg. 56.
10 CROATTO, J. Severino. Os Deuses da Opressão. In: RICHARD, Pablo. A Luta dos Deuses. Pg. 39.
11 CROATTO, J. Severino. Os Deuses da Opressão. In: RICHARD, Pablo. A Luta dos Deuses. Pg. 39.

23
Esta realidade distanciava-se das diversas manifestações do
regime monárquico no antigo Oriente Médio. Uma breve revisão
de como funcionava deixa claro a razão do por que a monarquia
foi considerada incompatível com à proposta de Javé. Embora
possa se notar pequenas divergências entre reino e reino, os
elementos semelhantes são evidentemente contrários aos
dispositivos da Torá.
a) A Supremacia da vontade do Rei
Segundo Jorge Pixley, na antiguidade “o rei era uma figura
solitária. Sua vontade era lei, tendo ele poder de vida e de morte
sobre os súditos”12. Isto envolvia tanto os seus servos -
militares, sacerdotes e técnicos do palácio -, como também
sobre os camponeses aldeões, responsabilizados por suprir a
corte de todos os itens que se julgasse necessários. Nas
diversas nações vizinhas, o rei era um deus mortal!
b) A Fundamentação Religiosa para a Soberania
A sustentação deste tipo de poder se dava através da religião,
que divulgava a crença em uma divindade suprema que
protegia e legitimava a soberania do rei.
Em parte, esta legitimidade estava garantida pela própria visão
que se tinha do monarca. No Egito, por exemplo, havia uma
fusão entre a divindade e o rei humano. Vejamos:
“O Egito estava familiarizado com a realeza divina
como instituição. Lá, o rei, a princípio, está acima dos
outros deuses como o deus Hórus ou o deus-sol Ra ou
filho de Ra; da quinta dinastia em diante, seu status era
inferior, mas ele permanecia como deus desde o
nascimento, era adorado em templos da morte, depois
de sua morte, e, enquanto na terra, era tanto sacerdote
dos deuses como doador da fertilidade. Sua divindade
não dependia de seu poder político.”13
A ideologia da divindade do rei se estabeleceu através dos
mitos teogâmicos. Após chegar ao poder, no ato da coroação,
os sacerdotes partidários do novo rei divulgavam a
descendência divina do rei. Compreendia-se que o maior deus
tomou forma humana e engravidou uma mulher, a mãe do
Faraó, dando origem a uma pessoa com duas naturezas,
humana e divina. O egiptólogo Julio Gralha esclarece este tipo
de mito:
“A teogamia pode ser descrita como uma união
entre o deus de maior hierarquia (dinástico,
primordial), assumindo a forma do monarca, e um
membro da família real do sexo feminino (a rainha,
por exemplo). (...) Quando o deus assume a forma
do rei, põe em evidência o papel divino da rainha

12 In: O Deus Libertador na Bíblia. Pg. 107.


13 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. Pg. 172.

24
como receptáculo do sêmem divino, o que pode
ser explicado pelo conceito de perpetuação da
linhagem da teocracia faraônica pela rainha mãe.”
14
O Faraó, portanto, era filho da divindade. Quando não um deus,
um semideus. A legitimidade do rei estava garantida, uma vez
que a religião permeava toda a sociedade egípcia,
determinando a compreensão desejada da realidade.
Em regra, os povos acreditavam que existia uma divindade
responsável pela criação do mundo organizado, que o modelou
a partir do caos. Esta divindade patrocina um rei humano, para
administrar os seus interesses na terra. Sendo assim, a religião
legitima as práticas do monarca soberano, fazendo com que
suas práticas sejam tomadas como inquestionáveis. Nas
palavras do biblista J. Severino Croatto:
“O mais sintomático de tudo – e aqui começa a
‘suspeita’ de ideologia entremeada no mito – é o fato de
que o deus triunfante e organizador do cosmos é ao
mesmo tempo o patrono da dinastia reinante e protetor
da cidade-Estado que detém a hegemonia política”.15
Esta associação entre poder político e poder religioso era um
traço comum nas nações antigas. Segundo o biblista Georg
Fohrer, “os reis dos hititas eram sumo sacerdotes, responsáveis
pela condição religiosa da terra; eles tinham mais
responsabilidades cultuais do que em qualquer lugar do Antigo
Oriente Médio, de modo que muitas festividades podiam ser
celebradas apenas com sua participação”.16 Soma-se a este
fato a crença de que após sua morte, os reis se tornavam
deuses.
Nas regiões onde não se admitia a divindade do rei, algo
próximo era apresentado. “Para os sumérios, o rei era um
agente dos deuses”.17 Já os reis acadianos exageravam sua
noção de poder, de modo a identificarem-se com o deus de
suas cidades.
A forma de compreenderem o espaço do reino também era
inverso à proposta da Torá. Segundo Georg Fohrer, “A cidade-
estado suméria representava uma espécie de organização
privada, enquanto propriedade de um deus” 18. À população era
delegada a responsabilidade de prover todas as necessidades
deste deus, figurado na pessoa do rei, representante da
divindade.
a) O serviço devido aos deuses é entregue aos reis

14 In: GRALHA, Julio. Deuses, Faraós e o Poder. Pg. 90.


15 CROATTO, J. Severino. Os Deuses da Opressão. In: RICHARD, Pablo. A Luta dos Deuses. Pg. 45.
16 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. Pg. 172.
17 FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. Pg. 172.
18 FOHRER, G. Estruturas Teológicas Fundamentais do Antigo Testamento. Pg. 308.

25
Os deuses haviam criado os seres humanos para seu serviço
(entre outras atividades, criar animais, plantar e colher, entregar
o fruto da terra no templo/palácio). Este serviço era, na verdade,
realizado ao rei, que se enriquecia com o trabalho de seus
súditos. Segundo o biblista J. Severino Croatto, esta era a
compreensão de vários outros povos. Vejamos:
“O serviço aos deuses, donos da terra e do mundo – e
que se expressa no trabalho, na edificação dos
santuários e nos sacrifícios -, passa para os homens
comuns como serviço ao rei, que tradicionalmente
acumula a função sacerdotal. A Mesopotâmia, o Egito,
Canaã, Jatti e todos os povos vizinhos de Israel
alimentavam essa concepção sem questioná-la”.19
Na Mesopotâmia, compreendia-se ao rei como um delegado da
divindade, para punir as práticas contrárias à vontade dos
deuses locais, bem como garantir o estabelecimento da
ordem.20
Visto assim, compreende-se porque Pixley entende o rei como
uma pessoa solitária. Era, na verdade, uma pessoa singular,
não conhecendo obstáculos contra a sua vontade. Não media
esforços para construir pirâmides e palácios usando trabalho
escravo, nem para adornar templos com ouro e prata,
sacrificando seus súditos em escuras minas de exploração -
quando muito, ao custo do sofrimento do povo.
Impunham pesados impostos sobre a produção na agricultura,
de modo a gerar a fome entre a população. Enchiam seus
haréns das meninas jovens dentre o povo e se entretinham
dentro de uma corte frequentada pelas pessoas mais ricas do
reino.
A fim de garantirem o controle territorial, distribuíam terras que
se constituíam em feudos, governados por uma pessoa de sua
confiança. Mantinham a obediência por meio de um exército
pago com os tributos arrancados da população e através da
doutrinação religiosa, que criava a ideologia suficiente para
impedir questionamentos e revoltas. A religião, portanto,
constituía-se em um instrumento de manutenção dos privilégios
do rei e do grupo que chamava a si mesmo de nobreza.
Um universo social e econômico fixo, onde a pobreza e a
riqueza eram repassadas hereditariamente, sem possibilidades
de mobilidade social. Sem dinamismo, a história dos escravos e
dos camponeses pobres seria eternamente a mesma.

5 - Tipos de Mitos

19 CROATTO, J. Severino. Os Deuses da Opressão. In: RICHARD, Pablo. A Luta dos Deuses. Pg. 57.
20 FOHRER, G. Estruturas Teológicas Fundamentais do Antigo Testamento. Pg. 308.

26
Apesar do tempo ter apagado muito das narrativas antigas, chega até a
modernidade um número razoável de mitos, e ainda continuam sendo
descobertas e traduzidos muitas outras. Deste grande número, pode-se
classifica-los conforme suas temáticas, que são as mais variadas. Segue
classificação do autor destacado:
a) Mitos Teogônicos – narram como surgiram os deuses. Um dos
problemas mais antigos da humanidade é o do surgimento de todas as
coisas. Os mitos traziam narrativas tratando do surgimento dos
deuses. São os mitos teogonicos (teo = deus + gonia = origem,
nascimento).
b) Mitos Cosmogônicos – mitos que narram a origem do mundo
(Kosmos) e dos seres humanos. São extremamente comuns na
Antiguidade, possuindo vários traços comuns entre diversos povos,
como por exemplo, a idéia do ser humano ter sido criado do barro e ter
se tornado ‘alma vivente’ pelo sopro divino em suas narinas.21
c) Mitos Heróicos – narram feitos de seres extraordinários, a fim de
fortalecer a identidade local ou a coragem, diante do perigo. Homens
que matam leões, destroem sozinhos exércitos inteiros, dominam os
fenômenos da natureza, etc.
d) Mitos Escatológicos - são narrativas que preveem o fim de todas as
coisas, do universo ou dos seres humanos. Como exemplo, pode-se
citar a narrativa de Gilgamesh. Na Tradição Cristã, embora tal visão
não seja única, existem grupos de comunidades e teólogos que veem
no livro bíblico do Apocalipse, uma narrativa desta natureza: uma
descrição do fim dos tempos.
e) Mitos de Renovação – ligados, sobretudo, ao tempo, que era
pautado, na Antiguidade, pelas festas religiosas, como as de Ano
Novo e das Colheitas. Abaixo, faremos a leitura do Mito grego de
Renovação da Natureza (Deméter e Cora).

Abaixo, dois tipos de mitos:

a) Mito Cosmogônico

Em sua obra “Espelhos. Uma história quase universal”(p. 13), o escritor Eduardo
Galeano disserta sobre o poder que a narrativa mítica exerce sobre a organização
social na Índia. Vejamos:

“Dizem que foi o rei Manu quem concedeu prestígio divino às castas da Índia. De
sua boca saíram os sacerdotes. De seus braços, reis e Guerreiros. De suas coxas,
os mercadores. De seus pés, os servos e os artesãos. E a partir daí foi construída a
pirâmide social, que na Índia tem mais de três mil andares. Cada um nasce onde
deve nascer, para fazer o que deve fazer. No seu berço aí está a tua sepultura, a
tua origem é o teu destino: a tua vida é a recompensa ou o castigo que você fez
por merecer em suas vidas anteriores, e a hereditariedade dita seu lugar e
função”.

21 Ver livro A Criação e o Dilúvio, da Editora Paulus.

27
Sobre realizar atos que não pertence à sua casta (como ler os livros sagrados,
que só os de casta superior tem autorização), existe um castigo a ser exercido
pela sociedade. Vejamos o que diz Eduardo Galeano sobre o tema:

“O rei Manu aconselhou corrigir a má conduta: se uma pessoa de casta inferior


ouve os versos dos livros sagrados, chumbo derretido será derramado no
ouvidos; e se ele os recitar, sua língua será cortada. Essas pedagogias não se
aplicam mais, mas ainda assim quem sai do seu lugar, no amor, no trabalho ou
seja lá o que for, corre o risco de punição pública que pode matá-lo ou deixá-lo
mais morto do que vivo”.

Sendo assim, impede que as pessoas queiram migrar de casta social. Considera-
se um pecado, uma transgressão, o simples desejar passar para outra casta, pois
ela deve aceitar humildemente o lugar em que a divindade o colocou nesta vida.
Continuando, Galeano descreve ainda a realidade da casta mais baixa do que a
dos dalits:

“Os “sem castas”, um em cada cinco hindus, estão abaixo dos mais baixo nível.
Eles os chamam de intocáveis, porque poluem: malditos entre os malditos, eles
não podem falar com os outros, nem andar em seus caminhos, nem tocar em seus
vasos, nem seus pratos. A lei os protege, a realidade os expulsa. Todos os
humilham, qualquer um os violam, porque lá eles são tocáveis intocáveis. No
final de 2004, quando o tsunami atingiu a costa do Índia, os intocáveis se
encarregaram de recolher o lixo e os mortos. Como sempre”.

b) Mito de Deméter e Cora – Mito de Renovação da Natureza22


Uma das doze divindade gregas do Olimpo, a equivalente deusa
Ceres dos romanos, foi a deusa cretense da fertilidade e da
agricultura e irmã de Zeus, era também conhecida como a deusa
mãe e considerada como deusa da lei, da ordem e do casamento.
Filha dos Titãs Réia e Cronos, era a mãe de Perséfone, sua filha
única de com Zeus. Com sua filha, Corê, eram adoradas juntas e
foi um grande golpe quando sua filha desapareceu. Profundamente
abalada pela perda de sua filha, vagou pelo mundo procurando.
Seguindo o conselho de Hécate, deusa da noite, pediu a Hélio, o
deus-sol e o olho do mundo, que lhe dissesse onde estava sua filha
e quem a havia raptado. Ficou profundamente chocada ao saber
que fora Hades, o Plutão dos romanos, quem a havia levado para
ser a rainha do Érebo, com o nome de Proserpina, ligada ao outro
mundo e aos rituais da morte. Prosseguindo em sua tristeza,
decidiu não voltar para o Olimpo enquanto sua filha não lhe fosse
devolvida e, culpando a terra por ter aberto a passagem para
Hades levar sua amada filha, como deusa da terra cultivada, das
colheitas e das estações do ano, não permitiu que o solo
produzisse nada antes que sua filha voltasse para ela. Assim,

22 http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/MGDemete.html

28
durante o tempo em que ficou fora do Olimpo a terra tornou-se
estéril, o gado morreu, os grãos não germinaram. Os outros deuses
tentaram dissuadi-la, mas ela estava decidida. Finalmente, Zeus
concordou que Perséfone deveria voltar, com a condição que ela
não comesse nada em Hades, pois quem comesse qualquer
alimento nessa região ficava obrigado a retornar. Mas Plutão foi
astuto e planejou uma maneira de a prendeu para sempre aos
infernos. Ofereceu a Perséfone uma romã, o símbolo do
casamento, e ela comeu alguns grãos. No momento em que
Perséfone estava partindo na carruagem de Hermes, que Zeus
havia enviado para apanhá-la, Hades exigiu que ela deveria passar
a metade do ano no mundo dele por ter comido um pouco da romã.
Com isso, ficou estabelecido que Perséfone passaria um período
do ano com a mãe, e outro com Hades, quando é chamada
Proserpina. Desde então, cada vez que Perséfone desce ao mundo
dos mortos para encontrar o seu marido, o inverno chega na terra.
Quando ela volta para a sua mãe é chamada Core, a virgem, a
primavera faz o inverno desaparecer e traz as flores e o verde da
natureza e os grãos brotam, saindo da terra. Na qualidade de
deusa da agricultura, fez várias e longas viagens com Dionísio
ensinando os homens a cuidarem da terra e das plantações. Em
Roma, onde se chamava Ceres ou Cora, seu festival era chamado
Cerélia e celebrado na primavera. Em geral é representada
sentada, tendo em uma das mãos uma foice e na outra um
punhado de espigas e papoulas, trazendo na cabeça, uma coroa
com esses mesmos elementos, cheia de tetas no peito, todas
cheias de leite.

6 - O mito numa perspectiva crítica


Numa perspectiva crítica, o maior problema que a filosofia encontrou na
mentalidade mítica se deu quando as narrativas foram tomadas como literais
e não como simbólicas. No literalismo, a simbologia é esvaziada, restando
apenas a pretensão de que a “verdade” dos mitos deve ser encontrada em
sua literalidade.
Nesta perspectiva, ressalta-se outra análise. Vejamos:
Características da Consciência Mítica
a) Comunitária – não se pensa como indivíduo, na Antiguidade, salvo
raras exceções, sobretudo, pelo herege, que não poucas vezes será
disciplinado ou exterminado da comunidade, por divergir da visão
predominante. A narrativa mítica é de todo o grupo. Não se afirma:
‘este é o meu pensamento, a minha ideia, etc.’. Afirma-se antes: ‘nós,
povo tal, pensamos assim’.

29
Questão: Como a narrativa bíblica que disserta sobre a transgressão
do soldado Acã, e da consequente punição da divindade sobre todo o
povo, ilustra esta característica?

b) Sacralizada – a narrativa mítica é entendida como revelação divina,


sagrada. Não há que se questionar. Pode atravessar o tempo e o
espaço, sem alterar significativamente seu núcleo de informação.
Exemplo: Pode-se destacar o imaginário mítico hindu de ‘divisão de
castas’, que ainda pauta grande parte das relações sociais na Índia
atual. Pesquisar na internet: pode ser requerido em nossa
Avaliação!

c) Acrítica – porque sagrada a narrativa, é aceita sem análises. A dúvida


passa a ser compreendida como fraqueza, e a difusão da dúvida,
como subversão. Há que se ter um respeito absoluto pelas tradições.
Discussão: Por que o ser humano toma como verdadeiro algumas
interpretações da realidade, que fogem da possibilidade lógica ou
cientifica?

7 - Mito e Consciência Individual e Coletiva


O filósofo e escritor brasileiro Rubem Alves explica este processo da seguinte
forma: o indivíduo tem uma experiência religiosa em uma tradição específica.
Esta experiência é inconfundível, única e inquestionável. Ele experimenta a
Fé! De forma natural, passa a associar a autenticidade desta experiência à
instituição que a possibilitou, que a veiculou, dando, portanto, a esta
instituição, o crédito de poder lhe explicar toda a realidade sagrada. Esta
interpretação é tomada, de forma inconsciente, como se fizesse parte
daquela primeira experiência religiosa que teve, ou seja, as interpretações
que a instituição faz da realidade passam a ser tomadas como sagradas
também. No entanto, o mesmo não aderiu àquela tradição por tê-la estudado
previamente, sua lógica, sua fundamentação, sua verdade. Sem querer, ele
acaba adotando tudo o que defende aquela instituição, como se fosse uma
verdade que não precisa questionar, não importando o fato de que outras
instituições se fundamentem no mesmo Texto Sagrado, mas possuem
versões diferentes da interpretação.23

Temas discutidos em Sala:


1. De que forma o mito colabora para a organização social?
2. De que forma pode colaborar para a manipulação das massas, tanto
na Antiguidade quanto na Atualidade?
3. Como se visualiza, desde já, o Direito, na Antiguidade?
4. Em que tipos de mitos se encaixa a narrativa babilônica de Enuma
Elish? Qual a importância da análise desta narrativa, para a Filosofia?

23 Alves, Rubem. Protestantismo e Repressão. Cap. 02.

30
5. Que considerações filosóficas pode-se extrair da narrativa do dilúvio,
presente na Epopéia de Gilgamesh?

8 - Os limites e problemas da mentalidade mítica fundamentalista


Neste tema, faremos análise de diversos mitos em sua relação com os
conteúdos tratados na temática anterior, sobretudo relacionadas às
características da mentalidade mítica.
Desde já, ao proceder as leituras, procure identificar as formas pelas quais os
grupos de poder usavam o imaginário mítico fundamentalista para impedir a
reflexão crítica acerca da realidade, no período anterior à filosofia.
i - Motivos da Permanência do Pensamento Mítico de ordem
Literalista/Fundamentalista
Qualquer narrativa mítica está recheada de imagens de seres divinos, que
não são visíveis no tempo presente. Nestas, anjos, deuses, seres híbridos e
seres humanos se relacionam naturalmente, como se não houvesse
nenhuma barreira ou diferenciação entre os planos divino e humano. Existem
seres divinos fazendo refeição entre os seres humanos. Anjos e deuses em
relação sexual com mulheres, gerando seres semi-divinos. Guerras
envolvendo deuses e seres humanos. Divindades interferindo o tempo todo
nos desenvolvimentos da história humana.
Como já destacado, o mito era a forma de interpretar a realidade durante o
período anterior à Filosofia. Mas, observadas as inconsistências dos mitos,
quando interpretados sob forma literalista/fundamentalista, como explicar que
esta forma tenha perdurado durante tanto tempo na história da humanidade?
O mito pode ser interpretado em várias perspectivas: como linguagem falsa;
como oposto à ciência; como linguagem metafórica ou como linguagem
literal. Quando se fala em mitologia romana, grega ou hindu, como as
consciências reagem, quando se perguntam se podem ser interpretados de
forma literal?

ii - Predomínio da leitura literalista:


Para compreendermos a passagem da vigência do imaginário mítico que
dominava a humanidade, para o surgimento da Filosofia, devemos observar
que tais relatos foram, na maior parte do tempo, interpretados como se
fossem descrições exatas da realidade. Na verdade, esta maneira de ver o
mundo perdurou durante muito tempo após a filosofia, e ainda perdura.
Uma das respostas possíveis a esta questão pode ser percebida, quando
consideramos o surgimento da democracia na Grécia. A democracia vai
proporcionar liberdade para que todo cidadão grego possa participar das
decisões dos destinos da cidade. Antes, esta liberdade estava restrita apenas
ao rei, à corte e aos representantes da religião.

31
A religião era a detentora das revelações divinas, a intérprete autorizada das
questões humanas. Toda vez que alguém contrariava a sua opinião, era
considerado ou como herege ou como subversor da ordem. As únicas
exceções que poderiam ser feitas, eram aquelas originadas pela própria
religião.
O pensamento filosófico, por outro lado, surge pela dúvida, pela curiosidade,
pelo desejo de conhecer mais e melhor, mas representavam afrontas às
opiniões dos sacerdotes e detentores do poder. Então, eram desestimuladas,
consideradas como uma falha de caráter, falta de fé, ou coisa similar. Esta
dominação pode ser percebida em algumas narrativas antigas. Vejamos:
a) Prometeu e o Fogo dos Deuses – Prometeu é um titã grego, que
criou os seres humanos. Desejando a evolução destes, roubou o fogo
de Zeus, a fim de que não perdurassem como os animais, mas
alcançassem existência superior. Por esta atitude, Zeus o condena ao
sofrimento eterno, amarrado a um rochedo, sendo ferido por uma
grande ave. O fogo, no mito, simboliza o conhecimento.
b) A Curiosidade e a Caixa de Pandora - No mito de Pandora, os
deuses, desejando castigar a humanidade pelo fogo do conhecimento
que receberam, criaram a mulher com o intuito de seduzir Epimeteu,
irmão de Prometeu, a abrir uma caixa (Caixa de Pandora) que
continha todos os males que poderiam atormentar a humanidade. A
mulher, dominada por uma curiosidade muito grande, abre a caixa e
deixa escapar toda sorte de males (mentira, doenças, inveja, velhice,
guerra e morte), que afligem a humanidade.
Em ambos os mitos, o desejo pelo conhecimento está associado à
uma desobediência aos deuses. Esta idéia vai ser observada um
pouco mais claramente em outra narrativa. Esta pertence à tradição
iorubá, de origem africana. Ela narra o evento que gerou a separação
entre o Céu e a Terra, bem como o motivo que levou a este
acontecimento. Vejamos:
c) Obatalá separa o Céu da Terra – Trata-se de um mito de tradição
afro-brasileira, que demonstram como o mito pode ser utilizado para
encerrar a curiosidade e a busca de conhecimentos que se utilizam de
outra forma de produção do saber. Vejamos:
No início não havia a proibição de se transitar entre o Céu e a
Terra. // A separação dos dois mundos foi fruto de uma
transgressão, // do rompimento de um trato entre os homens e
Obatalá. // Qualquer um podia passar livremente do Orum para
o Aiê. // Qualquer um podia ir sem constrangimento do Aiê para
o Orum.
Certa feita um casal sem filhos procurou Obatalá // implorando
que desse a eles o filho tão desejado. // Obatalá disse que
não, pois os humanos que no momento fabricava ainda não
estavam prontos. // Mas o casal insistiu e insistiu, // até que
Obatalá se deu por vencido.
Sim, daria a criança aos pais, mas impunha uma condição: // o
menino deveria viver sempre no Aiê // e jamais cruzar a

32
fronteira do Orum. // Sempre viveria na Terra, nunca poderia
entrar no Céu. // O casal concordou e foi-se embora. // Como
prometido, um belo dia nasceu a criança. // Crescia forte e
sadio o menino, // mas ia ficando mais e mais curioso.
Os pais viviam com medo de que o filho um dia // tivesse
curiosidade de visitar o Orum. // Por isso escondiam dele a
existência do Céu, // morando num lugar bem distante de seus
limites. // Acontece que o pai tinha uma plantação // que
avançava para dentro do Orum.
Sempre que ia trabalhar em sua roça, // o pai saía dizendo que
ia para outro lugar, // temeroso de que o menino o
acompanhasse.
Mas o menino andava muito desconfiado. // Fez um furo no
saco de sementes que o pai levava para a roça // e, seguindo a
trilha das sementes que caíam no caminho, // conseguiu
finalmente chegar ao Céu.
Ao entrar no Orum, // foi imediatamente preso pelos soldados
de Obatalá. // Estava fascinado: tudo ali era diferente e
miraculoso. // Queria saber tudo, tudo perguntava.
Os soldados o arrastavam para leva-lo a Obatalá // e ele não
entendia a razão de sua prisão. // Esperneava, gritava, xingava
os soldados.
Brigou com os soldados, // fez muito barulho, armou um
escarcéu. // Com o rebuliço, Obatalá veio saber o que estava
acontecendo. // Reconheceu o menino que dera para o casal
de velhos // e ficou furioso com a quebra do tabu.
O menino tinha entrado no Orum! // Que atrevimento!
Em sua fúria, Obatalá bateu no chão com seu báculo, //
ordenando a todos que acabassem com aquela confusão. //
Fez isso com tanta raiva que seu opaxorô
atravessou os nove espaços do Orum. // Quando Obatalá
retirou de volta o báculo,
tinha ficado uma rachadura no universo.
Dessa rachadura surgiu o firmamento, // separando o Aiê do
Orum para sempre. // Desde então, os orixás ficaram residindo
no Orum // e os seres humanos, confinados no Aiê. //
Somente após a morte poderiam os homens ingressar no Orum.
In: Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Mito 295. Pgs. 514-
516. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
Este mito relata acerca da existência de um período onde ainda não
existia separação entre o lugar de morada dos seres divinos e dos
seres humanos. Dessa forma, abre-se um espaço de explicação sobre
como eventos de caráter miraculoso, maravilhoso, sobrenatural

33
teriam acontecido. É que houve esse momento em que os dois planos,
humano e divino estavam ligados.
Em segundo lugar, o texto trabalha a causa dessa separação.
Secundariamente, seria por causa de uma transgressão, o
descumprimento do trato entre o casal de velhos e Obatalá – o garoto
que havia sido proibido de entrar no Orum, entrou. A culpa recai sobre
os pais. No entanto, o acento mais grave é colocado sobre a atitude de
curiosidade que dominava o menino. Em desobediência ao pai, fura o
saco de sementes, segue e chega até o Céu. A curiosidade, neste
caso, é uma atitude problemática, porque leva o indivíduo a
transgressões de ‘tabus’, ditames que devem ser obedecidos,
porque divinos. Este é um problema típico, tratado na literatura
universal, sobretudo de governos e instituições autoritárias. Equivale
proximamente ao estabelecimento da censura, onde ficava explicitado,
através de lista de livros e doutrinas que ideias não poderiam jamais
ser defendidas. Trata-se, em medida maior, de uma castração da
liberdade de pensamento, sobretudo em relação a dogmas
estabelecidos, dos quais dependem as instituições.

d) A Narrativa Judaica e o Pecado de Eva:


A narrativa judaico-cristã acerca das origens dos seres humanos
foram, não poucas vezes, utilizada para inibir a inquirição, a pesquisa
e a crítica dos posicionamentos vigentes.
Roger Shattuck, em sua obra ‘Conhecimento Proibido’, situa a
tentação ocorrida a Eva como tentação à posse de um conhecimento
proibido. A insinuação da serpente a Eva foi a de que, comendo a fruta
do conhecimento do bem e do mal, teria um conhecimento equivalente
ao de Deus. O texto serviria, portanto, a desestimular esta busca. Cf.
Shattuck, 41.
Segundo o autor, ‘Nenhum outro mito da criação que conheçamos
mostra maior clareza e concentração ao tratar do conhecimento
proibido’. Shattuck, 62.
Em 1559, por ocasião do cisma protestante, o catolicismo erigiu o
Index librorum prohibitorum, lista de leituras proibidas.
“Os tabus são proibições muito antigas que em certo momento foram
impostas a uma geração de povos primitivos, isto é, provavelmente
lhes foram imprimidos pela força por uma geração anterior. Essas
proibições diziam respeito a ações em relação às quais existia um
forte desejo. Freud, Totem e Tabu”. In: Shattuck, 43.
“Durante boa parte da Idade Média, a busca pelo conhecimento foi
comparada à atitude de Eva em desejar o conhecimento proibido. Foi
apenas após ‘O Progresso do Aprendizado’, de Francis Bacon, no
século XVII, que a busca pelo conhecimento alcançou um status
positivo, abrindo novos campos de pesquisa”. Cf. Shattuck, 45.

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iii – Análise crítica dos mitos, quando lidos de forma
literalista/fundamentalista
Verdade é que os mitos podem ser interpretados sob perspectivas diversas.
A forma simbólica, mediadora de uma racionalidade própria, não é a
predominante, antes, reina a forma literalista de interpretar o mito. Impera
questionar:
a) Ao ler os mitos acima, pode-se afirmar ter existido um tempo em que
isso acontecia dessa forma?
b) Se aconteceu, por que já não se tem mais este tipo de contato que a
humanidade tinha, na antiguidade, com a esfera divina?
c) Se não aconteceu, sob que perspectivas deveríamos analisar as
narrativas míticas?
d) Quais são as respostas oferecidas pelo mito acima descrito, para estas
questões?
e) Tais respostas poderiam ser lidas em perspectivas diferentes?
Para a filosofia, a perspectiva crítica se faz sempre necessária. Destaca-se a
que é chamada de ‘hermenêutica da suspeita’, desenvolvida por Nietzsche,
Marx e Freud – que vem afirmar que os textos devem ser lidos principalmente
em suas entrelinhas, em seus objetivos ocultos. A partir desta perspectiva,
diversos problemas se apresentam. Vejamos:
Se adotarmos uma perspectiva literalista, questiona-se: como as ideias
transmitidas pelo mito poderiam ser verificadas e comprovadas? Uma vez
que a credibilidade de toda narrativa mítica esteja embasada em
fundamentos não verificáveis, não repetíveis, intangíveis, como explicar que
hoje já não existem mais tais fenômenos?
Uma resposta que tem se considerado é a de que os fenômenos narrados
pelos mitos já não se repetem mais, em virtude de algum evento que separou
a história em um “antes” e um “depois”, onde tais fenômenos não ocorram
mais. O mito da “separação do céu e da terra”, acima descrito cumpre bem
esta função. A partir dele, aceitamos que suas narrativas sejam críveis,
porque se deram em um momento na história da humanidade em que as leis
da natureza seguiam outros cursos.
Circularidade dos mitos: Desta forma, a possibilidade de verificação da
pertinência de uma interpretação literal do mito fica amarrada no próprio mito:
‘Eu creio nos mitos, ainda que expressem acontecimentos e experiências
absurdas, porque outro mito me explica a razão pela qual tais
acontecimentos já não mais se repetem’. Em outras palavras, o fundamento
do mito fica sendo o próprio mito. ‘Eu acredito neste mito porque acredito em
outro mito’. E assim por diante.
Sendo assim, os mitos com este timbre, cumprem a função de desmotivar a
atitude crítica, como também amarrar a busca pelas verdades ou falsidades
do mito no próprio mito, e em nada mais.
Uma vez que o imaginário mitológico sempre foi usado para justificar a ordem
e a desordem social, o status quo, a distribuição e configuração da sociedade
em termos de renda e classe, a Filosofia representa um dos maiores avanços
na história da humanidade, no que diz respeito a ‘métodos de apreensão da
realidade’ e de ‘destruição dos imaginários opressivos’.

35
Ela faz isto perguntando acerca da pertinência dos relatos, mitológicos,
religiosos, filosóficos ou científicos. No exemplo trabalhado, não se pretende
responder à possibilidade histórica da relação entre o sagrado e o humano,
nem pergunta sobre a suposta causa da separação entre o plano divino e
humano, ou ainda explicar como se daria esta relação, questões que
pertencem às opções religiosas e/ou filosóficas individuais, estando ainda
fora da lente filosófica. Procura-se antes, verificar que as respostas acima
produzidas servem a interesses específicos, e cumprem eficazmente
determinadas finalidades: mais do que explicar determinadas realidades, o
mito as justifica, inibindo ainda, a atitude crítica e a pesquisa. E é a atitude
filosófica quem denuncia este fato!”
Das quatro exemplificações acima, pode-se visualizar a estratégia do
imaginário mítico em coibir a curiosidade, a busca por leituras da realidade
que estejam fora do domínio da instituição que goza da autoridade e do
poder de interpretar a realidade.

Iv - Construção conceitual da realidade e controle do Pensamento


Vale destacar que a busca por controle do pensamento não é uma prática
que foi adotada apenas pela religião. Em geral, os regimes ditatoriais
procuraram exercer este controle, como foi o caso dos regimes militares na
Alemanha Oriental, na Coréia do Norte, na China, no Brasil e até mesmo nos
EUA na década de 60.
De que forma, ainda hoje, instituições religiosas e/ou seculares, procuram
desestimular a curiosidade?

36
PAUTA 04
Características e Períodos da Filosofia Grega
Fatores Históricos para a Emergência da Filosofia
Marilena Chauí esclarece que o surgimento da Filosofia não se deu de maneira
miraculosa, como fenômeno desconectado das condições históricas pelas quais
passava a Grécia naquele período. Ao contrário, é perfeitamente compreensível seu
surgimento, dado os fatores que lhe tornaram possível.
Na passagem do período arcaico para o período clássico na Grécia (Séc VII aC. ao
VI aC.), mudanças de diversas ordens estão acontecendo, que irão alterar os rumos
da cidade e do mundo. A monarquia, forma de governo adotada em quase todo o
mundo antigo, está sendo substituída na Grécia por uma forma rudimentar de
democracia, o que vai possibilitar liberdade aos cidadãos de participarem dos
comícios públicos, opinando sobre diversos assuntos. O que até então era
monopólio do rei, de sua corte e principalmente da religião, agora é distribuído a
todos os cidadãos gregos.
Aliado a esta reforma política, está o desenvolvimento do comércio, que implicará
em viagens marítimas e na criação da moeda, um novo sistema cambial. Pode-se
citar ainda a invenção do calendário e da escrita alfabética e o surgimento da vida
urbana.
Onde tais fatores interferiram na forma de pensar antiga?
a) Na medida em que os mercadores viajavam, saindo ou vindo da Grécia,
estabeleciam contatos com outros culturas, o que lhes possibilitava ter
contato com pelo menos duas impressões, que serão decisivas na mudança
do pensamento grego:
b) Primeiro, que os seres mitológicos, monstros, semideuses, etc., não se
encontravam em lugar algum: nem no mar nem nas longínquas terras por
onde passavam. Até então, acreditava-se que existiam, mas em terras não
exploradas, ou no oceano ainda não navegado, ou em rotas que ainda não
tinham sido trafegadas. Na medida em que se percorre a terra e o mar, mas
nada se encontra, vai ficando claro de que eles não existiam de fato. Esta
impressão contribuiu, em grande parte, para uma desmistificação do mundo.
c) Segundo, as narrativas míticas estavam em todos os lugares, com conteúdos
diferentes, mas formas semelhantes. Cada povo possuía a sua cosmogonia,
suas interpretações míticas acerca dos diversos aspectos da realidade. No
entanto, cada um lutava por afirmar a superioridade de sua tradição e
revelação, mesmo sendo suas crenças desprovidas de lógica ou coerência
interna, bem como serem inverificáveis. A impressão gerada por esta
experiência não poderia ser maior, gerando um desencantamento acerca da
verdade das narrativas locais.
d) Quanto ao surgimento da escrita alfabética, foi fundamental para a
desconstrução dos mitos. O que até então era repassado apenas pela
tradição, pelos anciãos ou pelos religiosos, agora poderia ser repassado,
analisado, comparado e criticado por quem quer que tivesse uma cópia dos
mitos nas mãos.
e) Por sua vez, o surgimento da política vai gerar um desencantamento acerca
da divindade do rei e dos destinos da história humana. Na medida em que os
cidadãos vão participando na direção dos negócios públicos, mais e mais fica
claro que a história não é um eterno retorno, ou um fato dirigido pelos
deuses, mas uma construção humana. Ademais, com a democracia, o

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espaço que até então era reservado apenas ao rei, aos poetas e aos
sacerdotes religiosos, que é o da fala e da interpretação da realidade, vai
sendo ocupado por leigos, que lutam por afirmar outras formas de
entendimento.

O Método da Filosofia
Na medida em que as narrativas míticas iam sofrendo o relativismo, junto com um
desencantamento do mundo, estabelecia-se se a necessidade de se criar um critério
que pudesse ser compartilhável, universal e acessível a todos quantos desejassem
procurar pelas respostas propostas.
O critério a ser utilizado vai ser o da argumentação lógica, acessível a qualquer
pessoa. Caso uma resposta não fosse provada racionalmente, não mais era aceita.
Até o surgimento da Filosofia, uma opinião poderia ser considerada verdadeira,
tendo em conta a autoridade de quem a emitia. Se era um ancião experiente, um
sacerdote ou um poeta inspirado, era aceita. Caso fosse um leigo comum, era
desconsiderada. A partir dos pré-socráticos, a verdade deveria ser demonstrada
racionalmente, independente de quem estivesse falando. Isso era feito, através de
regras universais do pensamento, como por exemplo, ‘o princípio da identidade’, que
diz que uma coisa não pode ser algo e o seu contrário ao mesmo tempo (ou é maçã
ou pêra; ou é homem ou animal; ou é noite ou é dia). Parece simples, mas esta
simples regra vai colocar limites ao pensamento mitológico. Como continuar
defendendo a existência de sereias, por exemplo, a partir de então? Ou é uma
mulher ou é um peixe. Não há como ser as duas coisas ao mesmo tempo, nem
tampouco metade uma coisa e metade outra. Se uma fala possui contradição, ela
passa a ser considerada falsa.
Na medida em que vão se estabelecendo regras para o raciocínio correto, as
mesmas passam a ser aplicadas a todos os fenômenos passíveis de racionalização,
gerando uma nova maneira de pensar a realidade. Tornou-se um fenômeno
irreversível, do qual somos herdeiros até os dias de hoje.

1 – Quatro grandes períodos da Filosofia grega:


1) Período pré-socrático ou cosmológico (final Séc. VII ao final Séc. V a.C.), quando
a Filosofia se ocupa com a origem do mundo e as causas das transformações na
Natureza.
2) Período socrático ou antropológico, do final do século V e todo o século IV a.C.,
quando a Filosofia investiga as questões humanas, isto é, a ética, a política e as
técnicas (em grego, ântropos quer dizer homem; por isso o período recebeu o
nome de antropológico).
3) Período sistemático, (final Séc. IV ao final Séc. III a.C.). A Filosofia busca reunir
e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a antropologia.
4) Período helenístico ou greco-romano, do final do século III a.C. até o século VI
depois de Cristo. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento
dos primeiros Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa sobretudo com as questões
da ética, do conhecimento humano e das relações entre o homem e a Natureza
e de ambos com Deus.

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I - Período pré-socrático ou cosmológico
I.1 - Importância da Filosofia Pré-Socrática
Os pré-socráticos foram os primeiros pensadores da filosofia grega. Estão
presentes a partir do século VI a.C., e tiveram como preocupação maior a
origem do Universo e as origens e causas dos fenômenos da natureza. Ao
contrário de seus predecessores, que embasavam o pensamento na
linguagem mitológica, passaram a buscar explicações através da razão e do
conhecimento científico.
Pode-se dizer que o maior mérito deste período não é o conteúdo produzido,
propriamente dito, mas a radical inovação na maneira de pensar. Saindo do
método mítico de interpretar a realidade, irão instaurar a racionalidade como
exigência para se responder a uma série de perguntas de ordem
cosmológica.
Esta fase inaugura uma nova mentalidade, baseada na razão, e não mais no
sobrenatural e na tradição mítica. As principais escolas deste período são a
escola jônica (ou escola de Mileto), a eleática, a atomista e a pitagórica.
a) Os pensadores da escola Jônica, como Anaxímenes (585 a.C.-525
a.C.), Anaximandro (610 a.C.-547 a.C.), Tales de Mileto (624 a.C.-545
a.C.) e Heráclito (540 a.C.-480 a.C.), buscam explicações para o
mundo na idéia de que existe uma natureza comum a todas as coisas,
que está em eterno movimento. É de Heráclito a expressão "não nos
banhamos duas vezes no mesmo rio", expressando o movimento
contínuo de todas as coisas. Com a expressão ele quer dizer que tudo
muda, já que o rio em que eu entro para me banhar já não é o mesmo
de quando eu saio, pois já é composto de outras águas. Tudo está em
movimento.
b) Já para os pensadores da escola de Eléa, como Parmenides (515
a.C.-440 a.C.) e Anaxagoras (500 a.C.-428 a.C.), pensam que o ‘ser’,
ou a substância comum a tudo na natureza, é imóvel e imutável,
completo e perfeito.
c) Ainda, na escola atomista, onde exerce pensamento Leucipo (460
a.C.-370 a.C.) e Demócrito (460 a.C.-370 a.C.), defende-se a idéia de
que o Universo é formado de átomos indivisíveis e infinitos reunidos
aleatoriamente.
d) O filósofo Pitágoras (580 a.C.- 500 A.C.), afirma que a substância de
todas as coisas é a alma imortal, que existe antes de todas as coisas.
O corpo é para a alma uma espécie de castigo, por erros cometidos
em existência anterior. Podemos considerar suas idéias como
sementes das idéias de Platão.

Os principais filósofos pré-socráticos foram: Tales de Mileto, Anaxímenes


de Mileto, Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso; Pitágoras de Samos,
Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento; Parmênides de Eléia e Zenão de
Eléia; Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena, Leucipo de
Abdera e Demócrito de Abdera.

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I.2 - Perguntas da Filosofia Pré-Socrática
Qual foi o ponto de partida dos filósofos pré-socráticos? Quais eram as suas
perguntas? A Filosofia pré-socrática é também chamada de cosmológica,
porque ela pergunta pelo cosmo (mundo): Qual a sua origem? Quais são os
fatores que o levam ao movimento que apresenta? Qual é o movimento do
cosmo (cíclico, caótico ou histórico)?.24
A filósofa brasileira, Marilena Chauí, apresenta uma longa lista das questões
apresentadas por este período. Vejamos:
“Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão
origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um
cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os
diferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece
fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera, um
objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro
escurece com o passar do tempo? Por que tudo muda? A criança se
torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia
de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até
ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e
ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna
sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela
tempestade, pelos raios e trovões? Por que a doença invade os
corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes me
agradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o
som da música que antes me embalava, agora, que estou doente,
parece um ruído insuportável? Por que o que parecia uno se multiplica
em tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos
nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem! Por que as coisas
se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e
de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser
líquida e transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O dia, que
começa frio e gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio de calor.
Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os
seres? Para onde vão, quando desaparecem? Por que se
transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas também,
por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite; depois da noite,
o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o verão,
depois deste, o outono e depois deste, novamente o inverno. De dia, o
sol; à noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e
propício à navegação; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens.
O calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas.
Ninguém nasce adulto ou velho, mas sempre criança, que se torna
adulto e velho”.25

24 Movimento cíclico é aquele que sempre volta. É como dizer: o que aconteceu ontem, vai continuar acontecendo
hoje e sempre. Não há espaço para mudanças. O movimento caótico é aquele que não manifesta nenhum sentido.
Não há garantias para prever, planejar ou controlar os eventos futuros. Eles acontecem ao acaso. Já o movimento
histórico é aquele em que o homem constrói o mundo, através de suas ações. Se alguns fatos voltam a acontecer,
ou se manifestam como o caos, é porque o ser humano não agiu sobre eles.
25 Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. Pg. 25.

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Todas estas perguntas também eram debatidas por outras fontes de
conhecimento da época. A novidade não consistirá de novas perguntas, mas
novas maneiras de se coloca-lás, bem como novos métodos para se alcançar
suas respostas. A maneira antiga, a da mitologia, já não correspondia mais
aos anseios e exigências deste período. Quais foram os motivos para tal
mudança?

I.3. As principais características da cosmologia são:


1) É uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e
transformação da Natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de
modo que, ao explicar a Natureza, a Filosofia também explica a origem e
as mudanças dos seres humanos;
2) Não existe criação do mundo. Nada vem do nada e nada volta ao nada. O
mundo é eterno; Na natureza, tudo se transforma em outra coisa sem
jamais desaparecer;
3) O fundo eterno, perene, imortal, de onde tudo nasce e para onde tudo
volta é invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho do
espírito, isto é, para o pensamento;
4) O fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para
onde tudo retorna é o elemento primordial da Natureza e chama-se physis
(grego - fazer surgir, fazer brotar, fazer nascer, produzir);
5) Afirma que, embora a physis (o elemento primordial eterno) seja
imperecível, ela dá origem a todos os seres infinitamente variados e
diferentes do mundo, seres que, ao contrário do princípio gerador, são
perecíveis ou mortais;
6) Afirma que todos os seres são seres em contínua transformação (as
cores, as estações, medidas, etc). O mundo está em mudança contínua,
sem por isso perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade. Esta
mudança chama-se movimento;
7) Os movimentos seguem leis que o pensamento pode conhecer.
Cada filósofo elaborou sua teoria acerca da physis, ou seja, do principio
eterno e imutável, gerador do todo da realidade: Tales = água; Anaximandro
= o ilimitado sem qualidades definidas; Anaxímenes = o ar ou o frio; Heráclito
= fogo; Demócrito = átomos; etc.

I.4 - O que estava em jogo na pergunta dos Pré-Socráticos?


As cosmologias traziam consigo respostas a questões que eram
fundamentais para o estabelecimento da ordem dominante. Os mitos
fundamentavam, entre outras idéias, a justificação da escravidão, a da
inferioridade dos povos estrangeiros, a do papel do povo frente ao poder e
autoridade do rei ou imperador, a divisão da sociedade em classes, entre
outras idéias.
Vejamos esta análise em duas narrativas míticas: a primeira, a narrativa
babilônica acerca da criação da humanidade, e a segunda, a criação hindu
da humanidade.
I.4.1 - Enuma Elish Tablete 06 – A Criação do Ser Humano

41
Após ouvir o apelo dos deuses, para que se crie um serviçal
para fazer o plantio e a colheita, Marduk afirma:
“Quero criar este ser humano, este Homem, para que,
encarregado do serviço dos deuses, estes tenham paz”.
Após criar o ser humano, os deuses querem homenagear
Marduk, e fazem isto construindo um grande templo na
Babilônia, que será o lugar de suas habitações.
“Agora, meu senhor, que tu estabeleceste nossa liberação, qual
será o sinal de gratidão nossa a teu respeito? Ora, façamos o
que terá por nome o Santuário: que em tua câmara santa seja
onde passemos a noite; aí repousemos. Sim, fundemos um
santuário; seu lugar será nossa base terrena: o dia em que
chegarmos, encontremos aí o repouso”.
O mito estabelece a Babilônia como a cidade onde todo o mundo surgiu, e
ainda o lugar onde a maior divindade mora. Quem controla a religião, neste
período, controla todo o povo que segue suas doutrinas.
Este mito nos traz ainda declarações acerca de qual é o sentido da vida
humana: trabalhar para os deuses. Os camponeses iriam plantar para deixar
o Templo cheio de cereais, ainda que não fossem diretamente os deuses
quem iriam receber as oferendas. Neste mito, portanto, se justifica o fato de
que os camponeses e pessoas pobres da Babilônia eram vistas como tendo
sido criadas pelos deuses para o trabalho e para o abastecimento de suas
necessidades. Acontece que não eram as divindades que acabavam
tomando posse da produção dos camponeses, mas o rei e os integrantes de
sua corte.

I.4.2 - Mito Hindu da divisão social em castas26


De acordo com a mitologia hindu, presente no livro de Manu
(escrito provavelmente entre 600 e 250 a.C.), da imagem de um
deus surgiram os seres humanos, divididos em quatro classes
distintas. Da cabeça do ser divino, nasceram os brâmanes, que
são sacerdotes e os nobres. Dos braços, nasceram os xátrias,
que eram os guerreiros. Das pernas nasceram os vaixas, que
são os comerciantes e camponeses. Dos pés, nasceram os
xudras, que são os serviçais. Existe ainda alguns que não se
encaixam em nenhuma casta, que são os parias ou intocáveis,
da classe mais baixa, submetidos aos trabalhos mais
degradantes e mal pagos da Índia.
Deste imaginário, fica estabelecido que as divisões sociais de
classes seguem um plano divino. A posição social de uma
pessoa é hereditária, por estar atrelada à casta que pertence,
sendo impossível qualquer tipo de mudança. Os casamentos
entre pessoas de castas diferentes são proibidos. Neste sentido,

26 Veja também http://hinduism.iskcon.com/concepts/108a.htm e http://hinduism.iskcon.com/lifestyle/901.htm

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a religião acabou por se tornar um poderoso elemento de
dominação e de discriminação.
“Para nós, ocidentais, é absolutamente estranho que a
gente tenha uma condição de uma sociedade onde não
haja uma mobilidade social. Mas se você perguntar para
um hinduísta, é provável que ele diga: ‘mas este é o
dharma que eu tenho que fazer aqui, é o meu dever’.
Quando você estabelece estruturas fechadas e mantém
uma base religiosa que diz que é assim porque é assim
que tem que ser, se cria aí uma condição de facilidade de
domínio”.
Filósofo Mário Sérgio Cortella. Jornal da Globo. 07 de
Março de 2007.27

Conclusões
Esta é uma fase de transição entre pensamento mítico antigo e o
pensamento filosófico que ora surge. É importante destacar que a
mentalidade mítica pode ser utilizada para dominação ou para libertação das
consciências. Nos casos exemplificados acima, observamos dois mitos que
foram e ainda o são, a interpretação mais aceita quanto ao sentido da vida.
Sendo assim, fica claro como é importante o exercício filosófico sobre a
realidade, a fim de nos livrarmos de todo imaginário ideológico que queira
determinar o sentido de nossa vida, tendo em vista ações desumanizantes e
opressoras.

Exercícios
Cite exemplos acerca de como o mito pode ser usado para dominação e
opressão.

Perguntas que podem ser requeridas na Avaliação Final


1. O que é a Filosofia Pré-socrática?
2. Explique os fatores históricos e materiais que contribuíram para o
surgimento da Filosofia na Grécia.
3. O que está em risco, quando uma mitologia da criação do ser humano é
desacreditada?

Bibliografia Básica:
1. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática Editora, 1999.
2. Gaarder, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.

27 Jornal da Globo. In: http://jg.globo.com/JGlobo/0,19125,VTJ0-2742-20070307-269970,00.html

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3. Stein, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia. Ijuí: Unijuí Editora, 2002.
4. Osborne, Richard. Filosofia Para Principiantes. Rio de Janeiro: Objetiva
Editora, 1998.

II - Período socrático ou antropológico


Com o desenvolvimento das cidades, do comércio, do artesanato e das artes
militares, Atenas tornou-se o centro da vida social, política e cultural da
Grécia, vivendo seu período de esplendor, conhecido como o Século de
Péricles.
É a época de maior florescimento da democracia. A democracia grega
possuía, entre outras, duas características de grande importância para o
futuro da Filosofia.
1. Igualdade de todos os homens adultos perante as leis e o direito de
todos de participar diretamente do governo da cidade, da polis;
2. Garantia a todos de participação no governo, e os que dele
participavam tinham o direito de exprimir, discutir e defender em
público suas opiniões sobre as decisões que a cidade deveria tomar.
Surgia, assim, a figura política do cidadão. (Nota: Devemos observar
que estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de
dependentes: mulheres, escravos, crianças e velhos. Também
estavam excluídos os estrangeiros.);
3. Destaca-se o valor da retórica, da oratória, da argumentação, como
técnica preponderante nos debates públicos.
Para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas assembléias, o cidadão
precisava saber falar e ser capaz de persuadir. Valoriza-se, a partir de então,
a educação.
Nas aristrocracias, o padrão de virtude era a do homem guerreiro, corajoso.
Na democracia, era a educação e participação na polis. Prioriza-se o orador,
o persuasivo, o desinibido em público.

Sofistas como Educadores:


A figura dos sofistas na antiguidade era polêmica. Eram estudiosos que se
dedicavam ao ensino. Foram marginalizados pela filosofia oficial, sobretudo
por Sócrates e Platão, por duas razões: a) cobravam pelo ensino ministrado;
b) defendiam que a verdade é uma criação cultural, ou seja, é relativa. “Não
existe um verdade absoluta”, afirmavam, declaração que angariou muitos
inimigos.
No entanto, os Sofistas tem sido recuperados pela historiografia filosofia
contemporânea. Eram educadores. Trabalhavam as contradições como
método. Ensinavam a arte da persuasão. A verdade para eles é relativa.

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Uma das características destes era a exposição das contrariedades dos
filósofos cosmologistas. Apresentavam as contradições, e transformavam
esta tarefa em um método a ser ensinado, na oratória e na retórica.

Que arte era esta? A arte da persuasão. Os sofistas ensinavam técnicas de


persuasão para os jovens, que aprendiam a defender a posição ou opinião A,
depois a posição ou opinião contrária, não-A, de modo que, numa
assembléia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma opinião
e ganhassem a discussão.
Inimizade entre Sócrates e os Sofistas:
Sócrates rebelou-se contra os sofistas. Segundo ele, não eram filósofos, pois
não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela verdade, defendendo
qualquer ideia, se isso fosse vantajoso. Como professores de retórica,
preocupavam-se com a construção da argumentação.
No entanto, Sócrates concordava com os sofistas em um ponto: por um
lado, a educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências
da sociedade grega, e, por outro lado, os filósofos cosmologistas defendiam
idéias tão contrárias entre si que também não eram uma fonte segura para o
conhecimento verdadeiro.

Proposta de Sócrates:
1. Antes da natureza, deve-se conhecer o ser humano:
Sócrates propunha que, antes de querer conhecer a Natureza e antes de
querer persuadir os outros, cada um deveria, primeiro e antes de tudo,
conhecer-se a si mesmo. A expressão “conhece-te a ti mesmo”. Por isso
esse período é chamado ‘Antropológico’.

2. Perguntas acerca do conceito de cada coisa:


A opinião varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época
para época. É instável, mutável, depende de cada um, de seus gostos e
preferências.
O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e
necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência
universal, intemporal e necessária de alguma coisa.
Por isso, Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela - pois
nossa opinião sobre ela pode variar - e sim: O que é a beleza? Qual é a
essência ou o conceito do belo? Do justo? Do amor? Da amizade?
Sócrates perguntava: Que razões rigorosas você possui para dizer o que
diz e para pensar o que pensa? Qual é o fundamento racional daquilo que
você fala e pensa?
Ao fazer suas perguntas e suscitar dúvidas, Sócrates os fazia pensar não
só sobre si mesmos, mas também sobre a polis. Aquilo que parecia
evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto.

45
Esta característica socrática pode ser visualizada na imagem que Platão
oferece acerca de seu mestre. Qual o retrato deixado?
R: O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo
mercado e pela Assembléia indagando a cada um: “Você sabe o que é
isso que você está dizendo?”, “Você sabe o que é isso em que você
acredita?”, “Você acha que está conhecendo realmente aquilo em que
acredita, aquilo em que está pensando, aquilo que está dizendo?”, “Você
diz”, falava Sócrates, “que a coragem é importante, mas: o que é a
coragem? Você acredita que a justiça é importante, mas: o que é a
justiça? Você diz que ama as coisas e as pessoas belas, mas o que é a
beleza? Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem,
mas: o que é a amizade?”
3. A consciência da própria ignorância é o começo da filosofia.
4. Diferença entre opinião e conceito - A opinião varia de pessoa para
pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável,
depende de cada um, de seus gostos e preferências. O conceito, ao
contrário, é uma verdade intemporal, universal e necessária que o
pensamento descobre, mostrando que é a essência universal,
intemporal e necessária de alguma coisa.
Por isso, Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela - pois
nossa opinião sobre ela pode variar - e sim: O que é a beleza? Qual é a
essência ou o conceito do belo? Do justo? Do amor? Da amizade?
Sócrates perguntava: Que razões rigorosas você possui para dizer o que
diz e para pensar o que pensa? Qual é o fundamento racional daquilo que
você fala e pensa?
Ao fazer suas perguntas e suscitar dúvidas, Sócrates os fazia pensar não
só sobre si mesmos, mas também sobre a polis. Aquilo que parecia
evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto.

5. Confiança no valor do pensamento. O ponto de partida da Filosofia é a


confiança no pensamento ou no homem como um ser racional, capaz de
conhecer-se a si mesmo e, portanto, capaz de reflexão.
6. Maiêutica como método. Sócrates acredita que as respostas às
indagações humanas já estejam no interior das pessoas, em suas
mentes. O educador, neste sentido, deve utilizar um método de ensino
que provoque cada pessoa a trazer à consciência a verdade. Sendo
assim, o processo de ensino não é um movimento em que o professor dá
a resposta ao estudante, antes, um que ele provoca o estudante e
descobrir a verdade.

2.3 - Período sistemático

46
Aristóteles de Estagira. Apresenta uma verdadeira enciclopédia de todo o
saber que foi produzido e acumulado pelos gregos como sendo a Filosofia.
Filosofia como totalidade.
A Filosofia estabelece uma diferença entre esses conhecimentos,
distribuindo-os numa escala que vai dos mais simples e inferiores aos mais
complexos e superiores.
Cada campo do conhecimento é uma ciência (ciência, em grego, é episteme).
Aristóteles afirma que, antes de um conhecimento constituir seu objeto e seu
campo próprios, seus procedimentos próprios de aquisição e exposição, de
demonstração e de prova, deve, primeiro, conhecer as leis gerais que
governam o pensamento, independentemente do conteúdo que possa vir a
ter.
O estudo das formas gerais do pensamento, sem preocupação com seu
conteúdo, chama-se lógica, e Aristóteles foi o criador da lógica como
instrumento do conhecimento em qualquer campo do saber. A lógica não é
uma ciência, mas o instrumento para a ciência.

Destaques da Filosofia Aristotélica


a) Ontologia – Estudo da essência do “ser”, ou seja, busca pela verdade,
pela essência de cada tema, objeto em análise.
b) Epistemologia – Estudo sobre o método adequado para dissertar,
pesquisar, analisar o “ser”.
c) Teleologia – Estudo sobre a finalidade do “ser”, ou seja, a finalidade, o
sentido de todas as coisas. A partir deste conhecimento, será possível
estabelecer orientações sobre política, ética e direito.
Os campos do conhecimento filosófico de acordo com Aristóteles:
a) Ciências produtivas: ciências que estudam as práticas produtivas ou
as técnicas: arquitetura, economia (produção agrícola, o artesanato e
o comércio), medicina, pintura, escultura, poesia, teatro, oratória, arte
da guerra, da caça, da navegação, etc.
b) Ciências práticas: ciências que estudam as práticas humanas
enquanto ações que têm nelas mesmas seu próprio fim. Ética e a
política.
c) Ciências teoréticas, contemplativas ou teóricas: são aquelas que
estudam coisas que existem independentemente dos homens e de
suas ações e que, não tendo sido feitas pelos homens, só podem ser
contempladas por eles (humanas e divinas).

Classificação e Hierarquização das Ciências, de acordo com Aristóteles:


a) Ciência das coisas naturais submetidas à mudança: física, biologia,
meteorologia, psicologia;

47
b) Ciência das coisas naturais que não estão submetidas à mudança
ou ao devir: as matemáticas e a astronomia (os gregos julgavam que
os astros eram eternos e imutáveis);
c) Ciência da realidade pura, que não é nem natural mutável, nem
natural imutável, nem resultado da ação humana, nem resultado da
fabricação humana: Metafísica;
d) Ciência teórica das coisas divinas que são a causa e a finalidade de
tudo o que existe na Natureza e no homem. Teologia.
A Filosofia, para Aristóteles, encontra seu ponto mais alto na metafísica e na
teologia, de onde derivam todos os outros conhecimentos.
A partir da classificação aristotélica, definiu-se, no correr dos séculos, o
grande campo da investigação filosófica – só desfeito como surgimento de
disciplinas autônomas:
O do conhecimento da realidade última de todos os seres, ou da essência de
toda a realidade: Ontologia (Gr. On = ser; ta onta = os seres) – metafísica e
teologia.
O do conhecimento das ações humanas ou dos valores e das finalidades da
ação humana: das ações que têm em si mesmas sua finalidade, a ética e a
política, ou a vida moral (valores morais) e a vida política (valores políticos); e
das ações que têm sua finalidade num produto ou numa obra: as técnicas e
as artes e seus valores (utilidade, beleza, etc.).
O do conhecimento da capacidade humana de conhecer, isto é, o
conhecimento do próprio pensamento em exercício: lógica (que oferece as
leis gerais do pensamento); a teoria do conhecimento (que oferece os
procedimentos pelos quais conhecemos); as ciências propriamente ditas e o
conhecimento do conhecimento científico, isto é, a epistemologia.
Ser ou realidade, prática ou ação segundo valores, conhecimento do
pensamento em suas leis gerais e em suas leis específicas em cada ciência:
eis os campos da atividade ou investigação filosófica.

IV - Período helenístico
Último período da Filosofia Antiga. A polis grega desapareceu. Agora o
filósofo é cidadão do mundo. Estoicismo, epicurismo, ceticismo e
neoplatonismo. Contatos com as filosofias do Oriente.

Para Memorizar:
1. Qual a maior contribuição de Sócrates para a Filosofia?
2. Qual a maior contribuição de Platão para a Filosofia?
3. Qual a maior contribuição de Aristóteles para a Filosofia?

Bibliografia Básica:

48
5. Stein, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia. Ijuí: Unijuí Editora, 2002.
6. Osborne, Richard. Filosofia Para Principiantes. Rio de Janeiro: Objetiva
Editora, 1998.
7. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática Editora, 1999.
8. Gaarder, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.

49
Aula Filosofia Geral e Filosofia Jurídica – Prof. Givaldo Matos
Filosofia do Direito Natural em Aristóteles
Nesta seção, iremos refletir sobre um dos conceitos mais importantes do
direito, que é o tema do DIREITO NATURAL. Este tema foi muito bem
trabalhado por Aristóteles, na obra A Política.
Em nossa análise, precisamos definir:
O que é o direito natural? Como Aristóteles reflete sobre este conceito?
Quais são os fundamentos de sua análise? Quais as
implicações/consequências de sua teoria? Quais as debilidades deste
conceito?

Conceito e Fundamento do Direito Natural Aristotélico


Aristóteles defende a idéia de que todas as coisas foram criadas pelo que ele
chama de Natureza. Esta definiu, a princípio, a finalidade de todas as coisas,
a fim de que elas alcancem o bem máximo. Visto que o ser humano, no
entanto, é dotado de vontade racional, pode desviar-se dos propósitos da
Natureza. Para tanto, estabelece-se normas de conduta jurídica, a fim de
coagi-lo a agir de acordo com sua natureza, sendo que esta é a melhor
maneira de se alcançar sua felicidade. A isto ele chama de Direito Natural.
1. Natureza como guia para a construção do Governo e do Direito;
2. Conceito Teleológico: Tudo opera seguindo para uma finalidade;
3. A Finalidade da Natureza é o bem e a ordem, fazendo uso da Justiça;
4. A Natureza é o motor determinante desta e para esta finalidade;
5. Método: procurar as intenções da natureza onde ela não foi
corrompida;
6. A Natureza estabelece as relações devidas entre classes sociais. Ela
estabelece a necessidade de funções sociais distintas, alimentadas
pela distinção entre classes sociais, necessárias à ordem. Tal
distinção social é natural, portanto, legítima;
7. Entre Leis Naturais e Leis Positivas, prefere-se as ditadas pela
Natureza;
8. A Natureza é, portanto, eterna, imutável e superior.

Agora vamos analisar as fraquezas deste pensamento, ou as suas


ambiguidades.
Primeira ambiguidades: Como determinar o que é natural e o que não é
natural?
Para o mundo humano, o natural e o não natural não é tão evidente como
pensava o filósofo. Mas antes de identificar as ambiguidades, vejamos
algumas citações em sua obra, A Política:
I - Natureza como guia para a construção do Governo e do Direito

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No texto ‘A Política’, Aristóteles empreende um projeto de analisar as
diversas constituições de Estados e apreender suas justificações. Nesta
atividade, ele esboça também o que julga ser os critérios que deveriam ser
utilizados para legitimação de uma constituição de um Estado – a ordem
perfeita elaborada pela Natureza.
Início do texto: “Quem, portanto, considerar os temas visados a partir de sua
origem e desenvolvimento, seja de um Estado ou de qualquer outra coisa,
obterá uma visão mais clara deles”. Pg. 144
Fim da Parte I: “... todos estes assuntos serão necessários na discussão das
formas de constituição. Porque são todos assuntos pertinentes à
administração da família e toda família é parte do Estado...”. Pg. 168
Início Parte II: “Comprometemo-nos a discutir a forma de associação à qual
denominamos Estado, para responder à pergunta sobre a melhor maneira de
constituir a sociedade”. Pg. 169
O percurso adotado por Aristóteles, a fim de alcançar um modelo de
Constituição, será a teleologia (fim estabelecido) da Natureza. Tomará como
exemplo de sociedade governada pela natureza, em primeiro lugar, a família,
para depois tratar também das relações de escravidão.
II - Conceito Teleológico: para Aristóteles, tudo o que existe, existe para
uma finalidade
A cidade-Estado é, por si, uma finalidade; porque chamamos natureza
de um objeto o produto final do processo de aperfeiçoamento desse
objeto, seja ele homem, cavalo, família ou qualquer outra coisa que
tenha existência. Ademais, o objetivo e a finalidade de uma coisa
podem apenas ser o melhor, a perfeição; e a auto-suficiência é, a um
só tempo, finalidade e perfeição. 146
III - O Estado é criação da Natureza e a Natureza do Homem é Política
Por conseguinte, é evidente que o Estado é uma criação da natureza e
que o homem é, por natureza, um animal político. 146
A natureza, como se afirma frequentemente, não faz nada em vão, e o
homem é o único animal que tem o dom da palavra. (...) Essa é uma
característica do ser humano, o único a ter noção de bem e o mal, da
justiça e da injustiça. 146.
Um instinto social é implantado pela natureza em todos os homens
(...). 147
IV - A Justiça é o elemento capaz de levar à concretização da finalidade
proposta pela Natureza às relações humanas:
A justiça é o vinculo dos homens, nos Estados; porque a administração
da justiça, que é a determinação daquilo que é justo, é o princípio da
ordem numa sociedade política. 147
V - Método: procurar as intenções da natureza onde ela não foi
corrompida

51
Aqui, surge um problema no pensamento de Aristóteles. Se a natureza deu
uma finalidade para tudo, e esta finalidade deve guiar a ética/moral e o
direito, pergunta-se: como identificar a finalidade das coisas?
‘Uma criatura viva consiste, em primeiro lugar, de alma e de corpo, e
destes dois elementos o primeiro é por natureza o governante e o
segundo, o governado. Então, precisamos procurar as intenções da
natureza nas coisas que conservam sua essência, não nas que foram
corrompidas.
VI - Divisão da Criação em Hierarquias
Aqui se verifica o problema. Aristóteles, acreditando que tudo possui uma
finalidade, e que é possível identificar esta finalidade, estabelece alguns
conceitos de estratificação social que foi responsáveis por injustas divisões
sociais ao longo da história. Vejamos trecho de sua obra, A Política:
Nas criaturas vivas, como eu disse, é que primeiro observamos o
preceito despótico e o preceito constitucional; a alma rege o corpo
com regras despóticas, enquanto o intelecto rege os apetites com
regras estabelecidas e reais. E é claro que o domínio da alma sobre o
corpo, assim como o da mente e do racional sobre as paixões, é
natural e conveniente, ao passo que a equidade entre ambos ou o
domínio do inferior é sempre doloroso. O mesmo aplica-se aos
animais em relação aos homens; os animais domésticos têm melhor
natureza do que os selvagens e todos os animais domésticos são
melhores quando dirigidos pelo homem; por isso são preservados. Pg.
151
VII - Direito Natural e Direito Positivo:
De acordo com Bobbio, em sua obra ‘A Retórica’, Aristóteles revela sua
disposição em um conflito entre Direito Natural e Direito Positivo:
"Se a lei escrita é contrária à nossa causa, torna-se necessário utilizar
a lei comum e a eqüidade, que é mais justa (...) Com efeito, a
eqüidade sempre dura, e não está destinada a mudar: e até mesmo a
lei comum (pelo fato de ser natural) não muda, enquanto as leis
escritas mudam com freqüência." 05. Norberto Bobbio, Locke e o
Direito Natural, p. 35.
Esta ideia irá fortalecer o critério do direito natural contra o direito positivado,
ao longo da história.

Implicações:
Pois bem. Vamos às ambiguidades e implicações questionáveis.
Ambigüidades - Como determinar o que é natural e o que não é natural? O
natural é tão evidente como Aristóteles acredita?
Ex 01: Relações entre homens livres e escravos, homens e mulheres e
homens e crianças; relações de propriedade; relações entre nações.
Ex. 02: Como determinar a naturalidade do comportamento sexual?
Poligamia ou monogamia? Que dizer da homoafetividade?

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Ex. 03: Como julgar a Engenharia Genética, quando já se tem estabelecido
que, em grande parte, a natureza de cada ente é, em grande medida,
tributária das informações e determinações de seus genes?
Vejamos o problema desta compreensão aristotélica em seu texto. Para
Aristóteles, A mulher e o estrangeiro são naturalmente inferiores.
Nas criaturas vivas, como eu disse, é que primeiro observamos o
preceito despótico e o preceito constitucional; a alma rege o corpo
com regras despóticas, enquanto o intelecto rege os apetites com
regras estabelecidas e reais. E é claro que o domínio da alma sobre o
corpo, assim como o da mente e do racional sobre as paixões, é
natural e conveniente, ao passo que a equidade entre ambos ou o
domínio do inferior é sempre doloroso. O mesmo aplica-se aos
animais em relação aos homens; os animais domésticos têm melhor
natureza do que os selvagens e todos os animais domésticos são
melhores quando dirigidos pelo homem; por isso são preservados. Do
mesmo modo o homem é superior e a mulher inferior, o primeiro
manda e a segunda obedece; este princípio, necessariamente,
estende-se a toda a humanidade. Portanto, onde houver essa
mesma diferença que já entre alma e corpo, ou entre homens e
animais (como no caso dos que têm como único recurso usar o próprio
corpo, não sabendo fazer nada melhor), a casta inferior será escrava
por natureza, e é melhor para os inferiores estar sob o domínio de
um senhor. 151
‘(...) qualquer ser humano que, por natureza, pertença não a si mesmo
mas a outro é, por natureza, escravo (...)’. 149

Em outro momento, Aristóteles afirma que a escravidão é um fenômeno da


natureza:
“Se, então, estamos certos em acreditar que a natureza nada faz sem
uma finalidade, um propósito, ela deve ter feito todas as coisas
especificamente para benefício do homem. Isso significa que é
parte do plano da natureza o fato de que a arte da guerra, da qual a
caçada é parte, deva ser um modo de adquirir propriedade; e que esse
modo deve ser usado contra as bestas selvagens e contra os
homens que, por natureza, devem ser governados mas se
recusam a isso; porque esse é o tipo de guerra que é justo por
natureza”. 156
Aqui, novamente, Aristóteles reafirma a sujeição das mulheres aos homens.
Entre homem e mulher a relação superior/inferior é permanente. 165
Essa alusão à virtude nos leva diretamente à consideração da alma;
pois é nela que se encontram o dominador e o dominado por natureza;
pois é nela que se encontram o dominador e o dominado por natureza,
cujas virtudes consideramos distintas. A diferente entre ambos, na
alma, é a mesma entre o racional e o não-racional. Portanto, está claro
que, em outras relações, também existirão diferenças naturais. E isso,
em geral, no caso do senhor e do comandado; as distinções serão

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naturais, mas não necessariamente as mesmas. Pois a dominação do
homem livre sobre o escravo, do homem sobre a mulher, do homem
sobre o menino, são todas naturais, mas diferentes, porque embora as
partes da alma estejam presentes em todos os casos, a distribuição é
outra. Assim, a faculdade de decisão, na alma, não está
completamente presente num escravo; na mulher, é inoperante; numa
criança, não desenvolvida. 166

Considerações Finais:
Por essas razões é que Roberto Lyra Filho irá afirmar que o conceito
de Direito Natural servirá como instrumento conceitual de dominação
ao longo dos séculos no Ocidente. Defendendo a ideia de que as
hierarquias sociais são naturais e necessárias, que algumas pessoas
são naturalmente inferiores às outras (escravos e mulheres), esta
compreensão só será superada na modernidade.

Referências Bibliográficas:
Aristóteles. A Política. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova
Cultural, 2000.
LYRA-FLHO, Roberto. O que é o direito? Cap. 03 – Principais Modelos
de Ideologia Jurídica
O Positivismo Jurídico – Norberto Bobbio

SUGESTÕES DE LEITURAS, SITES E FILMES:


ALVES, Rubem. O que é Religião. São Paulo: Loyola, 1999.
ALVES, Rubens. Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação.
São Paulo: Edições Loyola, 1999.
ARISTÓTELES. A Política. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova
Cultural, 2000.
BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria
sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico.
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record Editora, 1979.
CAMUS, Albert. O Mito de Sisifo. Rio de Janeiro: Record Editora, 2018.
CASSIRER, Ernst. Antropologia Filosófica. Ensaio sobre o
homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo:
Editora Mestre Jou, 1972.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Editora Ática, 2005.

54
COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Victor Civita,
1973.
CUCHE, Denys. A noção da cultura nas ciências sociais. 2 ed. Bauru:
EDUSC, 2002.
GAARDER, Jostein. O Mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
GERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1. ed. Rio de Janeiro : LTC,
2013.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus – uma breve história do amanhã. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.
HARRISON, Lawrence & HUNTINGTON, Samuel. A Cultura Importa – os
valores que definem o progresso humano. Rio de Janeiro: Record
Editora, 2002.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à História da Filosofia.
Lisboa: Edições 70, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2015.
KROEBER, Alfred e KLUCKHOHN, Clyde. Culture: A Critical Review of
Concepts and Definitions. New York: Vintage Books, 1952.
LYRA-FLHO, Roberto. O que é o direito? Cap. 03 – Principais Modelos de
Ideologia Jurídica
Osborne, Richard. Filosofia Para Principiantes. Rio de Janeiro: Objetiva
Editora, 1998.
OSBORNE, Richard. Filosofia Para Principiantes. Rio de Janeiro: Objetiva
Editora, 1998.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2000.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Grega e Romana. Vol. 3. São
Paulo: Loyola Editora, 2007.
SAID, Edward. Orientalismo – o oriente como invenção do ocidente.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Rio de
Janeiro: Vozes Editora, 1996.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Rio de Janeiro: Vozes Editora, 1997.
SHATTUCK, Roger. Conhecimento Proibido. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998
Stein, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia. Ijuí: Unijuí Editora, 2002.
STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia. Ijuí: Unijuí Editora,
2002.
VERNANT, Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro:
Difel Editora, 2004.

55
Filmes: 300 (2008) – O filme mostra a experiência do Rei Leônidas, de
Esparta, em questionar a Religião e os Mitos, expressando a nova
mentalidade grega – a racionalidade lógica.

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