Você está na página 1de 7

Quem decide como devemos morrer?

Apenas seis países permitem algum tipo de eutanásia; o


último deles, Canadá, acaba de aprovar uma lei

MILAGROS PÉREZ OLVA


05 ABR 2017 - 10:08 BRT
TONY GARCÍA (GETTY)

A morte continua sendo um tabu. Por isso não falamos dela.


Mas quando perguntamos às pessoas se têm medo da morte,
elas costumam responder que, na verdade, têm medo do
sofrimento. Da dor física, claro, mas também da dor
psicológica de ter que continuar vivendo em condições
insuportáveis. “Sinto-me preso numa jaula”, dizia Fabiano
Antoniani, um tetraplégico italiano que vivia prostrado desde
que sofreu um grave acidente, em 2014, que o deixou sem
visão nem mobilidade. Sabia que ainda podia viver bastante
tempo, porque o organismo de um homem forte de 40 anos
pode aguentar muito, mas não queria seguir assim. No final
de fevereiro, Antoniani foi à Suíça – o único país, entre os seis
nos quais a eutanásia (a ajuda ao suicídio) está legalizada,
que admite estrangeiros. Ele mesmo, com um movimento dos
lábios, acionou o mecanismo que introduziu o coquetel da
morte doce em sua boca.

o de Ramón Sampedro, o tetraplégico espanhol que, nos anos


noventa, recorreu em vão aos tribunais para que o ajudassem
a morrer. O caso ficou conhecido no mundo todo pelo filme
que inspirou, Mar Adentro, protagonizado por Javier
Bardem e vencedor de um Oscar. Sampedro pôde morrer
finalmente em 1998 porque uma mão amiga entregou os
remédios que lhe permitiram partir, embora de forma
clandestina e não tão doce quanto ele teria desejado. Quase
20 anos depois, a Espanha encara de novo o debate da
eutanásia. Sete Parlamentos regionais pediram que seja
regulada. A Espanha se pode transformar no sétimo país –
além de cinco estados dos EUA – a permitir algum tipo de
eutanásia. O último deles foi o Canadá, que aprovou a lei no
mês passado.
3.7K

PAÍS

Morrer bem é certamente o desejo mais universal. Mas o


conceito de boa morte não é igual para todos. Os avanços no
controle do câncer e de outras doenças, que eram mortais até
pouco tempo atrás, aumentaram os casos de patologias
crônicas de longa evolução sem esperança de cura. Cada vez
são diagnosticados mais casos de demência ou doenças
degenerativas que provocam a perda progressiva das
faculdades físicas e, às vezes, mentais. Dispomos de um
amplo arsenal de terapias que não curam, mas que permitem
prolongar a sobrevivência. O problema é que isso muitas
vezes ocorre à custa de um grande sofrimento ou da perda
irreparável da qualidade de vida.

A perspectiva de uma longa e penosa deterioração faz com


que muitos cidadãos queiram decidir, por si sós, quando e
como morrer. Nas palavras de Sampedro, existe o direito à
vida, mas não a obrigação de viver a qualquer preço. Este é o
princípio no qual se baseiam os que propõem
a despenalização da eutanásia. Ter acesso a uma morte
medicamente assistida significaria uma extensão dos direitos
civis.
Não acontece um aumento da porcentagem de pedidos de eutanásia por parte de
pessoas que poderiam ser consideradas em situação de vulnerabilidade

Na legislação comparada, há duas possibilidades: a eutanásia


direta, que consiste em provocar a morte do paciente,
normalmente por meio de injeção de fármacos que lhe
garantem uma morte doce; e a ajuda ao suicídio, que facilita
os meios para que o próprio paciente coloque fim à vida.
Neste caso, a ação costuma ser também através de um
coquetel de medicamentos de ação rápida e indolor.

É preciso esclarecer que nem a limitação do esforço nem a


sedação terminal são formas de eutanásia. Ambos são
procedimentos habituais na atenção médica do final da vida
e cumprem plenamente os parâmetros de uma boa prática
clínica. De modo algum podem ser considerados eutanásia,
ainda que a sua aplicação possa encurtar a vida,
normalmente em horas ou, no máximo, dias. A finalidade,
neste caso, não é causar a morte, e sim evitar a dor. Portanto,
não é pertinente utilizar o termo eutanásia passiva para se
referir a esses processos. A eutanásia é sempre ativa, seja
porque provoca diretamente a morte ou porque facilita os
meios. E sempre deverá ser voluntária. Requer um pedido
consciente, informado, livre e reiterado por parte do
paciente.

Nos países onde a prática não está regulada, são realizados


suicídios e eutanásias acobertados, com risco para os
profissionais que, de maneira altruísta, alegam que, dada a
necessidade existente, é melhor regulá-la. A ausência de
regulação faz com que algumas pessoas com doenças
degenerativas de longa evolução se suicidem quando ainda
poderiam viver um tempo em boas condições. Preferem
colocar fim à sua vida quando ainda podem fazer isso por si
próprias, temendo perder o controle com a progressão da
doença. Têm medo de ficar presas, sem escapatória possível,
num corpo deteriorado que lhes faça sofrer.

Na Europa, as pessoas que querem evitar essa deterioração


possuem duas opções: ir para a Suíça ou procurar um amigo
médico que o ajude. Também podem recorrer à Internet,
onde não é difícil conseguir os remédios necessários. Em
muitos casos, o fato de ter a certeza de que poderão morrer
quando quiserem já significa um alívio que permite
chegarem ao final natural da vida.

Romper o tabu da morte exige poder falar com naturalidade


dela. A regulamentação da eutanásia precisa de uma
deliberação informada, distante dos apriorismos e dos
sectarismos ideológicos. Sempre haverá opositores porque
consideram que as pessoas não podem dispor de sua vida
pois ela só a Deus pertence. Os partidários da
regulamentação lembram que, como no caso do aborto ou
do casamento homossexual, o fato de que seja regulado não
obriga ninguém a optar pela eutanásia.

Além das razões por motivos religiosos, existem objeções


relacionadas com as possíveis consequências. Por exemplo, o
temor de que a aplicação de uma lei da eutanásia tropece em
uma ladeira escorregadia na qual as vítimas terminem sendo
as pessoas mais vulneráveis. Que possam existir doentes que
solicitem morrer não por causa de sua patologia, mas porque
acham que incomodam ou pelas condições sociais adversas
em que vivem. É um temor muito razoável, mas ao contrário
dos anos 90, agora temos exemplos de regulamentação
suficientemente amplos e prolongados, para poder
comprovar se esses perigos se confirmaram ou não. Agora
podemos ser mais objetivos na discussão.
O galego Ramón SampedroDAVID LEVENE (EYEVINE)
Paliativos melhores não podem garantir que um paciente não sofra e queira morrer

Hoje em dia, a eutanásia ou suicídio assistido estão


regulamentados na Bélgica (2002), Holanda (2002),
Luxemburgo (2008), Colômbia (2015, por uma resolução do
Tribunal Constitucional) e nos Estados norte-americanos do
Oregon (1997), Washington (2008), Montana (2008),
Vermont (2013) e Califórnia (2015). No caso da Suíça, a
eutanásia não foi regulamentada, mas o Código Penal não
contempla castigo para quem ajudar o outro a morrer, desde
que seja por razões altruístas. O Canadá foi o último país a
regulamentar a eutanásia. No começo de março foi aprovada
uma lei, obrigada por uma sentença do Supremo
Tribunal que, em 2015, declarou inconstitucional penalizar a
morte medicamente assistida.

Os requisitos para solicitá-la são parecidos em todas as


legislações: sofrer uma doença terminal ou processo
irreversível que cause um padecimento insuportável sem
perspectivas de melhora. Que o doente expresse livre e
reiteradamente sua vontade de morrer e que seu caso seja
revisado por dois ou mais médicos. Em todas existem comitês
de acompanhamento que analisam os casos a posteriori e
emitem relatórios anuais.
A eutanásia precisa de uma deliberação informada, distante dos apriorismos e dos
sectarismos ideológicos

Nos 15 anos transcorridos desde que a Bélgica regulamentou


a eutanásia, 15.000 pessoas recorreram a esse procedimento.
Embora o número de pedidos tenha aumentado ano após
ano, eles continuam sendo baixos. Com uma população de
11,2 milhões de habitantes, em 2016 a eutanásia foi realizada
em 2.025 doentes, apenas 3 a mais que em 2015. Em 2014 foi
aprovada naquele país a eutanásia infantil com 70% de apoio
dos belgas. Em 2015 só houve um caso: um garoto de 17 anos
em fase terminal. O câncer é a causa mais habitual e a maioria
dos doentes prefere morrer em casa. Curiosamente, há
diferenças substanciais entre as duas nacionalidades do país.
Enquanto Flandres registra uma taxa de eutanásia de 2,46%
de todas mortes ocorridas (dados de 2014), na Valônia a taxa
é de 0,94%. As diferenças culturais poderiam explicar essa
assimetria.

A Holanda introduziu as primeiras mudanças legislativas em


1993. Depois de um problemático período de tolerância,
decidiu regulamentar a eutanásia através de uma lei que
entrou em vigor em 2002. Com quase 17 milhões de
habitantes, em 2015 ela foi aplicada a 5.516 pacientes, o
dobro de 2008. Aproximadamente a metade dos pedidos são
rechaçados por não cumprirem os requisitos. De todos os
casos autorizados, 109 sofriam de algum tipo de demência e
56, de alguma doença psiquiátrica. Os casos psiquiátricos
costumam ser os mais problemáticos. Das 5.516 eutanásias
praticadas, 4 foram consideradas irregulares pela Comissão
de Controle e Vigilância da Eutanásia e foi aberta uma
investigação.

Tanto a Holanda quanto a Bélgica permitem a eutanásia em


menores. No primeiro país, a idade mínima para poder fazer
o pedido é de 12 anos. A Bélgica não estabelece a idade
mínima, mas exige comprovar um “sofrimento físico
insuportável” e que “a morte a curto prazo seja algo
inevitável”. A Holanda debate agora uma nova causa: o
cansaço de viver.

Os temores sobre uma possível ladeira escorregadia não se


confirmaram. As comissões encarregadas de revisar os casos
garantem transparência e controle. Em 2007 foi publicada na
revista Journal of Medical Ethics uma revisão dos estudos
disponíveis, que analisam vários anos de aplicação da
legislação na Holanda e no Oregon. Seus resultados mostram
que não aconteceu um aumento da porcentagem de pedidos
de eutanásia por parte de pessoas que poderiam ser
consideradas em situação de vulnerabilidade.

Há quem afirme que se fosse possível garantir a todos os


doentes bons cuidados paliativos, a eutanásia não seria
necessária. Mas cuidados melhores não podem garantir que
um paciente não sofra e queira morrer. A medicina paliativa
não cobre nem todos os casos nem todos os tipos de
sofrimento. Eutanásia e cuidados paliativos não são opções
excludentes. Ao contrário. Aqueles que defendem a eutanásia
reclamam ao mesmo tempo a garantia do acesso universal
aos cuidados paliativos. Na verdade, entre os requisitos para
autorizar a morte assistida deveria estar que o paciente
tenha se beneficiado deles. O objetivo é evitar que uma
pessoa queria morrer porque não foi bem cuidada.

Você também pode gostar