Você está na página 1de 9

Teoria Geral do Direito Civil

1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

I
Antónia tirou várias fotografias a Benta, jogadora profissional de futebol, enquanto esta
passeava pela Baixa de Lisboa. Benta, apercebendo-se do sucedido, pretende que Antónia
apague as fotografias, mas esta recusa-se, argumentando que foram tiradas na via pública.
Quid juris?
Perante a recusa de Antónia, Benta resolve lançar uma campanha nas redes sociais, che-
gando a vários milhares de pessoas, com a afirmação de que Antónia foi despedida do úl-
timo empregue por furtar. Antónia pretende uma indemnização por violação da sua honra.
Benta argumenta que é verdade: Antónia foi apanhada a colocar no bolso vários rebuçados
e uma caneca. Quid juris?

RESOLUÇÃO
Está em causa o direito de personalidade de Benta à sua imagem. Este direito encontra-se
consagrado, enquanto direito de personalidade especial, no art. 79.º do Código Civil e, en-
quanto direito fundamental, no art. 26.º, n.º 1, da CRP.
O direito de personalidade à imagem permite especificamente a Benta aproveitar a sua
representação física, isto é, a sua imagem. Por outras palavras, outras pessoas (como Antó-
nia) não podem aproveitar a imagem de Benta.
Antónia ao tirar uma fotografia a Benta reproduziu a imagem desta no seu telemóvel/má-
quina fotográfica. [não está em causa a exposição da imagem ou o seu lançamento no co-
mércio].
De acordo com o disposto no art. 79.º, n.º 1, essa reprodução faz parte do conteúdo do
direito de personalidade de Benta, pelo que lhe está reservada.

1
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

Há algumas excepções à exclusividade da utilização da imagem pelo titular do direito de


personalidade, previstas no art. 79.º, n.º 2. Com relevo para o caso, temos a regra que per-
mite a utilização da imagem por terceiros sem consentimento do titular quando a notorie-
dade da pessoa retratada justifique essa utilização ou quando a reprodução da imagem vier
enquadrada na (reprodução) de lugares públicos.
Considerando que Benta passeava na Baixa lisboeta, devemos entender que a sua notori-
edade (jogadora profissional de futebol) não justifica a reprodução da imagem por Antónia.
Benta aparece como pessoa privada e não como jogadora de futebol ou como atleta. A no-
toriedade que alcançou não tem qualquer relação com a situação em que a sua imagem está
a ser captada, pelo que não é possível aplicar esta excepção. [esta justificação deve ser apre-
sentada por referência ao teor do art. 79.º, n.º 2, quando exige que a notoriedade justifique
a reprodução da imagem e não apresentada em abstracto, como se de um dogma se tra-
tasse]
Explicita-se que há pessoas cuja notoriedade, adquirida originariamente num determi-
nado âmbito, extravasa esse âmbito. Sem outros elementos de facto, não podemos admitir
que Benta seja uma dessas pessoas.
De acordo com os dados da hipótese, as fotografias foram tiradas a Benta e não, por exem-
plo, ao arco da Rua Augusta debaixo do qual estava Benta ou à estátua de D. João I junto à
qual estava Benta. Ou seja, a imagem de Benta não estava enquadrada na de lugares públi-
cos, pelo que também esta excepção não é aplicável.
Em conclusão, as fotografias tiradas por Antónia constituem uma violação ao direito à
imagem de Benta.
A consequência da violação do direito à imagem é a responsabilidade civil (art. 483.º, n.º
1) e, nos termos do art. 70.º, n.º 2, providências adequadas às circunstâncias do caso com o
fim de atenuar os efeitos da ofensa já cometida. Apagar as fotografias constitui, sem dúvida,
2
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

uma providência adequada a atenuar os efeitos da ofensa já cometida (e evita novas viola-
ções com a eventual disseminação ou exibição da fotografia por Antónia).
Portanto: Benta pode exigir que Antónia apague as fotografias.
[É duvidoso que se possa afirmar que Antónia violou a reserva da vida privada de Benta.
Tirar uma fotografia a uma pessoa, sem outras particularidades (por exemplo, estar acom-
panhada por outra pessoa, estar num local onde não deveria estar, estar num local ou com
uma pessoa ou a realizar uma actividade que não era conhecida ou é reservada), não viola
a reserva da vida privada da pessoa. Apenas mostra o seu rosto/corpo.]

Os factos subsequentes evidenciam uma eventual violação do direito à honra de Antónia,


dependendo da posição adoptada acerca da exceptio veritatis. São aceites duas respostas,
desde que bem justificadas e coerentemente apresentadas.
O direito à honra consiste, para estes efeitos, na permissão normativa específica de Antó-
nia aproveitar a consideração social de que beneficia. Quer em termos não patrimoniais
quer em termos patrimoniais. O direito à honra encontra-se consagrado no art. 70.º, n.º 1
do Código Civil e no art. 25.º, n.º 1, da CRP. Existe, igualmente, uma consagração ao nível da
responsabilidade civil, no art. 484.º do Código Civil.
É indubitável que afirmar, perante audiências de milhares de pessoas, que alguém furtou
e que isso foi a causa do seu despedimento, é um facto que ofende a honra de uma pessoa.
Furtar é um crime e, em todas as sociedades, é um acto muito mal visto, conduzindo à os-
tracização das pessoas que o praticam.
Salienta-se, neste caso, quer o facto de a afirmação ter chegado a milhares de pessoas,
quer o potencial de chegar ainda a mais (através do modo de funcionamento das redes so-
ciais), quer, ainda, o facto de Benta ter sido especialmente mesquinha ao dizer simples-
mente que Antónia havia furtado e, por isso, sido despedida, quando estava em causa furtar
3
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

rebuçados e uma caneca. Sem prejuízo de ter existido um furto, a verdade é que é natural
que os destinatários da frase de Benta imaginem que Antónia furtou muito mais do que
rebuçados e uma caneca. Em geral, furtar rebuçados e uma caneca não conduz a despedi-
mento.
O Código Penal consagra a verdade ou a verosimilhança dos factos relatados como circuns-
tâncias que afastam a punibilidade do crime de difamação. Alguns Autores, com base no
argumento da unidade do sistema jurídico e no próprio conceito de honra (uma pessoa não
pode beneficiar da consideração social relativamente a factos que não correspondem à ver-
dade) entendem que não existe ofensa à honra se os factos imputados forem verdadeiros.
Quem sustentasse esta tese, teria ainda de justificar a forma como Benta apresentou os
factos “Antónia foi despedida por furtar” e não “Antónia foi despedida por furtar rebuçados
e uma caneca”. Dizer a verdade não é dizer “meias-verdades”, que convidam os destinatá-
rios da mensagem a imaginar muito mais do que aquilo que se disse e, em caso de necessi-
dade, parecem permitir ao autor da mensagem escudar-se na exceptio veritatis.
A relevância da exceptio veritatis deve ser afastada no Direito civil de acordo com os se-
guintes argumentos interpretativos: (i) o elemento literal: o artigo 484.º não faz qualquer
menção à relevância da veracidade ou da verossimilhança; (ii) o elemento sistemático: a
diferença entre o regime civil e o regime penal; (iii) o elemento histórico: essa menção, que
constava do anteprojecto inicial de Vaz Serra, foi retirada aquando da 2.ª Revisão Ministe-
rial; e (iv) o elemento teológico: a conjugação dos três primeiros elementos permite susten-
tar que o legislador não pretendeu excluir do âmbito de aplicação do artigo 484.º violações
do direito à integridade moral fundadas na propagação de factos verdadeiros elemento lite-
ral do art. 484.º.
Em função da posição tomada quanto à exceptio veritatis, deve concluir-se acerca da exis-
tência do dever de Benta indemnizar Antónia (artigos 484.º e 483.º).
4
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

[Não é correcto sustentar a violação do direito à reserva da vida privada. Os crimes não
fazem parte da vida privada das pessoas e, mesmo que tenham sido cometidos em ambien-
tes reservados, o ordenamento jurídico não permite, por definição, o seu tratamento como
algo de privado.]

II
Carlos, menor de 7 anos, vendeu a sua bicicleta a Duarte, seu vizinho, por 100€. Chegando
a casa, Carlos constou a seu pai – Eduardo – que havia somente emprestado a bicicleta.
3 anos volvidos, Eduardo descobre o que realmente se passou e decide confrontar Duarte.
A conversa corre mal e Eduardo pretende anular o negócio celebrado por seu filho. Duarte
ri-se e diz que já não é possível por três razões:
1. Já passou imenso tempo;
2. Carlos por diversas vezes confirmou o negócio;
3. Quando celebram o negócio, Carlos referiu, expressamente, que tinha autorização
dos pais para vender a bicicleta.
Quid juris?

RESOLUÇÃO
Carlos, de 7 anos, é menor (art. 122.º). Os menores são genericamente incapazes de exer-
cício (art. 123.º). No entanto, atendendo à amplitude das excepções à incapacidade dos me-
nores, é necessário confirmar se Carlos teria capacidade para celebrar o contrato de compra
e venda da bicicleta.
As excepções à incapacidade dos menores vêm previstas no art. 127.º. Dessas excepções,
neste caso, apenas a que consta da al. b) do n.º 1 é abstractamente susceptível de aplicação
ao caso. Vender uma bicicleta não é um negócio da vida corrente de um menor de 7 anos
5
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

nem implica apenas disposições de bens de pequena importância. Está em causa uma bici-
cleta (e não os 100€ - que podem ter sido um valor desadequado para a bicicleta). Não sa-
bemos o valor da bicicleta, mas, em geral, uma bicicleta é um objecto que não pode definir-
se como bem de pequena importância. A vida corrente de uma criança de 7 anos não inclui
transaccionar bicicletas, sendo também difícil admitir que Carlos compreendesse as impli-
cações de vender a bicicleta (isto é, ficar sem ela e sem as utilidades que a bicicleta lhe pro-
porcionava).
O negócio celebrado por Carlos é, portanto, anulável. [só depois de se chegar a esta con-
clusão é que se deve passar à aplicação do disposto no art. 125.º].
Eduardo, pai de Carlos, pode anular o negócio celebrado pelo filho, nos termos do art.
125.º, n.º 1, al. a). De acordo com o disposto nesse artigo, o prazo de um ano para o pai
anular o negócio começa a correr a partir do momento em que o pai tomar conhecimento
do negócio (desde que o menor, entretanto, não tenha atingido a maioridade ou não se
tenha emancipado).
Alguma Doutrina entende que o conhecimento não se basta com o mero conhecimento: o
prazo começa a correr quando o pai devesse ter conhecimento (ainda que, efectivamente,
não o tivesse tido). Neste caso, atendendo a que Carlos disse ao pai que emprestara a bici-
cleta, o pai não estranhou a falta da bicicleta. É verdade que Eduardo podia achar estranho
que o filho houvesse emprestado a bicicleta por um período tão alargado de tempo, mas,
daí até concluir que o filho lhe havia mentido e que celebrara um contrato de compra e
venda da bicicleta com Duarte vai uma distância muito significativa. Ou seja, com os dados
da hipótese, a conclusão natural seria a de que Eduardo não conheceu o negócio senão
agora e não tinha elementos que exigissem que, no exercício da sua função de titular do
poder paternal, devesse ter conhecimento antes dessa data.

6
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

Duarte apresenta ainda dois outros argumentos: a confirmação do negócio pelo Carlos e
o facto de Carlos lhe ter tido que Eduardo havia autorizado o negócio.
Quanto ao argumento da confirmação, é ele improcedente, pois o menor não tem capaci-
dade para confirmar o negócio anulável (art. 125.º, n.º 2). [Eduardo também não poderia
confirmar, pois, de acordo com o disposto nos artigos 125.º, n.º 2, in fine e 1889.º, n.º 1, al.
a), não poderia confirmar o negócio].
O outro argumento também é improcedente: a autorização (rectius assistência) não é a
forma de suprimento da incapacidade dos menores. Ou seja, para que o negócio fosse vá-
lido, o pai de Carlos teria de representar o filho na sua celebração e não, apenas, autorizar
o menor a celebrar o contrato. Este facto retira significado ao argumento implícito de Duarte
de ter sido enganado pelo menor. Com efeito, mesmo que o que Carlos dissera fosse ver-
dade, Duarte não poderia ficar descansado acerca da validade do negócio. [não é aplicável
a este caso o disposto no art. 126.º pois Carlos não se fez passar por maior. Poderia argu-
mentar-se no sentido de ampliar a norma a todos os casos em que o menor mente de modo
a fazer acreditar que o negócio é válido, mas, como se viu, não era esse o caso, pois a auto-
rização não conduz à validade do negócio].
Em conclusão: o negócio é anulável e Eduardo pode anulá-lo.

III
A Associação do Direito Civil (ADC), devidamente registada, celebrou com a Empresa de
Catering Bom (ECB) um contrato de fornecimento de serviços e bens alimentares para a
realização de uma festa de Halloween. A festa, em resultado da pouca adesão, deu um pre-
juízo significativo.
a) A ECB, apercebendo-se que a ADC não tem meios para pagar os serviços prestados,
envia a conta para o Presidente da Associação: o Guilherme. Quid juris?
7
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

RESOLUÇÃO
As associações adquirem personalidade jurídica automaticamente, com a sua constituição
e subsequente registo (art. 158.º, n.º 1).
Atendendo a que há “associações sem personalidade jurídica” (as associações submetidas
ao regime dos art. 195.º e ss), importa caracterizar a ADC como associação com personali-
dade jurídica: considerando que o enunciado diz sobre a ADC “devidamente registada”, isso
significa que estamos perante uma associação submetida ao regime dos artigos 167.º e ss.
e não dos artigos 195.º e ss.
A personalidade, em geral, é acompanhada de autonomia patrimonial plena. Ou seja: pe-
los actos da pessoa colectiva responde, exclusivamente, o seu património. O regime das as-
sociações não apresenta qualquer excepção a este regime.
A dívida da ADC para com a ECB teria de ser paga, portanto, apenas, com o património da
ADC. Na falta deste, poderia requerer-se a declaração de insolvência da ADC ou poderia a
ECB, querendo, aguardar por melhores dias da Associação para que pudesse ser paga,
[A mera inexistência de património da ADC não permite a aplicação do disposto no art.
164.º para responsabilizar Guilherme. A responsabilidade de Guilherme exige a culpa deste
no exercício das suas funções. Por outro lado, este artigo não pode ser aplicado com o ob-
jectivo de proporcionar o pagamento à ECB: o art. 164.º permite a responsabilização do ad-
ministrador perante a ADC e não perante os credores desta]

b) Um grupo de associados da ADC pretende que o contrato celebrado entre a ADC e a


ECB seja declarado nulo, com o argumento de que o objeto social da ADC consiste
somente na divulgação da Ciência Jurídica. Quid juris?

8
Teoria Geral do Direito Civil
1.º ano Turma C, 30 de Novembro de 2023

RESOLUÇÃO
A pretensão deste grupo de associados funda-se no princípio da especialidade, consa-
grado no art. 160.º. De acordo com este princípio, a capacidade de gozo da pessoa colectiva
é limitada pelo seu objecto. Explicita-se, pelo seu objecto e não apenas pelo fim não lucra-
tivo. O argumento deste grupo de associados supõe que cada acto da associação terá de se
conter no âmbito do objecto da associação (a promoção do Direito Civil).
O princípio da especialidade é muito contestado e há, inclusivamente, Autores que enten-
dem que, do ponto de vista científico, se encontra ultrapassado.
No entanto, o argumento deste grupo de associados é improcedente em qualquer das ori-
entações acerca do princípio da especialidade. O princípio da especialidade não veda cate-
gorias de actos nem sequer actos concretos que prima facies não se destinem à prossecução
do objecto social. É sempre necessário verificar se o acto se insere, de algum modo, no ob-
jecto social da ADC. Por exemplo, a festa poderia estar a ser oferecida como um momento
para confraternização dos associados ou como uma ocasião para apresentar algum trabalho
de Direito civil. Em suma, com os elementos disponíveis, não seria possível entender que o
negócio em causa era nulo por se encontrar fora do objecto social da ADC.
[É incorreto aplicar o disposto nos artigos 177.º-179.º: os associados não pretendiam anu-
lar uma deliberação social (mas, sim, declarar a nulidade de um contrato). Nem sequer sa-
bemos se existe uma deliberação da assembleia geral na origem da festa de Halloween (é
natural que não haja, é natural que a festa decorra, simplesmente, de uma decisão de ges-
tão).]

Você também pode gostar