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SOMENTE PAR CIRCULAÇÃO INTERNA. Retirado do livro: CARRENHO, E.

, TASSINARI,
M., PINTO, M.A. Praticando a Abordagem Centrada na Pessoa: dúvidas e perguntas mais
frequentes. SP: Carrenho, 2010.

(p. 95 a 106) A Abordagem Centrada na Pessoa e suas dimensões:

Psicoterapia Breve e/ou Plantão Psicológico? (Marcia)

Na contemporaneidade assistimos a ampliação da Psicologia Clínica, saindo da vertente


meramente curativa, de tratamento em consultórios individuais, de longa duração, fundamentados
prioritariamente na psicanálise freudiana para trabalhos com grupos e/ou indivíduos em diferentes
contextos (hospital, comunidades, organizações, delegacias, etc), de curta duração, fundamentados
em diversas orientações teóricas, contemplando também a dimensão preventiva e de crescimento
pessoal, tendo o psicólogo o papel de agente de mudança social.
A denominação Psicoterapia Breve (PB) teve origem na própria Psicanálise, como uma
resposta à demanda social das guerras, especialmente da Primeira Guerra, quando os médicos
psiquiatras e psicólogos precisaram responder à necessidade de atendimento ao sofrimento gerado
pelas consequencias da guerra. A possibilidade existente e que estava se constituindo era a
psicanálise, que precisava ser individual, de longa duração e com ritmo de 3 a 5 vezes por semana,
o que tornaria impraticável trabalhar com as pessoas necessitadas.
A possibilidade de um atendimento breve, por alguns denominado de psicoterapia de crise
(Mofat, citado em Small, 1974) ou de Emergência (Bellak & Small, 1980) surgiu nessa época como
uma tentativa de responder a situações de crise, especialmente ao aumento de reações depressivas.
Na época, a orientação teórica predominante era a Psicanálise, que, encontrando dificuldades
práticas para aplicar suas técnicas, viu-se forçada a introduzir reformulações, inicialmente na prática
e, posteriormente na teoria. Assim, nasceu o conceito de “foco”, desenvolvendo-se uma psicoterapia
em torno de um tema ou problemática ou conflito central, que podia ser realizada em um tempo
delimitado a priori.
Desde então, a psicoterapia breve tem sido muito utilizada em situações de crise, em
serviços de emergência psiquiátrica. Para Small (1974) o serviço de emergência pode ser encarado
como um “meio de reduzir as demoras experimentadas nos serviços de saúde mental, demoras essas
que só contribuem para o agravamento de condições sérias” (p.14). Nos momentos de crise, “uma
ajuda rápida e eficaz pode resultar numa diminuição do sofrimento, no encurtamento do período de
perturbação e numa maior realização para a vida do indivíduo” (p.14).
A maioria dos autores que pratica a psicoterapia breve são oriundos da psicanálise. Sifneos
(citado em Bellak, 1992) propõe um método de tratamento a curto prazo com pacientes pré-
selecionados, enquanto Mann (Ibid.) focaliza a ansiedade de separação. Bellak (Ibid.),
sistematizando a psicoterapia breve ou de emergência, afirma que ela “focaliza no que foi
pobremente aprendido, o que necessita ser desaprendido e reaprendido de maneira mais eficaz”
(p.4), selecionando os sintomas principais e mais perturbadores, além de suas causas.
O’Hara (1998) interessada na duração ótima de um processo psicoterápico centrado na
pessoa e bem sucedido, realizou um levantamento informal via Internet, confirmando estudos
anteriores que apontaram resultados positivos para processos que duram em torno de 20 sessões,
outros reportando uma média de 8 sessões. Ainda que a proposta da psicoterapia centrada na pessoa
não seja focal, O’Hara considera que esse modelo de psicoterapia tem muito a oferecer ao que é
denominado de psicoterapia breve, mesmo trabalhando com a pessoa inteira e não apenas com
focos ou demandas. Em 1942, Rogers já declarava que a terapia não diretiva, como era então
denominada, podia oferecer ajuda positiva e duradoura em um curto espaço de tempo.
O desenvolvimento do campo da psicoterapia breve apontava para a fragilidade da
psicologia clínica clássica. Esta entende que qualquer sofrimento humano necessita de tratamento
longo, várias vezes por semana. Em função de mudanças sócio-políticas, da ampliação do conceito
de saúde e da expansão da própria Psicologia, esta concepção de clínica psicológica tem sido
desconstruída para responder, de maneira mais adequada, às novas demandas da modernidade.
A proposta do atendimento em Plantão Psicológico vem preencher parcialmente essa lacuna,
adequando-se às necessidades da pessoa que necessita conversar com um profissional capaz de
ajudá-la a entender melhor sua realidade, em seus momentos de aflição. Aguardar numa longa fila
de espera e/ou submeter-se às entrevistas de triagem para avaliação e encaminhamento são
procedimentos que parecem dificultar o engajamento na psicoterapia, especialmente para as pessoas
que encontram-se pouco interessadas no processo de reconstrução da personalidade, mas que
precisam de uma atenção especial em determinados momentos de suas vidas.
Ainda que a atividade do Plantão não seja nova no Brasil (surgiu em 1969), a primeira
sistematização pública apareceu no final da década de oitenta (Rosenberg, 1987). Atualmente nota-
se um número crescente de profissionais e instituições inovando seus atendimentos, encontrando no
Plantão respostas a muitas de suas inquietações, em especial a aplicabilidade da Psicologia em
instituições.
Inicialmente visto como uma proposta alternativa, o Plantão tem conquistado espaços,
constituindo-se como uma modalidade independente de ajuda psicológica. Mahfoud (1999) nos
esclarece: “O próprio Conselho Federal de Psicologia chegou a se pronunciar em documento
oficial, classificando Plantão Psicológico dentre as técnicas alternativas emergentes. Alternativa
de maneira distinta daquelas de origem confusa ou esotérica, mas entendida como proposta
inovadora, que em certa medida rompe parlivro Estherâmetros estabelecidos e que ainda estava
aguardando uma avaliação\mais rigorosa de sua eficácia pelas instituições de ensino superior e de
pesquisa” (p.43).
Em uma primeira aproximação pode-se definir o Plantão Psicológico como um tipo de
atendimento psicológico, que se completa em si mesmo, realizado em uma ou mais consultas sem
duração pré-determinada, objetivando receber qualquer pessoa no momento exato de sua
necessidade para ajudá-la a compreender melhor sua emergência e, se necessário, encaminhá-la a
outros serviços. Tanto o tempo da consulta, quanto os retornos dependem de decisões conjuntas
(plantonista/cliente) no decorrer do atendimento. É exercido por psicólogos que ficam à disposição
das pessoas que procuram espontaneamente o Serviço em local, dias e horários pré estabelecidos,
podendo ser criado em diversos locais e instituições. Em cada ambiente, precisará, criar estratégias
específicas, desde sua divulgação (processo de sensibilização à comunidade) até sua relação com a
própria instituição/local.
O encaminhamento para a psicoterapia ou para outras especialidades ou a realização do
psicodiagnóstico são objetivos secundários que não devem ocupar a atenção principal do
plantonista. O atendimento em Plantão não visa somente uma catarse, ainda que a inclua, mas
objetiva facilitar uma maior compreensão da pessoa e de sua situação imediata. O plantonista e o
cliente vão juntos procurar no "momento-já" as potencialidades inerentes que podem estar
adormecidas ou que precisem ser deflagradas a partir de uma relação calorosa, sem julgamentos,
onde a escuta sensível e empática, a expressividade do plantonista e seu genuíno interesse em
ajudar, desempenham papel primordial.
Nesse sentido, entendemos o Serviço de Plantão como uma atividade de promoção da saúde,
já que a escuta do plantonista visa possibilitar que a pessoa se situe melhor naquele momento e
consiga clarear para si mesma o que necessita. Acreditamos que ser atendida no momento de sua
necessidade, por iniciativa própria, estimula o cuidado consigo mesma, atingindo assim os objetivos
da prevenção primária.
O Plantão Psicológico pode ser uma potente aplicação da Abordagem Centrada na Pessoa,
permeado pelas atitudes de consideração positiva incondicional, compreensão empática e
congruência ou autenticidade, que fornecem um ambiente facilitador para a auto-expressão, bem
como a possibilidade de, em até um único encontro, a pessoa conseguir clarear sua demanda, ou
seja, uma compreensão mais nítida de como se compreende em determinada situação. Fundamenta-
se, assim como a Abordagem, no postulado central da Tendência Atualizante/Formativa, isto é, na
hipótese que assume o ser humano como um organismo vivo, global, digno de confiança, com
capacidade natural de desenvolvimento de suas potencialidades.
Para ilustrar, apresento um atendimento especial, que tive o privilégio de vivenciar como
plantonista. Trata-se de um menino, R., de 12 anos, da 1ª série do ensino fundamental, que veio a
primeira vez acompanhado de um grupo de quatro meninos e duas meninas, alguns querendo
desenhar, ou contar piadas ou acompanhar os colegas e outros sem explicitar o que queriam. No
meio da algazarra, comecei a colocar alguns limites e convidei-os a decidir o que faríamos, já que
os interesses eram conflitantes e as cadeiras e material expressivo eram insuficientes. Decidimos
que iríamos nos apresentar (eu já conhecia alguns) e R., me ajudou a manter os limites (falar um por
vez, não empurrar). Após as apresentações, começamos a conversar, o que foi logo em seguida
interrompido por outro aluno, avisando que a professora já estava em sala e todos saíram correndo.
R. avisou-me que retornaria. Quinze minutos depois, reaparece R., acompanhado da sua
professora, que pediu-me que conversasse um pouco com ele. Perguntei se ele também queria,
consentiu sorrindo e encaminhou-se direto à mesa para desenhar. Tentando saber porque veio
trazido pela professora, recebi respostas evasivas: "Vim porque sou o compositor da turma", "A
Professora gosta de mim porque respeito ela". Mas R. queria mesmo era desenhar a bandeira
brasileira, e começou a tarefa, enquanto cantarolava algo que eu não entendia. Tentei explorar sua
faceta de compositor e ele cantou uma música que fez para a professora e, em seguida, se ofereceu
para fazer uma música para mim, compondo um rap cujo conteúdo básico era a finalidade do
Plantão: "aqui é um lugar de 'conversamento', de fazer experiências e a tia Márcia pode me
entender...".
Continuando a desenhar a bandeira, pediu-me para escrever "aquela frase que tem na
bandeira, que eu esqueci". Suspeitei que seu pedido fosse por não saber escrever e, então, falei
"Ordem e Progresso". R. insistiu para que eu escrevesse a frase em seu desenho, pois "o lápis cera
não estava muito firme". Perguntei diretamente se ele precisava de minha ajuda por não saber
escrever muito bem. Ele desconversou, cantarolando outra música e aí tive um insight: comecei a
conversar com ele também cantarolando, no mesmo ritmo (rap). R. olhou para mim com uma
expressão mista de surpresa e cumplicidade, sorriu e continuamos a conversar cantando.
A partir deste momento, R. pôde falar de si (cantando), de sua família, de seu parceiro
musical, que o acompanhou ao "Programa famoso de TV" para cantar, e que depois foi assassinado
na chacina no Rio de Janeiro. Falou que já havia fugido de casa duas vezes, que tinha três irmãs e
uma havia sido vendida (sic) pela avó quando a mãe fora baleada e agora tinha uma irmã recém
nascida (22 dias) de quem gostava muito. Falou da vergonha que tem por não saber escrever direito
e que precisou sair da escola na época da chacina, vindo morar em próximo à escola (em um bairro
da zona sul) com a mãe, o padrasto e a irmã mais nova. Olhava-me com ternura, dizendo "seu nome
é parecido com o de minha mãe, que se chama M..... e vocês são até parecidas."
Terminou o desenho e fez mais duas bandeiras, variando as cores e, agora, copiando a frase
"Ordem e Progresso", demonstrando certo orgulho em estar sendo capaz de copiá-la "direitinho"
(sic). Uma bandeira seria para levar para a mãe e a outra, me deu de presente. Ao sair disse-me que
era muito bom ir ao Plantão, poder contar os segredos e desenhar. Saiu saltitante, dizendo que
voltaria na próxima semana.
A solidez de nosso vínculo interpessoal foi legitimada na semana seguinte, quando encontrei
R. me procurando na escola e, meio zangado, disse: "A sala do Plantão já está aberta desde às oito
horas e pensei que você não viesse hoje." Neste dia, o colégio havia organizado a feira de ciências e
a maioria dos alunos estava ocupada nas diversas barracas. Como não conseguia achar o inspetor
responsável pela chave da sala, fiquei passeando pela feira, julgando que não haveria alunos
interessados no Plantão, nesse dia. Fomos juntos para a sala do Plantão e agora R. podia conversar
mais abertamente, através do desenho, não necessitando de usar somente a música para se
expressar.
Nesse atendimento desenhou quatro corações, cortados por flechas, dois deles chorando
(gotas escorrendo). Comentei, num tom brincalhão: "Você sabia que o desenho fala?". Confirmou
com a cabeça, sorrindo. Quando fez o segundo coração, que chorava menos (quantidade menor de
lágrimas escorrendo), comentei: "Agora que você pode falar de sua tristeza, o coração está menos
triste". Ele não respondeu e, em seguida falou: "Você não sabe que o desenho fala?" e
complementou: "A garota que estou interessada não quer saber de mim". Disse-me também do
interesse que tem em desenhar, mas não pode freqüentar as aulas de artes por não saber escrever.
Antes de sair fez o meu coração (sic), cor de rosa, com meu nome escrito no centro. Como R.
apresentava dificuldade para escrever, fui soletrando, ele escrevendo, demonstrando muito prazer
em fazê-lo corretamente. O quarto desenho levou de presente para a mãe.
Minha emoção ficou evidente, ao perceber que, cantando, ao invés de conversar, estabeleci
uma "ponte" entre nós, criando uma linguagem comum. Não estávamos mais isolados. Interessante
notar que, cantar para mim, é extremamente constrangedor, pois sou muito desafinada. Pude ousar
por também me sentir aceita por ele. A percepção de R. de que eu o compreendia sem julgamentos,
levou-o a falar de si cantando. Antes estava se esquivando, dando respostas evasivas, não me
permitindo entrar em seu mundo interno.
O meu interesse genuíno em acolher sua experiência levou à maior autenticidade de R., na
atualização de suas potencialidades. Em um curto espaço de tempo, ao redor de 25 minutos,
estávamos próximos. A partir disso, ele pôde se revelar mais, clarear seu pedido de ajuda, ser mais
ele mesmo, falar de suas facetas pouco aceitas (não saber escrever, ter fugido de casa, não conseguir
conquistar a garota que deseja, não poder freqüentar a aula de artes e ser repetente) e também das
coisas que gosta, de seus valores (da irmã recém nascida, da forte ligação com a mãe, ser torcedor
do Flamengo, gostar de cantar e de compor músicas, de desenhar, da professora que o valoriza, da
sala do Plantão, etc.)
O retorno ao Plantão, explicitando o desejo de R. em continuar clareando sua aflição
demonstra a possibilidade desse serviço como gerador de movimentos, funcionando como uma
referência existencial. É como se R. tivesse percebido que encontraria um espaço de liberdade, onde
poderia se expressar, ser entendido, começar a se aceitar e avançar no auto conhecimento: "Somos
agentes de mudança social quando colaboramos em planejamentos institucionais, quando
oferecemos nossa presença no cotidiano da comunidade, ..." (Rosenberg, 1987, p. 11)

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