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Artigo original
RESUMO: O texto sintetiza os resultados de uma pesquisa realizada entre os anos 2013 e 2014 na região Centro
de Moçambique - cidade da Beira - sobre o processo de inclusão, na escola regular, de estudantes com
necessidades educativas especiais de visão. Para isso, primeiro, fez-se uma revisão da literatura sobre a educação
especial e a educação inclusiva. Segundo, examinamos os documentos oficiais sobre as políticas de educação
especial e de inclusão escolar para, no fim, centrarmo-nos no processo de inclusão educacional de pessoas com
deficiência visual na cidade da Beira. A pesquisa indica que, mesmo com a introdução da educação inclusiva, as
crianças com necessidades educativas especiais de visão ainda permanecem à margem do processo educativo: a
inclusão escolar dessas no Sistema Nacional de Educação não é efectivo, afigurando-se como um discurso
planfletário.
Palavras-chave: Deficiência de visão, Educação Inclusiva, Necessidades Educativas Especiais.
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ACP Gonçalves e ER Vicente
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A inclusão escolar de alunos com necessidades educativas especiais de visão cidade da Beira
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ACP Gonçalves e ER Vicente
Defendemos que, mesmo com a introdução não se limita ao esforço de mudança por
do projecto escolas inclusivas, em parte da pessoa com necessidades
Moçambique, a inclusão escolar de especiais, mas sim, por parte da sociedade
crianças portadoras de necessidades em vista à eliminação de todas as barreiras
educativas especiais de visão ainda está no exercício pleno da cidadania. A
longe de se efectivar por completo. Além inclusão, assim concebida, difere da
de existir uma única escola especializada, integração, pois, segundo o autor em
os resultados da pesquisa indicam que até referência,
2013, em todo o País, somente 200 pessoas A integração se contenta com o esforço
cegas liam o Braille, das quais 150 unilateral das pessoas deficientes para
frequentavam o nível primário, 40 o nível ingressarem ou reingressarem na
secundário e 10 o nível superior. sociedade. A inclusão requer mudanças
fundamentais nos sistemas comuns da
Problemas estruturais como os de
sociedade, de tal modo que todas as
compreensão dos princípios de educação pessoas deficientes ou não estejam
inclusiva por parte dos gestores escolares e primeiro incluídas, para então realizar
dos professores, aliados a limitações tudo – reabilitar-se, estudar, trabalhar,
financeiras podem estar na origem do receber cuidados médicos, viajar, etc.
(SASSAKI, 2000, p. 85).
pouco avanço em matéria de efectiva
inclusão educacional de crianças com Não basta, portanto, preparar as pessoas
necessidades educativas especiais, com deficiência para se adequarem aos
particularmente, as de visão. padrões preestabelecidos. A família, a
Para sustentarmos a nossa tese, escola, o bairro e a empresa devem estar
recorremos, primeiro, à revisão da realmente prontos para receber o seu filho,
literatura, em que dialogamos com alguns seu aluno, seu vizinho, seu profissional,
dos autores que pesquisam sobre a independentemente de suas condições
educação inclusiva, diferenciando a biológicas ou de suas limitações.
inclusão escolar da integração, definindo Na educação, ao se pretender que todos os
também o que entendemos por alunos tenham direito a uma escola igual e
necessidades educativas especiais. sejam vistos no seu todo tanto no seu
Segundo, num persoectiva histórica, crescimento quanto no seu
examinamos a legislação e a documentação desenvolvimento, a “inclusão” consiste em
oficial moçambicana reconstruindo o atender “alunos com necessidades
processo de elaboração, no país, do educativas especiais nas escolas das suas
projecto escola inclusiva e, por fim, residências e, sempre que possível, nas
centraremos a nosssa atenção no exame classes regulares dessas mesmas escolas”
das acções que foram sido realizadas com (NIELSEN, 1999, p. 9).
pessoas portadoras de deficiência visual
Entretanto, a inclusão, como sublinham
em algumas das escolas da cidade da
Booth e Ainscow (2002) não deve estar
Beira, escolhidas para a efectivação do
associada a estudantes que tenham
projecto de educação inclusiva.
impedimentos ou sejam vistos como tendo
A Inclusão Escolar de Pessoas com necessidades educacionais especiais
NEE: percursos notórias. Para eles, a inclusão diz respeito à
O termo inclusão, como sublinha Sassaki, educação de todas as crianças e jovens, e
“refere-se à uma modificação da sociedade exige mudança. Trata-se de um processo
para que as pessoas com necessidades de auto-revisão da escola com base nas
especiais possam desenvolver e exercer a dimensões relativas a cultura, políticas e
sua cidadania” (SASSAKI, 2000, p. 82). práticas, aumentando a participação de
Diferentemente da integração, a inclusão todos os alunos no processo de
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portadora de visão subnomal é aquela que alunos com deficiência visual (DV).
dispõe de acuidade visual na ordem 20/70
Educação Inclusiva em Moçambique
nas mesmas condições.
O discurso sobre a educação inclusiva em
Para se caracterizar as NEE no domínio da Moçambique ganhou maior visibilidade no
visão é necessário, em primeiro lugar, Plano Estratégico de Educação (PEE)
reconhecer que o desenvolvimento de (MOÇAMBIQUE.MINED, 1998) para o
grande parte das actividades educacionais período de 1999-2003, no qual o Estado
depende muito do sentido da visão, pelo moçambicano adoptou o lema “Combater a
que a cegueira coloca o indivíduo distante Exclusão, Renovar a Escola”. O Plano,
do mundo físico, sobre o qual ele precisa mesmo que situado na esteira do
agir para formular seus conceitos, movimento mundial de defesa e promoção
representações e construir seu universo da “Educação para Todos”, internamente
psicológico. Só a partir deste prisma é que também teria sido concebido como uma
se pode discutir o grau e a dimensão das das medidas correctivas para os vários
Necessidades Educativas das crianças com problemas educacionais causados pela
cegueira ou com visão reduzida e o guerra dos 16 anos (1976-1992) pela qual o
consequente estabelecimento das país passou, entre os quais, a necessidade
necessárias adaptações curriculares para de escolarizar as crianças órfãs,
elas. deficientes, malnutridas e mentalmente
Alunos com NEE da cegueira traumatizadas.
caracterizam-se por terem deficiência A preocupação do Estado, à época, era
visual, sendo cegos ou funcionamente tentar diminuir as altas taxas de
cegos, ou seja, os campos e/ou “acuidades reprovações e desistências que estavam na
visuais não lhes permite o uso funcional ordem de 33,2% e 8,3% respectivamente
dos registos escritos em suporte de tinta, (MOÇAMBIQUE.MINED, 1998). Essa
utilizando o Braille como sistema percentagem de insucesso e fracasso
alternativo de leitura e escrita” escolar, supostamente, para o discurso
(CORREIA, 2008B, p. 92). Pelo facto oficial, estaria relacionada aos efeitos da
destes alunos, no sistema escolar integrado, guerra que deixou um elevado número de
necessitarem de mais recursos e meios crianças e jovens em situação de
adicionais para responder as suas vulnerabilidade. Com base nos dados e na
necessidades educativas, Gartner e Lipsky interpretação dos factores a eles
(1987) consideram que as NEE desses subjacentes, o Estado moçambicano
alunos dependem não somente de factores estabeleceu como uma das suas metas
relativos a eles, mas também relacionados prioritárias a melhoria da qualidade de
com a escola e com a sua capacidade de ensino, através da formação de professores
flexibilizar a oferta curricular, no que diz e a inclusão no sistema regular de ensino
respeito aos programas, espaços, de todas as crianças e jovens, incluindo
equipamentos e recursos humanos. Deste aqueles com deficiências.
modo, às propostas pedagógicas que
pretendam dar resposta às NEE destes Para garantir a maior inclusão educacional
alunos, aqueles autores consideram que a foi aprovada uma legislação específica, o
efectivação dessas propostas requer Decreto Nº 20/99, de 23 de Junho de 1999,
intervenções e serviços especializados do Conselho de Ministros
continuados, o que pressupõe medidas (MOÇAMBIQUE.DECRETO, 1999). O
articuladas (colaboração) entre as áreas documento sublinha a necessidade de se
curriculares gerais e específicas, de forma estabelecer uma Política que oriente a
a facilitar o acesso ao currículo geral dos acção do Governo e da sociedade civil no
quadro da satisfação dos direitos
Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. educ. Vol. 2, Nº 2, pp 1-16, 2020
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UNESCO; (c) 452 alunos (2,31%) das extremas dificuldades. O Plano Estratégico
escolas regulares foram identificados como de Educação e Cultura sublinha que mais
portadores de necessidades especiais; (d) de 31 mil crianças beneficiaram da
no início do Projecto, tinham sido educação inclusiva desde a introdução do
abrangidos 12.588 alunos, 345 professores projecto escolas inclusivas até o ano 2005.
e 11 escolas. No ano da avaliação, estavam Por isso, uma das nossas preocupações é
envolvidos 19.830 alunos, 515 professores compreendermos as directrizes para educar
e 13 escolas, que corresponde ao aumento o deficiente visual. Quantas crianças cegas
na ordem de 36,5%, 33,0% e 15,3%, daquele número beneficiaram dos esforços
respectivamente (MOÇAMBIQUE. do Ministério da Educação para poderem
MINED, 2000). aprender? Considerando o número de
deficientes visuais na cidade da Beira,
Entretanto, uma análise um pouco mais
como tem sido o processo de sua inclusão
atenta ao relatório pode-se perceber que
nas escolas públicas? Que actividades
em momento algum o documento faz
pedagógicas concretas são desenvolvidas
referência ao número de alunos com
para garantir a aprendizagem desses
deficiência visual envolvidos no universo
estudantes?
de 19.830 abrangidos pelo Projecto
“Escolas Inclusivas”. Em termos A Inclusão Escolar de Portadores de
estatísticos, no início do projecto, em Maio Defidência visual na Cidade da Beira
de 1998, foram abrangidas 11 escolas e, Conforme já referenciado, o Censo de
dois anos depois, o número de escolas 2007 estimava que em Moçambique
passou para 13, facto que corresponde ao existiam, no geral, cerca de 475.011
aumento de somente duas escolas pessoas com deficiência, das quais, 44.651
inclusivas no período de um ano, em todo eram portadoras de dificiência de visão
o país. (INE, 2012, p. 8). Já o relatório do Censo
Até o ano 2005, como é sublinhado no de 2017, indica que no país, um total de
Plano Estratégico de Educação e Cultura 727.620 pessoas possuem algum tipo de
de 2006 a 2011, mais de 31 mil crianças e dificiência. Desse universo, um total de
jovens com NEE tinham sido atendidos 58.021 pessoas sofriam de cegueira e
pelo projecto de escolas inclusivas em 81.072 têm dificuldade de ver mesmo
2005; 20 professores de escolas usando óculos (INE, 2017). Porém, este
secundárias e 22 para escolas especiais número pode estar longe do universo real,
participaram em cursos de formação à medida que o inquérito orientava-se para
(PEEC, 2006). O documento menciona a deficiência total, excluindo a baixa visão.
também a introdução de conteúdo A província de Sofala, onde se situa a
específico sobre necessidades da educação cidade da Beria, com uma área de 68.018
especial no currículo para formação Km2, localizada na região centro de
acelerada de professores secundários; Moçambique, à época da pesquisa, possuia
adaptação do currículo; aquisição de uma população aproximada de 1.700.000
materiais; de melhorar a articulaçao com habitantes. Faz limites, a Norte, com a
os pais e as comunidades, para que a província da Zambézia, a Sul, com a de
abordagem da educação inclusiva possa ser Inhambane, a Oeste, com a província de
alrgada às comunidades. Manica, e a Este é banhada pelo Oceano
Apesar de o PEEC apresentar ideias bem- Indico. O censo de 2007 indicava que do
intencionadas, factualmente parece ter total da população, 900 mil eram mulheres
havido poucos avanços. Como será e 800 mil homens. Deste número, 70%
evidenciado mais adiante, as pessoas cegas vivia nas zonas rurais e 43% eram
continuam a estudar em ambientes de analfabetos (MOÇAMBIQUE, 2007) ii.
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escola é assim equiparada a uma fábrica, alunos com NEE se beneficiam. Apesar de
em que o professor é o operário, ao se lhe em todas estas escolas existir um fundo de
exigir a eficiência nos moldes de uma acção social que realiza despesas de apoio
indústria, através do desenvolvimento de às crianças órfãs e vulneráveis, ele não
competências no trabalho para o aumento inclui gastos com a deficiência. Sem
de produtividade. material didáctico adequado e em número
suficiente, os alunos portadores de
Embora possa não haver uma relação de
deficiência visual estudam basicamente
causa-efeito, no cotidiano escolar de todas
apoiando-se nos apontamentos ditados pelo
as escolas secundárias, os portadores da
professor e na colaboração de colegas.
deficiência visual estão vedados de
frequentar as disciplinas de matemática, O Plano Nacional de Acção para a Área da
física, química e biologia, bem como de Deficiência (PNADII 2012-2019) mostra-
participarem em actividades de educação se bastante evoluído na abordagem da
física. O argumento apresentado pelos educação inclusiva, mas sem o necessário
professores é o de que a sua condição de desdobramento em estratégias, programas
deficiência os torna inaptos para a área de e serviços de apoio a favor do grupo em
ciências exactas. Ainda, sob ponto de vista análise. Aliado a esse facto, também pode
de infra-estruturas e recursos didáticos nas ser sublinhada a ausência de estatísticas
escolas pesquisadas, pode-se constatar a devidamente organizadas em todos os
existência de um conjunto de barreiras ao sectores que lidam com a problemática da
acesso à escola e à aprendizagem, deficiência visual, incluindo a própria
consubstanciado pela falta de transporte, Delegação do Instituto Nacional de
meios auxiliares de locomoção (bengalas Estatística (INE). As escolas integradas
brancas) e programas de reabilitação (Samora Machel e Sansão Mutemba), e a
baseados na comunidade, que permitam Escola Primária Completa dos Pioneiros,
aumentar a habilidades de vida esta última a única que funciona na
independente das pessoas cegas. Acresce- perspectiva inclusiva na província de
se a estas limitações, dificuldades de Sofala, vivem num ambiente de manifesta
acesso às ajudas técnicas, devido à falta de carência de estrutura de apoios,
colaboração entre escolas regulares e orçamentos específicos, tecnologias
especiais, o que faz com que a vida educativas, material didáctico, falta de
estudantil desses alunos se resuma à professores formados em matéria de escrita
máquina perkins e papel para a escrita Braille.
Braille. De modo igual, outros Na óptica de Correia (2008), o princípio da
equipamentos importantes para o seu escola inclusiva deve respeitar três níveis
processo de ensino e aprendizagem, tais de desenvolvimento essenciais do aluno - o
como cubaritimo, ábacos, mapas em académico, o socioemocional e o pessoal -
relevo, figuras geométricas, papel cebola, de forma a proporcionar-lhe uma educação
pautas e computadores em formato apropriada, orientada para a maximização
acessível (falantes), não se fazem presentes do seu potencial (p. 13). Para ele, este
na sua rotina escolar. Outro facto a objectivo só pode ser alcançado se a escola
sublinhar é a ausência, em quase todas as admitir que a modalidade de atendimento
escolas escolhidas para a implementação mais adequada para o aluno com NEE seja
experimental do projecto escolas determinada pelo Programa Educativo
inclusivas, de uma linha orçamental Individualizado (PEI), de modo a manter
especificamente orientada para custos com aquilo que o autor chamou de “continuum
a educação inclusiva. O que se observa, em educacional”, isto é, um conjunto de
todas aquelas instituições, é apenas a serviços de apoio às actividades
isenção de taxas de inscrição, da qual os
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