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UNIVERSIDADE DO MINHO

ESCOLA DE DIREITO
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
ADMINISTRATIVO

Direitos Fundamentais

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL


ADMINISTRATIVO SUL
PROCESSO 2482/17.2BELSB DE 15/02/2018

BRAGA
Janeiro de 2021

KARINA SIMÕES LOPES PINHEIRO FAJARDO


1. Breve introdução

Buscamos dentre as matérias de Direitos Fundamentais traçar um elo com


questões que envolvem a imigração em Portugal, assunto de grande interesse na
atualidade, com uma vasta demanda e ainda muita carência no que se refere a existência
de materiais de base, tanto na doutrina como na jurisprudência. Traçamos aqui um corte
no conceito vasto de imigração, para referirmos a imigração além das figuras de asilados
e refugiados. De toda certeza que o tema merece toda atenção e estudo, mas não é este o
enfoque que buscamos investigar. Nosso objetivo é atentar às questões que envolvem a
imigração para a vinda a Portugal de estudantes, trabalhadores, pessoas com rendimentos,
investigadores e investidores estrangeiros em situação legal, pois percebemos nessa
esfera uma lacuna no enfrentamento jurídico de inúmeras questões conexas.
Assim, dado o desafio proposto para análise e comentário de um acórdão
relacionado aos direitos fundamentais, aproveitamos para trazer um caso que envolva
uma questão de cunho imigratório, com destaque aos respetivos direitos fundamentais,
bem como ao remédio jurídico pertinente.
Não foi possível encontrar qualquer acórdão que cumprisse o proposto no douto
Tribunal Constitucional, razão pela qual optamos por um acórdão do Tribunal Central
Administrativo Sul (TAC Sul).

2
2. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul – Processo 2482/17.2BELSB
de 15/02/2018

2.1.Da decisão recorrida

Trata-se de recurso de sentença do TAC de Lisboa que rejeitou liminarmente a


Intimação para Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias (PDLG). A petição tinha
como objetivo que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) fosse condenado a emitir
o título de residência do Recorrente ou, subsidiariamente, para que se declarasse que
ocorreu um deferimento tácito do pedido para autorização de residência, procedendo-se à
aludida condenação e posterior emissão do título.

A decisão recorrida foi tomada no âmbito do despacho liminar. Não houve lugar,
portanto, à apresentação da correspondente contestação ou à junção do processo
administrativo aos autos. Assim, julgou inadequado o meio processual utilizado,
considerando que inexistia o pressuposto de urgência que exigido no art.º 109.º, n.º 1, do
CPTA, porquanto o Autor alegava que tinha apresentado, em 25-01-2016, um pedido de
autorização de residência, que foi deferido tacitamente e que desde esse pedido decorreram
22 meses até à interposição da ação. Foi considerado pelo juízo a quo a inércia do Autor
para fazer uso de um meio judicial para acautelar o seu direito.

Da análise do pedido subsidiário, considerou também improcedente, alegadamente


pelo Autor não ter invocado “qualquer normativo legal que sustente a possibilidade de
deferimento tácito do seu pedido de autorização de residência, o qual foi apresentado, a
título excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 88.º n.º2 da Lei n.º 23/2007, de 4 de
Julho”.

Por último, a decisão recorrida analisou a possibilidade de convolação da


intimação em providência cautelar, previamente a uma ação administrativa com um pedido
condenatório, considerando-se que tal convolação também era impossível, porque o prazo
para a propositura da ação principal já estava ultrapassado, pelo que a indicada providência
cautelar teria de ser rejeitada por essa razão. Julgou, enfim, que se verificava “a nulidade
de todo o processo” e determinou a rejeição liminar do requerimento inicial.

2.2 Das alegações do Recorrente

O Recorrente entrou no território nacional com um visto para uma estada


temporária e permaneceu para além da data permitida por esse visto. Contudo, solicitou e
teve concedida em 25-01-2016 uma prorrogação de permanência conforme os artigos 45.º,
3
al. c), 51.º, 52.º, 54º, 71.º e 72.º da Lei n.º 23/2007, de 04-07.

Na mesma data, 25-01-2016, entregou ao SEF, no Posto de Atendimento de


Alverca, um pedido para lhe ser emitido um título de residência, e que efetuou o respectivo
pagamento de taxas. Foi elaborada uma proposta de decisão para a concessão de autorização
de residência, ao abrigo do art.º 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04-07. Em 25/06/2016,
teve a prorrogação de permanência concedida, o que, conforme consta no acórdão, fez com
que a partir de Junho de 2017 passasse a viver na ilegalidade.

Sem qualquer retorno ou notícia do pedido feito ao SEF em Janeiro de 2016, o


Recorrente, em 11-10-2017, solicitou informações ao órgão administrativo sobre o seu
pedido e reiterou que lhe fosse emitido o título de residência. Contudo, até a data da
apresentação da ação, também não obteve resposta.

Continuava a viver e a trabalhar em Portugal, mas em situação de ilegalidade com


todos os efeitos danosos que daí decorrem. Invocou em 05-11-2017 como razão para o uso
da intimação, a defesa dos direitos à liberdade, à segurança, à identidade pessoal, o direito
a procurar trabalho, a trabalhar, à estabilidade no trabalho, em paridade com os nacionais,
aliando-os ao princípio da equiparação dos estrangeiros, consagrado no art.º 15.º, n.º 1, da
CRP.

Ademais, alegou que desde que ficou em situação ilegal deixou de conseguir
trabalhar, ou de ter estabilidade laboral e que desde Junho de 2017 passou a auferir
remunerações abaixo do salário mínimo nacional e a trabalhar “de sol a sol”, sendo um
“escravo moderno”. Também que deixando de estar legal, deixaria de pagar as taxas para o
sistema de saúde e tributos e perderia o seu direito de acesso à saúde. Pela situação ilegal
não ia ao país de origem há 4 anos e que sem o título de residência não poderia visitar a
família, a mulher e os filhos, ou de tentar o reagrupamento familiar, ficando em causa o seu
direito à família.

Além disso, imputou a violação dos princípios da confiança, da decisão, da


eficiência, da celeridade e da boa administração, previstos no CPA, porque solicitou a
autorização de residência, instruiu o processo com os documentos necessários, pagou as
taxas devidas e preencheu os pressupostos legais para ver o pedido de autorização deferido
- tal como vêm previstos nos artigos 82.º, n.º 3, 105.º, n.º 3, 117.º, n.º 7, 129.º n.º 6, da Lei
n.º 23/2007, de 04-07 e 70.º, n.º 2, mas esperava há 22 meses a emissão do título de
residência e pleiteou o reconhecimento do deferimento tácito.

4
2.3 Da fundamentação do acórdão

O Tribunal manifestou desde logo que a decisão recorrida teria de ser revogada. O
erro dessa decisão, resulta do fato de ter conhecido no despacho liminar a que alude o art.º
109.º, n.º 1, do CPTA, não apenas dos pressupostos processuais da intimação, mas, ainda,
do mérito do pedido subsidiário como improcedente. O conhecimento do mérito do pedido
subsidiário só poderia ocorrer, primeiro, se a intimação fosse admitida e prosseguisse até
ao final dos articulados e, depois, se claudicasse o pedido feito a título principal.

Também afirmou que não se pode considerar, em sede de despacho liminar, que
não estão verificados os pressupostos para o uso da intimação para a defesa de direitos,
liberdades e garantias.

Ademais, afirmou que a instrução ficou prejudicada ao passo que com a rejeição
liminar, a demandada não foi citada para apresentar contestação e, consequentemente, não
juntou o processo administrativo aos autos.

O Tribunal, ao apreciar o extrato de remunerações visualizou que a partir de Junho


de 2017 as remunerações auferidas Recorrente diminuíram para cerca de ½ ou 1/3 daquilo
que vinha auferindo anteriormente.

Aduziu também que não é possível concluir uma inércia imputável ao Recorrente
que retire o carácter de urgência na tutela judicial, tal como vem indicado no art.º 109.º, n.º
1, do CPTA. Diversamente, o Recorrente em 11-10-2017 insistiu junto do SEF para saber
informações acerca dos seus pedidos e em 05-11-2017 o apresentou a ação inicial.

Assim, no que concerne à urgência no uso do meio processual intimação para a


defesa de direitos, liberdades e garantias, frente ao alegado pelo Recorrido, o Tribunal
considerou um pressuposto verificado.

Considerou também existir uma necessidade imediata do título ou da autorização


para poder o Recorrente se manter a residir legalmente em Portugal e continuar a viver e a
trabalhar na qualidade de estrangeiro com título legal para permanecer no país, sendo uma
condição sine qua non para que consiga uma integração no mercado de trabalho, de forma
igualmente legal, e para que beneficie dos demais direitos que invocados, qual sejam, à
segurança, à tranquilidade, à liberdade de circulação ou à saúde.

Entretanto, quanto ao invocado direito à família e ao reagrupamento familiar, o


Tribunal entende que não estará diretamente ameaçado, pois só após a concessão do direito
a residir no território fará sentido a invocação destes direitos.

Quanto ao mérito do pedido subsidiário, o Tribunal entende não fazer sentido


5
ocorrer naquela fase processual, em que ainda não terminaram os articulados. Não cabe tal
análise quando antes de aferir o pedido feito principal.

Assim, revogou a decisão recorrida que rejeitou liminarmente a intimação e


determinou a baixa dos autos para que admissão da PI apresentada, fazendo o processo
prosseguir.

3. Comentários pontuais

3.1. Breve análise da prática administrativa do SEF extra acórdão


Atualmente, podemos definir através da leitura do Decreto-Lei nº 240/2012, de 6
de novembro, que aprova a estrutura orgânica e define as suas atribuições que o SEF é um
serviço de segurança, com autonomia administrativa e parte integrante do Ministério da
Administração Interna (MAI) e tem por objetivos o controle das fronteiras, a permanência
e atividades de estrangeiros em território nacional, e também atua como órgão de polícia
criminal.
Também, é de amplo conhecimento o crescente fenómeno imigratório em Portugal
e a intenção do governo em fomentar a imigração nos próximos anos. Essa intenção vem
expressa no Programa do XXII Governo Constitucional 2019-20231. E aqui, importante
destacar que, como ensina DIOGO FREITAS DO AMARAL, a política tem como fim
específico definir o interesse geral da coletividade e a Administração Pública existe para
realizar em concreto o interesse geral definido pela política2.

O programa referido deixa muito claro que o país precisa da imigração para
sustentar o seu desenvolvimento, tanto no plano económico como no demográfico. Ocorre
que o SEF parece não estar alinhado com a execução administrativa pretendida. Tanto que
o governo faz menção específica de intenção de alteração na organização administrativa do
SEF, quando propõe estabelecer uma separação orgânica muito clara entre as funções
policiais e as funções administrativas de autorização e documentação de imigrantes.

Importante destacar a consideração feita em 2019 para justificar tal alteração no


SEF:
“Quem imigra ou pretende imigrar não pode ser visto, a priori, como um suspeito.
Ao invés, deve ser encarado como alguém em busca de melhores oportunidades

1
Programa do XXII Governo Constitucional 2019-2023. Disponível em:
https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/documento?i=programa-do-xxii-governo-constitucional
[acesso em 19/12/2020 20:30:00], pp. 114-120.
2
DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de direito administrativo”, vol. I, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2020,
p. 40. 6
de vida e que, verificados os condicionalismos legais, pode dar um contributo útil
para a sustentabilidade demográfica e o desenvolvimento económico do nosso
país. Importa, pois, respeitar a dignidade de quem procura o nosso país para viver,
assegurando um exercício adequado e proporcional dos poderes de autoridade por
parte do Estado. Assim, e sem prejuízo de uma atuação determinada no combate
às redes de tráfico humano ou na prevenção do terrorismo, há que reconfigurar a
forma como os serviços públicos lidam com o fenómeno da imigração, adotando
uma abordagem mais humanista e menos burocrática, em consonância com o
objetivo de atração regular e ordenada de mão-de-obra para o desempenho de
funções em diferentes setores de atividade3”.

Respeitar a dignidade dos imigrantes, adotando uma abordagem mais humanista e


menos burocrática faz ligação imediata com os direitos mais fundamentais do estrangeiro.
E se isso é sugerido em um programa de governo, podemos deduzir que não é aplicado nos
dias atuais pela administração.
Para fazer referência ao campo do direito administrativo, salientamos antes de
adentrar a esfera dos direitos fundamentais, um princípio básico da administração pública
não observado pelo referido Serviço. Qual seja, o princípio da desburocratização. Como nos
ensina ISABEL CELESTE M. FONSECA, este princípio “exige que os métodos de trabalho
da Administração evitem diligências e formalidades inúteis e facilitem a vida dos
cidadãos4”. Mais uma vez foi estabelecido no programa de governo uma aplicação de
modernização para (1) criar uma plataforma digital de relacionamento desburocratizado
com a Administração, encurtando os prazos de processamento da documentação dos
imigrantes, simplificar e agilizar as tipologias e o processo de obtenção de vistos e
autorizações de residência, nomeadamente diminuindo a complexidade dos títulos
existentes, dos procedimentos, dos prazos e do número de vezes que é necessário contactar
a Administração, caminhando para uma lógica de balcão único nestes processos; (2)
simplificar e encurtar os procedimentos de renovação dos títulos de residência em Portugal;
(3) estudar a implementação de um cartão de cidadão estrangeiro equiparado ao cartão de
cidadão, dispensando as duplicações na apresentação de documentos emitidos por entidades
públicas; dentre outras medida propostas5.

3
Programa do XXII Governo Constitucional 2019-2023. Disponível em:
https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/documento?i=programa-do-xxii-governo-constitucional
[acesso em 19/12/2020 20:30:00], pp. 116-117.
4
ISABEL CELESTE M. FONSECA, “Curso de direito administrativo – Teoria geral da organização
administrativa”, 1ª ed., Coimbra, Gestlegal, 2020, p.125-126.
5
Programa do XXII Governo Constitucional 2019-2023. Disponível 7em:
Ou seja, mais uma vez com estas previsões em um programa futuro, resta claro que
ainda não é moderna e desburocratizada a administração pública no que tange aos
estrangeiros. DIOGO FREITAS DO AMARAL diz que “é um princípio difícil de aplicar,
mas que consta da Constituição e impõe ao legislador, e à própria Administração, que esta
permanentemente se renove nas suas estruturas e nos seus métodos de funcionamento, para
conseguir alcançar tal objetivo6”.
Nosso estudo está baseado exatamente nessa ótica. As falhas na administração
pública no que tange aos imigrantes, com reflexos de abalo aos direitos mais fundamentais.
Uma atuação morosa, sem transparência e sem acesso a informação por parte do SEF,
influencia nos atos mais essenciais da vida humana.
O presente acórdão é um dos poucos exemplos que encontramos que enfrenta a
questão de limitação de direitos, liberdades e garantias por má atuação do SEF. E podemos
afirmar, com toda a certeza, que na prática são inúmeros os casos de imigrantes com a vida
suspensa pela atual prática administrativa do SEF.

3.2. Direitos fundamentais abordados no acórdão

Os direitos fundamentais representam aqueles garantidos em caráter jurídico-


institucional e vigentes em um ordenamento jurídico7, ou seja, com reconhecimento e
proteção em âmbito constitucional.

Questão interessante abordada no acórdão elucida que a falta de um título de


residência reflete em um feixe alargado de direitos de índole pessoal, que serão
reconduzíveis à tipologia de direitos, liberdades e garantias, quer com direitos económicos,
sociais e culturais, como o direito ao trabalho ou à saúde, que são direitos fundamentais não
integrados pela Constituição naquela primeira categoria, mas que quando analisados na sua
dimensão mais essencial, ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana e à própria
liberdade individual, terão de ficar abrangidos pelo regime aplicável àqueles direitos,
liberdades e garantias e logicamente pelo âmbito desta intimação.

Assim, a dignidade humana se manifesta nas diversas constituições (aqui em


Portugal no artigo 1.º da CRP), como um princípio que estrutura o Estado de Direito8, de

https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/documento?i=programa-do-xxii-governo-constitucional
[acesso em 19/12/2020 20:30:00], p. 117
6
DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de direito administrativo”, vol. I, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 2020,
p. 40.
7
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Almedina,
Coimbra, 2003, p. 393.
8
NOVAIS, Jorge Reis. A Dignidade da Pessoa Humana, Dignidade e Inconstitucionalidade, Vol. II, Almedina,
Coimbra, 2016, p. 35. 8
modo a balizar, inclusive, as decisões políticas. Nesse sentido, a dignidade humana tem a
capacidade de acrescentar seu conteúdo a todas as normas, como também orientar a sua
interpretação, de modo a evitar qualquer análise que eventualmente a viole9.

O acórdão refere que a falta de um título que permita a permanência legal do


estrangeiro no território nacional, se liga ao princípio da dignidade da pessoa humana
quando do abalo aos direitos à liberdade, à livre deslocação no território nacional, à
segurança (artigos 27.º e 44.º da CRP), à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), a
procurar trabalho, a trabalhar e à estabilidade no trabalho (artigos. 53.º, 58.º e 59.º da CRP)
ou à saúde (artigo 64.º da CRP). A vida quotidiana fica suspensa efetivamente, havendo
receios de uma possível expulsão, de se deslocar livremente, ou de se apresentar e celebrar
de negócios civis básicos, ou de deslocar-se a um hospital, ou de tentar alcançar trabalho,
ou, ainda, de reclamar as devidas condições para o trabalho que consiga angariar nessa
situação.

Realmente esses são os reflexos na vida de um estrangeiro sem um título de


residência válido e os abalos aos direitos do Recorrente devem mesmo serem considerados
como abalo ao direito ao desenvolvimento da personalidade, que é, indiscutivelmente, um
direito, liberdade ou garantia, e por isso o entendimento, ao nosso ver muito acertado por
parte do Tribunal, que merece comentário, de considerar o meio da intimação para proteção
de direitos, liberdades e garantias apto no caso em tela.

3.3. A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias

Sabemos da grande dificuldade de ser possível na prática a utilização dessa


ferramenta jurídica na proteção dos direitos fundamentais aqui em Portugal e, consideramos
tratar-se de uma ferramenta célere e justa na proteção básica individual. Esse também, além
do fato do acórdão tratar de uma situação que envolve um estrangeiro, é um dos pontos
decisivos na escolha da decisão para o presente estudo.

O acórdão explicita, nos termos do art.º 109.º, n.º 1, do CPTA, que “A intimação
para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão
de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva
ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito,
liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o
decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131º”.

9
PÉREZ, Jesús González. La Dignidad de la Persona y el Derecho Administrativo, Revista de Direito
Administrativo e Constitucional, ano 7, n. 29, Belo Horizonte, 2007, pp. 11-35. 9
Aduz o Tribunal que se trata de uma tutela subsidiária, configurada para ser
acionada quando os restantes meios processuais não se mostram suficientes para acautelar
aquela situação concreta. Assim, para o uso desta intimação exige-se (i) a urgente emissão
de uma decisão de mérito visando a proteção de um direito, liberdade ou garantia, ou um
direito fundamental de natureza análoga, nos termos do art.º 17.º da CRP; (ii) e que não seja
possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma
providência cautelar ou o recurso a qualquer meio cautelar.

Nesse sentido, nos ensinamentos de Carla Amado Gomes10 a possibilidade ou


suficiência, são as características que o decretamento deve revestir para demonstrar a sua
prevalência em face da intimação. Cabe ao juiz da intimação avaliar da impossibilidade ou
insuficiência hipotéticas do decretamento provisório, alegadas pelo requerente, antes de
admitir o pedido.

O acórdão elucida que a urgência da situação é evidente e trata-se de uma urgência


atual, pois enquanto o título de residência não for emitido ao Recorrente, ou enquanto a
autorização de residência não for concedida, o Recorrente padecerá de todos os males que
decorrem de estar ilegal no nosso país.

Há no acórdão o afastamento claro da utilização de meios cautelares


antecipatórios, por serem inidóneos no caso concreto. Quanto à possibilidade da convolação
da intimação em processo cautelar, também o acórdão refere não fazer sentido, pois
pretendendo-se a emissão de um título de residência ou, subsidiariamente, a condenação no
deferimento da autorização de residência e respectivo título, a eventual procedência dos
pedidos cautelares consumiria a decisão que pudesse ocorrer no processo principal.

Lamentavelmente, como ensina Jorge Reis Novais, existem dificuldades pelos


juízes administrativos em densificar o conceito de direito, liberdade ou garantia, ou por
adotarem concepções clássicas de distinção construídas pela doutrina e jurisprudência e
assim adotarem decisões absurdas ou adotarem decisões justas no sentido material, mas
com dificuldades de fundamentação à luz dos critérios tradicionais11.

10
GOMES, Carla Amado. Pretexto, contexto e texto da intimação para proteção de direitos, liberdades e
garantias, Instituto de Ciências Jurídico-políticas, Lisboa, 2003, p. 20.
11
NOVAIS, Jorge Reis. Direito, liberdade ou garantia": uma noção constitucional imprestável na justiça
administrativa? – Anotação ao acórdão do TCAS de 6.6.2007, P. 2539/07», CJA, n.º 73, JaneiroFevereiro, 2009,
p. 44-59. 10
4. Conclusões

O presente estudo objetivou uma análise de um acórdão em que estivesse presente


a proteção de direitos fundamentais em âmbito de direito administrativo, e também, por
uma linha de pesquisa adotada, que envolvesse limitações a direitos de cidadãos
estrangeiros que ficam sujeitos a atuação administrativa do SEF.
É comum a prática administrativa que o acórdão contempla, qual seja, de total falta
de segurança jurídica em relação aos atos praticados para obtenção de autorizações de
residência em sentido amplo, sejam elas por trabalho, por estudo, por investimento, por
reagrupamento familiar, sejam primeiras autorizações ou mesmo renovações, baseadas em
vistos de residência ou em regime de exceção. A maioria dos procedimentos do SEF deixam
margem para uma grande e profunda discussão acerca de limitações de direitos dos
estrangeiros: Direito à família, à liberdade de circulação, à segurança, à tranquilidade, à
saúde, mesmo ao trabalho digno.
Os atos administrativos do SEF de concessão de autorização de residência e
respectivo título de residência não devem continuar a serem tratados com morosidade, falta
de publicidade e informação ou falta de acesso ao processo administrativo em si. A violação
aos princípios da confiança, da decisão, da eficiência, da celeridade e da boa administração
previstos no CPA escoam na devastadora violação aos direitos fundamentais do estrangeiro,
como ocorreu no caso sub judice ora analisado.
Entretanto, infelizmente temos muito o que avançar na aplicação do Direito de
estrangeiros imigrantes em Portugal. É mínima a jurisprudência relacionada e ainda quando
os tribunais são provocados, surgem grandes inquietações por parte dos juízes no uso de
uma ferramenta célere e protetiva como é a intimação para proteção de direitos, liberdades
e garantias, conforme vimos no decorrer deste estudo.
Diante de todo o exposto, concordamos com a posição adotada pelo TAC Sul no
referido acórdão, no sentido de que a falta de uma autorização de residência/emissão de
título de residência por conduta alheia a vontade e ao agir do cidadão estrangeiro, cumpridos
todos os requisitos legais, seja considerada passível de proteção através do meio da IPDLG,
sob pena de imensa degradação dos direitos fundamentais.

11
5. Bibliografia

▪ FONSECA, Isabel Celeste M. “Curso de direito administrativo – Teoria geral da organização


administrativa”, 1ª ed., Coimbra, Gestlegal, 2020.
▪ AMARAL, Diogo Freitas do. “Curso de direito administrativo”, vol. I, 4ª ed., Coimbra,
Almedina, 2020.
▪ CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed.,
Almedina, Coimbra, 2003.
▪ NOVAIS, Jorge Reis. A Dignidade da Pessoa Humana, Dignidade e Inconstitucionalidade, Vol.
II, Almedina, Coimbra, 2016.
▪ NOVAIS, Jorge Reis. Direito, liberdade ou garantia": uma noção constitucional imprestável na
justiça administrativa? – Anotação ao acórdão do TCAS de 6.6.2007, P. 2539/07», CJA, n.º 73,
JaneiroFevereiro, 2009, p. 44-59.
▪ PÉREZ, Jesús González. La Dignidad de la Persona y el Derecho Administrativo, Revista de
Direito Administrativo e Constitucional, ano 7, n. 29, Belo Horizonte, 2007.
▪ GOMES, Carla Amado. Pretexto, contexto e texto da intimação para proteção de direitos,
liberdades e garantias, Instituto de Ciências Jurídico-políticas, Lisboa, 2003.

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